AINDA A QUESTÃO DE GÊNERO – (IN) DETERMINAÇÃO OU LUTA POR RECONHECIMENTO?

Helgis Torres Cristófaro[1]

Ronaldo Manzi Filho[2]

RESUMO: Este texto pretende apresentar algumas posições sobre o problema do gênero, na modernidade. Partindo do diagnóstico de Foucault de que os processos de constituição e de produção do sujeito implicariam ter um modelo de autodeterminação de si, buscamos pensar o problema do gênero por duas vertentes: por um lado, uma proposta de Butler, em que a sexualidade não poderia ser determinada, pois ela sempre resistiria a qualquer forma de normatização; por outro, uma luta por reconhecimento da individualidade que procura incluir todas as possibilidades de autorrealização de si, na esfera jurídica. Nossa proposta é avaliar esses dois modelos e questionar o que poderia estar mais próximo das demandas sociais em relação ao problema do gênero e, de um modo mais amplo, do problema da identidade individual.

PALAVRAS-CHAVE: Gênero. Identidade. Determinação. Indeterminação. Indiferença.

Não devemos nos permitir ser desviados de tais conclusões pelas negações das feministas, que estão ansiosas por nos forçar a encarar os dois sexos como completamente iguais em posição e valor; mas, naturalmente, concordaremos de boa vontade que a maioria dos homens também está muito aquém do ideal masculino e que todos os indivíduos humanos, em resultado de sua disposição bissexual e da herança cruzada, combinam em si características tanto masculinas quanto femininas, de maneira que a masculinidade e a feminilidade puras permanecem sendo construções teóricas de conteúdo incerto. (FREUD, 1996, v. 19, p. 286).[3]

Nessa passagem célebre de Algumas Consequências Psíquicas da Distinção Anatômica entre os Sexos (1925), Freud discorre sobre as diferenças na formação do supereu entre homens e mulheres, a partir de duas formas particulares de encaminhar a relação entre Édipo e castração. A passagem mostra como não há, segundo o pensamento freudiano, uma igualdade de posição e valor entre os gêneros[4]. Obviamente, trata-se de gêneros distintos. Mas o que isso nos diz?

Nesse mesmo texto, no movimento que antecede a passagem citada, Freud escreve:

[...] os traços de caráter que críticos de todas as épocas lançaram contra as mulheres – que elas mostram menos senso de justiça que os homens, que são menos preparadas para se submeterem às grandes exigências da vida, que elas são mais frequentemente influenciadas em seus julgamentos por sentimentos de afeição e hostilidade – tudo isso pode ser amplamente explicado pela modificação na formação de seu supereu [...] (FREUD, 1996, v. 19, p. 286).

Sua posição não destoa, por exemplo, da época das Luzes, na qual, mesmo com o esclarecimento de Voltaire, a mulher não poderia participar das decisões políticas, afinal, não seria muito confiável dar esse tipo de poder para seres que têm espasmos e são facilmente influenciáveis pelo seu humor.

Exemplos sobre direitos das mulheres, ou melhor, sobre a restrição ou a negação dos direitos das mulheres vis a vis os dos homens na filosofia são de uma abundância surpreendente.

Espinosa declara, em seu Tratado Político, que, com base na experiência, mulheres são governadas pelos homens por conta de sua fraqueza. Rousseau, em seu Emílio, tem em Sophia uma síntese deletéria da mulher que deve ser fraca e passiva: em face de sua inferioridade física, deve sacrificar todo conforto, quando se tratar de agradar um homem, e deve ser mentalmente inferior. Kant, em A Ciência do Direito, afirma:

[...] o aprendiz de um comerciante ou um comerciante, um servo que não esteja a serviço do estado, um menor (naturaliter vel civiliter), todas as mulheres e, geralmente, cada um que é compelido a manter-se não de acordo com sua própria indústria, mas como está organizado por outros (a menos do estado), estão sem personalidade civil, e sua existência é apenas, como tem sido, incidentalmente incluída no estado. (KANT, 1887, p. 166).

Para Fichte, não há nenhum argumento racional que impeça que as mulheres tenham totais e iguais direitos que os homens – porém, quem são elas? Elas são nossas filhas e estão submetidas à autoridade dos pais; ou elas são nossas esposas e, assim, sob a autoridade dos maridos. Na verdade, isso não significa que elas não tenham direitos iguais, mas que elas sempre possuem alguém que possa representar seus interesses e decisões, nas questões de ordem política – dificilmente elas, numa perfeita ordem de juízo, iriam se colocar num compromisso dessa natureza.

Hegel também cerra fileiras pela inferioridade feminina, pela determinação de uma função acessória ao homem, negando à mulher o direito ao desejo, como se vê nestas linhas:

[...] a diferença entre a vida ética da mulher e do homem consiste apenas nisto, que, em sua vocação como um indivíduo e no seu interesse, o prazer dela é centrado no universal e permanece estranho à particularidade do desejo. Considerando que no marido estes dois lados são separados; como ele possui, enquanto um cidadão o poder autoconsciente de universalidade, ele adquire assim o direito de desejar e, ao mesmo tempo, preserva sua liberdade em relação a esse desejo. (HEGEL, 1977, p. 275).

Ademais, Hegel estabelece a mulher como inimiga inevitável de toda vida em comunidade:

[...] desde que a Comunidade só obtém uma existência através de sua interferência com a felicidade da família, e dissolvendo a autoconsciência [individual] no universal, cria para si mesmo no que suprime e no que lhe é, ao mesmo tempo, essencial um inimigo interno – o gênero feminino em geral. (HEGEL, 1977, p. 288).

Nessas passagens, não buscamos enfatizar apenas curiosidades da história das ideias. Longe disso. Em comum a todos esses exemplos, gênero implica lugar e papel sociais determinados. Masculinidade e feminilidade têm posições e relevâncias distintas, num exercício de poder assimétrico. Um exercício que toca naquilo que compreendemos por identidade do sujeito; e, por isso mesmo, numa questão sobre o reconhecimento, a realização de si e da própria sociedade. Ou seja, tais passagens nos lembram de uma das questões maiores da modernidade: qual é o estatuto da identidade e da diferença, nos conflitos sociais?

Uma das possibilidades de leitura desse estatuto poderia ser colocada pela ideia que Axel Honneth denomina patologia do social. Quer dizer, haveria uma patologia sempre que houvesse ausência de condições de possibilidades que garantiriam o reconhecimento e a autorrealização de todos os indivíduos. Uma patologia que estaria diretamente correlacionada a um diagnóstico de época – uma forma de afirmar que se sofre em épocas distintas por um mesmo motivo: sempre há algo que barra o sujeito numa determinada época, para alcançar sua autorrealização.

Nesse contexto, o problema do gênero poderia nos revelar uma patologia no interior da modernidade e oculta na história das ideias. Uma história que a própria filosofia e a psicanálise, apesar de seus “deslizes” deterministas, poderiam ser instrumentos privilegiados para a compreensão da gênese e da razão desse discurso.

Um dos esforços para rearticular a questão do gênero, em particular através do discurso filosófico e psicanalítico, é protagonizado por Judith Butler, uma das mais influentes teóricas sobre a questão de gênero. Mesmo sendo ativista do movimento feminista, Butler questiona a suposta “suspensão” da assimetria entre gêneros:

[...] que tipo de política emerge quando a identidade como um solo comum não mais restringe o discurso em políticas feministas? E, em que medida, o esforço para localizar uma identidade comum como a fundação de uma política feminista impede uma indagação radical na construção e regulação política da própria identidade? (BUTLER, 1993, p. ix).

Podemos ler essa passagem com estes olhos: a questão do gênero seria, de fato, uma questão biológica ou traria em seu discurso algo de fundo, para além da condição biológica?

Isto é, talvez a questão do gênero esteja diretamente relacionada ao problema da lei, como se o que tornasse possível qualquer modo de identificação fosse, ao mesmo tempo, algo que é colocado como naturalmente fora do campo do reconhecimento social. Uma forma de afirmar que naturalizamos certas identificações que mascaram e desarticulam o que as tornam possíveis.

Todavia, essa naturalização não é tão evidente. Ela parece exigir uma renúncia à qual o próprio corpo não se submete sem “realizar um discurso”. É nesse sentido que Butler vê algo corporal que não se submete às exigências de uma determinação de um gênero:

[...] o nome falha em sustentar a identidade do corpo com os termos da inteligibilidade cultural; as partes corporais se desembaraçam de um centro comum, afastam-se umas das outras, tem vidas isoladas, tornam-se lugares de investimentos fantasmáticos que recusam se reduzirem a sexualidades singulares. E ainda assim parece que as leis normativas prevalecem tal como forçando o suicídio, o sacrifício do erotismo homossexual, escondendo a homossexualidade, o texto excede o texto, a vida da lei excede a teleologia da lei, permitindo uma contestação erótica e uma repetição disruptiva de seus próprios termos. (BUTLER, 1993, p. 140).

Aliás, o que restringe um sujeito a uma identificação singular? Que lógica fantasmática é essa que exige de um indivíduo uma determinação específica?

Butler propõe que a sexualidade[5] do sujeito não pode ser totalmente determinada, pois há sempre uma esfera de contingência que não se submete aos imperativos sociais. Imperativos que se mostram, por exemplo, em uma sexualidade assumida enquanto uma poderosa identificação sustentada em um “teatro imaginário” – poderosa exatamente por ser imaginária (BUTLER, 1993, p. 100). Seu poder estaria, talvez, na sua capacidade de naturalizar este teatro: “[...] a insistência na identidade coerente como um ponto de partida presume que o que um ‘sujeito’ é, esteja já sabido, já fixado, e que o sujeito ready-made deve entrar no mundo para renegociar seu lugar” (BUTLER, 1993, p. 115).

Para Butler, algo resiste: “[...] que esta reiteração seja necessária é um sinal de que esta materialização [da diferença sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual] nunca é completa, que os corpos nunca consentem inteiramente com as normas pelas quais sua materialização é impelida” (BUTLER, 1993, p. 2). Há algo abjeto, ou seja, há algo que é repudiado pelo que as feministas denominam lei heterossexual, isto é, uma rede binária de identificações. É diante dessa determinação de identificações binárias que Butler articula a própria determinação com algo que a excede e a contesta, devido às diversidades possíveis de identificações as quais estão excluídas da normatização heterossexual e que lhe aparecem enquanto algo abjeto – como um espectro que ameaça a produção simbólica normatizadora.

É nesse sentido que Butler considera como forma de resistência utilizar o que Lacan chama de foraclusão: certo repúdio ao significante primário, como se o corpo não aceitasse uma submissão ao imperativo heterossexual. Eis sua proposta:

[...] eu gostaria de propor que certas zonas abjetas com a sociabilidade também liberta desta ameaça, constituindo zonas inabitadas que um sujeito fantasia como ameaçando sua própria integridade com o prospecto de uma dissolução psicótica (“Eu prefiro morrer do que fazer isto ou aquilo”). (BUTLER, 1993, p. 243).

Dessa maneira, a sexualidade seria uma categoria normativa, um ideal ou prática regulatória, como se fosse necessário demarcar o corpo, colocando-o sob determinação, restringindo sua diversidade imanente.

Essa ideia de uma força que prevalece sob aquilo que, aparentemente, não poderia ser submetido a uma determinação remete a Michel Foucault e sua História da Sexualidade, na qual mostra como o poder opera na constituição da própria materialidade do sujeito, naquilo que Butler acredita ser o princípio pelo qual o poder forma e regula o sujeito da subjetivação. Explicita como dispositivos do poder se articulam diretamente sobre o corpo, fazendo do próprio sexo um discurso que esses mesmos dispositivos ironicamente nos fazem crer que é nossa “liberação” (cf. FOUCAULT, 2005, p. 211).

O que se esconderia por trás daquelas concepções da construção da feminilidade seria como o poder exerce determinações em nossas formas de vidas, a partir de uma condição, teoricamente, biológica. Teoricamente, porque esse discurso esconde uma dimensão em que constituímos nossos desejos com base em um discurso médico, jurídico, pedagógico, político e econômico: a sexualidade seria, fundamentalmente, mais um setor da dimensão da nossa normatividade social.

Foucault descreve tais processos de constituição e de produção do sujeito a partir de modelos de como deveríamos agir. Ter uma sexualidade significa ter um modelo de autodeterminação de si enquanto um dispositivo de reconhecimento, no qual se é capaz de dar nome à sua própria sexualidade, como se a experiência que o sujeito faz de si mesmo, enquanto um sujeito determinado, fosse um dispositivo de autodeterminação de subjetivação de sua sexualidade, “[...] um arranjo político da vida que é constituído, não numa submissão de outrem, mas numa afirmação de si” (FOUCAULT, 2005, p. 163).

Esse arranjo político da vida é uma prática disciplinar que torna possível gerir a sexualidade, tal como um setor da administração pública em que há certa forma de determinar o discurso e o desejo do sujeito. Um poder horizontal desprovido de centro e difundido, sem que seja necessária qualquer figura soberana. Um tipo de poder que gere as identificações dos sujeitos e que os faz assumir uma normatividade tácita, que regula seu desejo.

É exatamente esse poder de gerir a sexualidade, de certa insistência em fazer do corpo o lugar de uma determinação do discurso, que interessa a Butler, como se a determinação da sexualidade fosse uma demanda de verdade e, ao mesmo tempo, um ideal regulatório.

Entretanto, a seu ver, essa materialização forçosa e diferencial de corpos produz um resíduo, um fora, o que alguém poderia denominar seu “inconsciente”, em suas palavras (cf. BUTLER, 1993, p. 22). Nesse sentido, sendo o corpo algo que não pode ser completamente reduzido a qualquer ideal regulatório, é ele mesmo que irá realizar um modo de resistência que solicita uma espécie de “desindentificação”, a qual seria capaz de rearticular as contestações democráticas (cf. BUTLER, 1993, p. 4).

Uma desidentificação, porque as identificações teriam um preço: “[...] a perda de outras séries de identificações, uma aproximação poderosa de uma norma que nunca escolhemos, uma norma que nos escolhe, mas que ocupamos, invertemos, resignificamos, na medida em que, a norma falha em nos determinar completamente” (BUTLER, 1993, p. 126-127).

É nesse espaço de falha que Butler encontra uma possível subversão da norma, tal como uma paródia da própria lei em que a heterossexualidade hegemônica repete suas próprias idealizações, levando a práticas patologizantes que não silencia. O esforço para assumir suas próprias idealizações determinantes nunca poderá cessar, pois jamais será efetivamente realizado.

É como se a própria hegemonia heterossexual revelasse ao menos dois fracassos. Primeiro, “[...] sua perda do sentido de ‘o normal’, entretanto, que pode ser sua própria ocasião de risada, especialmente quando ‘o normal’, ‘o original’ é revelado como sendo uma cópia, e um fracasso inevitável, um ideal que ninguém consegue incorporar” (BUTLER, 1990, p. 138-139). Segundo, a possível identificação com uma homossexualidade abjeta, no interior da identidade heterossexual:

[...] a abjeção da homossexualidade pode acontecer somente através de uma identificação com esta abjeção, uma identificação que deve ser repudiada, uma identificação que alguém teme ter somente porque alguém já a teve, uma identificação que institui a abjeção e a sustenta. (BUTLER, 1993, p. 112).

O problema se coloca claramente na determinação e indeterminação da sexualidade, como se houvesse um risco de usar categorias identitárias (BUTLER, 1993, p. 228), as quais separam, demarcam e excluem, de sorte que “[...] esta separação terá alguma força normativa, na verdade, alguma violência, pois ela pode construir somente através de apagamentos; ela somente pode delimitar algo impondo certo critério, um princípio seletivo” (BUTLER, 1993, p. 11). Em face desse risco de apagamento do sujeito e suas consequências, ela propõe certa indeterminação da sexualidade; ou melhor, em seus termos, algo como uma “impersonalização” (cf. BUTLER, 1993, p. 230) enquanto uma forma de resistência aos dispositivos de poder ou uma disrupção da normatização da lei heterossexual.

Uma das propostas de Butler é mostrar como o que é foracluído ou banido do domínio do imperativo heterossexual pode retornar. Um retorno que não só nos indica uma contestação imaginária que demonstra o fracasso da lei, mas também nos leva a uma disrupção: uma ocasião para uma radical rearticulação do horizonte simbólico.

Entretanto, algumas vezes, “o tiro pode sair pela culatra”. É sintomático que esse discurso encontre resistência exatamente pelos sujeitos que Butler pretende defender. Num evento recente, em que apresentava um texto, ela se vê assustada com a reação de alguns sujeitos transexuais. Assim ela narra o episódio:

Nestes textos violentos e, eventualmente, coléricos, a exigência de ser denominado por algum nome e compreendido enquanto certo tipo de pessoa era, às vezes, - ainda que nem sempre – violenta, feroz, lúcida e sem equívoco. Os oradores genderqueer zombam de sua própria incapacidade de habitar bem as categorias, mas muitos transexuais mantêm firme, por exemplo, um sistema de gênero binário com os seus direitos e suas necessidades. Uma mulher trans protestou sob cólera ressentida no Festival de música das mulheres de Michigan – um evento cultural anual que propõe o que é denominado um espaço separado para as “mulheres nascidas mulheres” –; sua cólera se estendia às instituições e às categorias psiquiatras, em seguida às feministas acadêmicas e, enfim, aos departamentos de estudos femininos. Depois de ter dito literalmente “fuck you” a todas as instituições, ela decidiu acrescentar algum nome próprio à lista e acrescentou “fuck you Judith”– um momento do qual eu admiravelmente sobrevivi. (BUTLER, 2009, p. 17).

Como compreender este “Fuck you Judith Butler?” Por que uma pessoa trans trata uma teórica e ativista reconhecida na questão de gênero com tanto rancor? Ela teria traído, em algum momento, o que pensa quem se posiciona como trans?

Na verdade, o que parece ser um insulto sem sentido traz uma excelente questão: essa proposta de indeterminação de si enquanto sexualidade não seria uma afronta à crença de que apenas pela esfera jurídica qualquer forma de sexualidade pode ter seus direitos garantidos?

A própria Butler destaca isso, em várias passagens. Por exemplo, a determinação da sexualidade queer é exigida, sem qualquer tipo de “domesticação”, para que existam contestações democráticas como lutas por seus direitos, vale dizer, como lutas por reconhecimento. É como se o problema da identidade fosse um erro necessário ou um erro bom:

[...] é neste sentido que a totalização temporária atuada pelas categorias identitárias é um erro necessário. E se a identidade é um erro necessário, então a asserção “queer” será necessária como um termo de afiliação, mas ele não vai descrever aquilo que ele intenta representar. Consequentemente, será necessário afirmar a contingência do termo: deixa-lo ser subjugado por aqueles que são excluídos pelo termo, mas que justificadamente esperam ser representados por ele, deixa-lo assumir sentidos que não podem ser agora antecipados por uma geração mais nova em que o vocabulário político pode carregar uma série muito diferente de investimentos. (BUTLER, 1993, p. 230).

É como se a crítica de Butler, apesar de justificável, não atendesse a uma demanda social de reconhecimento de identidade. Talvez Honneth seja mais preciso, ao aludir a um sofrimento de indeterminação, uma espécie de impedimento de autorrealização, que teria sua expressão no sofrimento individual, na medida em que impediria a liberdade do sujeito. Um impedimento de autoafirmação, de autorrespeito ou de autoestima, o qual pode levar o indivíduo a uma vacuidade ou esvaziamento (cf. HONNETH, 2007, p. 105-106). Um sofrimento, aliás, que se sofre sem se perceber, por aceitarmos despercebidamente concepções unilaterais de liberdade (cf. HONNETH, 2007, p. 103).

Uma ideia contraintuitiva, para o raciocínio de Butler: seria preciso retomar o problema da determinação do gênero em seu extremo. É como se estivéssemos acreditando que algo leva o sujeito a desejar essa identidade, a tal ponto que o leve a uma luta, como uma força motriz moral (cf. HONNETH, 2009, p. 113), a qual pode promover desenvolvimentos e progressos na realidade da vida social do ser humano. Ou seja, ao invés de destruir a “gestão” da sexualidade pela indeterminação da sexualidade, talvez Honneth tenha razão ao apostar todas as suas fichas numa luta pelo reconhecimento que, afinal, quer a inclusão no modelo de “gestão” de todas as novas formas de identidade.

Ora, se for verdade que a ausência ou a negação das condições de realização do indivíduo levariam ao sofrimento, temos, no que tange ao gênero, uma patologia social que realiza a proeza de ser ao mesmo tempo aguda e crônica. Ela é intensa, porque localizada e claramente determinada em cada conflito de reconhecimento, e é persistente, porque reaparece com novas máscaras.

Assim, nossa tese poderia ser colocada nestes termos: talvez seja somente na exaustão do problema jurídico que poderíamos chegar ao que Vladimir Safatle propõe enquanto uma indiferença ao problema do gênero:

Nação e Estado devem ser assim absolutamente indiferentes às diferenças, no sentido de aceita-las todas e esvaziar a afirmação de qualquer conteúdo político. O espaço político não deve ser marcado pela afirmação da diferença, mas pela indiferença absoluta em relação a qualquer exigência identitária. (SAFATLE, 2012, p. 31).

Fica posta, pois, outra maneira de equacionar a questão de gênero: a indiferença do Estado, que parece estar baseada na convicção de que todo tipo de determinação implicaria algum tipo de discriminação e, por consequência, de sofrimento.

Nesse sentido, Honneth propõe a fragmentação da determinação, significa dizer, o imperativo da tolerância a todas as demandas de diferenciação identitária. Já Butler preconiza uma indeterminação que impeça a limitação da pessoa a qualquer tipo de redução identitária, quer dizer, uma reformulação do conceito de identidade, uma identidade plástica que aceite todas as possíveis determinações potenciais que um corpo pode assumir, sem qualquer valor prédeterminado, ou variantes no tempo.

Por seu turno, Safatle parece buscar um caminho em que determinar ou indeterminar deixe de ser uma função de gestão do Estado. Assim, não estariam disponíveis referenciais institucionais de discriminação, vale dizer, não haveriam dispositivos de poder que ensejariam a foraclusão necessária de uma heterossexualidade hegemônica.

Lembremos que a proposta de Honneth é uma gramática social normativa, na qual as condições de reconhecimento recíproco podem ser estabelecidas, sendo a própria normatização resultado de lutas por reconhecimento específicas, acumuladas e atualizadas na forma de direitos e deveres. Acreditamos que não há como evitar essa luta, jurídica, se quisermos chegar numa promessa de indiferença. Se seguirmos Honneth, teríamos que assumir que qualquer forma de impedimento da autorrealização abriria uma “lacuna psíquica”, a qual seria necessariamente uma lacuna moral, por revelar ao sujeito que determinadas formas de reconhecimento lhe são socialmente denegadas. Uma espécie de “perigo” que poderia privar ou mesmo desmoronar a identidade do indivíduo. Por isso, Honneth tem como horizonte uma questão: como pensarmos um processo de reconhecimento recíproco, entre os sujeitos, que preserve a particularidade de todos os indivíduos?

Esse modo de colocar o problema do gênero certamente traz suas consequências. Uma delas é uma assunção de que é somente a partir da esfera jurídica que poderíamos pensar para além de uma determinação/indeterminação da sexualidade. É assumir que é somente na exaustão desta relação, do seu interior, que poderíamos “ultrapassar” o problema da determinação do gênero. É certo que isso está diretamente contra a ideia de Butler:

[...] a tarefa não é multiplicar numericamente posições-subjetivas com o simbólico existente, o domínio corrente de viabilidade cultural, mesmo que tais posições sejam necessárias para ocupar lugares alcançáveis no empoderamento no estado liberal – tornar-se beneficiário de assistência médica, de ter parceiros honrados legalmente, de mobilizar e redirecionar o enorme poder do reconhecimento público. (BUTLER, 1993, p. 114).

No entanto, a nosso ver, é um pouco incompreensível reconhecer a necessidade desses direitos, no estado liberal, reconhecer a necessidade de uma luta por reconhecimento, mas excluir que essa espécie de reconhecimento aconteça nos moldes do estado liberal: como seria possível qualquer forma de luta por reconhecimento de direitos dos homossexuais, por exemplo, com base em uma esfera de indeterminação da sexualidade?

A empiria mostra que foi justamente o confronto dentro das normatizações paradoxais, no interior do estamento jurídico e moral, que provocou avanços reais, por exemplo, na questão do respeito aos homossexuais nos EUA, nos famosos confrontos de New York de 1969, conhecidos como Stonewall Riots.

O que pretendemos demonstrar é, primeiramente, como gênero e orientação sexual são questões que estão longe de estarem resolvidas ou satisfatoriamente encaminhadas. Nunca é suficiente insistirmos como um entrecruzamento entre concepções e teorias de sociedade, de identidade, de reconhecimento, de funcionamento psíquico e de patologia e normalidade, em uma pesquisa em teoria crítica sobre gênero, pode nos revelar uma história que merece mais um capítulo.

ABSTRACT: This paper aims to present certain positions regarding the question of gender in modernity. Starting from Foucault’s diagnosis that the processes of the constitution and production of the subject involve having a model of self-determination, we have attempted to reexamine the question of gender from two different perspectives: on the one hand, Butler’s proposal that sexuality cannot be determined, since it always resists any form of normatization; on the other, the struggle for recognition of individuality which seeks the inclusion into the legal sphere of all possibilities for self-fulfillment. Our aim is to evaluate these two models and to question which of the two might be closer to social demands connected to the issue of gender and, more broadly, the issue of individual identity.

KEYWORDS: Gender. Identity. Determination. Indetermination. Indifference.

REfERêNCIAs

BUTLER, Judith. Gender Trouble: feminism and the subversion of identity. London: Routledge, 1990.

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ESPINOSA, Baruch. Tratado político. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Pensadores).

FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I: la volonté de savoir. Paris: Gallimard, 2005.

FREUD, Sigmund. Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In: ______. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.19.

HEGEL, G. W. F. Phenomenology of spirit. Translated by A. V. Miller. Oxford: Oxford University Press, 1977.

HONNETH, Alex. Sofrimento de indeterminação. São Paulo: Singular, 2007.

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KANT, Immanuel. The Philosophy of Law: an exposition of the fundamental principles of jurisprudence as the Science of Right. Translated by W. Hastie. Edinburgh: T & T Clark, 1887.

SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas,

2012.6

Recebido em: 07/10/14

Aceito em: 29/10/14



[1] Bacharel em filosofia e mestrando em filosofia política pela Universidade de São Paulo. Empresário e consultor em gestão e inovação; desenvolveu e patrocinou pesquisas em modelos de gestão de pessoas em redes colaborativas com base em reconhecimento. É pesquisador do Laboratório de Estudos em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP) na USP. Contato: rua Heitor Penteado, n. 1797, ap. 13, Sumarezinho, 05437-002, São Paulo – SP. Telefone: (11) 98852-0072. E-mail: helgis@terra.com.br

[2] Possui doutorado em filosofia pela Universidade de São Paulo e pela Radboud Universiteit Nijmegen (cotutela). Coorganizou os livros A filosofia após Freud (Humanitas) e Paisagens da Fenomenologia francesa (UFPR). Participa do grupo de pesquisa do Laboratório de Estudos em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (USP). É membro da International Society of Psychoanalysis and Philosophy. Atualmente, é pós-doutorando em filosofia na USP. Bolsista FAPESP. Contato: rua Heitor Penteado, n. 1797, ap. 13, Sumarezinho, 05437-002, São Paulo – SP. Telefone: (11) 3862-4096. E-mail: manzifilho@hotmail.com

[3] As citações originárias de obras traduzidas para o português são reproduzidas sem qualquer alteração. Já as citações originadas em obras utilizadas em suas línguas de origem foram feitas com base em traduções elaboradas pelos autores. A bibliografia identifica as obras com e sem tradução, a partir do título e da especificação da edição.

[4] Inicialmente tomamos aqui, a partir de Freud, sexo e gênero como sinônimos, enquanto um estatuto biológico, o que será questionado mais à frente, com base em J. Butler. O texto apresentará então um questionamento, sob diferentes perspectivas, dessa estabilidade preliminar do conceito de gênero, o que, a rigor, é a própria essência do que se deseja instalar como questionamentos.

[5] Entendemos que sexualidade, nesse contexto, é o mesmo que orientação sexual.