Da Revolução: Arendt, umA modernA?

Daiane Eccel[1]

RESUMO: Em Da Revolução, Arendt aponta para o vigor da política que renasce por meio das iniciativas revolucionárias. Por outro lado, é preciso atentar para o fato de que várias outras características presentes em Da Revolução apontam para aspectos críticos e negativos da modernidade que estão presentes dentro do âmago das próprias revoluções. O objetivo deste texto consiste em analisar os elementos modernos presentes nas revoluções que são admirados por Arendt, bem como os retornos que ela faz à antiguidade, de modo que seja possível contrapô-los e mostrar que, apesar de a autora louvar os feitos modernos das revoluções, o faz tendo Atenas e Roma como referências, já que a forma de participação dos conselhos provenientes das revoluções lembra, em grande escala, a polis grega, e a liberdade pública exaltada pelas revoluções (neste caso, a americana) corresponde à liberdade dos antigos, da mesma maneira como o ato de fundação da república americana lembra com grande vigor a fundação da “cidade eterna”. O objetivo, longe de enquadrar Arendt em alguma das categorias que seus comentadores já fizeram, está em perceber a relevância de não negar a importância que os antigos legaram para as considerações “modernas” de Arendt, assim como voltar os olhares para essa autora como alguém que realmente pensou seu tempo tendo os antigos como alguns parâmetros, mas não considerando isso de forma inteiramente negativa. Em outras palavras, trata-se de tentar assumir esse caráter presente na obra de Arendt, sem que ele seja tomado como um defeito.

PalavRaS-chavE:  Arendt. Revoluções. Modernos. Gregos e romanos.

Introdução

Entre os comentadores de Arendt, é quase unânime o consenso de que suas duas primeiras obras de grande fôlego, a saber, Origens do Totalitarismo e A Condição Humana, são em parte uma espécie de continuidade entre si, de forma que a segunda figura para muitos, tanto como uma tentativa de “resposta” para a primeira, como uma forma de “coroamento” para as críticas à modernidade desenvolvidas em Origens do Totalitarismo. Em A Condição Humana, na qual as atividades da vita activa são elucidadas fenomenologicamente, ficam evidentes não apenas as críticas dirigidas ao mundo moderno – sobretudo por meio da vitória do animal laborans e da valorização da mais elementar forma de vida, juntamente com a ascensão de uma sociedade de massas voltada para o consumo desenfreado – mas também alguns regressos ao mundo greco-romano que ora parecem servir como parâmetros de comparação com o mundo moderno, ora soam como um ideal que nunca mais foi alcançado. Além de estarem presentes igualmente em sua obra póstuma – A Vida do Espírito – que, como a própria Arendt teria dito à sua amiga Mary McCarthy, seria apresentada como uma espécie de continuidade de A Condição Humana, as referências ao mundo antigo são constantes, nos demais escritos arendtianos. Nas voltas de Arendt tanto à Grécia quanto a Roma, o aspecto que é positivamente ressaltado são as relações que ambos os povos mantinham com a política e, nesse sentido, a polis grega e a res publica romana são constantemente invocadas por Arendt. Para além das referências aos modos de fazer política da antiguidade, ainda saltam à vista as inúmeras vezes que a autora recorre aos pensadores gregos como Homero, Heródoto, Tucídides, Sócrates, Platão, Aristóteles, entre outros.

É certo que nem todas as referências aos gregos constituem elogios – como é o caso de Platão, por exemplo, para quem as críticas são maiores do que os louvores –, todavia, é inegável a importância do contexto antigo no cenário pintado por Arendt. Para aqueles que olham o legado arendtiano somente por esse ângulo, a constatação de que Arendt é uma espécie de grecofílica, parece não soar tão absurdo, afinal, apesar de sua existência neste mundo ter-se dado no século XX, por alguns motivos já discutidos por comentadores[2], Arendt retorna com frequência ao mundo antigo. Entre os comentadores, talvez seja George Kateb quem atribui a essas voltas arendtianas à antiguidade um tom de crítica ácido. Entre outros, há também Benhabib, que parece desejar salvar Arendt do título de antimoderna e  lhe confere  o adjetivo de modernista relutante[3]. Ainda mantendo Arendt como admiradora da Grécia, porém com olhares menos críticos, encontra-se, entre outros, Peter Euben, para quem Arendt é – parafraseando Benjamin – uma “pescadora de pérolas” que volta à Grécia em busca de fragmentos perdidos.

Para combater o mal entendido caráter de antimoderna atribuído à Hannah Arendt, os comentadores voltam-se para uma obra, no conjunto dos escritos arendtianos, que trata diretamente de fenômenos modernos – e, diferentemente de Origens do Totalitarismo e A Condição Humana, Da Revolução[4] – a obra em questão,  de 1963 – faz incidir um raio de luz sobre a modernidade tão criticada por Arendt nos demais textos. Nesse escrito, a autora aponta para o vigor da política que renasce por meio das iniciativas revolucionárias e os sistemas de conselhos que surgiram nos entremeios das revoluções. Arendt louva as fagulhas iniciais da revolução e enaltece ainda mais o caráter de participação política direta permitida por tais sistemas, dando razões aos comentadores – em alguma medida – para enquadrá-la  no rol dos pensadores eminentemente modernos. Por outro lado, sem desejar recorrer em defesa à análise realizada por Benhabib, mas, combatendo-a em certa medida, é preciso atentar para o fato de que vários outros aspectos presentes em Da Revolução sublinham características críticas e negativas da modernidade que estão presentes dentro do âmago das próprias revoluções. Além disso, a quantidade de vezes que Arendt se volta para os gregos e romanos, nesse mesmo texto, também surpreende por se tratar de um escrito no qual ela aborda um fenômeno exclusivamente moderno. Não há como negar que o parâmetro comparativo de Arendt, mesmo em Da Revolução, ainda é a antiguidade, em alguns aspectos por meio da polis grega e em outros, da república romana. O objetivo deste texto consiste em analisar os elementos modernos presentes nas revoluções que são admirados por Arendt, bem como os retornos que ela faz à antiguidade, de modo que seja possível contrapô-los e mostrar que, apesar de a autora louvar os feitos modernos das revoluções, o faz tendo Atenas e Roma como referências, já que a forma de participação dos conselhos provenientes das revoluções lembra, em grande escala, a polis grega, e a liberdade pública exaltada pelas revoluções (nesse caso, a americana) corresponde à liberdade dos antigos; assim como o ato de fundação da república americana recordar com grande vigor a fundação da “cidade eterna”. O objetivo, longe de enquadrar Arendt em alguma das categorias que seus comentadores já fizeram, é tentar perceber a  relevância de não negar a importância que os antigos legaram para as considerações “modernas” de Arendt, voltando os olhares para essa autora como alguém que realmente pensou seu tempo tendo os antigos como alguns parâmetros, mas não considerando isso de maneira inteiramente negativa. Em outras palavras, trata-se de tentar assumir esse caráter presente na obra de Arendt, sem que ele seja tomado como um defeito.

1 A AnálIse ArendtIAnA do Advento dAs revoluções

Diferentemente dos tão conhecidos ciclos de governo com que os gregos e romanos teorizaram e estavam habituados a lidar, ou seja, a mudança de uma forma de governo para outra, as revoluções surgem como fenômenos tipicamente modernos. A diferença essencial entre outras coisas é que as mudanças de formas de governo apenas consistiam na troca de quem governava e para quem o governo se dava, mas é somente a partir das revoluções que um novo começo passa a ser pensado e que, como consequência, o curso dos acontecimentos passa a ficar em suspenso. Nesse sentido, na medida em que a História não “[...] apenas recaiu num estágio diferente do seu ciclo” (ARENDT, 1990, p. 17) por meio das revoluções no século XVIII, a tradição política foi reinaugurada através de um fenômeno até então completamente desconhecido  anteriormente.

O fato de resguardar em si o problema do novo faz com que as revoluções ganhem um caráter totalmente positivo sob os olhos arendtianos, pois é o novo – sempre relacionado com o início, com a arché – que guarda um caráter político por excelência. Apesar de Arendt afirmar claramente o quanto os acontecimentos revolucionários irromperam repentinamente, mudando o fluxo dos acontecimentos da História, não é difícil perceber que a ideia de um novo começo já aparecera alguma outra vez na história do pensamento político. A república romana e a ideia de fundação acompanham, em parte, a ideia de um novo começo. No período moderno, contudo, a  ideia do novo, para Arendt, tardou para que alcançasse a esfera da política e deteve-se por muito tempo no meio científico. Prova disso é a própria origem da palavra revolução, que, como ela frisa, está associada com a descoberta copernicana do século XVI, a qual mostra que os planetas giram elipticamente em volta do Sol. Arendt observa que, a despeito de os corpos celestes repetirem infindavelmente o mesmo movimento cíclico, a descoberta de Copérnico havia sido enunciada como totalmente nova. A questão relevante para nossa autora é que o fenômeno do novo só se desvelou completamente quando tomou conta do espírito revolucionário, i.e., a partir do momento em que apareceu na política.

Porém, se de alguma forma a instauração de um novo começo não é tão nova quanto possa parecer, há outros dois elementos enfatizados por Arendt que são intrinsecamente modernos: a questão social e a liberdade. A questão social, ressalta Arendt, exerceu um papel essencial, sobretudo na Revolução Francesa. Nas revoluções do Velho Mundo (principalmente na francesa), a questão social tomou dimensões de massas e não somente o homme de lettres, mas qualquer um dos que viviam nas ruas parisienses gritava que lhe faltava pão, enquanto a corte se deliciava com croissants. Os franceses reivindicavam a satisfação das carências mais básicas e, entre outras coisas, nisso consistiu o estopim da revolução. Como o movimento de Arendt em seu texto está, em parte, em traçar alguns paralelos entre a Revolução Americana e a Revolução Francesa, sob a ótica da primeira, a questão social aparece de maneira um tanto negativa na Revolução Francesa. Enquanto as reivindicações da França se baseavam no cessar  das necessidades básicas e reduziam-se à “multidão dos pobres e oprimidos” que surgiam nas ruas pela primeira vez, em toda a História, nos Estados Unidos, parecia prevalecer um ideal de igualdade. O fato de os americanos começarem a duvidar de que realmente houvesse uma hierarquia natural que conferisse desigualdade aos homens fez com que os ideais democráticos saltassem à vista.[5] Essa tese não é completamente aceita por parte dos comentadores de Arendt, pois, como afirma Bignotto[6], Arendt negligencia de alguma forma a questão social que estava igualmente presente na Revolução Americana e, na medida em que o faz, esquece as lições tocquevilianas que colocavam a igualdade de condições como essencial para a prática da política (embora o cite várias vezes). No pensamento de Arendt, há uma evidente diferença entre igualdade social e igualdade política e, como afirma Bignotto (2011, p. 46), “[...] curiosamente Arendt nunca associou a luta pela superação da pobreza com a luta pela igualdade”.

A questão social está inversamente relacionada com a reivindicação pela liberdade, e as revoluções não poderiam ter sido as mesmas sem o clamor pela liberdade. Todavia, novamente as diferenças entre as duas revoluções aparecem. Apesar de ambas desejarem garantir a participação de todos, nos assuntos políticos, os franceses ainda tinham um mal adicional a ser vencido: a satisfação das necessidades mais imediatas. A multidão faminta nas vielas de Paris não tinha condições de participar da esfera da política para debater a morte do rei e pensar na fundação de um novo corpo político. Ao invés disso, tinham que encontrar alguma forma para que o sistema político suprisse suas carências mais básicas. Malgrado Arendt afirme que isso pode parecer uma espécie de truísmo redundante, ela faz questão de separar a ideia de liberdade (freedom) da de libertação (liberty). Os franceses ainda precisavam ser libertados de suas necessidades para somente depois vivenciarem a liberdade que só a esfera pública poderia lhes proporcionar. Para usar termos aristotélicos utilizados por Arendt já na Condição Humana, os franceses, enquanto reivindicavam  a libertação ao invés da liberdade, estavam na esfera da necessidade, condição que precisa ser sanada a fim de que a liberdade pudesse se dar. As percepções de Marx, décadas depois da Revolução Francesa, pareciam revelar o que o velho Aristóteles já havia percebido em outros termos: “[...] liberdade e pobreza eram incompatíveis” (ARENDT, 1990, p. 49).  E foi justamente esse aspecto que, aos olhos de Arendt, parece ter malfadado a Revolução Francesa.

A questão social foi a motivação inicial do fenômeno revolucionário na França, mas, na medida em que se tornou também a questão central, desviou o foco da revolução e se ele deveria ser político por excelência, passando a ser social ou, para usar as palavras de Arendt (1990, pp. 47 e 50), “[...] a revolução mudara de rumo; não buscava mais a liberdade; seu objetivo agora era a felicidade do povo”  ou, ainda, “[...] a abundância e não a liberdade, tornara-se agora o objetivo da revolução”. Nesse sentido, é importante ressaltar o quanto Arendt sempre fez questão de destacar que o social não é político, pois ele não se situa nem na esfera pública nem tão pouco na privada, mas, por meio dele, as reivindicações privadas se dão no espaço público[7]. O palco da Revolução Francesa tornou-se não o espaço no qual direitos políticos e virtudes republicanas vieram à tona – apesar dos ideais de égalité, liberté e fraternité –, mas o espaço onde a população clamava pelo fim das condições miseráveis em que vivia. Conforme sublinha Arendt (1990, p. 48), “[...] a liberdade teve de render-se à necessidade, à urgência do próprio processo vital”, em função da pobreza,

[...] porque ela submete os homens ao império absoluto de seus corpos, isto é, ao império absoluto da necessidade, como todos os homens a conhecem a partir de sua experiência mais íntima independente de todas as especulações. Foi sob o ditame dessa necessidade que a multidão acudiu ao apelo da Revolução Francesa, inspirou-a, impulsionou-a para a frente, e finalmente levou-a à destruição. (ARENDT, 1990, p. 48)

Pior do que manter-se atrelado às grades das necessidades vitais mais comuns, foi a circunstância de a Revolução ter tomado os rumos da violência. Se social não é sinônimo para público, na obra de Arendt, a mesma distinção se faz para violência e poder. A violência, anunciada por Marx como a “parteira da História” e o reino do terror, que aos olhos de Robespierre não guardava nada de pernicioso quando posto no  contexto da revolução, fez com que Arendt olhasse com ainda mais desconfiança para a revolução do século XVIII, no Velho Mundo, quando comparada com a Revolução Americana. Para ela, novamente a questão social teve impacto, uma vez que desejava libertar os miseráveis dos “grilhões das necessidades” (ARENDT, 1990, p. 48), pois violência e necessidade estão intimamente ligadas, porque a violência surgiria como tentativa de produzir um sistema no qual as necessidades pudessem ser sanadas.

Aos olhos de Arendt, porém, é aí justamente onde o caminho é desviado. A violência não era o caminho correto a ser tomado, quando a questão a ser resolvida era a supressão das necessidades sociais. Anteriormente a isso, segundo Arendt, tais necessidades nem poderiam adentrar na esfera da política e deveriam ser resolvidas por meio de aparatos técnicos, mas não políticos. O fato é que tais necessidades estão relacionadas com questões econômicas e, estas, Arendt as desvincula da política. Dessa forma, a violência jamais poderia dar conta de resolver os entraves causados pelas necessidades e nem tampouco a política poderia resolvê-los. A despeito de haver relações entre poder e violência, Arendt enfatiza que o poder jamais poderá se originar da violência, ou seja, o terror da Revolução Francesa não lograria o sucesso do intento revolucionário e, assim, se um rápido lapso de liberdade política soprou pelos ares de Paris, em 1789, ele logo desapareceu. Quando a questão social tomou conta da Revolução Francesa, ela passou a sofrer dos mesmos males que a modernidade sofre: a ascensão do social e a valorização da vida somente enquanto vida em suas atividades mais elementares, de forma que o cuidado da dzoé (e não a preocupação com a bios) e a busca da felicidade passaram a ser os principais objetivos do homem moderno.

Enquanto Arendt passa a criticar alguns aspectos da Revolução Francesa, sobretudo no que concerne à questão social, na medida em que esta teria solapado as fagulhas de desejo de liberdade e, ao invés disso, teria posto a libertação no seu lugar, ela volta a olhar para a Revolução Americana e investiga qual o tipo de liberdade que motivou os ensejos dessa revolução. É evidente a falácia segundo a qual Arendt se conecta com os liberais por meio dos louvores que ela rende aos ideais de liberdade. O problema dos liberais, para Arendt, está na proposição que afirma que, quanto mais liberdade, menos política há. Arendt não é a teórica da liberdade negativa ou da liberdade dos modernos, mas, antes, da liberdade positiva, ou seja, do mesmo tipo de liberdade apreciada e vivenciada pelos antigos gregos. Assim, a espécie de liberdade experienciada pelas revoluções modernas não é exatamente um tipo novo ou único de liberdade. Ao tratar da constituição da liberdade em Da Revolução, Arendt deixa claro que a primeira intenção dos revolucionários americanos não era fundar novas bases para a liberdade positiva, quer dizer, para a liberdade como participação política efetiva. Diferentemente disso, era recuperar antigos direitos, de modo que a ideia de uma nova forma de liberdade surgiu, para fazer uso das palavras de Arendt (1990, p. 124), “[...] no decorrer da revolução”.

Se o intento inicial da revolução não era a liberdade aos moldes antigos, o evento revolucionário proporcionou esse tipo de vivência para aqueles que participavam nele, especialmente nos Estados Unidos, que já estavam bastante habituados com o autogoverno. A partir da “descoberta” dessa nova forma de liberdade – que, salvo alguns elementos, não era totalmente nova –, o objetivo da Revolução Americana passou a ser o fundamento de uma nova liberdade (quando comparada somente aos ideais de reaver os antigos direitos e privilégios), que em lugar de “[...] limitar o poder, [queria] dar origem a mais poder, ou seja, estabelecer e constituir adequadamente um centro de poder inteiramente novo [...]” (ARENDT, 1990, p. 123). A liberdade encontrada no centro da Revolução Americana e que Arendt faz questão de ressaltar não é a liberdade ovacionada pelos liberais modernos, isto é, o não impedimento de fazer algo ou a mera liberdade de ir e vir, liberdade de comunicação e expressão, direito à propriedade privada, entre outros, contudo, era a liberdade de poder transitar pela esfera pública, de ter algum tipo de participação política, pois, como Arendt (1990, p. 120) recorda, por meio de Montesquieu,  “[...] poder e liberdade relacionavam-se um com o outro”.  Nesse sentido, importa notar que os direitos civis estão longe de compor aquilo que Arendt chama de liberdade política, e esta, por sua vez, “[...] ou significa ‘participar do governo’, ou não significa nada” (ARENDT, 1990, p. 17). Albrecht Wellmer, em seu artigo sobre a ideia de revolução em Hannah Arendt[8], coloca a pergunta sobre qual papel tem o conceito de “liberdade política” de Arendt, no cenário da teoria da democracia atual. Com esse movimento, Wellmer estabelece um diálogo direto entre Arendt e dois ícones da discussão atual: Jürgen Habermas e John Rawls. O diálogo se dá por meio das ideias concorrentes de autonomia pública e autonomia privada, bem como através do problema estabelecido entre os direitos civis e os direitos humanos. Para Wellmer, está suficientemente claro que o conceito de autonomia pública de Rawls não é o mesmo que a liberdade pública proposta por Arendt, em Da Revolução. O mesmo acontece com Habermas, porque a ideia de liberdade política para Arendt “transcende” o conceito de democracia proposta por Habermas, já que associa a liberdade como fenômeno da possibilidade do novo que é concomitantemente inédito e frágil. A liberdade política não pode ser reduzida à discussão sobre igualdade ou justiça social, porque estas são questões pré-políticas.

2 Arendt entre os AntIgos e os modernos

É nesse sentido que a argumentação proposta inicialmente neste escrito passa a vigorar. A partir de agora, serão buscados alguns elementos contidos em Da Revolução, os quais corroborarão a hipótese inicial de que Arendt louva as revoluções modernas, na medida em que elas apresentam características capazes de lembrar as instituições antigas. Para a construção de uma argumentação que não visa a forjar argumentos, mas reconstruir, em parte, o espírito do texto arendtiano, serão igualmente apontados os argumentos de Arendt que ilustram as revoluções como fenômenos completamente novos no cenário político, apesar de sutis semelhanças com as antigas instituições. É importante elucidar que o objetivo aqui não é de forma alguma reforçar o estereótipo de que Arendt alimenta algum tipo de visão romântica com os regimes políticos de Atenas e de Roma, mas é tentar reconstruir a argumentação arendtiana para mostrar o quanto de seus elogios às revoluções está associado com os elogios que ela tece aos antigos, ao longo de sua obra.

Uma das principais características das revoluções que já estava presente nos  antigos é a própria ideia de liberdade, que vem sendo tratada até aqui. É certo que, na modernidade, se tornou célebre a distinção entre a liberdade negativa e a positiva, graças ao clássico escrito de Benjamin Constant. Importa assinalar que, para os antigos gregos participantes da polis, a forma de liberdade negativa não era conhecida – motivo este que levou Constant a designar a liberdade positiva como liberdade dos antigos, ao passo que a liberdade negativa ficou conhecida como a liberdade dos modernos. Nessa perspectiva, é interessante notar como uma das principais características que Arendt resgata como sendo digna de nota, a saber, a liberdade positiva, é também uma das principais características da polis grega. Nisso reside a crítica arendtiana aos liberais, que, invertendo o sistema aristotélico, consideram-se livres fora do perímetro do espaço público, da participação efetiva dos negócios públicos e, ao invés disso, preferem gozar do bem-estar pessoal e da felicidade privada.

É a partir da ideia de liberdade positiva que surgem, em meio ao espírito revolucionário, as maiores manifestações de participação política originárias dos últimos tempos: os sistemas de conselhos. Arendt elenca desde a Comuna de Paris no vácuo  do poder, em 1871, os sovietes, de 1905 e 1917, os Räte alemães pós-primeira guerra, em 1918 e 1919, e finalmente o sistema de conselho em Budapeste, na Revolução Húngara de 1956, destacando a capacidade de organização e participação política plena em  todos esses conselhos.  Todos eles, embora tenham surgido em meio a revoluções, não foram planejados pelos revolucionários e foram tampouco o objetivo das revoluções; ao contrário, não foram organizadas pelos hommes de lettres ou por aqueles que passaram a tomar a revolução como profissão, mas por trabalhadores e  pessoas comuns que espontaneamente passaram a se reunir para debater e opinar sobre questões políticas. Foi nos conselhos que as doxai socráticas, tão valorizadas por Arendt, se faziam aparecer. Nesse sentido, Arendt opõe-se ferrenhamente tanto aos realistas quase céticos que consideravam esse tipo de organização como um “[...] sonho romântico, algum tipo de utopia fantástica que se tornara real por um breve instante” (ARENDT, 1990, p. 210) quanto àqueles que, como Robespierre, acreditavam que o sistema de conselhos era eficiente apenas como uma etapa para a revolução, que depois passaria a se tornar perigoso, já que era uma forma de “concorrência” com a nova ordem estabelecida. Defendendo esse tipo de participação política, Arendt argumenta contra aqueles que creem que o governo é para poucos e que há uma certa incapacidade do povo para o autogoverno.[9] O fato é que, na ânsia revolucionária de reaver os antigos direitos e privilégios, os homens tomados pelos espírito revolucionário vivenciaram a experiência de exercer o poder e participar ativamente da coisa pública e, nisso consistiram, em parte, as bem-aventuranças das revoluções. A questão a notar é que o que Arendt toma como elogiável nos processos revolucionários não são as aspirações pela liberdade mais elementar, quer dizer, a liberdade como não impedimento, mas justamente a forma mais antiga de liberdade já conhecida, aquela que era comum aos gregos, que se reuniam na ágora e discutiam e votavam os assuntos inerentes a polis, ou seja, a forma positiva de liberdade, aquela que se une ao poder.

É evidente que a semelhança guardada entre os sistemas de conselhos provenientes das revoluções e a antiga forma de participação política da Grécia de Sólon consiste em dois elementos principais: a) a ideia de que a liberdade só existe entre os pares; e b) que essa liberdade consiste na forma de participação política direta e não representativa. É certo que algumas características históricas fazem com que algumas diferenças também predominem. Aqui, é preciso observar que existe uma diferença substantiva entre os conselhos e a polis: nesta última, a classe dos homens livres limitava-se somente a homens e excluía mulheres e escravos, ao passo que, nos conselhos, o espaço era bem menos limitado. Não obstante, esse não é um fator que deve ser considerado de grande peso político, mas tratado como uma diferença histórica.

Enquanto as semelhanças entre as revoluções e os gregos se assentam nos ideais de liberdade positiva e na participação direta nas coisas públicas, há um aspecto que imediatamente faz lembrar os romanos e a “cidade eterna”: o ato de fundação. Isso se relaciona com a Revolução Americana, na medida em que Arendt afirma que Montesquieu teve quase o mesmo grau de influência para os americanos quanto Rousseau teve entre os franceses, no período da Revolução Francesa, e que Montesquieu volta seus olhos para os romanos e para o ato da fundação de um novo corpo político, através da constituição. Arendt atribui mais aos romanos do que aos gregos o feito realizado pelos americanos, pois “[...] o grande modelo e precedente, não obstante toda retórica ocasional acerca da glória de Atenas e da Grécia foi, para eles, como fora para Maquiavel, a república romana e o esplendor da sua história” (ARENDT, 1990, p. 158). Parece não ser à toa que homens como Thomas Jefferson e Madison se autointitularam founding fathers. Arendt alude para o fato de que, apesar de isso soar um tanto arrogante, por parte desses homens, o que fez com que eles se chamassem assim está relacionado com o sentimento do peso do espírito daquele tempo, no qual os legisladores da antiguidade gostariam de ter vivido (ARENDT, 1990, p. 162). E disso se segue o fato de que, se eles decidiram entender-se como fundadores e seguir o exemplo dos fundadores romanos, era porque sabiam que, após sua permanência neste mundo, outra geração adentraria a esfera da política, alargaria a constituição e eles – os pais-fundadores – se tornariam ancestrais. Esses homens são, para Arendt, exemplos políticos tão importantes quanto Aquiles e Heitor foram na antiguidade grega e como Cícero fora, na romana[10].

O ato de fundação, porém, traz junto de si um problema: enquanto o próprio ato de fundar traz consigo um grande sinal de estabilidade, uma vez que inaugura uma constituição (como na América), há o perigo de se perder o espírito revolucionário, o espírito do novo que cada ato de fundar também guarda em si. No caso da Revolução Americana, todavia, esse feito foi realizado e se atualiza a cada vez que a constituição – nunca modificada em sua forma e conteúdo originários – é ampliada pelas gerações posteriores e, como ressalta Arendt (1990, p. 162), “[...] desnecessário é dizer que a própria autoridade da Constituição americana repousa em sua inerente capacidade de ser emendada e ampliada”. Constituição essa que os americanos, segundo Woodrow Wilson, adoravam.

O papel da constituição na Revolução Americana refletia igualmente um fio de luz advinda da antiga república romana, pois, apesar de a fonte da autoridade na América ser diferente da de Roma, ambas tinham algo em comum: a ideia de um (ou mais) fundador, que tomou o espaço de legislador divino, e a presença de uma instituição concreta que, no caso dos Estados Unidos, era a Câmara Alta, cuja função era gerir a lei presente na constituição, enquanto, em Roma, era o Senado, que, por meio de seus membros mais velhos, buscava resguardar a autoridade já presente nos ancestrais e que constantemente os ligava “[...] aos primórdios da história romana, à fundação da cidade eterna” (ARENDT, 1990, p. 159). Se, realmente, há algo em comum entre as virtudes americanas e as virtudes políticas da Antiga Roma, é que tais virtudes foram herdadas do modelo do corpo político romano. Segundo tal modelo, o ato de fundação está diretamente relacionado com o problema do novo que ainda é relembrado no caso da América a cada vez que alguma discussão acerca da Constituição viesse à tona.

Analisados esses entremeios relativos à Revolução Americana e à antiga Roma, não se pode deixar passar despercebido o que caracteriza a inovação da Revolução Americana frente à fundação romana, apesar de as semelhanças continuarem resguardadas. A questão que Arendt traz à baila surge justamente do problema do início, do princípio. Para responder à pergunta de como as cidades surgem, ao invés de remontar à tradição grega de um demiurgo, os romanos recorreram às lendas de Rômulo e Remo e tomaram posse da Eneida, de Virgílio. Esta, por sua vez, tomou emprestados os personagens da Ilíada. Depois de ter-se apropriado deles, Virgílio “[...] começa a inverter a história de Homero” (ARENDT, 1990, p. 168) e, em vez de Tróia destruída, temos Roma fundada na base de um acordo feito entre os dois povos inimigos. Daí, seguese o início de Roma e sua fundação, que, para Arendt (1990, p. 168) “[...] foi como o ressurgimento de Tróia e o restabelecimento de alguma cidadeEstado que já existira antes, cuja linha de continuidade e tradição jamais fora rompida”. Não era, portanto, a fundação de um corpo político completamente novo, mas era apenas um ressurgimento.

A república americana tornou-se maior que Roma, quando optou não por fundar Roma novamente, mas por realizar o feito de criar um corpo político inédito. Esse ineditismo, ilustrado nas palavras de Arendt, reflete-se na opção dos americanos em substituir os versos de Virgílio de magnus ordo saeclorum para novus ordo saeclorum. A partir disso, a América desvencilha-se de toda a tradição.

ConClusão

A despeito de todas as revoluções terem em si mesmas o valor do novo preservado por meio do espírito revolucionário e, sobretudo, de a Revolução Americana ter tido um caráter ainda mais inédito do que todas as demais, porque seus líderes não desejavam fundar uma nova Roma, mas um corpo político novo, é inegável o caráter que relaciona as revoluções modernas com a tradição grecoromana. A importância atribuída à fundação, no caso da Revolução Americana, deve-se ao fato de os modernos terem lançado seus olhares aos antigos e de terem herdado grande parte de suas virtudes. É certo que os louvores de Arendt se rendem aos americanos enquanto eles realizam um feito inédito, contudo, o parâmetro para isso ainda é o resplendor de Roma, a cidade lendariamente refundada. Se, como Arendt afirma, na Revolução Americana pela primeira vez o início, intrínseco no ato de fundação, é posto e revelado à luz do dia, é só porque as luzes do passado romano jogaram suas fagulhas para os americanos e revelaram a importância da fundação, fazendo com que a América fosse ainda mais esplendorosa do que Roma, naquele momento.

Se, ao redescobrirem a liberdade dos antigos, tanto a Revolução Francesa quanto a Americana lograram algum sucesso, por meio das influências vindas da Grécia e de Roma – a primeira via sistema de conselhos e a segunda por meio da descoberta da importância do ato de fundação – ambas “degeneraram”, quando começaram a se afastar das heranças antigas.

Na França, o sistema de conselhos não foi nem a consequência da revolução e nem o seu produto final, pois os conselhos não faziam parte dos objetivos almejados pelos revolucionários. Os conselhos foram o resultado natural do espírito revolucionário e da confiança na organização dos cidadãos comuns que levaram suas opiniões (doxai) para a esfera pública e desvelaram, assim, um “oásis” em meio ao deserto (ARENDT, 1990, p. 220). Os conselhos foram a redescoberta do prazer da liberdade política que coincide com o exercício do poder. Na Revolução Francesa, os conselhos poderiam ter atingido seu cume não fossem as interferências de Robespierre, insistindo que eles não poderiam tornar-se permanentes no novo corpo político criado após a Revolução. Salvo as explicações dadas pelo próprio Robespierre, Arendt assinala que seu maior temor era que os conselhos passassem a ser concorrentes do novo governo.  Nisso, Marx e Lênin pareciam estar de acordo com o francês, quando consideravam as comunas “[...] meros instrumentos que deveriam ser postos de lado quando a revolução chegasse ao término” (ARENDT, 1990, p. 204). Arendt, mais do que enaltecer as 48 seções da Comuna de Paris, realizadas mais de cem anos após a Revolução Francesa e que tinham como objetivo eleger seus representantes e enviá-los à Assembléia Nacional, parece elogiar as societés populaires que surgiram espontaneamente e aos montes, não com o objetivo de enviar representantes, mas imbuídas do espírito público do debate. Robespierre, um século antes, como lembra Arendt, declarava que estes eram “os pilares da democracia”, mas, após essa data, tratou de solapá-los.

Foi esse mesmo Robespierre, junto dos demais jacobinos, que difundiu a questão social entre os revolucionários nas ruas de Paris e perdeu a chance de conservar os postulados aristotélicos, para quem necessidade e liberdade encontravam-se em esferas distintas, o que significa dizer que as necessidades sociais da população não podiam fazer  parte da política, dado o caráter diferenciado entre  libertação (liberty) e liberdade (freedom). Quando o objetivo da Revolução Francesa deixou de ser a liberdade positiva e a felicidade pública e passou a ser a eliminação das carências mais básicas e, a partir do momento em que se deu o triste fim do sistema de conselhos, substituído pelo sistema representativo de partidos, ela degenerou. Se houve algum lapso de liberdade no vigor revolucionário, ele foi dissipado.

Junto disso está presente a crítica arendtiana ao sistema de representação política que prevaleceu tanto no Velho Continente quanto no Novo Mundo. Enquanto, na Revolução Francesa, os conselhos surgiram em meio à revolução, na América, eles eram quase pré-revolucionários, com a diferença de que eles desapareceram no decorrer da revolução, prevalecendo a decisão de não incorporar os municípios no novo corpo político. Curiosamente foi a constituição, tão adorada pelos americanos, que instituiu esse legado. A constituição, portanto, aparece aos olhos de Arendt como a tradicional metáfora da “faca de dois gumes”, pois, apesar de ela fornecer a estabilidade de que todo corpo político necessita, ela também decepou o espírito de participação direta nas questões da política. Nessa perspectiva, Arendt volta aos escritos de velhice de Jefferson e constata que ele haveria percebido a importância da incorporação dos municípios no corpo político, apesar de nunca ter incluído essa ideia em seus escritos formais. Segundo Arendt, Jefferson percebia a força das pequenas organizações que surgiam nos  municípios, os quais, em sua opinião, deveriam ser divididos em distritos, chegando a sugerir que, para o bem da república, elas fossem incorporadas ao sistema de governo. Não obstante, malgrado essa ideia ser “[...] a preferida de Jefferson”, ela “acabou sendo tão incompreensível para a posteridade como o fora para seus contemporâneos” (ARENDT, 1990, p. 199).

Ao invés da sugestão de Jefferson, porém, o sistema de participação direta foi substituído pelo sistema de partidos, o qual agia em consonância com o sistema de representação política. Esse fato veio à tona tanto no Velho quanto no Novo Mundo, de sorte que as fagulhas de liberdade positiva que haviam surgido em ambas as revoluções – na América pré-revolucionária e na França revolucionária – foram apagadas. À medida que alguém passa a ser representado, transfere a felicidade pública que antes lhe pertencia, ou seja, a felicidade de participar ativamente do poder. Jefferson mostrouse ambíguo todo o tempo em que afirmava que a “[...] felicidade do povo estava fundamentada exclusivamente em seu bem-estar pessoal” (ARENDT, 1990, p. 201), ao mesmo tempo em que reconhecia a importância do sistema distrital para a sobrevivência da república. Pior do que a ambiguidade de Jefferson era o rumo que as coisas haviam tomado, na França de Robespierre, na qual as pessoas nos partidos, em vez de buscarem cumprir o mesmo papel antes realizado pelos conselhos – temidos por Robespierre, após a ascensão dos jacobinos ao poder – tinham como função “[...] não mais a discussão e troca de opiniões, o aprendizado e a informação mútuos sobre os negócios públicos, mas espionar umas às outras e denunciar indiferentemente a todos” (ARENDT, 1990, p. 197).

É certo que essa crítica ao sistema de partidos resulta na crítica de Arendt à moderna democracia, que por sua vez, recebe infindáveis outras críticas. A questão que Arendt traz à baila não é nova e tem a ver com a circunstância de que a representação mitiga a felicidade pública apenas para uns poucos – e a consequência disso é um tipo de oligarquia, ao invés da democracia. Nesse contexto, os partidos não são órgãos populares, como eram os conselhos, “[...] são, ao contrário, os próprios instrumentos eficientes através dos quais o poder do povo é reduzido e controlado” (ARENDT, 1990, p. 215).

A questão pertinente aqui é que Da Revolução iniciou retratando os feitos quase homéricos dos homens das revoluções e foi concluído com o espírito crítico, típico de Hannah Arendt. O espírito revolucionário trouxe, junto de si, as pequenas fagulhas de liberdade política e de felicidade pública vivenciadas pelos gregos e pelos romanos. No entanto, por meio da transformação da liberdade positiva em liberdade negativa, bem como do sistema de conselhos em sistema de partidos, da democracia direta em democracia representativa e da questão social, que tomou o lugar das questões políticas nas revoluções do continente europeu, o que restou das revoluções americana e francesa foi muito pouco, de maneira que a letra do texto de Arendt não deixa esconder que isso se deu visto que “[...] o espírito da revolução [...]  não conseguiu encontrar sua instituição apropriada” (ARENDT, 1990, p. 223) e que passou a afastar-se dos exemplos dos antigos. Conforme já comentado, “[...] a razão pela qual os homens das revoluções se voltaram para a Antiguidade, em busca de inspiração e orientação não foi, de forma alguma, um anseio romântico pelo passado e pela tradição” (ARENDT, 1990, p. 158) e não se acredita que Arendt também volte ao passado em busca disso. Igualmente não se acredita que Arendt desejasse que a polis ou a res publica romana retornasse ao mundo moderno como algo que está – preciosamente – guardado no passado e repentinamente avança no tempo, todavia, diferentemente disso, acredita-se o quanto da tradição Arendt traz junto de si quando pensa os fenômenos modernos, o que não significa de forma alguma que há um repúdio dela por eles, afinal, como diz o poeta, “[...] nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento” (ARENDT, 1990, p. 172). Pelo contrário, a discussão que Arendt abre com relação aos conselhos a coloca lado a lado com os teóricos atuais da democracia e da esfera pública e, apesar das críticas relevantes recebidas de Jürgen Habermas[11], essa discussão permite que Arendt se situe em um locus menos normativo.

Não obstante, na modernidade fica em aberto o jogo no qual a política é jogada e à deriva também permanece sua dignidade – consequência da retirada das questões políticas da esfera pública e do mero usufruir dos bens de consumo que a modernidade nos oferece. Parece não ser à toa que Arendt encerra seu Da Revolução com uma lembrança da Grécia, por meio de Teseu: aquilo que permitia com que os homens suportassem o fardo da vida “[...] era a polis, o espaço das ações livres e das palavras vivas dos homens, aquilo que podia dotar a vida de esplendor” (ARENDT, 1990, p. 224).

aBSTRacT: In On Revolution, Arendt points to the positive political forces reborn through revolutionary movements, but also criticizes what she sees as the negative aspects of these revolutions. She compares the modern elements in these revolutions, which she admired, with Athens and Rome, and celebrates participation in revolutionary councils as a renewal of the ancient Greek polis. Arendt praises the public freedom exalted by these revolutions (especially in the American Revolution) as a reflection of the freedom of the ancients, and compares the American founding with the founding of Rome. Some critics have accused Arendt of focusing too much on the ancients, and thus overemphasizing the negative aspects of modern revolutions. In fact, she does use the ancients as a standard by which to measure the modern, but this does not undermine her larger project. Using the ancients as a standard allows her to highlight the positive aspects of revolution in the modern world.

KEY WORDS: Arendt. Revolutions. Modernity. Greeks and Romans.

referênCIAs

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Recebido em: 03.09.2012

Aceito em: 10.06.2013



[1] Daiane Eccel é doutoranda e bolsista Capes pelo Programa de Pós Graduação em Filosofia da

Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. E-mail: daianeeccel@hotmail.com

[2] O retorno de Arendt à antiguidade clássica é, por vezes, atribuído às influências recebidas de seu antigo mestre, Martin Heidegger, e de sua simpatia com as leituras de Nietzsche. Esse retorno parece não existir por si, mas está diretamente relacionado com as críticas que Arendt tece à modernidade. Para verificar mais sobre as influências de Heidegger e Nietzsche sobre Arendt, consultar, em português: DUARTE, André. Arendt e a modernidade: esquecimento e redescoberta da política. Trans/form/ação. São Paulo, nº 24, p. 349-272, 2001.

[3]  Verificar: “Hannah Arendt was a reluctant modernist, but a modernist nonetheless; who celebrated the universal declaration of the rights of man and citizen; who took it for granted that women were entitled to the same political and civic rights as men; who denounced imperialist ventures in Egypt, India, South Africa, and Palestine; who did not mince her words in her critique of the bourgeoisie and of capitalism or in her condemnation of modern nationalist movements. Furthermore, Arendt celebrated the revolutionary tradition, which she likened to a fata morgana that appears and disappears at unexpected moments in history.” (BENHABIB, 2003, 138-39).

[4] Optamos por fazer uso de uma das primeiras versões de On Revolution, traduzida e publicada no Brasil em 1990. Nesse caso, On Revolution foi traduzido como Da Revolução, porém, gostaríamos de chamar atenção para uma tradução lançada no ano de 2011, que conta com a introdução de Jonathan Schell, cujo título foi traduzido como Sobre a Revolução. Para tanto, conferir: ARENDT, Hannah.

Sobre a Revolução. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

[5] Para verificar a questão da igualdade democrática inerente ao espírito do povo americano, conferir Tocqueville, A Democracia na América, ao qual Arendt também faz inúmeras referências, ao longo de seu texto.

[6] O artigo de Newton Bignotto é bastante interessante, porque foge da obviedade e abre uma perspectiva nova para tentar compreender essa obra de Arendt. Bignotto percebe que a análise arendtiana da Revolução Francesa pode ficar comprometida, já que ela polariza as duas revoluções e associa a primeira diretamente ao nome de Robespierre, juntamente com a violência e a questão social. Isso faz com que Arendt veja problemas que ela afirma serem inerentes à Revolução Francesa (como a necessária identidade entre revolução e terror), os quais comprometem desde o início o curso da revolução. Apesar de Bignotto assinalar essa limitação do texto de Arendt, seu mérito consiste em apontar para questões do republicanismo, ao voltar suas atenções para o problema da constituição, assim como para a “[...] dimensão simbólica e imaginativa da fundação” (2011, p. 52). Para tanto, conferir: BIGNOTTO, Newton. Hannah Arendt e a Revolução Francesa. O que nos faz pensar. nº 29, p. 41-58, 2011. Disponível em: http://www.oquenosfazpensar.com/web/index.php/numero/ultima. Acesso em: 5 de junho de 2013.

[7] Sobre a questão do social, recomenda-se verificar o artigo de CORREIA, Adriano. A questão social em Hannah Arendt: apontamentos críticos. Revista de Filosofia [Curitiba]. Curitiba, v. 20, n. 26, p. 101-112, 2008. 

[8] Wellmer publicou o mesmo artigo duas vezes com pequenas diferenças. Uma delas consta no livro editado por Steven E. Aschein, de 2001, e posteriormente se tornou também um capítulo no Cambridge Companion to Hannah Arendt, publicado em 2005. Para ambos, conferir: WELLMER, Albrecht. Hannah Arendt on Revolution. In: ASCHEIN, Steven (Org.). Hannah Arendt in Jerusalem. Berkeley: University of California Press, 2001, p. 33-46. WELLMER, Albrecht. Hannah Arendt on Revolution. In: VILLA, Dana (Org.) The Cambridge Companion to Hannah Arendt. Cambridge:

Cambridge University Press, 2005, p. 220-241.

[9] Em Da Revolução, não aparecem as tradicionais críticas de Arendt a Platão, mas, nesse contexto, elas caberiam, pois, se as opiniões (doxai) são valorizadas nos sistemas de conselhos, fica evidente que a verdade (alethéia) não tem lugar na política. Da mesma forma, para Platão, a democracia, ou seja, o governo do povo, não era adequado, porque o povo não tinha capacidade de autogoverno, já que  necessitava de um rei-filósofo. Nesse texto, Arendt também se torna uma crítica da democracia, contudo, ela a critica a partir do modo como ela se encontra atualmente, isto é, democracia representativa. As relações de Arendt com a forma moderna de democracia já foram bastante abordadas por alguns de seus comentadores. Entre eles, recomenda-se conferir o texto de ISAAC, Jeffrey C. Oases in the Desert: Hannah Arendt on Democratic Politics. American Political Science Review, Cambridge, v. 88, n.1,  p. 156-168, 1994. Isaac argumenta que, embora Arendt não seja uma teórica da democracia conforme os termos contemporâneos, ele discorda da leitura de alguns comentadores que afirmam haver um hiato entre a democracia e a teoria de Arendt, que, às vezes, é entendida como uma espécie de elitismo político. Ele não nega que haja um elitismo político em Da Revolução, todavia, em lugar de representar um sinal de antidemocracia, tal concepção assinala apenas para uma forma diferente de democracia, que também é relevante para a teoria da democracia atual. 

[10]  Para uma comparação entre Roma e Atenas, conferir TAMINIAUX, Jacques. Athens and Rome In: VILLA, Dana (Org.). The Cambridge Companion to Hannah Arendt. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 163-176. A argumentação de Taminiaux se dá com base nos elogios que Arendt tece a Roma, de modo a afirmar que, a despeito de Atenas ter um grande papel na teoria arendtiana, a ação não se realizou por completo em Atenas, mas o fez em Roma. O fato é que a ação necessita de uma espécie de redenção, a qual pode ser efetivada pelo ato de prometer, pela faculdade da promessa, mas isso era desconhecido dos gregos e somente conhecido pelos romanos. A promessa contribui para a efetivação de um corpo político e, por isso, em Roma, legislação e fundação são possíveis.

[11] Em seu texto O conceito de poder de Hannah Arendt, Habermas estabelece comparações entre o conceito de poder em Arendt, Weber e Parsons. No entanto,  tece críticas a Arendt, afirmando que o olhar que Arendt lança à democracia atual “[...] não decorre de pesquisas equilibradas, mas de uma construção filosófica” (HABERMAS, 1993, p. 109).