lHUENEMANN, C. RACioNAlisMo. TRAdUção: JACqUEs A. WAiNbERg. PETRóPolis: VozEs, 2012. 231P.
Este livro é uma introdução curta e acessível ao racionalismo clássico de Descartes, Spinoza e Leibniz. O público-alvo são os alunos de graduação de cursos de filosofia e ciências humanas. O livro se divide em seis capítulos, sendo que cada autor recebe um capítulo para sua metafísica e epistemologia, outro para sua ética e filosofia política. Nessa resenha, apresentarei as linhas gerais da exposição de Huenemann, fazendo algumas críticas ou ressalvas ao arcabouço argumentativo do livro.
os RACioNAlisTAs ERAM RACioNAlisTAs?
Há um problema na visão do racionalismo que é esboçada desde a Introdução do livro, pois a mesma reforça um estereótipo negativo e equivocado das obras de Descartes, Spinoza e Leibniz. No racionalismo de Huenemann, a razão é um instrumento capaz de nos levar ao conhecimento da própria estrutura da realidade. Disso seguiria que, em circunstâncias muito especiais, a passagem do concebível no intelecto ao possível na realidade seria legítima. Do mesmo modo, seria legítima a pressuposição de que tudo o que é real é cognoscível pela razão. Essa pressuposição, por sua vez, serviria de base para a aceitação de que relações lógicas entre ideias seriam bases razoáveis para a descoberta de relações reais entre as coisas. Em suma, partindo de uma visão muito particular sobre os poderes do entendimento humano, o racionalismo diria que, por dispor da razão, o ser humano seria capaz de conhecer a realidade na sua estrutura última. Desse modo, em relação a elementos muito fundamentais, a descoberta do que há lá fora, no mundo, poderia ser fruto do que há aqui dentro, no espírito (11)[2]. E isso seria assim apenas por causa do poder da razão, não porque um tipo de conhecimento tipicamente racional, como a matemática, se mostra mais fértil e confiável do que a opção empirista do aristotelismo medieval.
Por mais que haja esforços ao longo do livro para matizar essa visão inicial do racionalismo, trata-se de uma caracterização que peca pela simplificação comprometedora, por dois motivos. Primeiro, essa caracterização do racionalismo dá espaço a um estereótipo exagerado, caricato, porque muitas vezes os racionalistas foram suspeitos de exageros aprioristas. Levando isso em conta, um livro que apresenta o racionalismo para estudantes de graduação deveria iniciar detalhando e matizando o papel da razão no racionalismo, em vez de apresentar os racionalistas como partidários tão enfáticos da razão. Em segundo lugar, tal apresentação do racionalismo é imprecisa. Nas cartas endereçadas a Marin Mersenne, de abril-maio de 1630, Descartes nos dá bases para tomar o real como algo que é, em última instância, irracional. Sendo racional aquilo que Deus assim institui voluntariamente como racional, e não havendo constrangimentos racionais que devam guiar a escolha divina, não há garantia de que o real seja, de fato, racional (SANTIAGO, 1999; FRANKFURT, 1989). Na Ética, ao falar sobre a afecção de um corpo exterior sobre o corpo de uma pessoa, Spinoza deixa claro não fazer nenhuma dedução a priori, e considera
[…] suficiente ter mostrado uma única causa, que me permita explicar por que isso ocorre, e é como se eu tivesse indicado sua verdadeira causa. Não creio, entretanto, ter me afastado muito da verdade, pois todos os postulados que adotei não contêm praticamente nada que não seja estabelecido pela experiência, da qual não nos é lícito duvidar, após termos demonstrado que o corpo humano existe tal como o sentimos. (SPINOZA, 2007, E2, prop. 17, esc.).
Na linguagem filosófica de hoje, Spinoza está inferindo a melhor explicação, e usando a experiência como base para sua conclusão. Leibniz estaria mais próximo de admitir que o real é racional, pois ele toma Deus por um ente que cria o mundo segundo critérios racionais (LEIBNIZ, 1983, §1). No entanto, Leibniz não diria que poderíamos usar a razão para conhecer a realidade por completo, dado que o raciocínio requerido seria muito longo e muito complexo para nosso intelecto finito (LEIBNIZ, 2004, p. 51; COTTINGHAM, 1988, p. 9). Ou seja, em Descartes, Spinoza e Leibniz, encontramos limites ao alcance e aos poderes da razão. No caso de Descartes, os limites podem ser estruturais, pois é possível que a realidade seja, no fim das contas, irracional. No caso de Spinoza, a explicação apresentada é racional, porque argumentos abdutivos são racionais. Ainda assim, é difícil enquadrar o raciocínio de Spinoza na imagem de alguém que busca deduzir a estrutura do real a partir de premissas a priori, já que o apelo à experiência é explícito. No caso de Leibniz, ainda que o real seja estruturalmente racional, visto que vivemos no melhor mundo possível, não é de se esperar que a razão humana seja capaz de deduzir o todo da realidade das premissas conhecidas a priori, não porque as premissas são falsas, mas porque haveria muito a ser deduzido, e pouca capacidade cognitiva para processar a dedução.
Isso quer dizer que os racionalistas desconfiam da razão? Certamente não. O ponto é outro. Em vez de retratar os racionalistas como entusiastas da razão, estereótipo não muito favorável a esses filósofos, como sabemos pelas chacotas ao menos tão antigas quanto o Cândido de Voltaire, melhor seria deixar claro que os racionalistas clássicos reconhecem os limites da razão, mas veem o paradigma matemático da nova ciência galilaica como muito superior ao paradigma qualitativo da ciência aristotélica, sendo por isso racionalistas (COTTINGHAM, 1988, p. 5). Resgatando um elemento típico da filosofia de Platão, os racionalistas favorecem a matemática apreendida pelo intelecto, em detrimento das qualidades apreendidas pelos sentidos, o que os torna racionalistas ante os empiristas da tradição medieval aristotélica. Em favor dessa visão, devemos lembrar que Descartes e Leibniz deram contribuições duradouras à matemática, e que Spinoza se inspirou na geometria para estruturar sua obra-prima (sendo que o fato de o empirista Hobbes ter feito o mesmo revela algo sobre os limites da oposição entre racionalismo e empirismo). Em vez de aficionados pela razão, os racionalistas são filósofos que preferem a matemática, um instrumento puramente racional, por conta do seu caráter frutífero, com relação à ciência apoiada em qualidades sensíveis. A razão tem seus limites, mas a matemática parece ser uma ferramenta de aplicação ilimitada, como evidencia o mecanicismo então abraçado e desenvolvido pelos racionalistas.
Uma das tarefas preliminares do livro é separar as contribuições filosóficas específicas dos racionalistas de falsos problemas que se originam da oposição costumeira, mas em grande parte artificial, entre racionalismo e empirismo. Quanto a isso, o livro de Huenemann é um bom guia, pois desconstrói a oposição usual entre racionalismo e empirismo. Tradicionalmente, opunham-se os racionalistas aos empiristas, colocando-se os primeiros como campeões do a priori e os segundos como campeões do a posteriori. Essa oposição não existia, tal como a utilizamos, nos séculos XVII e XVIII, sendo, portanto, posterior aos principais filósofos classificados. Houve outro uso da oposição entre racionalismo e empirismo no Novum organon, de Francis Bacon, publicado originalmente em 1620. Bacon sustenta que aqueles que se ocuparam das ciências no passado ou simplesmente acumularam e usaram informações, ou teceram teias a partir de si mesmos. Os primeiros, aparentados às formigas, seriam os empiristas. Os segundos, aparentados às aranhas, seriam os racionalistas. Haveria ainda uma variedade intermediária, que, como as abelhas, acumularia o material das flores e do solo, e seria capaz de digeri-lo (BACON, 2000, livro I, aforismo 95). O emprego ainda corrente da oposição entre racionalismo e empirismo não é herdeiro dessa visão entomológica de Bacon, mas, de fato, da interpretação da filosofia do século XVII, consolidada nos livros de história da filosofia do século XIX (WOOLHOUSE, 1988). Essa interpretação foi aceita por muito tempo, e ainda se mostra influente. Todavia, novas avaliações historiográficas das filosofias de Descartes, Spinoza, Leibniz, Locke, Hume e Berkeley deixaram claro o quanto essa oposição entra em conflito com os fatos. Um dos problemas, já mencionado, é que esses filósofos não se reconheceriam nesses rótulos. Seus adversários eram os aristotélicos, os platônicos e, por vezes, no caso dos filósofos posteriores a Descartes, os cartesianos, havendo concordâncias pontuais entre racionalistas e empiristas. Por exemplo, o empirista Locke concorda bastante com o racionalista Descartes, e o empirista Hume deve bastante ao racionalista Malebranche (WOOLHOUSE, 1988). Além das concordâncias pontuais entre os filósofos, as quais deveriam ser surpreendentes, dado que eles foram separados em dois campos opostos pelos livros de história da filosofia do século XIX, há discrepância entre as teses que essa visão atribuía aos filósofos de cada “campo” e as teses de fato defendidas por eles. Enquanto se adotavam as classificações tradicionais como modos de descrever as teorias, entendia-se que a controvérsia entre racionalistas e empiristas dizia respeito aos papéis da razão e da experiência no conhecimento (visão de onde se origina o estereótipo que questionamos acima). A questão em disputa entre racionalistas e empiristas seria: quais as condições necessárias e suficientes do conhecimento? Por um lado, os racionalistas diriam que essas são constituídas pela razão. Por outro lado, os empiristas diriam que essas são constituídas pela experiência. No entanto, não encontramos tal problemática assim tão bem delimitada em nenhum dos lados dessa suposta disputa, provavelmente porque seria inviável uma teoria do conhecimento (para não falar de uma filosofia) que negasse qualquer papel epistêmico para a razão ou para a experiência (12). Obviamente, isso não tira totalmente a utilidade do rótulo “racionalismo”. Não sendo mais um “clube”, o racionalismo se torna “uma constelação de atitudes filosóficas ou doutrinas” (12), de sorte que tais atitudes e doutrinas podem ser partilhadas por diferentes filósofos de diferentes orientações, em maior ou menor grau. O que distinguiria Descartes, Leibniz e Spinoza dos outros filósofos seria o grau de compromisso (e o caráter paradigmático desse vínculo) com os elementos epistemológicos e metafísicos de tais atitudes e doutrinas, principalmente no que diz respeito ao papel paradigmático dos conhecimentos fundados na matemática.
É típico da epistemologia racionalista confiar nos poderes da razão, segundo o paradigma do raciocínio matemático. Disso não segue, contudo, que um racionalista consideraria possível investigar qualquer aspecto da realidade no conforto da poltrona, usando as ideias implantadas em nós por Deus para chegar a conclusões infalíveis, sem temer os erros devidos a falhas no uso da razão. Essa caricatura não tem nada a ver com a sofisticada teoria do conhecimento racionalista, a qual se relaciona a aspectos fundamentais da realidade, como a impossibilidade de uma coisa ter propriedades contraditórias e a necessidade de uma coisa ser idêntica a si mesma. Por exemplo, podemos saber pela mera razão que a quantidade de pessoas em uma sala não pode ser, ao mesmo tempo, igual a um e diferente de um, e podemos saber isso mesmo desconhecendo quantas pessoas há na sala – mesmo desconhecendo se há pessoas, ou salas. Como sabemos isso? É implausível que tal conhecimento se origine na experiência, e por isso é razoável concluir que tal conhecimento se apoia na própria razão. O que vale para esse exemplo parece valer em geral. Algumas afirmações sobre aspectos fundamentais da realidade se apoiam na razão, pois tais afirmações são justificadas independentemente de qualquer experiência particular.
Ainda que talvez apenas a experiência nos dê ocasião para o uso da razão, a experiência não tem valor justificacional no caso de certas afirmações sobre o caráter profundo da realidade, porque conjunto algum de dados empíricos é suficiente para justificar afirmações sobre a identidade e a contradição. Tome-se a afirmação de que uma coisa é idêntica a si mesma, ou a afirmação de que uma coisa não pode ter propriedades contraditórias sob o mesmo aspecto. Um racionalista afirma que essas afirmações são conhecimentos a priori dos quais dispomos inatamente, e dos quais podemos extrair boas conclusões, porque nosso entendimento funciona bem. A crítica usual a tal epistemologia racionalista é que tais conhecimentos a priori são objeto de disputa, em vez de concordância. Isso quando chegam a ser conhecimento, pois boa parte das pessoas simplesmente os ignora. A isso Platão (2007, 82b-85b) respondeu apelando à memória de certos conteúdos, o que pouco convence atualmente. Leibniz apresenta uma resposta bem mais plausível, explicando que a teoria diz respeito a inclinações e tendências do entendimento humano, não a conteúdos. Os conhecimentos a priori são tais que o entendimento tem facilidade em lidar com eles, e elaborá-los. Não se trata da mera capacidade de entender ou não um conteúdo ou ideia, mas, na verdade, da disposição ou aptidão a lidar naturalmente com tais conhecimentos. É como se alguém tentasse esculpir uma estátua de x em um bloco de mármore cujos veios já marcassem x naturalmente, tornando mais simples e natural o trabalho do artista (LEIBNIZ, 2004, livro 1, cap. 1, §11). Assim, ainda que se possa disputar a afirmação de que uma coisa é idêntica a si mesma, há uma inclinação racional a tomar tal afirmação por verdadeira e, por isso, no caso dessa afirmação, a razão segue com mais facilidade o caminho do assentimento, o que não torna qualquer pessoa racional imediatamente capaz de expor as bases do seu assentimento, já que seguir esse “veio” deste “mármore” é o caminho mais fácil, mas não é o suficiente para fornecer uma explicação completa, uma “estátua” bem polida e acabada.
Todos os grandes racionalistas encontraram importantes conhecimentos a priori, e extraíram conclusões de impacto dos mesmos. A “ordem das razões” de Descartes é um bom exemplo disso. Do fato de que “sou” não pode ser afirmado sem que essa afirmação seja verdadeira segue que há uma substância finita (pace HUME, 2001, livro I, parte IV, seção VI), do que segue que há outra substância infinita, do que segue que somos bem feitos enquanto criaturas do nosso gênero, do que segue que não erramos quando bem usamos nossas faculdades, do que segue que aquilo que concebemos clara e distintamente é verdadeiro, do que segue que a matemática é uma boa base para a ciência, e também que os corpos existem (GUEROULT, 1968, p. 278-284). Spinoza partiu do conhecimento a priori de que há uma única substância que é causa de si mesma, do que seguem quatro outros conhecimentos a priori, a saber, que a mente humana é idêntica ao corpo humano, que as emoções dizem respeito à relação do indivíduo humano com o entorno natural e social, que as emoções podem nos escravizar e que, em parte, podemos nos libertar do domínio das emoções através do uso da razão (GLEIZER, 2005, p. 11-29). Leibniz partiu do princípio de identidade (A é A), daí admitiu que toda proposição analítica é verdadeira, concluiu pelo princípio de razão suficiente que toda proposição verdadeira é analítica, estabeleceu pelo princípio de causalidade que a noção de um indivíduo inclui a totalidade do mundo, deduziu disso que a noção de um indivíduo expressa o universo inteiro, esclareceu que o ponto de vista constitui o sujeito (perspectivismo) e também que nem todos os possíveis são compossíveis (DELEUZE, 2006, p. 17-42). Em todos esses casos, a razão e a lógica foram os guias para uma exposição da natureza e da estrutura da realidade. Talvez, ao contrário da caricatura do racionalismo, a investigação apoiada na razão não revele que o real é racional. Talvez precise do auxílio da experimentação, e talvez a razão nos dê apenas um conhecimento parcial da realidade. Ainda assim, os filósofos que ainda chamamos de racionalistas se mostram mestres no uso da razão como meio de apresentar uma visão sobre a natureza da realidade e do conhecimento humano. Outros filósofos, não tão racionalistas quanto esses clássicos, também se apoiam na razão. No entanto, com o racionalismo de Descartes, Spinoza e Leibniz, temos uma culminação do uso da razão como instrumento de desenvolvimento filosófico, o que torna ainda justificada a aplicação do rótulo de racionalistas a tais filósofos.
A confiança na razão é contrabalançada pela desconfiança na imaginação. O domínio da lógica e o domínio da psicologia não se confundem. Um conhecimento racional tem validade universal, enquanto uma crença originada na imaginação é problemática como caso de conhecimento. Além disso, enquanto o entendimento é um guia confiável para o conhecimento da natureza e da estrutura da realidade, a imaginação é traiçoeira, ou simplesmente incapaz. O caso clássico é a comparação entre o pensamento de uma figura de mil lados, do qual podemos tirar conclusões verdadeiras, como, por exemplo, de que se trata de uma figura com um número par de lados, e a tentativa inútil de imaginar tal figura (DESCARTES, 2010, 6ª med., §2; AT VII, 72).
Enquanto a razão é uma capacidade cognitiva confiável, que nos dá resultados universalmente aceitáveis, a imaginação como fonte de conhecimento é duvidosa. Do ponto de vista epistemológico, isso coloca a razão acima da imaginação. Em Descartes, tal hierarquia também se reflete na maior valorização metafísica da alma em relação ao corpo. No entanto, o mesmo não se vê nos outros grandes racionalistas modernos, pois Spinoza toma mente e corpo por dois atributos de uma mesma coisa, enquanto Leibniz nega a possibilidade de haver alma sem corpo. O elemento racionalista em comum entre tais filósofos está na confiança na razão, não na metafísica defendida.
As diferenças entre Descartes, Spinoza e Leibniz aumentam, quando comparamos suas teorias morais, políticas e religiosas. Descartes e Spinoza aceitaram elementos fundamentais do estoicismo, o que os levou a defender o controle das próprias emoções e a aceitação dos fatos que não podem ser modificados, já que isso é o melhor para nós. Leibniz, por sua vez, desenvolve uma teoria moral fundada na ideia de justiça, a qual exige a consideração do bem-estar alheio. Assim, enquanto Descartes e Spinoza propõem morais egoístas, Leibniz adota o altruísmo.
Descartes pouco se ocupou da política, talvez por ter-se resignado (ainda estoicamente) à ordem vigente. Spinoza percorre um caminho bem distinto. Ele argumenta em favor do republicanismo democrático, por considerar os Estados nos quais o povo tem voz mais imunes à guerra civil. Isso o leva a defender uma ampla liberdade de expressão. Leibniz sustenta que os monarcas devam reinar de tal modo que espelhem em seus domínios a sabedoria divina, dado que Deus criou o melhor mundo possível. Um monarca deve se ocupar de criar as melhores condições para o florescimento dos seus súditos, pois assim cada um poderia conquistar aquilo que de fato merece.
Quanto à religião, Descartes deu importante espaço para o conhecimento revelado, e colocou Deus como o ser que mantém a existência de todas as coisas pela recriação do mundo a cada instante. Spinoza negou que há um Deus transcendente, identificando Deus à própria realidade, o que lhe rendeu tanto a acusação de ateísmo quanto o elogio de ter sido o mais embriagado de religião de todos os homens. Spinoza também recusou a autoridade da Bíblia em assuntos científicos e filosóficos, por considerála a obra de pessoas ignorantes. Todavia, reconheceu a utilidade da religião como meio de controlar as pessoas incapazes de usar o entendimento para compreender a natureza e a estrutura da realidade. Leibniz, por sua vez, dedicou toda sua vida à causa da reunião ecumênica de todas as religiões cristãs como um modo de estabelecer um ponto de vista europeu. Sua metafísica é, em grande parte, o fruto dessa tentativa.
O livro de Huenemann peca, ao reforçar estereótipos sobre o racionalismo, porém, tem suas virtudes, por deixar claro que a oposição entre racionalismo e empirismo não diz respeito a times ou clubes filosóficos, mas, de fato, a atitudes, pois, enquanto os seguidores da atitude empirista tendem a tomar os dados dos sentidos pelo valor de face, os seguidores da atitude racionalista tendem a desconfiar dos dados dos sentidos, e a buscar reconstruções matemáticas, sendo que é de se esperar que um mesmo filósofo possa ir de uma atitude a outra, em diferentes áreas da sua investigação.
A tradução tem todos aqueles problemas que são comuns nos textos não traduzidos ou não revisados por filósofos, além das falhas de revisão usuais. Alguns desses erros são graves. Na p. 110, por exemplo, encontramos um surpreendente “concebíveis em contradição”, em vez de “concebíveis sem contradição”, e, na p. 117, temos “fracamente contraditório”, onde deveria ter sido dito “francamente contraditório”. Outros erros são típicos do risco facilmente evitável que a editora corre, quando publica um texto técnico sem consultar os especialistas. Por exemplo, os Nouveaux essais sur l’entendement humain se tornam os Novos ensaios sobre a compreensão humana (9), assim como An essay concerning human understanding se torna Ensaio sobre a compreensão humana (15), e o termo epistemológico “justificação” se torna o termo moral “justificativa” (15). Há ainda erros mais difíceis de classificar, como a afirmação de que o túmulo de um filósofo que morreu faz menos de trezentos anos ficou quinhentos anos sem registro (154). Há também erros de concordância, começando logo na primeira página da Introdução (11). O conhecimento sobre o funcionamento das nossas editoras inibe o otimismo quanto à solução desses problemas, em próximas edições.[3]
BACON, F. The new organon. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
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DELEUZE, G. Exasperación de la filosofía: el Leibniz de Deleuze. Traducción y notas: Equipo Editorial Cactus. Buenos Aires: Cactus, 2006.
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WOOLHOUSE, R. S. The empiricists: a history of western philosophy, 5. Oxford: Oxford University Press, 1988. 4
Submissão: 08/07/2013
Aceito em: 15/11/2013