Melancolia e náusea: do destino enquanto FundaMento do caráter trágico ao absurdo existencial

Thiago Rodrigues[1]

RESUMO: A partir da perspectiva intelectualista grega, na qual o dualismo entre corpo e alma requer o primado do discurso racional [lógos] em detrimento do páthos filosófico, busca-se com este artigo associar a noção de “desmedida” [hybris] com a noção de melancolia. Essa associação ganha ainda mais relevo, quando a aproximamos da interpretação de Simone Weil para o poema épico de Homero, a Ilíada. Se essa aproximação se justifica, então é patente a aproximação entre o caráter trágico que o destino adquire, na perspectiva clássica, e a noção de contingência enquanto fundamento do absurdo existencial, no pensamento existencialista.

PALAVRAS-CHAVE: Melancolia. Destino. Trágico. Contingência. Páthos.

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La force maniée par autrui est impérieuse sur l’âme comme la faim extrême, dès qu’elle consiste en un pouvoir perpétuel de vie et de mort. Et c’est un empire aussi froid, aussi dur que s’il était exercé par la matière inerte. L’homme qui se trouve partout le plus faible est au coeur des cités aussi seul, plus seul que ne peut l’être l’homme perdu au milieu d’un désert. (Simone Weil)

É do conhecimento de todos que, dentro daquilo que ficou conhecido como intelectualismo[2] clássico, isto é, o pensamento desenvolvido principalmente por Sócrates, Platão e Aristóteles, a melancolia se caracteriza pela “desmedida” [hybris] da alma em relação ao corpo. É nesse sentido que Platão afirma, no Fédon, que “[...] o trabalho do filósofo consiste em se ocupar mais particularmente que os demais homens em afastar sua alma do contato com o corpo” (PLATÃO, 2000, p.125). Desse modo, é coerente afirmar que é o conflito das paixões que melhor define a melancolia, dentro da tradição clássica grega.

 Ainda segundo Platão, a pergunta – retórica! – que se impõe é: a alma deve “[...] ceder às paixões do corpo ou resistir a elas?”[3] E continua o filósofo:

[é a alma] que dirige e governa as coisas de que pretende ser composta, resiste a elas no decorrer de quase toda sua existência, reprimindo a umas, duramente, pelas dores, como no ginásio, e a medicina tratando a outras com maior doçura, contentando-se em ameaçar ou reprimir os desejos, os ódios, os medos, como coisas de natureza distinta a sua? Foi isto que Homero representou tão bem quando, na Odisséia, diz que Ulisses: “Golpeando o peito dirigiu-se duramente a seu coração: Suporta, coração! Já que maiores torturas suportaste”. Crês que Homero teria dito isto se julgasse que a alma é uma harmonia que deve ser governada pelas paixões do corpo? Não é mais lógico que julgasse que a alma deve dominá-las e dirigi-las [...]? (PLATÃO, 2000, p. 162).

A primeira e mais evidente lição que se apreende das palavras do mestre grego é que o comedimento e o controle das paixões podem libertar a alma da soberania do corpo, o que significa que a alma deve governar ou, para usar as palavras de Platão, que a “[...] alma que passou sua vida no comedimento e na pureza tem os próprios deuses por companheiros e guias(PLATÃO, 2000, p. 178). Nessa perspectiva, é o conhecimento das razões e das causas que possibilitaria a “felicidade”.[4] Desse modo, se o conhecimento leva o homem à virtude e à felicidade, por consequência, o erro e o mal são frutos da ignorância e do vício. Só pratica o mal aquele que desconhece o Bem[5] ou que se entrega às paixões do corpo. Entende-se, portanto, o lugar central atribuído à razão, dentro da filosofia grega desse período.

É ainda nesse registro que se compreende a oposição platônica entre a teoria do mundo sensível, o mundo daquilo que é simulacro e fonte de erro, porque se origina no campo do sensorial, e que, portanto, remete ao corpo; e a teoria do mundo inteligível, do lógos “racional”, que, por estar mais próximo da ideia, liberta o homem para uma vida mais plena e “feliz”.

Talvez um dos exemplos mais significativos dessa supremacia do inteligível em detrimento do sensível apareça em seu livro O Banquete, no qual Platão busca uma definição para o amor; é nesse registro que o filósofo pretende demonstrar que, para além dos corpos belos, está a própria ideia do Belo em si, ou seja, que, para além desse mundo sensível e mutável, está o mundo inteligível e perfeito. Cabe citar o autor:

Quem deseja atingir essa meta pelos caminhos verdadeiros, deve começar na juventude a procurar os corpos belos. Antes de mais nada, caso tenha um bom orientador, não deve amar mais de um corpo, inspirado pelo qual deve conceber belas palavras: depois, deverá observar que a beleza de um corpo, qualquer que ele seja, é irmã da beleza de um outro. Efetivamente, se está decidido a procurar a beleza na forma, apenas por má orientação não veria que a beleza de todos os corpos é única e idêntica. Uma vez atingida essa verdade, se tornará amante de todos os corpos belos e desprezará o amor exclusivista por um só corpo, como coisa de menor valor, que só merece indiferença. Em seguida, é necessário considerar a beleza das almas como algo mais precioso do que a beleza dos corpos, de maneira que, uma alma bela em um corpo mediocremente atraente lhe baste para a consagração do amor e dos cuidados, nela inspirando belos pensamentos que possam tornar melhores os jovens. (PLATÃO, 2005, p. 72-73).  

O que Platão defende é uma ascese do sensível ao inteligível, ou seja, tão mais feliz é o homem quanto mais compreende que o sensível – e, por consequência, o corpo – nada mais é do que fonte de erro e de sofrimento.

Ainda como parte daquilo que foi identificado como intelectualismo clássico, Aristóteles afirma, em Ética à Nicômaco – quando define aquilo que seria a “vida boa” –, a “vida teórica e contemplativa” como única saída possível a qual pode conduzir à “felicidade perfeita” e, desse modo, possibilita ao homem fugir à melancolia e ao sofrimento, porque põe o intelecto à frente das paixões.

Mas o que significa dizer que a alma deve dominar o corpo, ou que o intelecto deve se sobrepor às paixões? E, ainda, que a melancolia é fruto de um desequilíbrio entre aquilo que é da alma e aquilo que é do corpo (das paixões)? É oportuna uma breve digressão acerca daquilo que os gregos concebiam como páthos, pois, como foi ressaltado acima, é justamente da oposição entre, de um lado, a alma – instância ativa, lugar da liberdade humana – e, de outro, o corpo – as paixões, enquanto o âmbito da passividade –, que surge o sofrimento e a melancolia. Por páthos os gregos entendiam tudo aquilo que foge aos domínios do homem e que o coloca em condição de passividade. Daí, por exemplo, a origem da palavra patologia, ou seja, o páthos é algo análogo a uma doença que vem e que domina o homem. Por conseguinte, estabelece-se um dualismo entre a alma/razão, de um lado, e o corpo/paixões, do outro, ou seja, entre a ação livre da alma e a passividade das paixões, do páthos, de sorte que é nesse sentido que a melancolia deriva do desequilíbrio da alma, da desmedida [hybris].[6]

É nesse sentido também, por exemplo, que Platão se refere à Tirania, enfatizando que o governo tirânico é ruim, porque submete o “todo” às paixões de apenas uma pessoa, pois o tirano age movido por seus desejos. Decorre daí que a cólera, a ira, o ressentimento, a vingança e todos os sentimentos que colocam o homem em condição de passividade são fonte de sofrimento e tristeza.

Ora, se, nessa perspectiva, a razão ou o intelecto devem se sobrepor às paixões, pois só assim o homem pode alcançar a “boa vida” ou a “vida da perfeita felicidade”, fica evidente que é apenas dentro da autonomia e da liberdade que uma vida na razão pode proporcionar uma saída à melancolia e ao sofrimento. Nesse sentido, dizer que a alma deve dominar o corpo e que é dentro da vida contemplativa que encontramos uma solução para a melancolia é o mesmo que dizer que é só dentro de uma vida racional, livre e autônoma, que o homem pode ser feliz. Neste ponto, cabe colocar o problema em um contexto mais amplo.

Na passagem apresentada anteriormente, quando Platão cita Homero, e quando este põe na boca de Ulisses as seguintes palavras: “Golpeando o peito dirigiu-se duramente a seu coração: Suporta, coração! Já que maiores torturas suportaste” (PLATÃO, 2000, p. 162), parece que o problema se apresenta em um âmbito mais amplo. Se, com isso, Homero busca expressar que existem forças cósmicas que fogem à autonomia e à liberdade humana e podem fazer com que o homem venha a sofrer, e também, que contra isso a única coisa que cabe ao herói fazer é “suportar”, talvez essa força cósmica se insira como uma fonte de melancolia e sofrimento. Daí a pergunta: Qual o sentido do espírito trágico grego, nessa perspectiva intelectualista defendida por Platão e Aristóteles? Qual é o papel do destino (fortuna), dentro daquilo que estamos entendendo por melancolia, a saber, o conflito das paixões?

É sob esse registro que Simone Weil afirma, ao comentar uma passagem da Ilíada, que “[...] o próprio Aquiles, esse herói orgulhoso, invicto, nos é mostrado desde o início do poema chorando de humilhação e de dor impotente, depois que raptaram ante seus olhos a mulher que ele queria tornar sua esposa, sem que ele ousasse se opor” (WEIL, 1996, p. 386, grifo nosso).[7]

Tomemos como mote, neste ponto, o famoso mito das Moiras. Como se sabe, as Moiras, na mitologia grega, representavam o destino através da figura de três irmãs – Cloto, aquela que tece o fio da vida; Láquesis, responsável por puxar e enrolar o fio tecido; e Átropos, aquela que corta o fio. O mito conta também que, nesse processo, as irmãs se utilizam da Roda da Fortuna. Quando o fio está no topo da roda, ele representa a sorte na vida dos homens; quando embaixo, é indício de má sorte. É relevante notar, no entanto, que esse processo é feito “às cegas”, isto é, casualmente, a fortuna é “guiada” por um princípio cego e desprovido de consciência. Por isso, as três irmãs são muitas vezes representadas como cegas.

O que interessa aqui é justamente esse caráter de aleatoriedade da fortuna representada pelas “cegas” Moiras, tal como o destino, o qual aparece igualmente representado pela balança de Zeus, que determina casualmente o futuro dos homens. Daí o caráter trágico atribuído ao destino, nessa concepção, em que a fortuna aparece como uma força capaz de arrastar nosso herói, a ponto de rebaixá-lo à condição de objeto.

Compreende-se por que Simone Weil afirma que “[...] a força é aquilo que transforma quem quer que lhe seja submetido em uma coisa”. A força é algo capaz de reduzir o herói à condição de passividade, “[...] a alma humana aparece, no poema, continuamente modificada por suas relações com a força, arrastada, obcecada pela força que ela julga dominar, curvada sobre a pressão da força que ela sofre” (WEIL, 1996, p. 379).

Se, como descrito anteriormente, dentro da perspectiva intelectualista, não há nada mais constrangedor ao espírito humano do que a condição de passividade a que está submetido o herói da Ilíada, entende-se a lástima de Aquiles, quanto lhe tomam a amada. Nesse sentido, a tristeza e a melancolia do herói são resultado da condição de passividade imposta pela força do destino.

No entanto, mesmo cego, insurge do destino uma espécie de justiça cósmica, pois a mesma fortuna que contempla o vencedor e submete o vencido à sua força, faz com que o vencedor seja também vencido em outra ocasião. Assim, Simone Weil ressalta que os vencedores se sabem como não possuidores da força, pois, “[...] com a mesma dureza com que a força esmaga os vencidos, embriaga aquele que a possui, ou julga possuí-la. Ninguém a possui verdadeiramente” (WEIL, 1996, p. 386, grifo nosso).

Todavia, Simone Weil chegará à conclusão de que a força é o único herói da Ilíada. Por quê? Vejamos mais esta passagem:

As batalhas não são decididas entre os homens que calculam, trabalham, tomam uma resolução e a executam, mas entre homens despojados dessas faculdades, transformados, caídos no nível, ou da matéria inerte que é só passividade, ou das forças cegas que são apenas impulso. Este é o último segredo da guerra e a Ilíada o exprime em suas comparações, nas quais os guerreiros aparecem como os símiles seja do incêndio, da inundação, do vento, dos animais ferozes, de qualquer causa cega de desastre, seja dos animais medrosos, das árvores, da água, da areia, de tudo o que é movido pela violência das forças exteriores. (WEIL, 1996, p. 398).

Parece claro que é do caráter impositivo da força que surge o sentido do espírito trágico grego. Assim, o que a autora ressalta, ao comparar os guerreiros às forças da natureza, é que, em última instância, é a fortuna que rege a história dos homens. E que, portanto, não é a ação humana que decide quem vencerá, ou seja, que, no final das contas, tudo “[...] é movido pela violência das forças exteriores”. Fica evidente por que o único e verdadeiro herói da Ilíada é a força.

Dessa forma, essa concepção de fortuna ou destino desvincula-se da ideia moderna de justiça, porque a mesma fortuna que dá, sem o menor sentido para isso, toma sem nenhuma razão para que isso aconteça. Se existe alguma justiça no quadro descrito, é só num âmbito mais amplo, como uma espécie de justiça cósmica que pairasse acima dos interesses dos homens.

Mas nossa comparação com a leitura de Simone Weil se encerra por aqui. Buscou-se destacar, principalmente, dois pontos da concepção de fortuna que decorrem da leitura da autora: primeiro – e mais importante para o que se pretende –, o caráter de aleatoriedade que a fundamenta ou, como melhor ilustra a imagem das três irmãs cegas que tecem e cortam o fio da vida, seu caráter trágico; segundo, a impotência do homem diante da força que fundamenta seu destino, da qual decorre a tristeza e a melancolia ante a passividade a que os homens, reduzidos à condição de coisas, são submetidos.

Surge, por conseguinte, um paradoxo: de um lado, a necessidade da autonomia da alma como única forma de ascender à vida da plena felicidade; de outro, a impossibilidade do homem de fugir da melancolia e da tristeza que advém da sua impotência ante a força da fortuna cega. Deriva daí a compreensão do destino enquanto fundamento do caráter trágico grego.

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Mesmo sabendo dos riscos que qualquer comparação desse tipo acarreta, é inevitável não encontrar alguns elementos comuns entre a concepção descrita e muitas das ideias defendidas por Jean-Paul Sartre, em sua filosofia existencialista.

Benedito Nunes, em um ensaio sobre a experiência da náusea “existencialista”[8] na literatura de Clarice Lispector, descreve-a da seguinte maneira:

O significado da náusea, mais transtornante do que a angústia, não é a simples descoberta da existência, como irredutível, absoluta. E, também, a descoberta de que esse fato é contingente, totalmente gratuito, reduzindose ao Absurdo, que nenhuma razão, nenhum fundamento pode eliminar. A consciência, embebida no Absurdo, descobre-se supérflua, irrelevante. Sua liberdade paralisada apenas esboça, como nas emoções violentas, uma recusa, uma reação de fuga, que então se manifesta pelo desejo de vomitar:

náusea. (NUNES, 2009, p. 96).

Existem alguns pressupostos para se compreender a passagem citada. O primeiro é que a náusea deriva da angústia, ou melhor, a náusea “[...] é a forma emocional violenta da angústia” (NUNES, 2009, p. 93), e a angústia é consequência da percepção da irremediável contingência humana. A ideia de contingência, portanto, aparece como central para a compreensão da experiência violenta da náusea.

É nesse sentido que Sartre afirmará, em A Náusea, que, por trás das coisas, “[...] não há nada”, ou seja, que “[...] a descoberta da existência é [...] a dor de sentir-se abandonado por aquilo que nos protegia da contingência” (SILVA, 2004, p. 54); dessa forma, é descobrir que por trás das coisas não há nada, não existe nenhuma razão que possa justificá-las.

Deitei um olhar ansioso à minha roda: presente, nada mais do que o presente. Móveis leves e soltos, encostados no seu presente, uma mesa, uma cama, um guarda-fato – e eu próprio. Revelava-se a verdadeira natureza do presente: era o que existe, e tudo o que não era presente não existia. [...] Agora compreendia: as coisas são inteiramente o que parecem – e por trás delas... não há nada. (SARTRE, 1963, p. 165-166).

Para além dos pressupostos fenomenológicos e que não nos convêm aqui, o que a passagem desvela é que as coisas existem e que elas não dependem de nós para existir, visto que participamos da mesma contingência, da mesma falta de sentido, da mesma aleatoriedade análoga à das Moiras, senhoras cegas do destino. Assim, a verdade da existência é a sua contingência (SILVA, 2004, p. 48).

A angústia e o sofrimento são, dessa maneira, desdobramentos necessários do desvelamento ao homem da existência enquanto contingência. Fica evidente que há uma relação de interdependência entre a contingência – isto é, a aleatoriedade que funda a existência humana – e a experiência da náusea, manifestação violenta da angústia. Daí o segundo pressuposto presente na descrição de Benedito Nunes, a saber, do Absurdo.

O Absurdo revela ao homem que a condição da sua existência é a contingência, e que aquilo que o define é justamente a gratuidade da existência, portanto, não há nada que possa justificá-la.

Se nos remetermos, nesta etapa da reflexão, à aleatoriedade enquanto fundamento do caráter trágico grego, tal como descrito anteriormente, constataremos que a contingência existencialista e o acaso como fundamento da fortuna guardam alguma semelhança, ao menos no que tange ao sofrimento. De um lado, na manifestação da melancolia do herói diante dos limites impostos pela fortuna cega e, do outro, na experiência da náusea derivada da percepção do caráter contingente da existência humana.

Se, como afirma Simone Weil, a lástima de Aquiles deriva da dor impotente de se saber incapaz de fugir àquilo que é inevitável, ao seu destino, o qual, em última instância, é cego, parece que a melancolia do herói deriva do caráter efêmero e casual da fortuna, pois aquele que vence hoje certamente será vencido amanhã. Há algo de absurdo e incompreensível, nessa aleatoriedade do destino.

Ora, será que a concepção existencialista de contingência – ao menos no que tange ao sofrimento que daí decorre – está tão distante da melancolia derivada do espírito trágico descrito? Desse modo, a perplexidade do homem, ao se saber lançado no mundo sem nenhuma razão para sê-lo, ou seja, aleatoriamente, não seria um fundamento comum para o sentimento da náusea, isto é, do sofrimento e da tristeza humana?

Nos dois casos, parece que a ausência da necessidade, enquanto uma ordem dada a priori e que possa doar sentido ao destino dos homens, torna o mundo ameaçador. Nesse aspecto, a necessidade dá lugar à contingência, ao acaso, ou seja, “[...] tudo pode acontecer”. Não é ocioso repetir que a fortuna que concede hoje a glória ao vencedor é a mesma que o lança na miséria, amanhã. Nada garante a permanência das coisas.

É justamente nessa perspectiva que o professor Franklin Leopoldo e Silva, ao analisar o problema do compromisso dentro da filosofia existencialista de Sartre, afirma que, “[...] apesar do compromisso assumido com seriedade e ardor, apesar de ter posto a liberdade a serviço da justiça, a proximidade da morte relativiza tudo” (SILVA, 2004, p. 106). Ou, como diz Sartre, “[...] a morte roubara o encanto de tudo”.

No entanto, se, para o grego, um ato grandioso pode fazer do herói imortal, porque sempre será lembrado por seus grandes feitos, na perspectiva existencial de Sartre, a glória e a arte se apresentam como fuga. De nada valem meus feitos serem cantados pelos grandes poetas, pois a angústia e a náusea que deles provêm são irremediáveis. Desse modo, “[...] não havendo, no entanto, a expectativa da eternidade, a morte aparece como um final despropositado, incomensurável com as esperanças vividas [...]” (SILVA, 2004, p. 107).

Por conseguinte, no registro da filosofia de Sartre, “[...] nenhuma ação é grandiosa, nenhum homem é herói, tudo é apenas cômico” (SILVA, 2004, p. 108) e sem sentido, gratuito. De fato, para o filósofo, a “[...] metafísica não é algo que paira sobre o sujeito como uma referência essencial, mas algo que diz respeito àquilo que o constitui existencialmente” (SILVA, 2004, p. 111).

E se nós relêssemos a interpretação de Simone Weil, tendo em mente esses pressupostos? O que significa a morte, na perspectiva da força, descrita pela autora? Cabe citá-la uma última vez:

A força que mata é uma forma sumária, grosseira, de força. Quanto mais variada em seus processos, quanto mais surpreendente em seus efeitos é a força, a que não mata; isto é, a que não mata ainda. Vai seguramente matar, ou vai matar, talvez, ou então está apenas suspensa sobre o ser que pode matar a qualquer momento; seja como for, ela transforma o homem em pedra. Do poder de transformar um homem em coisa fazendo-o morrer procede um outro poder – prodigioso sob uma outra forma –, o de transformar em coisa um homem que continua vivo. Está vivo, tem uma alma; no entanto, é uma coisa. Ser estranho: uma coisa que tem uma alma; estado estranho para a alma. Quem dirá quanto custa, a cada momento, conformar-se, torcer-se, dobrar-se sobre si mesma? Ela não foi feita para viver numa coisa; quando é constrangida, tudo nela padece de violência. (WEIL, 1996, p. 380-381).

O que a autora parece ressaltar, ao menos na perspectiva em que a lemos, é que, mesmo quando a força não mata, ela já matou, porque reduz o homem à condição de objeto, de coisa, tão contingente quanto esses “[...] móveis leves e soltos, encostados no seu presente, uma mesa, uma cama, um guarda-fato”.

No decurso desta breve reflexão, buscou-se, portanto, associar – a partir da leitura feita por Simone Weil, em “A Ilíada ou o poema da força”, e também da compreensão grega de tradição intelectualista do conflito das paixões como fundamento da melancolia –, o caráter trágico típico da concepção de destino, entre os gregos, com a noção de contingência enquanto fundamento do absurdo existencial na filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre.

ABSTRACT: We seek to associate the notion of “excess” [hubris] with the notion of melancholy from the intellectualist Greek perspective, in which the dualism between body and soul requires the rule of rational discourse [logos] at the expense of philosophical pathos. This association becomes more relevant when understood in light of Simone Weil’s interpretation of Homer’s epic poem, the Iliad. If this approach is justified, then a rapprochement becomes evident between the tragic character takes on destiny in the classical view, and the notion of contingency as the basis of existential absurdity in existentialist thought.

KEYWORDS: Melancholy. Destination. Tragic. Contingency. Pathos.

reFerências

ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco; Poética. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.D. Ross. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Coleção Os pensadores; v. 2).

MOUTINHO, Luiz Damon S. Sartre: psicologia e fenomenologia. São Paulo: Brasiliense, 1995.

NUNES, Benedito. O Dorso do tigre. 3. ed. São Paulo: Ed. 34, 2009.

PLATÃO. Fédon. São Paulo: Nova cultural, 2000. (Coleção Os Pensadores).

______. O Banquete. Tradução Heloisa da Graça Burati. São Paulo: Rideel, 2005.

SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. Trad. Antônio Coimbra Martins. Lisboa: Europa-América, 1963.

SILVA, Franklin Leopoldo e. Literatura em Sartre: ensaios introdutórios. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

WEIL, Simone. A Ilíada ou o poema da força. In: ______. A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

______. L’Iliade ou le poème de la force. Publié dans les cahiers du sud [Marseille] de décembre 1940 à janvier 1941 sous le non de Émile Novis. Disponível em: < www.ebooksgratuits. com/pdf/weil_iliade.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2010.9

Recebido em: 30/03/14

Adquirido em: 15/05/14



[1] Doutorando e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP (2012), possui Especialização em Filosofia Contemporânea e História pela Universidade Metodista de São Paulo - UMESP (2010) e Graduação em Filosofia - Licenciatura Plena, pelo Centro Universitário Assunção - UNIFAI (2008). Atualmente, é professor e coordena os cursos de Especialização (Lato Sensu) em História do Pensamento Político e Social e Filosofia Contemporânea, pela mesma instituição.

[2] O emprego desse termo está ancorado na ideia, recorrente no pensamento grego do período clássico, de que só pratica o mal aquele que ignora o Bem, portanto, é o conhecimento (a razão ou o intelecto) que deve guiar nossas ações. Daí a afirmação de que a alma deve dominar o corpo.

[3] Cabe ressaltar que Platão defende uma concepção de alma tripartite, no entanto, não nos parece necessário desenvolver essa concepção aqui, pois o intuito é apenas ilustrar a tensão entre o âmbito racional e o âmbito passional, na concepção intelectualista, e isso, nos parece claro, é inconteste.

[4] A ideia de felicidade entre os gregos está ligada à ideia de perfeição, e perfeito é tudo aquilo que não está submetido à mudança, por conseguinte, a felicidade pode ser representada pela imobilidade da alma: a alma feliz é aquela que não necessita de mudança, pois é perfeita.

[5] Nas palavras de Platão: “Se alguém conhecer a causa de alguma coisa, o que faz com que ela nasça e que morra, deve procurar a melhor maneira que essa coisa possa ser, e me parecia que, de acordo com esse princípio, que a única coisa que o homem deve procurar, tanto para ele como para os outros, é o melhor e o mais perfeito, porque, uma vez tendo-o encontrado, conhecerá necessariamente o mal [...]” PLATÃO, 2000, p. 165.

[6] Novamente aqui o intuito é apenas ilustrar a referida oposição entre “páthos” e “lógos”, por isso, não nos aprofundamos nas análises a propósito da filosofia aristotélica. No entanto, deve-se lembrar que essa relação é mais sutil na filosofia de Aristóteles; assim, atividade não representa exatamente uma oposição à passividade, tal como acima exposto. (Cf. PLATÃO, Ética à Nicômaco e De Anima).

[7] É relevante ressaltar a força da expressão empregada pela autora, “dor impotente”, a qual ilustra a ideia descrita anteriormente de que a melancolia surge justamente da condição de passividade a que o herói está submetido.

[8] O “existencialista” aqui não significa que a “[...] ficcionista vá buscar situações típicas de seus personagens na filosofia existencial”, mas apenas que existe uma aproximação inegável entre a concepção de mundo da autora e a concepção das filosofias da existência, tal como ressalta Benedito Nunes, em O dorso do tigre, p. 93.