Sobre o ConCeito da doutrina da CiênCia  ou da aSSim Chamada FiloSoFia

Johann Gottlieb Fichte

Introdução, notas e tradução de Ricardo Barbosa[1]

introdução

Dispomos de uma excelente tradução para o português de Sobre o conceito da doutrina da ciência ou da assim chamada filosofia (1794). Ela foi realizada por Rubens Rodrigues Torres Filho para o volume que reuniu escritos de Fichte e Schelling, na primeira edição da Coleção “Os Pensadores” (São Paulo: Abril, 1973). O texto continuou a figurar nas edições seguintes dessa coleção, mas já num volume exclusivamente dedicado a Fichte. A razão dessa mudança foi a inclusão, a partir da segunda edição de “Os Pensadores”, da também excelente tradução da mais importante e difícil obra filosófica de Fichte: a Fundação de toda a doutrina da ciência (1794-95). Rubens Rodrigues Torres Filho tomou como base para a sua tradução de Sobre o conceito da doutrina da ciência ou da assim chamada filosofia o texto que se encontra no primeiro volume das Sämmtliche Werke de Fichte, organizadas pelo filho do filósofo, Immanuel Hermann Fichte. Este, por sua vez, reproduziu o texto da segunda edição (1798), da qual o próprio Fichte suprimiu o breve capítulo final, cuja tradução apresentamos aqui. Como se lê no prefácio do autor a essa nova edição, tratava-se de um capítulo “[...] que mesmo em sua redação primeira tinha apenas uma finalidade provisória, e cujo conteúdo foi posteriormente apresentado de maneira mais exaustiva e clara na Fundação de toda a doutrina da ciência”.

Mesmo provisório e superado, o terceiro capítulo se deixa ver como uma dobradiça a articular o primeiro escrito programático da filosofia de Fichte com a primeira exposição rigorosa dos seus princípios. Além disso, ele, por um lado, restitui ao leitor a configuração original daquele escrito que, como lembrou Jean Hyppolite, está para a obra de Fichte como o Discurso do método para a de Descartes; por outro lado, Fichte alude, no parágrafo final, aos problemas centrais das preleções públicas que planejara sobre o ethos do erudito, cujas cinco primeiras publicaria poucos meses depois: Algumas preleções sobre a destinação do erudito (1794).[2]

A alusão a tais problemas explica-se, em parte, pelo fato de que Sobre o conceito da doutrina da ciência foi escrito a pedido da curadoria da Universidade de Jena, no intuito de preparar previamente os estudantes e demais ouvintes para o primeiro contato com o pensamento do jovem filósofo convidado a assumir a cátedra até então ocupada por ninguém menos que Karl Leonhard Reinhold. Fichte marcou sua entrada em Jena com um gesto que repetiria em 1805, na Universidade de Erlangen, e em 1811, na recém-fundada Universidade de Berlim, da qual foi o primeiro reitor eleito: paralelamente a uma exposição sistemática e esotérica da doutrina da ciência, preleções públicas sobre o ethos do erudito. Tal gesto era a expressão viva do que Fichte sempre entendeu como o sentido fundamental de toda Bildung universitária.

A presente tradução serviu-se da ótima edição preparada por Edmund Braun (FICHTE, J.G. Über den Begriff der Wissenschaftslehre oder der sogenannten Philosophie. Stuttgart: Reclam, 1991). Ela também foi cotejada com a tradução francesa de Luc Ferry e Alain Renaut (FICHTE, J.G. Essais philosophiques choisis (1794-1795). Paris: Vrin, 1984). A paginação entre colchetes é a do texto original. Aos interessados pelas obras de Fichte, lembramos ainda que os 11 volumes das Sämmtliche Werke estão disponíveis para download via Google Livros e no acervo digital da Biblioteca Nacional da França (Gallica).

tradução

Sobre o ConCeito da doutrina da CiênCia  ou da aSSim Chamada FiloSoFia

Johann Gottlieb Fichte

[63] Terceiro capítulo

Divisão hipotética da doutrina da ciência

§ 8

A proposição fundamental absolutamente primeira, já que deve fundar não apenas uma parte do saber humano, e sim todo o saber, tem de ser comum a toda a doutrina da ciência. Uma divisão é possível apenas por oposição, cujos termos, porém, têm de ser idênticos a um terceiro.[3]

Posto que o Eu seja o conceito supremo e que ao Eu seja oposto um Nãoeu, é então claro que este último não possa ser oposto sem ser posto, e na verdade sem ser posto no conceito supremo, no Eu. Portanto, o Eu seria considerável sob dois [64] aspectos: como aquilo em que o Não-eu é posto e como aquilo que seria oposto ao Não-eu, e que por isso estaria ele mesmo posto no Eu absoluto. O último Eu deveria ser idêntico ao Não-eu, na medida em que ambos estão posto no Eu absoluto, e deveria ser ao mesmo tempo, sob o mesmo aspecto, oposto a ele. Isto poderia ser pensado no Eu apenas sob a condição de um terceiro termo, no qual ambos seriam iguais, e este terceiro termo seria o conceito de quantidade. Ambos teriam uma quantidade determinável pela sua oposição.[4] Assim, por um lado, o Eu é determinado (segundo a sua quantidade) pelo Não-eu. Ele é, nesse sentido, dependente; ele se chama inteligência, e a parte da doutrina da ciência que trata desta é a parte teórica. Ela é fundada sobre o conceito da representação em geral, a ser deduzido das proposições fundamentais e demonstrado por elas.[5]

Mas, por outro lado, o Eu devia ser absoluto e pura e simplesmente determinado por si mesmo: se ele é determinado pelo Não-eu, então ele não se determina a si mesmo, o que é contraditório com a proposição fundamental suprema e absolutamente primeira. Para desfazer essa contradição, temos de admitir que o Não-eu, que deve determinar a inteligência, seja ele mesmo determinado pelo Eu, [65] que nesta circunstância (Geschäfte) não seria representante, e sim teria uma causalidade absoluta. – Mas como uma tal causalidade suprimiria totalmente o Não-eu oposto, e com ele a representação dependente dele, razão pela qual a admissão da mesma contradiz a segunda e a terceira proposição fundamental, então ela tem de ser representada como contradizendo a representação, como irrepresentável, como uma causalidade que não é uma causalidade. Mas o conceito de uma causalidade que não é causalidade é o conceito de um esforço (Streben). A causalidade é pensável apenas sob a condição de uma aproximação finita do infinito, a qual não é ela mesma pensável. – Este conceito de esforço, a ser demonstrado como necessário, é colocado ao fundamento da segunda parte da doutrina da ciência, que se chama a parte prática.

Esta segunda parte é em si de longe a mais importante; a primeira não é decerto menos importante, mas apenas como fundação da segunda e porque esta é pura e simplesmente incompreensível sem ela. Somente na segunda parte, a parte teórica recebe sua delimitação segura e sua sólida fundação, na medida em que, a partir do esforço necessário estabelecido, são respondidas as perguntas: por que temos de representar em geral sob a condição de uma afecção existente; com que direito referimos a representação a algo fora de nós como à sua causa; com que direito admitimos em geral uma faculdade de representação inteiramente determinada por leis (leis que não são representadas como nativas da faculdade de representação, e sim como leis do Eu que se esforça, cuja aplicação [66] é condicionada pela ação exercida sobre o sentimento pelo Não-eu que se esforça em sentido contrário). Nesta segunda parte, são fundados uma nova teoria inteiramente determinada do agradável, do belo e do sublime, da legalidade da natureza em sua liberdade, da doutrina de Deus, do assim chamado entendimento humano comum ou do sentido natural da verdade e, finalmente, um direito natural e uma doutrina dos costumes, cujas proposições fundamentais não são meramente formais, e sim materiais.[6] Tudo isso pelo estabelecimento de três absolutos. Um Eu absoluto sob leis autodoadas, representáveis sob a condição de uma ação do Não-eu; um Não-eu absoluto, independente de todas as nossas leis e livre, representável sob a condição de que ele as expressa positiva ou negativamente, mas sempre num grau finito; uma faculdade absoluta em nós, representável sob a condição de que ela distinga uma ação do Não-eu de um efeito do Eu ou de uma lei, uma faculdade de nos determinar pura e simplesmente a nós mesmos, conforme a medida da ação de ambos. Nenhuma filosofia vai além desses três absolutos.

[67] Os cidadãos acadêmicos, dos quais tenho a honra de ser em breve um cocidadão, estão informados pelos anúncios das lições acerca de quais preleções tenciono oferecer sobre a ciência, cujo conceito procurei desenvolver aqui, e sobre isso nada mais tenho a vos dizer, senão que espero poder vos entregar em mãos o fio condutor para as suas duas partes, impresso como manual para os meus ouvintes.[7]*[8] Depois de minha chegada, anunciarei, no lugar habitual, os horários escolhidos.

Apenas sobre um ponto vos devo ainda uma explicação. – Como, sem dúvida, é do conhecimento de todos vós, as ciências não foram descobertas para uma ociosa ocupação do espírito e para os carecimentos de um luxo mais refinado. Pois então o erudito pertenceria justamente à classe à qual pertencem todos os instrumentos vivos desse luxo, que não é nada mais que luxo, e mesmo nesta classe poderiam lhe negar o posto mais alto. Toda a nossa pesquisa deve dirigir-se ao fim supremo da humanidade, ao enobrecimento da espécie de que somos membros, e os discípulos da ciência têm de difundir ao seu redor, como a partir de um centro, a humanidade, no [68] sentido supremo da palavra. Todo acréscimo que a ciência recebe aumenta os deveres dos seus servidores. Torna-se, pois, sempre mais necessário considerar muito seriamente as seguintes questões: qual é a destinação própria do erudito, em qual posição ele está colocado na ordem das coisas, em quais relações estão os eruditos entre si mesmos, com os demais homens em geral e particularmente com as suas categorias (Stände) específicas, como e por quais meios podem eles cumprir da maneira mais hábil com os deveres que lhes estão postos por estas relações, e como devem se formar para essa habilidade? São estas as perguntas que procurarei responder, nas preleções públicas que anunciei, sob o título Moral para eruditos.9 Não esperai dessas conversas uma ciência sistemática; o erudito falha com mais frequência pelo agir que pelo saber. Permiti antes que, nessas horas, como uma sociedade de amigos unida por mais que um único laço, nos despertemos para o alto e ardente sentimento dos deveres que temos em comum.

ABSTRACT: Translation into Portuguese of Chapter 3 of Fichte’s Über den Begriff der Wissenschaftslehre oder der sogenannten Philosophie (Concerning the concept of the doctrine of science or of the so-called philosophy). Introduction, translation and notes by Ricardo Barbosa. 10

9 “Moral für Gelehrte” ou, como no Catalogus praelectionum do semestre de verão de 1794, “Publice locum de officiis eruditorum exponet”. Essas preleções, iniciadas a 23 de maio, ocorriam às sextasfeiras, das 18 às 19 horas, no grande auditório da Universidade de Jena, para centenas de ouvintes. Friedrich Schiller, Wilhelm von Humboldt e Friedrich Hölderlin estavam entre estes (NT).

Recebido / Received: 01/02/2015

Aprovado / Approved: 10/04/2015



[1] UERJ – Departamento de Filosofia/CNPq. E-mail: ricjcb@uerj.br

[2] FICHTE, J.G. O destino do erudito. Tradução e posfácio de Ricardo Barbosa. São Paulo: Hedra, 2014.

[3] Eis aqui uma clara indicação da démarche tipicamente dialética de Fichte: posição, oposição, composição (NT).

[4] Apenas os conceitos de Eu, de Não-eu e de quantidade (de limite) são pura e simplesmente a priori.

Deles devem ser deduzidos, por oposição e equivalência, todos os demais conceitos puros.

Trans/Form/Ação, Marília, v. 38, n. 2, p. 205-210, Maio./Ago., 2015 http://dx.doi.org/10.1590/S0101-317320150002000011

[5] De acordo com a primeira proposição fundamental (Grundsatz) da doutrina da ciência, o Eu põe a si mesmo. Conforme a segunda, enquanto põe a si mesmo, o Eu põe um Não-eu. Dessa oposição resulta uma composição (ou síntese): como tudo que está posto, está posto no Eu, pelo Eu e para o Eu, a composição dos opostos é possível pela sua limitação recíproca, de modo que – e esta é a terceira proposição fundamental – no Eu absoluto, um Eu limitado é posto com um Não-eu limitado. Esta terceira proposição comporta duas possibilidades, as quais correspondem a dois novos princípios: o Eu põe a si mesmo ou bem (a) como limitado pelo Não-eu ou bem (b) como limitando o Não-eu. No primeiro caso, temos o princípio de todo o saber teórico; no segundo, o de todo o saber prático, como Fichte mostra a seguir (NT).

[6] Os primeiros resultados deste alentado plano de trabalho foram a Fundação do direito natural segundo os princípios da doutrina da ciência, cujos dois volumes apareceram respectivamente em 1796 e 1797, e o Sistema da doutrina dos costumes segundo os princípios da doutrina da ciência (1798). Em 1799, Fichte recebeu a infame acusação de ateísmo, que resultou em sua exoneração da Universidade de Jena. Desse momento até sua morte em Berlim, em 1814, ele não mais publicou as exposições científicas de sua filosofia, em geral escritas à razão de uma por ano e comunicadas a pequenos círculos, mas somente obras “populares”, como O ensinamento para a vida bem-aventurada (1806), série de preleções sobre filosofia da religião, e os Discursos à nação alemã (1808). Fichte não chegou a escrever uma estética “nach Prinzipien der Wissenschaftslehre”, embora seus contornos possam ser estabelecidos a partir de um manuscrito de 1794, intitulado “Filosofia prática”, de sua polêmica com Friedrich Schiller em torno de “Sobre espírito e letra na filosofia. Numa série de cartas” (1795), do § 31 da Doutrina dos costumes e da última parte da Doutrina da ciência nova methodo (1798) – (NT).

[7] Isto dito não para macular os direitos da crítica, e sim para demonstrar à crítica e aos seus representantes meu respeito pelo público.

[8] Fichte alude aqui ao subtítulo de sua obra principal: Fundação de toda a doutrina da ciência. Como manual para seus ouvintes (NT).