“A verdAde decorAdA, vestidA com A veste dA ApArênciA”: sobre A ilusão poéticA no “opponenten-redede KAnt

Fernando Silva[1]

Resumo: O presente ensaio visa debruçar-se sobre o conjunto de anotações coligidas por Immanuel Kant, tendo em vista a arguição da dissertação do seu colega J. G. Kreutzfeld (registadas na Akademie-Ausgabe sob o título “Entwurf zu einer Opponenten-Rede”). Mais concretamente, pretende-se analisar a visão kantiana do tópico da ilusão poética, e o vínculo que esta forja entre as inferiores e as superiores faculdades do ânimo, a sensibilidade (os sentidos) e o entendimento. Almeja-se ainda demonstrar como, para Kant, o engano apenas suscita o fastídio do espírito e, portanto, nenhum conhecimento ou prazer, ao passo que a ilusão poética promove a ficcionação dos dados da sensibilidade e respectiva promoção da tarefa do entendimento na apreciação destes, e concluir como isso mesmo é para o filósofo um jogo que a ilusão enceta com o espírito, e do qual este extrai não só prazer, como também o avanço no seu conhecimento de si e do mundo. Por fim, esse mesmo jogo será apresentado por Kant como o sustentáculo principal para uma muito singular, mas sobretudo muito profícua cooperação entre poesia e filosofia.

Palavras-Chave: Kant. Ilusão. Engano. Filosofia. Poesia.

i   o temA dA ilusão poéticA no “opponenten-rede

São múltiplos, e por múltiplas razões interessantes, os temas abordados por Kant durante a chamada década silenciosa. Pois, mesmo que não se atenda à rica diversidade e amplitude temática destes, por vezes bem distante do Kant crítico, porém, para utilizar uma metáfora cara a Hamann, aí criaria e suprimiria o grande filósofo, no oceano desse silêncio, “as pontes e barcaças do método” que viriam a ligar as novas e velhas “ilhas” do seu pensamento, e entre as quais hoje temos de “saber nadar” (HAMANN, 1999, p. 17-18).[2] Nesta década e nos seus rebentos – diria pois –, se pode pressentir o que verdadeiramente liga tão remotas “ilhas” como a “Dissertação inaugural” e a fase crítica do filósofo, e deste começa a fazer, nas palavras de Schelling, “o preconizador e profeta do [...] espírito” (KANT apud SCHELLING, 1985, p. 14) que legaria à filosofia “o fundamento de um novo modo de ver” (KANT apud SCHELLING, 1985, p. 15); e tanto assim é, que isto mesmo é discernível na vasta maioria desses textos, e, para justiça de todo o sistema de pensamento de Kant, cada vez mais acolhido na sua devida importância e focado pelos actuais leitores críticos do filósofo.

Mas, a meu ver, de entre um tão amplo e sugestivo leque de temas – entre os quais há que contar ainda os que surgem, ou ressurgem, nos diversos grupos de Lições do professor Kant –, um há que parece poder atrair a nossa atenção pela mais singular razão. Refiro-me ao tema da ilusão poética[3], o qual, creio, se afigura tão cativante não tanto por o que possa ter contribuído para o sistema crítico do filósofo – o que, porém, é um inegável facto –, mas sobretudo porque é apenas natural que desejemos saber o que um grande filósofo, e logo Kant, terá proferido sobre um tema aparentemente de si tão distante como a ilusão na poesia[4] e que, portanto, tentemos saber qual a posição que este lhe lega no seio do seu pensamento filosófico.

Ora, o tema da ilusão poética, por si só, está presente na referida época; esse tema, e outros afins – os temas da faculdade de poetar, da imaginação e da fantasia, do Witz (ingenium) ou do gênio5 – emergem com inequívoca clareza das Lições de antropologia do professor Kant, entre 1772 e 1789. Todavia, o tema da poesia na sua relação maior com a filosofia, ou o tema de como a ilusão poética pode, mediante a sua dimensão estética, contribuir para forjar uma ligação entre as duas: sobre esse tema tece Kant vários interessantes juízos não nas Lições, porém, num outro quadrante da sua obra. Kant fá-lo, aliás, num texto de uma índole que, à primeira vista, e ao contrário do seu tema, nada prefiguraria de singular ou cativante, mas cuja importância e interesse em muito transcendem a sua mais aparente função. Refiro-me às anotações de arguição da tese de Johann Gottlieb Kreutzfeld[5], tendo em vista a obtenção, por parte deste último, do título de professor de poesia7: um discurso em latim proferido pelo professor Kant, a 28 de fevereiro de 1777, posteriormente publicado na Akademie-Ausgabe, sob o título “Entwurf zu einer Opponenten-Rede.” (AA XV.2: 903-935).[6]

5 Os títulos dessas lições são demasiados para que os pudesse citar integralmente. Deixo como exemplo a resenha de Collins, de onde se salientam “Dichtungs Vermögen”, “Von dem Bildungs Vermögen”, “Phantasie”, “Von Witz und Scharfsinnigkeit” ou “Genie”.

As anotações de Kant visam não a primeira parte da tese de Kreutzfeld, que fora escrita pro receptione (in ordinem philosophorum)[7], mas sim e apenas  a segunda parte da dissertação de Kreutzfeld, a qual seria defendida pro loco professionis poeseos ordinario rite sibi vindicando, e que versava – e cito Schmidt, o tradutor alemão da peça – “as ilusões dos sentidos enquanto uma fonte de representações e narrações poéticas.”10. Aqui, na segunda parte da sua dissertação, e para muito resumir as opiniões do professor de poesia, defende Kreutzfeld que a ilusão poética começa com o ludíbrio dos sentidos, e que muitos são os exemplos de lendas, mitos, poetas e até filósofos que se deixaram enlaçar nesse erro, e que nele fazem assentar a sua actividade. Assim, e a fim de explicar a natureza da ilusão poética, Kreutzfeld procura tornar evidente a tríplice relação entre sentidos (sensibilidade), ludíbrio (a ilusão poética) e ânimo (na conjunção entre entendimento e ânimo): e fá-lo, por um lado, estipulando o papel que cada faculdade do ânimo tem – e não pode deixar de ter – no forjar do ludíbrio, por outro, aquilatando o papel desse ludíbrio na criação de representações ditas poéticas; e por fim, alargando o problema desse ludíbrio poético até à esfera da oposição entre poesia e filosofia, a respeito do que exemplifica quão bem o ludíbrio se presta a poetas, que seriam mestres no uso deste e o extraem directamente dos sentidos, e com ele forjam a sua ilusão, e quanto dano ela inflige aos filósofos, os quais nada saberiam dos sentidos e, por isso, se deixavam por estes enganar.[8]

Dessa forma, pelo menos, apresenta Kant a visão de Kreutzfeld como ele próprio a vê – nas referidas anotações; e se bem conhecemos o todo da obra do professor de Königsberg, poderemos desde já dizer que nenhuma dessas três acepções do problema lhe pode ser indiferente, mas que sobretudo o problema geral que as três compõem – isto é, o efeito poético na sua possibilidade de promover, ou demover o conhecimento –, esse é-lhe e sempre lhe seria uma questão particularmente cara, pois toca o problema das faculdades do ânimo no processo de formação da representação e, como parece ser aqui o perigo, parece poder usar essa mesma ilusão poética para cindir ainda mais filosofia e poesia.

Por tudo isso, diria, pois, de modo muito sucinto – e as palavras de Kant não me negarão – que o problema central do “Opponenten-Rede” é também ele triplo. Ele encerra, primeiro, os sentidos e os ludíbrios em geral, bem como os diferentes, mais específicos efeitos por estes suscitados (pois que há também diferentes espécies de ludíbrios, bem como diferentes efeitos destes); segundo, a relação que esses ludíbrios estabelecem com as faculdades do ânimo, e o subsequente (e apenas possível) efeito que essa relação confere aos próprios ludíbrios; e terceiro, e mais importante, o caráter que esses ludíbrios sempre assumem, no ânimo humano, se um caráter benfazejo, ou nefasto – isto é, se promovem ou impedem o conhecimento –, e a natural repercussão que isso por certo terá no benefício ou no prejuízo que daí virão a extrair filosofia e poesia. Faço destes, pois, o campo de análise do meu próprio ensaio, que, por isso, versará também o tópico da ilusão poética na sua mediação entre sentidos e verdade. Aí tentarei aflorar como Kant concebe os diferentes efeitos da ilusão sobre o espírito humano, como ele os explica na sua adaptação (ou não) a este, e as consequências que ele daí extrai para o progresso ou o recuo do espírito no seu próprio conhecimento.

Assim, seja eu bem-sucedido nesta empresa, e espero poder comprovar que, para Kant, nem todos os ludíbrios são iguais e que, na opinião do filósofo, há uma espécie de ilusão que logra revestir de um ulterior e supremo benefício o (aparentemente apenas) maleficioso ludíbrio dos sentidos; que, por conseguinte, essa ilusão terá de tratar espontaneamente com uma singular disposição das faculdades do ânimo na propiciação desse mesmo ulterior efeito benéfico e que, por fim, isso abrirá para a possibilidade de uma subsequente e pacífica concordância entre filosofia e poesia. Razões que, no fundo – e também esse é meu objectivo – parecem começar a comprovar a insuspeitada singularidade não só do tema da ilusão poética em Kant, como do referido “Opponenten-Rede”, e que, por isso, se me afiguram mais do que suficientes para justificar a curiosidade de quem possa pensar conhecer em Kant apenas o futuro filósofo da razão pura.

ii   ilusão e engAno, ou prAzer e desprAzer do espírito

Que me seja permitido, todavia, partir justamente desse natural pressuposto e afirmar o que seria apenas óbvio. Pois, apresentando-se Kant na sua mais linear função de professor de filosofia, e Kreutzfeld na sua mais óbvia de professor de poesia, não seria absurdo assumir que, no diálogo entre discurso e dissertação, entre arguente e ponente, um se assumisse como o paladino das Graças, o outro, das Musas – ou até que Kant, muito em particular, unisse a sua voz à de Kreutzfeld, no sentido de provar que as nocivas ilusões provocadas pelos poetas e aquelas veiculadas pelos sentidos são umas e as mesmas, e que, contudo, o fizesse apenas para melhor poder identificar a essência do engano com a essência da poesia, e assim glorificar a contínua luta da filosofia pela verdade. No entanto, afirmo, não só não é este o caso, como é justamente o oposto; e isto, a começar por Kreutzfeld, que, segundo Kant, antes “trata de extrair todos os prazeres e lautícias da arte poética d[a] fonte impura [do engano dos sentidos], e de tal modo imagina a índole da mente propensa para vãos ludíbrios, que, quanto mais é enganada pela vacuidade das imagens, mais se acreditaria ser maior a alegria que toca o coração” (AA 15.2: 909)[9], e a acabar em Kant, que não só discorda dessa perspectiva, como antes procurará ver na ilusão poética – e também nos sentidos – justamente o contrário.

Ora, porque o tema parece ter tanto de delicado quanto de caro para o professor de filosofia, ele vê-se forçado a responder a esse problema, e isso desde logo antepondo aos quatro argumentos gerais do seu discurso um breve, mas rico prelúdio directamente centrado sobre as diferentes espécies de ludíbrio e os efeitos por elas suscitados no espírito humano. É sobre esse prelúdio, não tanto sobre os argumentos que se lhe seguem, que se centrará este ensaio.

Aí, funda Kant a dicotomia que animará não só o resto desse prelúdio e do discurso, como também as suas futuras considerações sobre o tema da ilusão poética, e que, bem poderíamos dizer, como que inaugura a poética kantiana aqui contida. Pois, por um lado, começa o filósofo por dizer, o espírito humano tem já em si uma propensão (proclivitas) para os vãos ludíbrios, e não só é fácil enganá-lo, como não raras vezes este se deixa até enganar de bom grado (AA 15.2: 905). Mas, por outro lado, logo objecta Kant, este vão engano, esse ludibrioso embuste nada tem a ver com a ilusão forjada pelos poetas, não só no que a motiva, mas, mais fulcralmente ainda, no que são os seus ulteriores efeitos para o espírito humano.

Assim, com respeito às causas desses ludíbrios, Kant começa por evocar uma metáfora específica, a do ouro, segundo a qual o primeiro tipo de ludíbrio seria executado em proveito próprio por “charlatães ambulantes, [...] demagogos [...] e até hierofantes” (AA 15.2: 905), que, “com o objectivo do lucro, engana[vam] a multidão incauta” (AA 15.2: 905)[10]; um artifício que, reitera uma vez mais o filósofo, é “totalmente alheio ao espírito dos poetas, cujos corações dificilmente são movidos pela cupidez do ouro” (AA 15.2: 905)[11], e que em muito os diferencia dos primeiros.

Mas logo após, essa metáfora é ampliada para uma dimensão muito mais importante, a do efeito desses ludíbrios sobre o ânimo, onde estes também se distinguem, agora definitivamente. Tanto assim é que Kant passa até a especificar as suas diferentes designações – e isto de acordo, pois, com o seu efeito. Dessa maneira, quanto ao fenómeno do seu ludíbrio, diz Kant, ao primeiro – o dos meros charlatães –, deve chamar-se engano (Täuschung, Betrug, fallit); mas, ao segundo – o dos poetas –, ilusão (Schein, Illusion, illusio). E isto, não porque ambos não consistam por certo em imagens, e mais propriamente na arte de enganar ou iludir mediante a aparência por elas veiculada.  Mas, para Kant, enganar não é o mesmo que iludir, e estes têm de ser diferenciados. O engano, assevera Kant, muito se ancora na natural propensão do homem para ser ludibriado e, por isso, faz uso de “imagens ficcionadas” (fictas rerum) (AA 15.2: 903), “falácias dos sentidos” (fallacias sensuum) (AA 15.2: 908) que visam apenas um ganho físico, e que talvez até satisfaçam o corpo, mas nada trazem, nada acrescentam ao ânimo, revelando-se por fim mera “vacuidade e ludíbrio” (elas são, no dizer de Kant, vanitate et ludibrio (AA 15.2: 907), na tradução de Schmidt, nichtiges Spiel (K-S: XVI, p.7)); ao passo que a ilusão, embora radicando por certo na propensão do primeiro, antes lhe confere uma outra direcção, a saber, a de uma aparência lúdica (spielende Schein (K-S: XVI, p. 9)), criada pelos poetas com o muito específico propósito de enlevar, vivificar, animar o espírito; e, nesse sentido, Kant declara: “Há, com efeito, certas imagens das coisas mediante as quais a mente joga, mas não é por elas iludida.” (AA 15.2: 906).[12] Kant desde logo explica essa distinção entre jogo e ausência de jogo, cavando ainda mais o campo metafórico da dissociação entre engano e ilusão: é que o engano, reitera, “induz os incautos no erro” (AA 15.2: 906) e “defrauda os ingênuos e crédulos com adorno e enganos” (AA 15.2: 906-907); isto é, ele visa esse único, e deveras ignominioso propósito, e, por isso, logo se extingue no seu próprio sucesso, no alcançar do seu muito restrito próprio proveito. Daí que, aduz Kant, também “a imagem que engana, logo que percebida a sua vacuidade e ludíbrio, desaparece” (AA 15.2: 907), como se nunca tivesse sequer existido – e isso, conclui Kant, provoca necessariamente um desagradável sentimento de ausência, algo como um fastídio, um tédio, um desagrado do espírito por se ver deixado intocado. Por outras palavras, afirmo, a imagem que engana – e aqui está para Kant o cerne dessa questão – desagrada, porque, justamente, ao nada ter de jogo em si, ao nada apresentar que não a sua própria vacuidade, a imagem que engana apenas deixa atrás de si o vazio do tédio, ela é fastidiosa, ao ponto, diz Kant, de tais sensações resvalarem até para a indignação, o desdém e o ódio.[13] Não pode admirar, pois, que com respeito à verdade, o engano, que deveria ter o seu fim nessa aparência dos sentidos, se tenha de fazer passar por verdade; isto é, ele faz passar a aparência por verdade, e nisso engana o espírito duplamente, quer já incialmente não fazendo dela o seu fim – e levando-o ao engano, induzindo-o no erro –, quer ulteriomente confrontando-o com essa ludibriosa realidade e desviando-o da verdade, e nisso provocando-lhe desprazer.

Ora, lembrando palavras anteriores do professor Kant, esse mesmo era o ponto de vista de Kreutzfeld – a saber, que os poetas se servem dessa espécie de engano nos seus ludíbrios, e que disso, e não das ilusões destes, retira o espírito prazer –, uma opinião que, porém, de modo algum poderia ser válida para Kant, antes é directamente inversa à perspectiva que o filósofo tem do problema.

Assim – contrapõe Kant –, a ilusão dos poetas nada tem de “ingloriosa” e não é “lucrativa” (AA 15.2: 906), e, portanto, nada tendo desses vis propósitos, que nos desviam e muito deturpam a verdade, ela não pode senão percorrer um outro caminho, porventura mais recto e sincero, em direcção a essa verdade, e forjar com ela uma melhor, mais salutar conexão. Numa palavra, para Kant, a ilusão cria entre a verdade e os sentidos uma mais desinteressada, porém, muito mais importante relação: pois mediante ela, “o artista não induz os incautos no erro, mas exibe aos olhos a verdade decorada, vestida com a veste da aparência” (AA 15.2: 906), e ao fazê-lo, “traz à cena a árida e seca imagem da verdade banhada com cores sensíveis” (AA 15.2: 907)[14]; e portanto, não só ela não se faz passar pela verdade, como antes promove por outro, mais singular trilho, a sua descoberta. E esta é, num seu primeiro vislumbre, a ilusão dos poetas, e não aquela outra do engano; porque, traduzindo as palavras de Kant para outras, o poeta logra usar os sentidos não para transvestir, para falsear a verdade, mas justamente para alcançar uma veritas phaenomenon (AA 15.2: 907): para a decorar, para a enaltecer e, assim, promover uma sua mais salutar descoberta pelo espírito humano. E justamente isso – justamente aqui, mediante ela – ressalta também Kant, o espírito enceta com os sentidos, a ilusão e a verdade um singular jogo: o mesmo a que já antes aludimos, e um que, vê-lo-emos, muito enobrecerá todos os seus participantes; um jogo mediante o qual todos se vêem estimulados e vivificados, e onde a ilusão, por entrar nele – pois ser ela, aliás, a razão do jogo –, não se apressa a desaparecer, não se dilui em um qualquer ganho fácil e imediato, antes busca um outro mérito e, dessa forma, aí “permanece” (AA 15.2: 907) enquanto elo entre espírito e verdade: “lisonje[ando] os ouvidos, e com imagens ficcionadas das coisas estimula o ânimo e alegra-o.” (AA 15.2: 906).18

Em suma, diria Kant e nós com ele, ao contrário do engano, a ilusão joga com o espírito humano; e fá-lo, porque medeia o jogo entre sentidos e verdade, e, porque joga, ela gera nele prazer e deleite (“pelo que as aparências das coisas, enquanto enganam, produzem tédio, mas enquanto só nos iludem, produzem prazer” –AA 15.2: 908).[15] Na verdade, para Kant, se a ilusão é jogo entre erro e verdade, então ela é tanto avanço como recuo: ela não é erro, mas tão-pouco é verdade, antes induz ao erro ao mesmo tempo que deixa ver a verdade: ela, frisa Kant, “deleita precisamente porque não engana, mas alicia ao erro” (AA 15.2: 908) e o jogo é essa mesma intermitência, em vista da qual o espírito se vê estimulado a jogar com ela, e sente prazer justamente porque não está a ser enganado, antes, em plena consciência da ilusão, se sente senhor da situação: é ele que “mantém num agradável movimento o ânimo, fazendo-o como que flutuar nos confins entre o erro e a verdade, e estimula[ndo]-o admiravelmente, pois ele está consciente da sua sagacidade contra as seduções da aparência.” (AA 15.2: 907).[16]

Ora, para resumir, e para retomar o ponto de vista do professor Kant e do seu interlocutor Kreutzfeld, e a curiosidade que depositamos nas suas perspectivas, o que tudo isso significa é, pois, algo como uma fina ironia: eis que, dada a não-natural posição de Kreutzfeld, o professor de filosofia Kant, futuro crítico da razão pura, se vê em posição – e, por certo, na incumbência – de se assumir ele próprio numa postura contrária à que inicialmente se esperaria, separando claramente a ilusão, que promove a verdade, dos vãos ludíbrios, os quais enganam, se fazem passar pela verdade e desaparecem engolidos pelo seu próprio tédio, e reclamando para a ilusão um certo, e muito singular emprego dos dados veiculados pelos sentidos, que é posto ao serviço do adorno do erro, na sua aparência de verdade, e na intermitência deste para o espírito, o que por fim estimula um aprazível e deleitoso jogo entre as três entidades. Inesperadamente, pois, Kant assume os traços não diria de paladino da poesia, mas por certo de alguém que, nesse nobre jogo, nesse prazer do jogo por ela ocasionado, lhe reconhece nobres e superiores méritos, muito além daqueles que advêm de um mero uso ludibrioso dos sentidos, ou até das palavras; alguém que, portanto – agora decisivamente, contra a opinião de Kreutzfeld –, parece ver na ilusão poética, e até mesmo na poesia, a possibilidade de ser não uma opositora, não uma inimiga da filosofia, mas justamente um terreno, um modo de proceder, uma linguagem afins às desta, e que por isso não lhe seria antagónica, antes seria como que uma sua irmã de sangue.

A possível comprovação disso mesmo, bem como a dilucidação do muito prazenteiro (e para Kant central) jogo da ilusão poética – o qual, todavia, sempre parece algo esquecido ou negligenciado pela maioria dos leitores críticos do “Opponenten-Rede” –, procurarei empreendê-las no meu ponto subsequente.

iii   o jogo entre ilusão e entendimento. A ilusão poéticA Ao serviço dA filosofiA

Com efeito, se fosse nossa intenção visar apenas o referido jogo entre a ilusão, os sentidos e o ânimo, ou até perscrutar essa nova dimensão que Kant entrevê na ilusão poética, não é de duvidar que entre a ainda inexplorada riqueza desse breve prelúdio e os quatro subsequentes argumentos principais encontraríamos, disiectae membrae, não só a dita distinção entre engano (Betrug) e ilusão poética (Illusion), que lhe dá corpo, como também os traços do referido jogo encetado pela ilusão poética, que a comprova.

Mas, para alcançar isso mesmo, gostaria de partir de um outro ponto. E, se o posso fazer, é porque a distinção entre engano e ilusão surge aqui, na palavra de Kant, não por mera fortuna, ou por mero formalismo acadêmico, mas sim porque ela era, já à data, uma real preocupação teórica de Kant, e algo que ocupava a sua reflexão não apenas no “Opponenten-Rede”. Ora, disse-o já, é por certo consabido que o tema do logro dos sentidos, das suas possíveis causas e efeitos, sempre povoou as Lições de antropologia do professor, e isto em conjunção com as já referidas lições sobre faculdade ou arte poética; e confesso até que todas essas lições sobre o uso, os perigos e os ludíbrios dos sentidos parecem apontar, umas mais, outras menos, o horizonte do referido prelúdio do “Opponenten-Rede”. No entanto, uma há de entre essas que parece oferecer-se como mais do que um mero ponto de situação, e que, por isso, pode facultar-nos novos elementos para a pesquisa que agora encetamos: e logo a única vez que Kant não dedica ao tema algumas páginas, antes um único e pequeno parágrafo, e a única destas em que o título reza, nada coincidentemente, “Von dem Betruge und dem Schein” (AA: 25.2, 745). Refiro-me à versão de 1777/78 (PILLAU) – do mesmo ano, pois, do “Opponenten-Rede”. Aí se destaca, com a precisão de um passo que bem poderia ter-se contado entre as anotações à tese de Kreutzfeld:

Há uma grande diferença entre engano e aparência. Ilusão é uma aparência que não engana, antes deleita; pois muitas aparências desagradam, quando são descobertas. As ilusões são-nos necessárias pois, amiúde, temos de esconder o pior. Pode-se designar por ilusões tudo aquilo em que ocorre uma ligação entre o entendimento e a aparência. (AA: 25.2, 745).[17]

O passo é todo ele cristalino e dissipa quaisquer dúvidas subsistentes quanto ao facto de existir, para Kant, uma grande diferença entre [as aparências] do engano e da ilusão. Com efeito, Kant reitera aqui que o engano dos sentidos é vácuo, que ele desaparece e que, ao desaparecer, suscita desprazer (missfällt), engana (betrügt) e, portanto, não dá azo a nenhum jogo; e a isso aduz que, ao invés, a ilusão dos poetas não engana, antes permanece; ela delonga-se no ânimo e, ao fazê-lo, deleita (ergötzet) e se afirma, desse modo, por natureza lúdica; e por essa razão, o engano dos sentidos nada tem a ver com a verdade, senão que não a procura e, por conseguinte, desaparece, e negligencia o jogo, ao passo que a ilusão poética mais que tudo a deseja, revestindo-a de outras cores ao olhar do ânimo, porque assim tem de ser, e nisso mesmo se delongando nesse jogo: no fundo, tudo factos naturais, pois todos esses elementos nos são conhecidos, estão solidamente fixados e não carecem de novas provas.

Mas, segundo creio, esse passo vai mais além na explicação da referida dissociação e dá-nos um importante elemento que apenas mencionámos no início – a possível relação do engano ou da ilusão com as faculdades do ânimo –, e que agora nos compete abordar. 

Pois a estas conclusões, que temos por verdadeiras, junta-se agora um outro facto: a ilusão, diz Kant, alberga “uma ligação entre o entendimento e a aparência” (AA 25.2: 745), ao passo que, para o filósofo, pressupõe-se, o engano denota uma natural falta desta. Isto é, para o professor Kant, dá-se na ilusão uma qualquer relação entre entendimento e sentidos; e, a julgar pelo que vimos, por certo uma relação deveras singular, ou não soubéssemos que justamente o entendimento, ao funcionar, dir-se-ia, como um filtro, tem por função reter os factos, as imagens, as representações dos sentidos que não se prestem enquanto conhecimento, ou seja, que não possam contribuir para a busca da verdade. Contudo, enfatiza Kant, essa singular relação é possível e existe na ilusão; e se existe, então, dir-se-ia, há para Kant uma maneira de tornar os sentidos não inteiramente ludibriosos, o que significa que, se não todos, pelo menos alguns dados dos sentidos há que o entendimento admite e aceita; e por fim, se estes existem, essa relação tem de ser mediada ou favorecida justamente por aquilo que aqui liga sentidos e verdade, a ilusão poética, e negado pelo que os desune, o engano – e por isso, talvez seja de pensar que nos falta considerar um superior estádio, e novas e superiores consequências da distinção kantiana entre engano e ilusão: a saber, uma outra relação destes com as faculdades do ânimo (no jogo, ou na ausência dele) e, por fim, destas com a filosofia e a poesia. Pois, assim sendo, talvez seja de supor com Kant – e talvez ainda sem saber por quê – que, se entre os sentidos e a verdade há um tão grande hiato, e esse hiato é, por si só, a predisposição ou não para jogar o jogo da aproximação, da assemelhação da verdade, então talvez o entendimento venha a desempenhar nesse jogo da sua relação com os sentidos, e com a verdade, um papel decisivo; e se for esse o caso, logo, para o filósofo, o pressentimento da verdade pressupõe que entre o ânimo e os sentidos se forje uma singular ligação ou vínculo (Verbindung), pois, sem isso, sem esse jogo de uma possível ligação ao fim visado, ela se queda inacessível ao ânimo.

Passo, por conseguinte, a reconsiderar a questão do engano ou da ilusão no eixo da sua relação com a verdade, e isso na perspectiva específica da ocorrência (ou não) do jogo da poesia.

Uma vez mais, a correcta moldura para esse problema é encontrada nas Lições de antropologia. Também aí, Kant analisa sensibilidade e entendimento no seu singular vínculo: a saber – assevera Kant –, há entre ambos uma relação de simultânea oposição e dependência.

De facto, é para o filósofo inegável que sentidos e entendimento se opõem, desde a sua origem – uma representação sensível nunca pode vir a ser, sem mais, uma do entendimento, e vice-versa[18] – até ao seu ulterior efeito – até porque, tomadas por si só, estas teriam um efeito muito diferente sobre o ânimo. Aliás, não é por acaso que, para o professor Kant, a sensibilidade é uma inferior faculdade de conhecimento (os sentidos, esses, são meras forças), ao passo que o entendimento é uma superior faculdade de conhecimento, visto que a sensibilidade é uma potestas executoria (AA 25.1: 486), ela é “tudo aquilo que pertence à modificação do sujeito” (AA 25.2: 1229) e, ao sê-lo, dá informação, dá matéria ao entendimento, ao passo que o entendimento é uma potestas rectoria (AA 25.1 486), quer dizer, ele é “o que se dirige ao objecto” (AA 25.2: 1229) e, ao sê-lo, ao receber a matéria dos sentidos, ele tem por função, como já se aludiu no “Opponenten-Rede”, ajuizar sobre ela: restringir a força da sensibilidade (porque, para Kant, a força desta é sempre muito superior à força do entendimento (AA 25.1: 486)), trazê-la a uma ordem (a sua) e reger sobre o todo.

Posto isso, e apesar dessa oposição – aduz sempre Kant –, há também entre ambas as faculdades uma necessária interdependência, sem a qual qualquer uma delas teria de abdicar do seu referido procedimento, e não poderia existir enquanto tal[19]; pois a sensibilidade tem de saber ser o entendimento como que o seu freio, mas ser ela, também, como que a espora daquele; e, portanto, para lembrar os três argumentos principais que compõem os vários esboços de uma apologia kantiana da sensibilidade, presentes nas Lições – e que se repercutirão no “Opponenten-Rede” –, a sensibilidade, a despeito de se opor ao entendimento, não o engana, pois ela não ajuíza – antes é o entendimento que, ao ajuizar, por vezes, se engana a si próprio (como nos casos descritos nos anteriores pontos I e II, na análise ao “Opponenten-Rede”)[20]; a sensibilidade não obscurece o entendimento, antes o clarifica, por meio dos exemplos que lhe dá, e torna as ideias do entendimento mais intuitivas (até porque, para Kant, a claridade da intuição é maior do que a do conceito)[21]; e, por fim, a sensibilidade não confunde o entendimento, antes, como se disse, o compensa ricamente com matéria, o estimula, assim ajudando a explicitar as decisões deste, quanto a aceitar ou rejeitar os dados sensíveis que ela lhe dá.[22] E, por sua vez, o entendimento, que para Kant será a mais sublime das duas faculdades, contudo, não a mais indispensável[23], tem de saber reconhecer a utilidade, mas igualmente a força maior da sensibilidade, as suas vantagens e perigos, e, portanto, ele tem de agir sobre ela de tal modo que a aceite e lhe dê liberdade, mas, e ao mesmo tempo, a restrinja e a impeça de tomar as rédeas de um possível elo – um possível jogo que entre eles se encete.

Assim, o que isso significa é que, para Kant, analisar a relação entre sentidos e entendimento (proposta no “Opponenten-Rede”) pressupõe que se tomem em conjunto a oposição e a interdependência entre ambos, isto é, a necessidade recíproca entre ambos, ao mesmo tempo da insuperável distinção entre ambos, e que só daí, desse finíssimo meio-termo[24], em que sensibilidade e entendimento, mau grado as suas diferenças, as suas diferentes posições, até mesmo os seus diferentes graus de influência, têm de ser momentaneamente concordantes (sob o domínio do entendimento, bem-entendido),[25] pode nascer entre as duas faculdades um elo saudável. Por isso, aduz Kant, a sensibilidade tem de ser excoliert, tem de ser cultivada – na liberdade que o entendimento lhe concede –, mas também e ao mesmo tempo discipliniert[26] – na restrição, no veto que o entendimento lhe impõe, a si e à suas imagens. De outro modo, perdido esse saudável meio-termo, e a sensibilidade por certo não deixaria de, citando Kant, enganar, obscurecer e confundir o entendimento, assoberbando-o e, fruto da desordem e do delírio, inibindo-o de cumprir a sua empresa; ou então o entendimento, vendo-se senhor absoluto daquela, não poderia deixar de agir como um tirano, em muito a desvirtuando e sucumbindo também à sua própria aridez.

Ora, tendo em conta essa posição específica de Kant quanto à relação entre sentidos e entendimento, e não esquecendo a sua mais geral posição a esse mesmo respeito, no “Opponenten-Rede”, diria que uma e a outra posições são, todavia, a mesma; e que portanto aí, no Discurso, Kant usa deliberadamente a dicotomia engano-ilusão para se colocar nesse mesmo ponto decisório entre sensibilidade e entendimento: no ponto entre um saudável equilíbrio entre ambos, que é assaz débil e de difícil disposição no ânimo humano, e toda uma imensidão de possibilidades de desequilíbrio entre as duas faculdades, que está por todo o lado e para o qual, ainda por cima, destacara já Kant, o ânimo tem uma propensão natural. Dito isso por outras palavras, afirmaria que apenas um de dois cenários pode ser admitido, no “Opponenten-Rede”: ou se admite um uso violento, abusivo, feroz dos sentidos, e se tenta assim ludibriar, enganar o entendimento, com prejuízo do próprio espírito, o qual se vê no desprazer de nada pressentir da verdade; ou, ao invés, os sentidos são, dir-se-ia, domados, suavizados e, por conseguinte, agregados como parte de um todo pelo entendimento, de tal maneira que cooperam com as faculdades do ânimo, no sentido de apresentar a esse último a verdade decorada (o referido meio-termo já proposto por Kant, nas Lições). O próprio Kant, aliás, enuncia esse problema antes mesmo do primeiro argumento: nesse sentido, ou se “promove o império do entendimento sobre o ignóbil vulgo dos sentidos” (AA 15.2: 909), ou, ao invés, se soçobra perante “a força indómita dos sentidos, e [por isso], a impotência da razão” (AA 15.2: 910); e, portanto, ou os sentidos assoberbam o entendimento, ou o entendimento subordina a si os sentidos – tal como na mais comum questão do conhecimento. No fundo, bem visto o problema da ilusão poética, também ele é, ulteriormente, um problema do conhecimento; e, logo, também aqui há que ver que ou quanto conhecimento não só as imagens do engano, como também as imagens da ilusão patenteiam perante o entendimento, e se elas o veiculam (ou não) ao ânimo.

Ora, o que acontece com respeito a uma hipotética primazia dos sentidos sobre o referido eixo do jogo – ou, lembrando o Kant das Lições de antropologia, o que acontece no caso de uma hipotética cultivação (excolieren) excessiva da sensibilidade, na sua relação com o entendimento? Dir-se-ia aqui que, uma vez as imagens destes apresentadas ao entendimento (que aqui, como sempre, tem de apreciar a validade das imagens, e ajuizar sobre a sua utilidade), tais imagens são por certo sedutoras, violentas, e algumas delas até quase indomáveis, pois visam sobrepujar o entendimento. Aliás, as mais violentas destas, como as ilusões da superstição ou do fanatismo, são, para Kant, irresistíveis e transpõem realmente o filtro do entendimento, acedendo ao ânimo e aí se alojando, onde ardem secreta, mas intensamente.[27] Todavia, aquelas que aqui nos ocupam, as ditas “vulgares falácias dos sentidos” (AA 15.2: 908) – como a ilusão óptica de um passe de mágica –, essas se limitam a esbarrar contra o entendimento; pois, ainda que o entendimento possa inicialmente experienciar um laivo de aliciamento, um frémito de atracção pelas referidas falácias do engano – pois, afinal, posicionamo-nos aqui no domínio da “força indómita dos sentidos” e da “impotência da razão” (AA 15.2: 910) –, ulteriormente, porém, diz Kant, ele acaba por se “livrar delas naturalmente” (AA 15.2: 917): o entendimento rejeita-as, fá-las desaparecer, porque detecta nelas o ludíbrio, e não as julga dignas do espírito humano – e, ao fazê-lo, gera o já reiterado vácuo que tanto desprazer causa ao ânimo. E porquê? Porque, ao não transpor o entendimento, a imagem não chega a criar um saudável equilíbrio do eixo; ela não se delonga neste, e, ao não se delongar, nem oferece resistência, nem cede perante o ânimo e, como tal, nunca chega a forjar um elo entre os sentidos e a verdade, e estes nunca vêm a dialogar por seu intermédio; e esse silêncio é o vácuo. Quer dizer, numa palavra, não chega a haver ilusão, nem jogo, apenas e só puro ludíbrio, e não só o ânimo nunca chega a fazer uso da imagem dos sentidos, como, “uma vez desaparecida a falácia, [o poeta] não pode mais aliciar o entendimento mediante as aparências das coisas, na medida em que elas contêm falácias.” (AA 15.2: 917).

A pergunta é, pois, óbvia: que fazer perante uma tal “força indómita dos sentidos”? A resposta do professor Kant não tarda, e uma vez mais é insuspeitadamente favorável à poesia: a solução, declara, passa não só por compreender o fenômeno da ilusão poética, o qual pode “minar pela astúcia” (AA 15.2: 917) a própria astúcia dos sentidos, como ainda por advogar a “pia fraude” de “habituar o ânimo aos encantos tanto das letras como das artes elegantes, desse modo libertando-o a pouco e pouco da bruta cupidez [dos sentidos] como de um agreste e furioso senhor” (AA 15.2: 917)[28] e, reiteramos nós, assim instaurando o referido “império do entendimento sobre o ignóbil vulgo dos sentidos.” (AA 15.2: 909). Ora, para Kant, da mesma maneira que as imagens dos sentidos têm de ser submetidas ao judicioso escrutínio do entendimento, também a ilusão do poeta, que no fundo é a mesma impressão dos sentidos, mas conformada a uma ilusão, tem de o ser.

Ora, o que faz então a ilusão aos dados dos sentidos? Isto é, que faz a ilusão ao engano, ao se apresentar ao entendimento? Por certo, ela incorpora a imagem dos sentidos em si, ela fá-la sua; porém, ao fazê-lo, ela própria como que dissocia entre o que naquela é pura rudeza e aquilo que nos sentidos é pura humanidade e, por isso, propriamente coadunável com a verdade. Numa palavra, a ilusão liberta o engano do que nele é espinhoso, agreste e violento – e, no fundo, do que nele é mais propriamente afim ao real e, dessa forma, não se coaduna com a verdade –, e, deveras astuciosamente, leva consigo apenas o que nele é mais essencial, e pode fazer o ânimo discernir a verdade; pois a ilusão e as artes elegantes de que ela faz parte, diz Kant, “modera[m] os sentidos, elas iludem a ávida expectação destes e, prendendo-os pelas suas sumptuosidades e levando-os a perder a sua ferocidade, tornam-nos tanto mais obedientes aos preceitos da sabedoria.” (AA 15.2: 910).[29]

Ora, que significa, enfim, essa subtil astúcia? Numa palavra, o jogo da ilusão poética com o ânimo: porque, ao se apresentar a ilusão ao entendimento, ela porta ainda consigo aquilo que inicialmente aliciou o entendimento, o possível presságio de verdade (um ludíbrio, por certo, mas agora sem prejuízo); mas agora, fá-lo já sem aquilo que sempre obrigaria o entendimento a rejeitá-lo, e que impedia a ligação à verdade, que suscitava o vácuo, que gerava o desprazer etc. Ela é, reitera Kant, “a verdade decorada, vestida com a veste da aparência” (AA 15.2: 906); ou seja, dito por outras palavras, a ilusão continua por certo a aliciar ao erro, mas tudo isso é “em vão” (“frustra” (AA 15.2: 908)), já que, nessa oscilação, nesse jogo entre erro e verdade, entre revelação e omissão, aceitação e recusa, supremacia e subordinação, “ela não engana” (AA 15.2: 908), ela “não procura os enganos dos sentidos, mas pelo contrário us[a]-os porque a aparência do objecto, que deveria descrever a natureza com perfeita similitude, não pode prescindir del[a]” (AA 15.2: 918) – e nisso delonga-se no espírito, “não deixa de permanecer” (AA 15.2: 907) no jogo com o espírito. E, por fim, ao recuperar a sua compostura e sacudir de si a insídia do voo em que se viu, o entendimento vem com efeito a reconhecer (erk[e]nnt) a ilusão –, mas isso, frisa Kant, nada fere a ilusão, o entendimento não a enjeita, antes, ao se ver perante tal singularidade da ilusão poética, e apenas perante o que o alicia, já não perante o que o engana maliciosamente – e, ao mesmo tempo, julgando reconhecer nisso o erro, porém, não obstante, não podendo deixar de ser assoberbado pelo laivo de verdade nele, o entendimento não tem outro remédio que não aceitar a ilusão e conceder-lhe acesso ao ânimo humano. Tal é o jogo da ilusão com o espírito, tal é o modo como o espírito é estimulado pela ilusão – e, por isso, tal é o referido e muito salutar meio-termo na relação entre os (interdependentes) contrários sensibilidade e entendimento, na sua momentânea modulação pela ilusão poética.

Por fim, que me seja permitido salientar o seguinte aspecto: que o entendimento, o pêndulo da questão do conhecimento, abra os portões do ânimo humano a tão singular manifestação dos sentidos, a tão rara e enlevante ilusão destes, não é uma triste inevitabilidade, ou um menor dos males; bem pelo contrário, para Kant, isso é algo que não só tem de acontecer, como em muito favorece o ânimo humano, porque a ilusão poética não chega a ser real senão na sua própria ilusão e, com efeito, ela não veicula senão “imagens ficcionadas das coisas” (AA 15.2: 903); porém, apesar da sua idealidade, a ilusão torna os sentidos obedientes à verdade e, ulteriormente, estabelece entre esta e o ânimo uma mais próxima ligação; isto é, ela forja aqui uma superior conexão não só com o seu fim, mas também com o fim da filosofia, e isso – reitera o filósofo –, fá-lo ela “maravilha[ndo] [o espírito] mediante a força unida dos sentidos” (AA 15.2: 923). A explicação disso, aliás, nada tem de complexo. Pois, já diz o professor Kant, nas Lições de antropologia, ao contrário do instrumento filosófico da memória, mediante a qual o ânimo descobre (entdeckt) coisas que já lhe são conhecidas, e que esquecera, e isso nada encerra de prazer, a poesia leva o ânimo – e com ele a filosofia – a inventar (erfinden) novas ligações entre as coisas, ligações que antes não existiam e que nele desencadeiam um novo frémito de vida, e abrem para uma nova e pulsante esfera do conhecimento à qual apenas a poesia o pode elevar por esse jogo que ora levanta, ora descerra o véu sobre a verdade. E, se assim é, conforme Kant, o que a ilusão poética verdadeiramente faz é, mediante o jogo da invenção de tão singulares e novas imagens, enlevar um ânimo que de outro modo sempre seria deixado no venerando repouso e, portanto, sempre seria votado ao que ele próprio toma por racional, e por normal, e sempre seria levado a rejeitar o que sempre rejeitou;  Dessa maneira, conclui-se, o que a ilusão poética promove é antes um progresso do conhecimento mediante o novo, o estranho, através do qual ela incita o ânimo, levando o entendimento a conceder passagem a imagens que antes lhe eram desconhecidas e, por isso, proibitivas, contudo, com as quais o entendimento reconhece agora uma ínfima, longínqua, mas real ligação: e isso não só não o prejudica, não só não o ludibria, como antes muito o auxilia e promove uma sua maior amplitude de compreensão do mundo.

O que isso significa, numa palavra, é que a ilusão poética coloca o espírito numa inédita disposição, porque ela lhe confere “um agradável movimento” (AA 15.2: 907) onde lhe são dadas a conhecer novas imagens dos sentidos, para si inéditas, com as quais ele joga e nas quais crê entrever – e entrevê, deveras – a verdade, e isso embora conheça o erro por detrás disto. E essa mesma novidade, esse mesmo progresso incitado pela ilusão poética, essa re-invenção do inédito é algo de que também a filosofia carece e que a promove, e que assim forja entre ambos os campos do pensar e do sentir um indissolúvel laço, o mesmo que outrora, em tempos já esquecidos, as uniu, e que por isso “deve ser louvado pelo filósofo.” (AA 15.2: 909).

SILVA, F. “The decorated truth, dressed in the raiment of appearance”: on poetic illusion in Kant’sEntwurf zu einer Opponenten-Rede”. Trans/form/ação, Marília, v. 41, n. 4, p. 9 -30, Out./Dez., 2018.

AbstrAct: The following essay discusses Immanuel Kant’s “Entwurf zu einer Opponenten-Rede”, which treats of his colleague J. G. Kreutzfeld’s dissertation. More specifically, my aim is to analyze Kant’s view of poetical illusion, and the bond it forges between the inferior and the superior faculties of the spirit, that is, the sensibility (the senses) and the understanding. I also aim at demonstrating how, for Kant, deceit only arouses aversion, and therefore no knowledge or pleasure whatsoever; poetical illusion, on the other hand, promotes the fictionalization of the data of sensibility and enhances the role of the understanding in judging them. For Kant this is a game which the illusion plays with the spirit, and from whence the latter derives not only pleasure but also an advancement in its cognition of itself and the world. Finally, this very game is presented by Kant as the main foundation of a very singular, but above all very fertile, cooperation between poetry and philosophy.      

Keywords: Kant. Illusion. Deceit. Philosophy. Poetry.

referênciAs

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Recebido: 12/02/2015

Aceito: 21/05/2015

 



[1] Investigador e Pós-doutorando do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Lisboa – Portugal. E-mail: frndsilva@portugalmail.pt; fmfsilva@yahoo.com

Área de trabalho: antropologia e estética kantiana, idealismo e romantismo alemães, mais concretamente em autores como Baumgarten, Kant, Fichte, Novalis, Friedrich Schlegel, Hölderlin, tendo publicado sobre e traduzido vários destes.

[2] Sobre o “inentendível” e sobre o caráter (auto-)produtivo do silêncio ou da ignorância, diz Hamann (1999, p. 17-18): “Em tal circunstância falava Sócrates de leitores que sabem nadar. As correntes de ideias e de impressões que confluíam na vívida elegia do filósofo faziam das suas frases, digamos, uma quantidade de pequenas ilhas, às quais faltavam – para a respectiva união – as pontes e barcaças do método.”

[3] O tema da ilusão ou da ficção em Kant vem sendo recebido de modo díspar, consoante diga respeito ao uso metafísico, ou ao uso estético ou poético que dele faz o filósofo – e isso mesmo se reflecte na abundante, ou mais escassa atenção que os actuais leitores lhe vêm dispensando. Assim, com respeito ao primeiro uso, poderíamos referir, entre muitos outros estudos, o livro de Carchia (2006, p. 79-89); os ensaios de Pajuelo (1986, p. 97-112), ou de Piché (1986, p. 291-303), ou ainda o ensaio de Santos (2012, p. 177-203). Mas, com respeito ao “Opponenten-Rede”, isto é, à mais específica abordagem estética da ilusão e ao seu estudo como um tópico central para o filósofo, contam-se apenas algumas louváveis excepções, entre as quais destacaria o muito importante ensaio – e respectiva tradução do texto – de Santos (2014, p. 291-314), o ensaio de Deuber-Mankowsky (2010, S. 67-83), ou os breves ensaios introdutórios de outros tradutores da peça (MEERBOTE, 1992, p. 161-168; SCHMIDT, 1911, p. 5-7; CATENA, 1998, p .65-102), ou Meo (2000, p. 113-132).

[4] Discrepante não tanto para Kant, para quem o tema nunca terá sido desconhecido ou desinteressante, mas sobretudo para a sua mais estudada e considerada faceta de filósofo crítico. Não esquecer, aliás, que à altura dessas anotações, Kant estava já ocupado com a redacção do que viria a ser a sua primeira Crítica.

[5] Johann Gottlieb Kreutzfeld (1745-1784). Professor de poesia. Sobre ele diz Manfred Kühn: “During the seventies two of his younger colleagues seem to have been especially important to Kant, namely, Johann Gottlieb Kreutzfeld [...] and Karl Daniel Reusch [...]. Lindner, professor of poetry, died in March of 1776. The person chosen to replace him was Kreutzfeld, also a good friend of Kraus and Hamann. [...] Kreutzfeld also was a student of Kant. [...] Kant maintained a somewhat close relationship with this student of his as well.” (KÜHN, 2001). Curiosamente – e apesar de Kühn não o mencionar –, Meerbote (1992, p. 161) aduz que “Johann Gottlieb Kreutzfeld, former student of Kant’s was appointed professor of poetry at the University of Königsberg, a post which had earlier been offered to Kant but which he had declined on the grounds that he was not qualified to occupy it.” 7 Kreutzfeld, antigo colega de escola de Kant na Altstädtischen Schule em Königsberg, viria a ser designado professor de poesia a 4 de setembro de 1776, e competia-lhe agora submeter-se a duas disputações públicas em defesa da sua dissertação, intitulada Dissertatio philologico-poetica de principiis fictionum generalioribus: uma primeira viria a ocorrer a 25 de fevereiro de 1777; a segunda ocorreria três dias depois, perante um aluno de Kant, Christian Jakob Kraus, e o próprio Kant, enquanto representante da referida universidade; é sobre esta última que se debruça o meu ensaio.

[6] Referir-me-ei ao título do texto na versão da Akademie; pois, consistindo o texto original em simples anotações que Kant fez no verso e nas margens do seu exemplar da dissertação de Kreutzfeld, o texto nunca viria a receber um título por parte do seu autor. Essas anotações foram descobertas e transcritas por A. Warda, e publicadas na Altpreussischen Monatsschrift (v. 57, n. 4, p. 662-670, 1910. No ano seguinte, em 1911, Bernhard Adolf Schmidt traduziria o texto para alemão, sob o título de “Eine bisher unbekannte lateinische Rede Kants über Sinnestäuschung und poetische Fiktion”. in KantStudien, v. 16, p. 5-21. Por fim, na edição da Akademie, o texto, também conhecido por Reflexão nº 1526 (p. 903-935), surge como um “Apêndice”, na transcrição de Warda, a par da segunda parte da dissertação de Kreutzfeld.

[7] Sobre o objectivo principal desta, deixarei que fale Schmidt, o tradutor alemão do texto: “Na primeira parte do seu escrito, Kreutzfeld parte do facto de que se encontram em todos os povos mitos, lendas, contos e outras narrações e ficções poéticas. Tudo isto, compreende-o ele pelo nome de fictiones.” Aqui, aduz Schmidt, o professor de poesia pretende “investigar as causas internas que jazem na qualidade da natureza humana. [...] Daí resulta uma explicação para as múltiplas similitudes das lendas etc., nos diferentes povos; a saber, todos estes estão expostos ao mesmo erro. A primeira causa de um tal erro é a primazia da sensibilidade nos homens primitivos: o intelecto apenas é estimulado mediante impressões sensoriais [...]. Por isso, Kreutzfeld designa os sentidos o primeiro professor do entendimento humano. Assim, a qualidade do intelecto é determinada mediante a espécie de percepções sensíveis.” (K-S: XVI, 6). 10 Em alemão: “[Die] Sinnestäuschungen als eine [...]. Quelle poetischer Vorstellungen und Erzählungen.” (K-S: XVI, 7).

[8] A partir deste ponto – e porque não versa esse pequeno ensaio Kreutzfeld, mas sim Kant –, confiaremos ao grande filósofo a tarefa de fazer ressoar a voz do professor de poesia – o que de facto acontece nas anotações, onde Kant vai expondo os pontos que compõem a tese do seu colega –, e deixaremos que, com o decorrer dessas anotações, a tese do primeiro transpareça na do último. Os passos de Kant citados no corpo do texto, retiro-os da já mencionada excelente tradução para português de Leonel Ribeiro dos Santos, a quem muito agradeço a facultação antecipada, tanto da tradução quanto da apresentação do texto kantiano (apenas quando o achar necessário (como aqui), complementá-los-ei com o original latino de Kant); a única excepção a isto são as citações das Lições de antropologia de Kant, cuja tradução é da minha própria autoria.

[9] No original de Kant: “Nihilo tamen secius Dissertatio, qvam manibus volvo, omnes artis poëticae veneres et lautitias ex illo fonte impuro haurire gestit : mentisqve in vana ludibria propensam (adeo) indolem effingit, ut, qvo magis vanitate imaginum luditur, eo maiori gaudio pectus [ipsius] pertentari crederes.”

[10] No original: “Ab hoc autem artificio, quod auri sacra fames docuit circulatores, demagogos et haud raro etiam hierophantas, qvestus (nempe) causa [impr] incautae multitudini imponendi.”

[11] No original: “Ab hoc autem artificio [...], poetarum ingenium maxime esse alienum libenter fateor, qvippe qvorum corda auri cupido vix incessere fertur.”

[12] “Sunt autem qvaedam rerum species, qvibus mens ludit, non ab ipsis ludificatur.”

[13] “Sic qvi e crumena ludere dicitur praestigiator, qvoniam me fraude circumvenire tentat, allicit primum, qvasi perspicaciae [sua] meae contra ipsius versutiam periculum facturum, [mox] detectam vero fraudem  contemno, repetitam fastidio, [miratus] celatam autem adhuc incredulus odi, miratus qvidem, sed simul indignatus [sagi] me impostoris astutia victum esse.” (AA XV.2: 907-908).

[14] “Per qvas artifex non incautis propinat errorem; sed veritatem veste apparentiae indutam, qvae interiorem ipsius habitum non obfuscat, sed decoratam oculis subiicit, qvae non fuco et praestigiis frustratur imperitos et credulos, sed sensuum luminibus adhibitis ieiunam et exsuccam veritatis speciem coloribus sensuum perdusam in scenam perducit.” (AA, 15.2: 906-907). 18 “Qvod demulcet aures [mo] fictis rerum speciebus animum [dem] movet et exhilarat.”

[15] “Adeo Rerum apparentiae [non], qvatenus fallunt, [sed quatenus] taedio, qvatenus nobis tantum illudunt, voluptate afficiunt.”

[16] “Sed illudens [nihilo] cum non sit nisi veritas phaenomenon, perspecta re ipsa nihilo minus durat et simul animum in erroris ac veritatis confiniis qvasi fluctuantem svaviter movet [et] sagacitatisque suae contra apparentiae seductiones conscium mire demulceter.”

[17] “Es ist ein grosser Unterschied zwischen Betrug und Schein. Illusion ist ein Schein der nicht betrügt, sondern noch ergötzet; denn mancher Schein wenn er entdeckt ist missfällt er. Illusionen sind uns nöthig weil wir das Schlechtere oft verdecken müssen. Man kann alles das Illusionen nennen wo eine Verbindung zwischen dem Verstande und dem Scheine statt findet.” (AA: 25.2, 745).

[18] Palavras de Kant: “Die sinnliche Vorstellungen sind von Verstandes Vorstellungen dem Ursprunge nach unterschieden, und nicht bloβ der Form nach, wie man gemeiniglich glaubt.” (AA 25.1: 31).

[19] Entre muitos outros passos em que Kant reitera isso mesmo, saliento este: “Es sind also zwei Stücke zur Vollkommenheit nöthig, die potestas rectoria und executoria. Die rectoria ist ohne die executoria blind, die Sinnlichkeit ist ein Hauptstück des Menschen so ferne sie eine executive Gewalt hat, wodurch der Verstand einen Effect hat, wenn er mit den Sinnen verbunden ist. Auf der andern Seite sind die Sinnen nicht fähig zu regieren, und sind oft eine Hindernis. So sind sie einerseits vorteilhaft, anderseits hinderlich.” (AA 25.1: 486).

[20] Assinala Kant: “Die Sinnlichkeit betrügt nicht den Verstand nicht darum weil sie nicht falsch urtheilet sondern weil sie gar nicht urtheilet. Der Verstand hat sich also selbst die Schuld beyzumeβen wenn er falsch urtheilet.” (AA 25.2: 1229).

[21] “Sinnlichkeit verdunkelt auch nicht den Verstand denn sie macht ihn im Gegentheil noch klärer weil sie ihm die Beyspiele giebt. Die Sinnlichkeit macht die Klarheit der Anschauung der Verstand aber die Klarheit der Begriffe.” (AA 25.2: 1230).

[22] “Die Sinne verwirren den Verstand niemals, und man hat ihnen das nie eigentlich beweisen können. Sie geben uns Stoff zu einer Menge von Vorstellungen, aber die Deutlichkeit in denselben rühren vom Verstande her.” (AA 25.2: 887-888).

[23] “Die Sinnlichkeit ob sie gleich nicht so erhaben als der Verstand ist. so ist sie [...] wohl noch unentbehrlicher als der Verstand.” (AA 25.2: 738).

[24] Kant refere-se a este, nas Lições de antropologia como um “acordo comum”: “Hier ist also ein gemeinschaftlicher Vertrag zwischen beiden Kräften, und die Eine kann ohne die Andere nicht gebraucht werden.” (AA 25.2: 888).

[25] “Nur muβ der Verstand immer über sie [die Sinnlichkeit] Herr bleiben.” (AA 25.2: 1231).

[26] “Wir sind leidend, und die passive Seite der menschen ist die Sinnlichkeit, aber die Sinne sind auch zugleich leidende Instrumente des Verstandes, dahero muβ die Sinnlichkeit excoliret werden, daβ sie Brauchbarkeit hat, und denn muβ sie discipliniret werden, daβ sie ein Instrument des Verstandes sey.” (AA 25.1: 487).

[27] Cf., entre outros, “Vom Betrug der Sinne”, Parow (AA 25.1: 281-310).

[28] “Certe datur adhuc [certa] qvaedam fallendi ratio, qua ars poetica [inter ceteris] qvam plurimis aliis palmam praeripere videtur et propterea vel a Philosopho [meriti summis] laudibus extollenda est, qvippe promovens mentis in ignobile sensuum vulgus imperium legibusque sapientiae [tanto obse] qvodammodo obseqvium parans. Tanta enim est sensuum vis indomita, rationis autem, rectae illius qvidem, at in movendo  debilis, impotentia, ut, qvos aperta vi aggredi non licet, dolo subruere consultius sit. Hoc vero fit elegantiorum tam literarum qvam artium delinimentis animum assvefaciendo et hoc pacto sensim a bruta cupidine tanqvam ab agresti et furioso domino liberando.” (AA, 15.2: 909-910).

[29] “Cui consílio, qvod ideo iure qvodam suo piam fraudem vocare fas est, non parum inservit. Ars poëtica, qvae propterea etiam ad artes ingenuas et liberales, h. e. animi libertatem promoventes, numeratur, qvod sensus demulcendo hianti ipsorum expectationi illudit et lautitiis suis inescatos suaqve feritate exutos praeceptis sapientiae tanto magis obseqventes reddit.”