GIROLAMO SAVONAROLA E AS
FORMAS DE GOVERNO
Rafael Salatini[1]
RESUMO: O trabalho apresenta um estudo analítico do tema das formas de governo, no pensamento político de Girolamo Savonarola, a partir de Tratatto circa il regimento e governo dela città di Firenze (1498). Parte-se da metodologia bobbiana, analisando-se o tema sob três perspectivas simultâneas: sistemática, axiológica e teleológica.
PALAVRAS-CHAVE: Savonarola. Formas de governo. Humanismo cívico.
A teoria das formas de governo – nascida com Heródoto e a famosa discussão dos três reis persas (Otanes, Megabises e Dario) – consiste num tema recorrente no pensamento político ocidental, de Platão e Aristóteles a Kant e Hegel (e mesmo Marx). Esquecida por décadas a fio, foi recolocada em discussão nas últimas décadas pela obra A teoria das formas de governo na história do pensamento político (1976), de Norberto Bobbio, originalmente um curso oferecido em Turim, no ano acadêmico de 1975-1976. Neste texto, analisarei o tema das formas de governo no pensamento do frade florentino Girolamo Savonarola, baseado especialmente em seu tratado sobre o governo de Florença, partindo da metodologia bobbiana, que possui três critérios: o sistemático, o axiológico e o teleológico.
Sob o ponto de vista filosófico, Savonarola pode ser considerado um pensador em grande parte tomista, vinculado ao período final da escolástica. Sua primeira obra política, De politia e regno (escrita provavelmente em 1484), consistia num tratado monarquista, inspirado diretamente nos textos políticos de Tomás de Aquino, onde se afirmava que “[...] entre os cidadãos e o rei impera a mais pura amizade, num ambiente de segurança recíproca e de muitas riquezas”. Nesse tratado, pouca importância é concedida a Florença, cidade na qual Savonarola havia pregado, no início de sua carreira eclesiástica, e voltaria a pregar, convidado por Lorenzo de Medici, por sugestão de Giovanni Pico de Miranda, no convento de São Marcos, desde 1490 até sua morte.
Com a derrubada da monarquia dos Medici, em Florença, em 1494, por conta da invasão francesa na Itália, Savonarola, que havia predito a vinda do novo Ciro, foi elevado à condição de profeta, com a qual passará à história, especialmente pelo epíteto de “profeta desarmado”, que ganhará de Maquiavel, em O príncipe (escrito em 1513 e publicado em 1532). Uma de suas últimas obras políticas será o Tratatto circa il regimento e governo dela città di Firenze [Tratado sobre o regime e o governo da cidade de Florença], publicado poucas semanas antes de sua trágica morte (queimado vivo em praça pública), em 1498, onde Savonarola, embora defenda a superioridade da monarquia em geral, afirma que Florença deve possuir um governo republicano, inspirado em grande parte no modelo veneziano. No tratado, Savonarola expõe do seguinte modo o caráter de suas pregações em Florença:
Durante muitos anos, pela vontade de Deus, preguei nesta cidade, atendome a quatro temas: esforcei-me com toda minha inteligência para provar que a fé é verdadeira; para demonstrar que a simplicidade da vida cristã é suma sabedoria; para denunciar as coisas futuras, das quais algumas vieram e outras virão certamente; e, último, preguei sobre o governo desta cidade. (Introdução).
O Tratado sobre o regime e o governo da cidade de Florença é dividido em três partes, a primeira dedicada ao tema dos governos em geral e especialmente ao reino, a segunda à tirania (a pior forma de governo) e a terceira ao governo civil. Sobre a questão dos governos em geral, Savonarola discute, introdutoriamente, duas questões que são, em termos lógicos, anteriores à questão das formas de governo: primeiro, por que os homens vivem em sociedade; segundo, por que vivem sob um governo comum. Apenas respondidas essas duas questões, surge esta outra: qual a melhor forma de governo. Para responder a primeira questão, Savonarola recorre à longa tradição aristotélica (repetida séculos a fio pelos pensadores escolásticos, de Tomás a Marsílio), segundo a qual o homem é um ser naturalmente social, que não sobreviveria vivendo isoladamente, sendo a vida social não uma atitude voluntária (como afirmará Hobbes, rompendo radicalmente com a escolástica), mas, antes, uma necessidade, devida especialmente à sua fragilidade (repetindo Aristóteles, Savonarola afirma que apenas um deus, um ser perfeito, ou um animal, um ser irracional, poderiam viver sozinhos, mas não um ser imperfeito, mas racional, como o homem). Um trecho é bastante para a confirmação deste ponto:
E, considerando a fragilidade do corpo humano, vemos serem necessárias quase que infinitas coisas para nutri-lo, fazê-lo crescer e conservá-lo, e para preparação destas coisas exigem-se muitas artes, que sabemos impossíveis ou muito difícil que possam existir em um só homem. É pois imprescindível que os homens vivam juntos, a fim de que um ajude o outro, trabalhando alguns em uma coisa e outros em outra, formando um corpo perfeito de toda ciência e arte. (I, I).
Para responder à segunda questão, sobre o governo comum, Savonarola faz uso de um expediente igualmente recorrente na história do pensamento político (de Lucrécio a Maquiavel): a crença numa concepção antropológica negativa, de acordo com a qual os homens são maus por natureza, do que decorre a necessidade de um governo que limite sua natureza essencialmente destrutiva, sem o qual a vida em sociedade se tornaria insuportável ou mesmo impossível, preenchida por flagelos cruéis, como a guerra, a tortura e a morte. Um trecho, no qual o autor expõe a importância das leis, também basta para confirmar essa afirmação:
Ora, sendo o gênero humano muito propenso ao mal, especialmente quando se encontra sem lei e sem medo, foi necessário criar a lei, para refrear a audácia dos homens maus, a fim de que aqueles que desejam viver bem estejam seguros; principalmente porque não existe animal pior que o homem, quando vive sem lei. (I, I).
Mais à frente, Savonarola conclui pela necessidade de um governo comum:
Porém, tendo os homens a necessidade de viver juntos e desejando viver em paz, foi necessário instituir leis pelas quais os maus sejam punidos e os bons premiados. Mas como não compete fazer leis senão por quem tem poder sobre os outros homens, foi necessário constituir quem tenha poder sobre os outros. (I, I).
Nota-se, nesse trecho, que, se a vida em sociedade é uma necessidade natural, a vida sob um governo comum é uma atitude voluntária, em prol do bem comum, pela qual os homens, para não viver em meio aos males oriundos da falta de governo (não é preciso sublinhar a extensa tradição, à qual pertencem em geral os pensadores conservadores, de Platão a Hobbes, os quais afirmcam que a anarquia não redunda na harmonia social, mas, antes, em confusão generalizada), decidem estabelecer, artificialmente, um governo único que exerça o poder do homem sobre o homem e estabeleça a paz social. Um governo comum, portanto, é necessário (conclusão recorrente para quem se coloca a premissa de uma concepção antropológica negativa). Mas qual governo? Savonarola expõe, na primeira parte do tratado, sua teoria das formas de governo da seguinte maneira:
Como todo o homem procura o próprio bem, se alguém não zelasse pelo bem comum, a convivência humana não poderia subsistir e o mundo todo entraria em confusão. Alguns homens, então convieram em constituir a um só para que zelasse pelo bem comum e ao qual todos obedecessem. Tal governo foi chamado reino, e rei aquele que o governava. Alguns outros, ou por não poderem chegar a um acordo quanto a um só nome, ou por lhes parecer melhor assim, indicaram os principais, melhores e mais prudentes homens da comunidade, desejando que tais governassem, distribuindo entre si os cargos em tempos diversos e este foi chamado governo dos otimates [melhores]. Outros desejaram que o governo permanecesse nas mãos de todo o povo, cabendo a este distribuir os cargos a quem quisesse, em diversos tempos, e este foi chamado governo civil, porque pertence a todos os cidadãos. (I, I).
A divisão das formas de governo sob dois critérios básicos, quem governa e como governa, acompanha a teoria das formas de governo, como dito, desde os antigos. Também desde os antigos, o primeiro critério foi costumeiramente entendido como um critério quantitativo, e o segundo, qualitativo. Ademais, o critério sobre quem governa (que foi utilizado pelo menos até Kant) serviu nas diversas teorias das formas de governo para fins sistemáticos, permitindo a composição de um sistema conceitual para uso geral, enquanto o critério sobre como governa (usado até mais tardiamente) tem servido ao longo dos tempos para fins normativos, válido para a divisão entre as boas e as más formas de governo.
No trecho acima, que se segue à exposição da finalidade dos governos em geral, Savonarola faz uso essencialmente do critério quantitativo, para afirmar que são três as formas de governo: o reino, o governo dos otimates [melhores] e o governo civil (que repetem essencialmente a divisão antiga entre o governo de um, o governo de poucos e o governo de muitos). Todavia, duas informações devem extraídas da tipologia savonaroliana, uma de natureza terminológica, outra substantiva. Terminologicamente, Savonarola se esforça para substituir os termos de origem greco-antiga monarquia, aristocracia e democracia (que se repetirão, todavia, até os dias atuais, em outras tipologias) por termos modernos (artifício que também será empregado por Maquiavel, que preferirá principado, governo dos otimates [melhores] e governo do povo), sem, contudo, alterar seu conteúdo substantivo. Substantivamente, Savonarola tentará dar um conteúdo qualitativo para pelo menos duas das três formas, dizendo, do governo dos otimates [melhores], que, mais do que simplesmente o governo dos poucos, consiste no governo dos “[...] principais, melhores e mais prudentes homens da comunidade”, e, do governo civil, que, mais do que simplesmente o governo dos muitos, consiste no governo que permanece “[...] nas mãos de todo o povo” ou que “[...] pertence a todos os cidadãos”.
Isso ocorre em virtude do fato de, como dito, a teoria das formas de governo ser composta, tradicionalmente, pela justaposição não apenas do critério quantitativo, com função sistemática, mas igualmente de um critério qualitativo, cuja função é axiológica, e pelo qual os antigos (mas também, por herança, os medievais e os modernos) costumavam dividir cada uma das formas quantitativas em duas formas qualitativas, uma boa e uma má (segundo o exemplo aristotélico: monarquia/tirania, aristocracia/oligarquia, democracia/oclocracia), divisão da qual Savonarola subscreve apenas as formas boas, reunindo todas as formas más em uma só: a tirania. Note-se, para confirmar essa afirmação, este pequeno trecho:
Segue-se que é o bom governo que com toda diligência procura manter e também induzir os homens às virtudes e ao bem viver, especialmente no que concerne ao culto divino; é mau governo o que abandona o bem comum, procurando o seu próprio bem, não cuidando das virtudes dos homens nem do bem viver, senão na medida em que é útil ao seu interesse particular: a tal governo se chama tirânico. (I, I).
A passagem do reino à tirania é exposta da seguinte maneira:
Da mesma forma, também o governo de um só é ótimo em si, mas seria mau e péssimo para um povo inclinado a dissensões, porque seguido aconteceria a perseguição e a morte do príncipe, da qual resultariam males infinitos para a comunidade. Morto o príncipe, o povo haveria de dividirse em partes e seguir-se-ia a guerra civil, escolhendo-se diversos chefes, dos quais, aquele que superasse os outros, haveria de tornar-se tirano e de, enfim, gastar todos os bens da cidade [...]. (II, II).
A passagem das outras duas formas de governo à tirania expõe-se assim:
Nos povos que têm governo dos otimates [melhores], ou governo civil facilmente ocorrem divisões e cai-se no governo tirânico, devido às discórdias que surgem todos os dias e à multidão dos maus, dos sussurradores e dos maldizentes. (II, I).
Diversos foram os critérios utilizados, ao longo dos tempos, para dividir qualitativamente as formas de governo: critérios morais (o bem comum), jurídicos (a lei), funcionais (a estabilidade), institucionais (a separação dos poderes) etc. Para Savonarola, são bons os governos que buscam o bem comum e maus os que buscam o bem particular (um critério, de resto, aristotélico). Contudo, se são várias as formas que procuram o bem comum, a busca do bem particular define essencialmente uma única forma de governo, que consiste no governo tirânico, ao qual é dedicada toda a segunda parte do tratado, conforme dito. Mas, antes de analisar a tirania, é possível vislumbrar outros usos subsidiários do critério axiológico no pensamento político de Savonarola. Um desses usos subsidiários (o uso comparativo) serve para comparar as boas formas umas com as outras. Leia-se este trecho:
Portanto, é bom o governo que zela pelo bem comum, tanto espiritual como temporal, quer seja administrado por um só, ou pelos principais do povo, ou por todo o povo. Mas deve-se saber que, falando de modo absoluto, o governo civil é bom, o dos otimates [melhores] é melhor e o do rei, ótimo. Sendo a união e paz do povo o fim do governo, esta união e paz se constitui e se conserva melhor por um que por muitos e melhor por poucos que pela multidão; porque, quando todos os homens de uma comunidade respeitam e obedecem somente a um, não se desviam em partes, mas todos se unem no amor e no temor dele. Porém, quando não muitos os que governam, respeita-se mais a um que a outro, há quem goste de um e quem goste ou não goste de outro, e o povo assim não permanece tão unido como quando um só reina e tanto menos permanece unido quantos mais forem aqueles que governam. (I, II).
Se o reino, o governo dos otimates [melhores] e o governo civil são todas formas boas de governo, isto é, que servem para a promoção do bem comum, não o são, comparativamente, todos no mesmo grau. Quanto mais unido o governo, melhor será para a promoção daquele ideal. Assim, comparando uma forma boa com a outra, Savonarola considera, numa disposição axiológica crescente, o governo civil (“bom”) inferior ao governo dos otimates [melhores] (“melhor”) e, este, inferior ao reino (“ótimo”), tendo como critério o grau de união que cada forma possui, do governo menos unido ao mais unido. Esse trecho permite fazer duas observações interessantes. Em primeiro lugar, notase com facilidade o espírito monarquista, de inspiração tomista, que o autor havia alimentado, como dito, desde seu tratado De politia e regno, ainda que esse espírito - curiosamente - não sirva de tônica para o último tratado, sobre Florença. Em segundo lugar, nota-se em Savonarola o espírito antifacciosista que será comum a vários autores florentinos, como Guicciardini e Maquiavel, que observavam nas diversas disputas facciosas medievais, como aquela entre guelfos e gibelinos, um dos maiores males políticos conhecidos. No século seguinte, autores como Harrington (um republicano) e Hobbes (um monarquista) repetiriam a mesma ideia em outro contexto nacional.
Um segundo emprego subsidiário do critério axiológico (o uso adaptativo) serve para explicar como povos distintos podem ser bem governados por formas de governo distintas. Este trecho esclarece essa questão:
Há, pois, alguns povos cuja natureza é tal que não pode tolerar o governo de um só, sem que haja grandes e insuportáveis inconvenientes. São semelhantes à compleição e ao costume de alguns homens, habituados à vida livre, nos campos, os quais logo ficariam doentes e morreriam se alguém os quisesse colocar em quartos bons e quentes, com vestes bonitas e comidas delicadas. Por isso, os homens sábios e prudentes, que devem constituir um governo, consideram primeiramente a natureza do povo. Se a natureza ou o costume é tal que o povo pode facilmente adotar o governo de um só, optam por este ante qualquer outro; mas se este governo não lhe convém procuram dar-lhe o segundo, o dos otimates [melhores]. Mas se não pode suportar também a este, dão-lhe o governo civil, com aquelas leis que se adaptam à natureza de tal povo. (I, II).
A ideia de que há povos com naturezas distintas e que o modo de governo deve ser adaptado à natureza de cada povo é conhecida desde os antigos. Aristóteles havia afirmado que a natureza dos persas não era compatível com um governo livre, devendo esse povo não ser governado senão despoticamente. Maquiavel havia declarado o mesmo dos turcos, embora, em um caso e em outro, o fundamento seja a distinção entre os povos ocidentais, naturalmente livres, e os povos orientais, naturalmente servis. Mas Maquiavel também havia afirmado, em seu Discursus florentinarum rerum post mortem iunioris Laurentii Medices [Discurso das coisas florentinas depois da morte do jovem Lorenzo de Médici] (1519), exclusivamente sobre as cidades itálicas, que as cidades em que existe igualdade entre os cidadãos devem ser governadas sob uma forma republicana, ao passo que, nas cidades onde o que existe é a desigualdade, a melhor forma será o principado, concluindo que Florença, uma cidade de iguais, deveria conhecer um governo adaptado à sua natureza, a república. A ideia de que uma determinada forma de governo seja a melhor de todas não passa de uma proposição ideal, a qual muitas vezes não se coaduna com a verità effetualle delle cose [verdade efetiva das coisas]. Em outras palavras, uma forma de governo não adaptada à natureza de um povo será, ao fim e ao cabo, uma má forma de governo (mesmo que seja descrita como uma boa forma de governo, em sistemas teóricos ideais ou utópicos).
Segundo Savonarola, embora o governo de um seja um governo “ótimo”, ou seja, o melhor de todos, há alguns povos cuja natureza, semelhante à dos homens “habituados à vida livre”, não se adapta facilmente a essa forma de governo, devendo ser governados por alguma das outras formas de governo: pelo governo dos poucos ou mesmo o governo dos muitos. A sabedoria e a prudência dos legisladores consistem, assim, em considerar “[...] primeiramente a natureza do povo”. Sendo esta adaptada ao governo de um, este deve ser a opção entre as opções; porém, caso esse governo não seja possível, devem optar, em segundo lugar, pelo governo dos poucos; ou, não sendo igualmente esse conveniente, pelo governo dos muitos, última opção. O único critério deve ser “[...] aquelas leis que se adaptam à natureza de tal povo” (critério que também será adotado, no futuro, por Montesquieu e Hegel).
Tendo em mente o uso adaptativo do critério axiológico (segundo o qual a melhor forma de governo é a que melhor se adapta a cada povo), é possível entender as pregações que Savonarola fazia sobre o governo de Florença. Neste trecho, o frade interpreta a natureza do povo florentino:
Ora, o povo florentino é o mais engenhoso entre todos os povos da Itália e o mais sagaz em suas empresas; também é animoso e audaz, como por experiência se viu muitas vezes. Embora seja dado ao comércio, e pareça ser um povo quieto, contudo, quando começa alguma empresa de guerra civil, ou contra os inimigos externos, torna-se muito terrível e animoso, como se lê nas crônicas das guerras que empreendeu contra diversos grandes príncipes e tiranos, aos quais jamais quis ceder, mas defendeu-se até o fim e acabou obtendo vitória. Portanto, a natureza deste povo não é apropriada a suportar o governo de um príncipe, mesmo se este fosse bom e perfeito, porque, sendo sempre mais numerosos os maus que os bons, o príncipe seria traído ou morto pela sagacidade e animosidade dos maus cidadãos, que são sumamente inclinados à ambição, ou então o príncipe deveria tornar-se tirano. (I, III).
Trata-se de uma interpretação contraditória acerca da natureza do povo florentino, considerado, por um lado, como um povo onde predomina o engenho, a sagacidade, a animosidade, a audácia e a coragem, e, por outro, em que são “[...] mais numerosos os maus que os bons” e cujos cidadãos “[...] são sumamente inclinados à ambição”. Todavia, a despeito da contradição, são todas características de um povo vivo e impetuoso, o qual se adaptaria mal ao governo de um (que ali se tornaria, consequentemente, tirânico), sendolhe aconselhada, portanto (e como Maquiavel e Guicciardini repetiriam), a instituição de um governo republicano. Neste trecho, entre outros possíveis, Savonarola comenta a respeito do melhor governo para Florença:
Ora, o povo florentino escolheu antigamente o governo civil e nele acostumou-se de tal forma que, além de ser tal governo o mais natural e que mais lhe convém, além disso, pelo costume está de tal modo impresso na mente dos cidadãos, que seria difícil e quase impossível removê-los de tal governo. [...] Assim, pois, tendo permanecido no povo a forma do governo civil, tornou-se-lhe ela tão natural que querer alterá-la e impor outra forma de governo nada é mais do que agir contra a natureza e o antigo costume do povo. Isto geraria tamanha perturbação e discórdia nesta comunidade que a colocaria no risco de fazê-la perder toda a liberdade – o que é muito melhor ensinado pela experiência, mestra de todas as artes. (I, III).
O apego do povo florentino à sua liberdade, sedimentada pela escolha antiga de uma forma de governo civil (pelo que se deve entender uma forma de governo republicana), ancorada na liberdade para os indivíduos escolherem seus próprios governantes entre os todos cidadãos, tornou, consuetudinariamente (isto é, pelo “costume”), o governo civil o mais adaptado à sua natureza. Nessas condições, a instituição de outra forma de governo, como o reino ou mesmo o governo dos otimates [melhores], por “[...] agir contra a natureza e o antigo costume do povo”, deve ser considerada uma empresa “difícil” ou mesmo “impossível”, redundando em “[...] tamanha perturbação e discórdia nesta comunidade que a colocaria no risco de fazê-la perder toda a liberdade”. Em outras palavras, Florença apenas poderia ser, conforme Savonarola, ou uma república, baseada na liberdade, ou uma tirania, baseada na opressão, não existindo a possibilidade de meio-termo. Não por outro motivo, toda a segunda parte do Tratado sobre o regime e o governo da cidade de Florença será dedicada, como dito, ao tema da tirania. Acerca da tirania, leia-se este trecho:
O governo de um só, quando bom, é o melhor de todos os governos, é também o mais estável e não se converte facilmente em tirania, como o governo de muitos, pois quanto mais aumenta o número de participantes no governo, tanto mais fácil se torna que surjam discórdias. Entretanto, como é melhor e mais estável quando é bom, também, quando injusto, é mau e por natureza o pior entre todos os governos. (II, I).
O critério axiológico não serve apenas para separar as boas e as más formas, contudo, principalmente, para eleger a pior forma de governo, aquela que deve ser evitada por todos os motivos. Para Savonarola, se o governo de um não é apenas bom, mas o melhor de todos, a tirania não é apenas uma forma má, mas a pior de todas. Savonarola lista quatro argumentos contra a tirania: primeiro, o argumento da oposição, segundo o qual, como o governo de um, quando bom, é ótimo, quando mau, é péssimo; segundo, o argumento da unidade, conforme o qual, na tirania, a força do mau governo se encontra unida em um só, ao qual todos os homens maus, que são sempre mais numerosos que os bons, procuram se unir, ou porque desejam receber prêmios e honras ou por temor; terceiro, o argumento do bem comum, segundo o qual um governo é tanto pior quanto mais se afasta do bem comum; e, quarto, o argumento da estabilidade, para o qual o governo de um só é naturalmente mais estável que o governo de muitos, o que torna a tirania mais difícil de ser extinta.
O objetivo central do tratado savonaroliano é refletir a propósito do governo de Florença. Seguindo uma longa tradição republicana entre os pensadores políticos florentinos, Savonarola defende que a cidade – sempre assolada por forças interessadas em instituir um governo monárquico (concretizado no governo dos Medici) – deve ser governada pelo governo de muitos, que chama governo civil, sob o perigo de se tornar, alternativamente, tirânica. Leia-se um trecho mais:
Já demonstramos que o melhor governo para a cidade de Florença é o governo civil e que o governo tirânico não teria cidade em que fosse tão mau como nela. (III, I).
A terceira parte do tratado sobre Florença é, por conseguinte, dedicada à descrição do governo civil, que Savonarola concebe como uma forma baseada na promoção da igualdade dos cidadãos, para o que seria necessária a instituição de três aspectos: 1) uma boa distribuição da riqueza, 2) uma boa distribuição da reputação e 3) um conselho constituído por “um grande número de cidadãos”. Vejamos, precipuamente, a exposição desse conselho, o qual seria baseado igualmente em três aspectos (leis sólidas, bons cidadãos e adequada divisão de tarefas):
Constituído, pois, este número de cidadãos, que se chama o “Grande Conselho”, e cabendo a ele distribuir todas as honras, não há dúvida que ele é o senhor da cidade. Depois de criado, porém, se deve fazer três coisas. A primeira é instituí-lo nos modos devidos e com leis muito sólidas, de forma que não possa ser-lhe retirado o poder. [...] A segunda coisa: deve-se prover para que o senhor não possa tornar-se tirano, pois, assim como, às vezes, um homem, que é senhor por nascimento, deixa-se corromper pelos maus e torna-se tirano, assim também um conselho bom torna-se mau e tirânico devido à malícia dos péssimos cidadãos. [...] Terceira coisa: é necessário prover para que o Conselho não seja sobrecarregado demais, isto é, que tantos cidadãos não precisem reunir-se para cada pequena caso. (III, I).
Por fim, como não poderia ser diferente para um frade, Savonarola conclui que o fundamento do governo civil deve ser religioso, conforme se vê neste trecho:
Sendo, pois, tal governo mais de Deus do que dos homens, ganharão a felicidade terrena, a espiritual e a eterna aqueles cidadãos que, com grande zelo da honra de Deus e do bem comum, observando as normas acima indicadas, se esforçarem quanto puderem para levá-lo à perfeição. (III, III).
Dos três critérios apontados por Bobbio para o estudo da teoria das formas de governo, o critério sistemático, o critério axiológico e o critério histórico, este último – pelo qual se costuma analisar a passagem de uma forma de governo a outra, conforme uma filosofia da história cíclica ou linear – redunda ausente no tratado sobre Florença. Um dos motivos que podem explicar essa ausência é o fundamento teológico mais que teleológico da teoria savonaroliana, segundo o qual as formas políticas seguem antes um plano divino que um plano terreno, antes um plano transcendental que um plano imanente, ou seja, servem antes à vontade de Deus que às vontades humanas. Sob essa convicção, pode-se dizer que, com Savonarola, pouco se completa a passagem dos studia divinitatis [estudos religiosos] aos studia humanitatis [estudos humanistas], movimento necessário para a investigação dos desígnios da história, como farão os pensadores renascentistas de maneira mais completa, ao assumir uma forma de pensamento em grande parte pagã, como Maquiavel e Guicciardini, com a qual Savonarola, por sua formação e com suas pregações religiosas, nunca poderia concordar.
ABSTRACT: The work presents an analytical study of the theme of the forms of government in the political thought of Girolamo Savonarola, based on his Tratatto circa il regimento e governo dela città di Firenze (1498). Using Bobbio’s methodology, the theme is analyzed from three simultaneous perspectives: the systematical, the axiological, and the teleological.
KEYWORDS: Savonarola. Forms of government. Civic humanism.
BIBLIOGRAFIA pRIMáRIA
SAVONAROLA, Jerônimo. Tratado sobre o regime e o governo da cidade de Florença. Trad. de M.A.B. De Boni e L.A. De Boni. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. p. 131-166.
BIBLIOGRAFIA SEcuNDáRIA
ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. Trad. de N. Valadares e A.R. Rosa. Lisboa: Presença, 2000. v. 5.
BARON, Hans. En busca del humanismo cívico florentino – Ensayos sobre el cambio del pensamiento medieval al moderno. Trad. de M.A.C. Ocampo. México: FCE, 1993. 434 p.
BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Trad. de S. Bath. Brasília: UnB, 1985. 179 p.
CASSIRER, Ernst. Indivíduo e cosmo na filosofia da Renascença. Trad. de J. Azanha Jr. e M.E. Viário (gr. e lat.). São Paulo: Martins Fontes, 2001. 309 p.
CHABOD, Federico. Escritos sobre el Renacimiento. Trad. de R. Ruza. México: FCE, 1990. 687 p.
DRESDEN, Sem. O humanismo no Renascimento. Trad. de D. Gonçalves. Porto: Inova, 1968. 259 p.
GARIN, Eugenio. La revolución cultural del Renacimiento. Trad. de D. Bergadà. Barcelona: Crítica, 1984. 352 p.
______. El Renacimiento italiano. Trad. de A. Vicens. Barcelona: Ariel, 1986. 267 p.
______. Idade Média e Renascimento. Trad. de I.T. Santos e H.S. Shooja. Lisboa: Estampa, 1994. 299 p.
______. Ciência e vida civil no Renascimento italiano. Trad. de C. Prada. São Paulo: UNESP, 1996. 197 p.
______. O zodíaco da vida: polêmica sobre a astrologia do século XIV ao século XVI. Trad. de I.T. Santos e H.S. Shooja. Lisboa: Estampa, 1997. 131 p.
GRANADA, Miguel Angel. Cosmologia, religion y politica en el Renacimiento – Ficino, Savonarola, Pomponazzi, Maquiavelo. Barcelona: Anthropos, 1988. 271 p.
HIBBERT, Christopher. Ascensão e queda da casa dos Médici – O Renascimento em Florença. Trad. de H. Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 308 p.
KRISTELLER, Paul O. Ocho filósofos del Renacimiento italiano. Trad. de M.M. Peñaloza. México: FCE, 1970. 222 p.
______. El pensamiento renacentista y sus fuentes. Comp. M. Mooney. Trad. de F. Patán López. México: FCE, 1993. 366 p.
______. Tradição clássica e pensamento do Renascimento. Trad. de A. Morão. Lisboa: Edições. 70, 1995. 151 p.
LARIVAILLE, Paul. Itália no tempo de Maquiavel (Florença e Roma). Trad. de J. Baptista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 277 p.
MONDOLFO, Rodolfo. Figuras e ideias da filosofia da Renascença. Trad. de L.G. Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1967. 252 p.
POCOCK, John G.A. El momento maquiavelico – El pensamiento politico florentino y la tradicion republicana atlantica. Trad. de M. Vasquez-Pimentel e E. Garcia. Madrid: Tecnos, 2002. 668 p.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia – Do humanismo a Descartes. Trad. de I. Storniolo. São Paulo: Paulus, 2005. 321 p.
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Trad. de R.J. Ribeiro e L.T. Motta. Rev. R.J. Ribeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 724 p.
______. Liberdade antes do liberalismo. Trad. de R. Fiker. São Paulo: UNESP, 2000. 142 p.
TENENTI, Alberto. Florença na época dos Médici – Da cidade ao Estado. Trad. de V.H.A. Costa. São Paulo: Perspectiva, 1973. 142 p.
VÉDRINE, Hélène. As filosofias do Renascimento. Trad. de M. Alberty. [Portugal]: Europa-
América, s/d. 130 p.2
Recebido em: 04/11/14
Aceito em: 25/11/14
[1] Doutor em Ciência Política – FFLCH-USP. Professor de Ciência Política – UNESP-Marília. E-mail:
rafaelsalatini@marilia.unesp.br