Do Deserto De Gelo Da abstração ao FilosoFar ConCreto: CorresponDênCia aDorno-benjamin (19281940)

Aléxia Bretas[1]

Resumo: Trata-se de uma resenha crítica da controvertida correspondência entre Theodor W. Adorno e Walter Benjamin – dois dos mais expressivos representantes da chamada primeira geração de teóricos críticos associados ao Instituto de Pesquisa Social. Além de remeter suas cartas à respectiva experiência intelectual de cada um deles, este artigo busca oferecer uma análise fundamentada dessa instigante interlocução filosófica, para além da rígida bipolarização entre “adornianos” e “benjaminianos”, que, via de regra, tem predominado em sua recepção especializada, dentro e fora do Brasil. Para isso, procura-se enfatizar o contraponto produtivo entre a Dialética negativa de Adorno e o projeto das Passagens de Benjamin, tomando como centro gravitacional o processo construtivo deste último trabalho – cerne tanto das afinidades, quanto das insolúveis dissonâncias entre os dois autores. Esta pesquisa tem o apoio da FAPESP.

PalavRas-Chave: Adorno. Benjamin. Correspondência. Passagens. Imagens dialéticas.

Numa situação sem saída, não tenho outra escolha senão pôr fim a tudo. É num vilarejo nos Pirineus onde ninguém me conhece que minha vida vai se acabar. Peço-lhe que transmita meus pensamentos ao meu amigo Adorno e lhe explique a situação em que me vi colocado. Não me resta muito tempo para escrever todas aquelas cartas que eu desejara. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 476).

Registradas em 25 de setembro de 1940, as derradeiras palavras de Walter Benjamin trazem à luz uma significativa contingência: o encerramento de sua correspondência com Adorno coincide, tragicamente, com o fim de sua própria vida. Dirigidos ao estimado amigo, seus últimos pensamentos expressam, pois, a enorme importância adquirida por essa instigante – e não menos polêmica – amizade, cujas ambivalências e tensões internas se encontram reveladas em 121 cartas, escritas ao longo de 12 anos que marcaram indelevelmente a história do século XX.

Publicadas originalmente nos canônicos Gesammelte Schriften da Suhrkamp Verlag e vertidos para o português pela Editora UNESP, a Correspondência 1928-1940 / Theodor W. Adorno, Walter Benjamin surge como parte de uma série de volumes dedicados à divulgação de obras adornianas até então desatualizadas ou indisponíveis aos leitores brasileiros. É o caso de quatro coletâneas exclusivas dessa Coleção: Escritos sobre música, Escritos sobre sociologia, Indústria Cultural e Escritos de psicologia social e psicanálise.

Entre seus inumeráveis méritos estão o de oferecer um substancial aparato crítico para que um público ainda não inteiramente familiarizado com a língua alemã tenha, de fato, condições de se deparar com um dos documentos mais elucidativos para uma otimização fundamentada dos debates universitários, em áreas tão distintas quanto a filosofia, a literatura, as ciências sociais, as artes, a comunicação e a psicologia.

Com tradução de José Marcos Mariani de Macedo, introdução de Olgária Matos e notas de contextualização preparadas para facilitar uma recepção crítica informada pela obra de seus autores, este volume é lançado como uma das publicações mais oportunas para se repensar os dilemas contemporâneos iluminados pelo prisma de um profícuo diálogo epistolar destilado em prosa filosófica elegante, rigorosa e precisa.

Ademais, uma análise atenta de seu conteúdo tem muito a contribuir para neutralizar a rígida polarização que, via de regra, predomina no meio acadêmico internacional, em geral, e brasileiro, em particular, com a radicalização dos irredutíveis antagonismos entre os dois teóricos na forma de uma aguerrida disputa intelectual mantida entre seus respectivos especialistas. Assim, enquanto os “adornianos” são unânimes em acusar a insolúvel falta de rigor, consistência e fundamentação nos escritos de Benjamin, os “benjaminianos”, por seu turno, se ressentem pela negatividade e ortodoxia das críticas de Adorno, questionando a legitimidade e os limites de sua propalada amizade pelo colega. Nesse sentido, tanto uns quanto outros têm a ganhar com a cuidadosa tradução desse rico material de inestimável valor biográfico, filosófico e histórico.

as Passagens

Do ponto de vista da produção benjaminiana propriamente dita, o intervalo compreendido entre os anos de 1928 e 1940 equivale quase que na íntegra ao longo período de redação do trabalho das Passagens – controvertido projeto interdisciplinar, a partir de 1935 financiado pelo Instituto de Pesquisa Social. Através dele, Benjamin pretendia levar a cabo uma apresentação alegórica da modernidade capitalista com base nos sonhos e fantasmagorias materializados na cidade de Paris – designada pelo autor como “capital do século XIX”.

Dessa maneira, a primeira fase de seus estudos tem início em meados de 1927 como uma espécie de desdobramento espontâneo de Rua de mão-única (1926) – obra composta de pequenas narrativas autobiográficas, vale dizer, seminalmente influenciadas pela leitura de Proust e dos textos surrealistas. Com o subtítulo de “Uma feeria dialética”, tais manuscritos encontram-se reunidos sob a rubrica “Passagens Parisienses I e II” e constituem, grosso modo, a matriz das muitas versões posteriores redigidas a pedido de seus patrocinadores e acompanhadas de perto pelas vigilantes críticas adornianas. Ao reportar-se às origens de sua pesquisa, o próprio Benjamin pontua parte considerável de sua trajetória, da “ingenuidade rapsódica” dos primeiros ensaios às aporias insolúveis dos últimos esboços, destacando a figura de Bertolt Brecht como um verdadeiro divisor de águas em sua experiência intelectual.

Se alguma vez pus em prática meu adágio favorito de Graciano, “Procure em todas as coisas trazer o tempo para o seu lado”, então creio tê-lo feito na maneira como lidei com esse trabalho. Lá está Aragon bem no seu início – Le paysan de Paris, do qual nunca pude ler mais que duas ou três páginas na cama sem que meu coração começasse a bater tão forte que eu precisasse pôr o livro de lado. Que advertência! Que indício dos anos e anos que haveriam de escoar-se entre mim e tal leitura. E no entanto meus primeiros esboços para as Passagens datam dessa época. Depois vieram meus anos em Berlim, nos quais a melhor parte de minha amizade com Hessel foi alentada com inúmeras conversas sobre o projeto das Passagens. Foi nessa época que surgiu o subtítulo “Uma feeria dialética” – hoje não mais em vigor. Esse subtítulo sugere o caráter episódico da produção tal como concebia na época e cujas relíquias – como hoje reconheço – não continham nenhuma garantia suficiente em termos formais e linguísticos. Mas essa época foi também a de um filosofar despreocupadamente arcaico, preso à natureza. Eram as conversas com você em Frankfurt, e particularmente aquela sobre assuntos “históricos” no chalé suíço, e mais tarde aquela outra, seguramente histórica, à mesa com você, Asja, Felizitas e Horkheimer, que marcaram o fim desta época. Dali em diante não houve mais ingenuidade rapsódica. Essa forma romântica fora ultrapassada num atalho do percurso, mas naquele tempo, e ainda anos afora, eu não tinha ideia de outra. E esses anos viram ainda o início das dificuldades externas que me revelaram de forma quase providencial que as minhas próprias dificuldades internas já me haviam compelido a um modo de trabalhar um tanto hesitante, dilatório. Seguiu-se então o decisivo encontro com Brecht, e com ele o ápice de todas as aporias relativas a esse trabalho, que mesmo então eu recusava abandonar. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 155-156).

Malgrado o caráter “hesitante” e “dilatório” de seu processo construtivo, o “alento” para levar adiante o projeto das Passagens deve-se, em grande medida, ao novo fôlego imprimido pelo restabelecimento de seu decisivo diálogo com Adorno. “Minhas Passagens tornaram a reviver, e foi você quem soprou as brasas – que não poderiam estar mais vivas do que me sinto eu próprio” (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 81), escreve Benjamin, em carta de 09.03.1934. No mês seguinte, é a vez de Adorno, exultante pela retomada da pesquisa do colega, insistir, mais uma vez, que as Passagens “[...] devem ser escritas a todo custo, rematadas e ultimadas, com toda a coerência e articulação precisa” (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 94). Ainda de acordo com o filósofo, para que essa idiossincrática “obra-prima” de “grande alcance teórico” seja desenvolvida e finalizada a contento, faz-se imperativa a drástica ruptura com a prejudicial influência brechtiana, manifesta através de uma persistente tendência à imediata apropriação da teoria marxista de forma “externa” e “submissa”.

O que você diz sobre concluir o período de ensaio e finalmente retomar o trabalho das Passagens é de fato a notícia mais exultante que ouço de você em muitos anos. Você sabe que realmente vejo nesse trabalho parte de nossa predestinada contribuição à prima philosophia, e não há nada que eu mais deseje senão vê-lo capaz, após longa e dolorosa hesitação, de levar a cabo essa obra, fazendo jus a tema tão prodigioso. E se eu puder imprimir meu próprio alento a esse trabalho, sem que você tome isso como imodéstia de minha parte, ele será este: que o trabalho se consume sem receios no conteúdo teológico e em toda a literalidade de suas teses mais extremas, tudo o que nela já estava contido (sem receios, digo, com respeito às objeções daquele ateísmo brechtiano que um dia talvez nos caiba redimir como uma espécie de teologia inversa, mas de modo algum acolher!); e mais, que em atenção à sua própria abordagem você se abstenha decididamente de associar seus pensamentos à teoria social de uma forma externa. Pois quer me parecer aqui, onde estão em jogo temas absolutamente graves e decisivos, é preciso falar em alto e bom som e descer à toda profundidade categórica do assunto, sem descurar da teologia; e então, nesse nível decisivo, creio que poderemos nos valer tanto mais da teoria marxista quanto menos formos forçados a apropriá-la externamente, de maneira submissa: aqui o “estético” pode intervir na realidade muito mais a fundo, de modo revolucionário, do que a teoria de classes como deus ex machina. Parece-me, portanto, indispensável que justamente os temas mais remotos, o do “sempre-igual” e do inferno, sejam expressos com força plena, e igualmente que o conceito de “imagem dialética” seja exposto em toda a sua claridade. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 113).

Ao mencionar sua “predestinada contribuição à prima philosophia”, Adorno reconhece a existência de um certo “projeto comum” entre os dois teóricos, não obstante as irredutíveis nuances e particularidades inerentes à produção de cada um deles. Em carta de 17.12.1934, onde comenta o ensaio benjaminiano sobre Kafka, o filósofo confidencia:

Não tome como imodéstia de minha parte se começo por confessar que nossa concordância nos fundamentos filosóficos nunca marcou tão plenamente minha consciência quanto agora. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 127).

E, a despeito das afinidades, acrescenta:

Se você mesmo descreve o trabalho como “incompleto”, seria muito ingênuo e convencional de minha parte contradizê-lo. Você está cansado de saber o quanto o significado da obra está irmanado ao caráter fragmentário. Mas isso não quer dizer que o lugar no qual está incompleto não possa ser identificado – justamente porque esse trabalho precede as Passagens. Pois esta é sua incompletude. A relação entre história primeva e modernidade ainda não foi alçada a conceito, e em última instância o sucesso de uma interpretação de Kafka dependerá disso. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 130).

Bastante perspicaz, Adorno vislumbra no desenvolvimento do nexo conceitual entre as noções de “história primeva” (Urgeschichte) e “modernidade” o cerne mesmo das graves dificuldades teóricas a serem enfrentadas pelas Passagens – e, com certeza, um dos pontos mais diretamente responsáveis pelas incontornáveis objeções, desacordos e dissonâncias verificadas entre os dois filósofos, ao longo dos anos.

Da metaFísiCa à DialétiCa

Na verdade, é preciso que se entenda o pleno sentido dos incisivos comentários adornianos à luz do projeto teórico levado a cabo pelo próprio Adorno – e cuja forma final só seria alcançada com a publicação de sua Dialética negativa, em 1966. Com esse livro, o filósofo pretende, com a força do sujeito, libertar a dialética de uma certa tendência afirmativa, dando corpo ao que chama de “antissistema” orientado pela crítica autorreflexiva do conceito. Nas palavras do próprio autor, “[...] com meios logicamente consistentes, ela [a dialética negativa] se esforça por colocar no lugar do princípio de unidade e do domínio totalitário do conceito supraordenado a ideia daquilo que estaria fora do encanto de tal unidade” (ADORNO, 2009, p. 22). Mediante um diálogo com a tradição filosófica de Platão a Heidegger, ele busca romper com a tirania do princípio da identidade através do que se refere como virada para o primado do objeto. O resultado é um desdobramento incansável daquilo que já foi apontado por Habermas como sua insolúvel contradição performativa: “[...] o esforço de ir além do conceito por meio do conceito” (ADORNO, 2009, p. 22).

Nesse percurso, as trajetórias de Adorno e Benjamin se cruzam em trechos determinados, tomando, vale dizer, direções sensivelmente divergentes. Não por acaso, Adorno cita um comentário de Benjamin, feito ainda em , sobre a necessidade, compartilhada por ambos, de “[...] atravessar o deserto de gelo da abstração para alcançar definitivamente o filosofar concreto” (ADORNO, 2009, p. 7-8). Nesse ponto, tanto um quanto outro são movidos pelo mesmo objetivo comum, qual seja, sem recorrer a fórmulas ou categorias pré-fabricadas, deter-se sobre o heterogêneo como expediente de negação aos modelos reificados de conceituação, em última instância, pautados no princípio de identidade. Ao indicar notáveis analogias entre os fundamentos epistemológicos do projeto das Passagens e a premissa gnoseológica do livro do barroco, Benjamin chama atenção para a continuidade entre suas ideias de juventude e as inquietações de maturidade, destacando a relação de parentesco indelével entre as “preocupações metafísicas” do Trauerspielbuch e as “refundições” dialéticas do “Exposé de 1935”.

O exposé, que em nenhum ponto renega minhas concepções, ainda não é, evidentemente, um perfeito equivalente para elas em todos os aspectos. Assim como a exposição completa dos fundamentos epistemológicos do livro sobre o barroco seguia-se à sua comprovação no material, tal será o caso aqui. Mas não quero com isso me comprometer a apresentar tal exposição na forma de um capítulo à parte, seja no final, seja no começo. Essa questão permanece em aberto. Mas o exposé contém certas alusões decisivas a esses fundamentos, as quais mal lhe escaparão e nas quais você reconhecerá os temas evocados na sua última carta. Há mais: analogias entre esse livro e meu livro sobre o drama barroco emergem agora com nitidez muito maior do que em todos os estágios anteriores do projeto (tanto que eu próprio me surpreendi). Isso haverá de me permitir ver nessa circunstância uma confirmação particularmente significativa do processo de refundição que conduziu o grosso das idéias, originalmente movidas por preocupações metafísicas, rumo a um agregado em que o mundo das imagens dialéticas é imune a qualquer objeção erguida pela metafísica. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 157).

Não é decerto fortuito que a malfadada tese de habilitação de Benjamin tenha início precisamente com uma questão central também em toda a obra de Adorno: a da apresentação (Darstellung). A polêmica introdução do livro do barroco, contudo, está longe de conseguir levar a bom termo seu debate contra as insuficiências do sistema filosófico defendido como norma pelo sectário mandarinato alemão. Tal limitação não passa despercebida a Adorno, que justifica o que aponta como “derrotismo ante o próprio pensamento” atribuído a Benjamin em função de “um resto de positividade não-dialética” que o autor teria levado consigo da “fase teológica” do livro do barroco para a “fase materialista” do trabalho das Passagens. Ao se referir a este último, Adorno destaca a incomparável justaposição entre “capacidade especulativa” e “proximidade micrológica aos conteúdos objetivos” presentes nessa obra permanentemente inacabada, censurando no colega a afirmação de que sua pesquisa só poderia ser levada a cabo de modo “ilicitamente ‘poético’”. Segundo Adorno, “[...] essa declaração de capitulação designa a dificuldade de uma filosofia que não quer abandonar seu caminho tanto quanto o ponto em que seu conceito precisa ser levado adiante” (ADORNO, 2009, p. 24). Para isso, a apresentação não é algo apenas ornamental, indiferente ou extrínseco, mas imanente à própria constituição de um pensamento que se pretende rigorosamente filosófico. Ela, por sua vez, não deve ser um fim em si mesma, senão atender ao propósito último de uma aproximação impreterivelmente mediada de seus conteúdos. Assim, de acordo com a argumentação adorniana, expressão e acuro lógico seriam os polos complementares de uma dinâmica em dois tempos, a qual parte necessariamente do momento miméticoaconceitual, antes de sua objetivação final por meio da apresentação, ou seja, da linguagem. Segundo Adorno, sem o momento expressivo e o compromisso com a apresentação, a filosofia corre o risco de ser incorporada à ciência positiva; já sem o acuro lógico, o rigor filosófico pode degenerar em mera contingência diletante cristalizada em visão de mundo. Ele é taxativo: “O que é dito de modo frouxo é mal pensado” (ADORNO, 2009, p. 24).

Ora, Benjamin não ignora, em absoluto, a importância capital desempenhada pelo momento construtivo no processo de formalização do conhecimento filosófico, em geral, e do trabalho das Passagens, em particular. Tanto que, em resposta às observações de Adorno relativas à primeira versão do “Exposé de 1935”, ele próprio admite:

Se Wiesengrund tem suas reservas quanto ao modo de divisão dos capítulos, ele acertou na mosca. A essa divisão ainda falta o momento construtivo. Está em aberto por enquanto se isso há de ser buscado na direção que ele sugere. Mas uma coisa é certa: o momento construtivo significa para esse livro o que, para a alquimia, significa a pedra filosofal. A única coisa que de fato se pode dizer por ora é que ele terá de articular a oposição em que o livro se encontra com relação à pesquisa histórica prévia e tradicional numa maneira nova, lapidar e bem simples. Como? Eis a questão. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 194).

Desse modo, considerando a gravidade tanto das contingências pessoais quanto das circunstâncias históricas, seria no mínimo bastante injusto postular, sem maiores explicações a respeito, a falta de precisão ou de rigor científico em relação ao trabalho das Passagens. Como se sabe, a pesquisa em questão nunca chegou a ser finalizada, constituindo-se antes a partir de notas e fragmentos dispersos, cujo plano de construção foi apenas esboçado e por diversas vezes interrompido, revisto e alterado, a fim de atender às diretrizes teóricas de seus patrocinadores. Diante da ressalva, de fato, é preciso reconhecer a procedência de grande parte das críticas adornianas, no que concerne à precariedade das elaborações de Benjamin em sua apresentação da modernidade – ou, em termos benjaminianos, da história primeva do século XIX, o que absolutamente não invalida algumas pertinentes intuições as quais ainda carecem de um desenvolvimento à altura de seu irredutível potencial teórico.

materialismo Com imaGens?

Esse parece ser o caso de reflexões críticas não inteiramente concluídas que envolvem categorias ainda incipientes, nas Passagens, como a das controvertidas imagens dialéticas (dialektische Bilder). A própria elaboração do termo revela-se em franco descompasso com a posição iconoclasta assumida por Adorno quanto à definitiva rejeição pelas configurações imagéticas, mesmo como recurso propedêutico. No parágrafo da Dialética negativa onde aborda a relação do materialismo dialético com a teoria do conhecimento – não por acaso, intitulado “Materialismo sem imagens” –, o filósofo denuncia a atual subjugação da consciência pela “ditadura do proletariado”, acusada de conspirar em prol de uma terrível “regressão universal”. Ao apontar a reversão do materialismo dominante na mesma barbárie que deveria evitar, Adorno coloca em primeiro plano a tarefa de trabalhar incansavelmente contra isso, através do comprometimento de uma teoria crítica sempre alerta às distorções derivadas da crença na doutrina do reflexo: ou seja, aquela que postula que o pensamento é pura e simplesmente uma projeção especular da coisa visada por ele. Ao contrário de uma “mitologia materialista” à la Epicuro, o filósofo defende que a consciência não reflete pequenas imagens emitidas pela matéria, senão se dirige à coisa mesma. Afirmando que tudo aquilo que se vincula à imagem permanece miticamente cativo como “culto aos ídolos”, ele é enfático: “A intenção iluminista do pensamento, a desmitologização, elimina o caráter imagético da consciência” (ADORNO, 2009, p. 175). Em linhas gerais, Adorno acusa a doutrina do reflexo de despotencializar as prerrogativas do sujeito, dessa forma, indevidamente reduzido a um obtuso espelhamento do objeto. “Somente uma consciência infatigavelmente reificada pretende ou faz com que os outros creiam que ela possui fotografias da objetividade. Sua ilusão transforma-se em imediaticidade dogmática” (ADORNO, 2009, p. 175). Em vez de dispor de “um álbum de seus objetos”, a teoria só se realiza mediadamente. Por isso, sem o sujeito, sua efetivação prescinde do momento crítico sem o qual o pensamento especular seria, no limite, desprovido de reflexão. Para Adorno, a inserção de imagens entre a consciência e aquilo que ela pensa deve ser rejeitada com firmeza por incorrer ingenuamente nos mesmos equívocos perpetuados pela tradição idealista. Daí o filósofo ser resolutamente refratário à introdução de um corpo estranho de representações no lugar a ser ocupado pelo objeto do conhecimento. “Só sem imagens seria possível pensar o objeto plenamente” (ADORNO, 2009, p. 176). Enfim, de acordo com os princípios da dialética negativa, a interdição teológica aos ícones religiosos encontra sua correspondência na secularização da proibição das imagens pelo materialismo histórico: seu insuprimível teor de negatividade impede que a utopia seja representada positivamente.

Benjamin, porém, não ignora a urgência de uma crítica rigorosa às fórmulas e lugares-comuns repetidos à exaustão pelo materialismo vulgar instrumentalizado pelos partidos comunistas. No entanto, em seu afã de combater a retórica monolítica de uma certa teoria marxista anacrônica e doutrinária, o autor das Passagens não compactua com Adorno em sua igualmente dogmática rejeição pelas potencialidades inerentes às configurações imagéticas. Pelo contrário. É precisamente na direção da dimensão da visibilidade para onde Benjamin se volta, sinalizando um dos pontos mais marcantes de seu afastamento tanto dos cânones marxistas, quanto da própria teoria adorniana, pois, enquanto a Dialética negativa é categórica ao defender o caráter necessariamente “sem imagens” do materialismo, Benjamin chama atenção para o que avalia como um problema central do Diamat: “Será que a compreensão marxista da história tem que ser necessariamente adquirida ao preço de sua visibilidade [Anschaulichkeit]?” (BENJAMIN, 2006, p. 503). Ou, em outras palavras, “[...] de que maneira seria possível conciliar um incremento da visibilidade com a realização do método marxista?” (BENJAMIN, 2006, p. 503).

imaGens DialétiCas

De certa forma, são precisamente essas dúvidas metódicas que impulsionam grande parte dos esforços benjaminianos na direção de uma ainda incipiente teoria das imagens dialéticas ou de uma “dialética na imobilidade” (Dialektik im Stillstand). Na famosa carta de Hornberg, escrita por Adorno a fim de comentar o “Exposé de 1935”, o filósofo resume sua avaliação do esquema geral que, a despeito das críticas, traz em si “as mais relevantes concepções”, tomando como núcleo irradiador os complexos designados pelas rubricas de “história primeva do século XIX”, “imagem dialética” e “configuração do mito e modernidade”. Em sua apreciação, ele parte do mote “Cada época sonha a seguinte”, para disparar sua ofensiva contra as construções “adialéticas” mobilizadas por Benjamin para articular sua apresentação do século XIX, com base no modelo do sonho como categoria-chave, na qual o moderno se funde ao arcaico, assim como o “novo” ao “sempre-igual”. Adorno pondera:

Se você desloca a imagem dialética para o interior da consciência como “sonho”, não somente priva de mágica o conceito, domesticando-o, mas também o despe precisamente daquele crucial poder objetivo que o legitimaria em termos materialistas. O caráter fetichista da mercadoria não é um fato da consciência; é antes dialético no seu eminente sentido de que produz consciência. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 177).

Por isso, segundo o autor, a mediação entre “sociedade” e “psicologia” deve ser buscada, não à la Reich ou Fromm, senão, dialeticamente, nos próprios conceitos de “mercadoria” e “fetiche”. Disso resulta que as configurações oníricas devem ser elucidadas, não em termos de “consciência” ou “inconsciência”, mas, antes, com base na categoria do fetiche da mercadoria como o verdadeiro correlato da reificação. Ele escreve: “Não cabe assim que a imagem dialética seja deslocada para a consciência como sonho; antes, cabe que o sonho seja rejeitado por meio da construção dialética e que a própria imanência da consciência seja entendida como constelação da realidade” (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 178). E, mais adiante, questiona:

Se o desencanto da imagem dialética como “sonho” só faz psicologizá-la, então ela cai inevitavelmente sob o encanto da psicologia burguesa. Pois quem é o sujeito desse sonho? No século XIX, com certeza ninguém mais senão o indivíduo; mas em cujos sonhos não se podem ler em retratos imediatos nem o caráter fetichista nem seus monumentos. Daí então ser invocada a consciência coletiva, mas receio que na presente versão esse conceito não se distinga do de Jung. Ele está aberto a críticas de ambos os lados: da perspectiva do processo social porque hipostasia imagens arcaicas, ao passo que as imagens dialéticas são geradas pelo caráter-mercadoria, não em algum ego coletivo arcaico, mas em meio a indivíduos burgueses alienados; e da perspectiva da psicologia porque, como diz Horkheimer, um ego de massas só existe propriamente em terremotos e grandes catástrofes, ao passo que a mais-valia objetiva prevalece nos indivíduos e contra os indivíduos. A consciência coletiva só foi inventada para desviar a atenção da verdadeira objetividade e seu correlato, a subjetividade alienada. Cabenos polarizar e dissolver dialeticamente essa “consciência” em termos de sociedade e indivíduo, e não galvanizá-la como correlato imagético do caráter-mercadoria. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 179-180).

Depois de elencar detalhadas objeções ao “Exposé”, o próprio Adorno ensaia algumas formulações preliminares em sua improvisada tentativa de fundamentar as reflexões benjaminianas nas categorias de “sociedade” e “indivíduo”, desse modo reconciliando o “momento do sonho” – entendido como o polo subjetivo dessa dialética – com a concepção geral de sua teoria.

Na medida em que o valor de uso das coisas perece, as coisas alienadas são tornadas ocas e passam a adquirir sentidos cifrados. A subjetividade apropria-se deles infundindo-lhes intenções de desejo e ansiedade. Pelo fato de fazerem as vezes de intenções subjetivas, as coisas defuntas se apresentam como imperecíveis e eternas. Imagens dialéticas são constelações entre coisas alienadas e sentidos insuflados, detendo-se num instante de indiferença entre morte e sentido. Enquanto as coisas são despertadas na ilusão para o que há de mais novo, a morte transforma os sentidos no que há de mais antigo. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 191-192).

Suas elaborações chamam atenção não apenas para a enorme complexidade do tema tratado, como ainda para sua inquestionável relevância para se pensar os novos dispositivos de “reificação” e “alienação” surgidos na sociedade de consumo, vale dizer, para além das fórmulas propaladas ao infinito pelas ortodoxias tanto marxista quanto freudiana. Ao insistir na imbricação entre “coisas alienadas” e “sentidos insuflados”, Adorno confirma a justaposição entre “o mais novo” e “o mais antigo” como uma das pedras angulares para se compreender o peculiar modus operandi, através do qual as figurações oníricas aparecem como fantasmagorias no contexto das relações sociais produzidas e reproduzidas pela ordem vigente. Naturalmente, ele próprio não chega a uma formulação definitiva, não obstante censurar em Benjamin o caráter provisório ou inacabado de suas reflexões.

Em todo caso, em carta de 16.08.1935, é a vez de este último se posicionar diante das palavras do colega.

Não, não dou aqui uma resposta detalhada, mas, se assim quiser, um acusar o recebimento da carta. Se bem que isso não queira dizer que foram tão somente as mãos que a receberam. E nem apenas a cabeça. Na verdade, o que quero assegurar a vocês dois [Theodor e Gretel Adorno], antes de tocar no que quer que seja, é o prazer que me dá ver nossa amizade ratificada e tantas conversas amigáveis renovadas por essa carta de vocês.

O extraordinário dessa carta, e algo para mim extremamente significativo e frutífero, apesar de toda a precisão e rigor de suas objeções, é o fato de que ela põe o assunto em geral na mais íntima relação com a história prévia das nossas ideias sobre a matéria; cada uma das suas reflexões – ou sua quase totalidade – vai diretamente ao centro produtivo do tema versado, e praticamente nenhuma deixa de fazê-lo. Seja qual for a forma como suas reflexões continuem a afetar meu pensamento, e por pouco que eu saiba sobre o rumo que isso irá tomar, pelo menos duas coisas me parecem certas: primeiro, que sua carta só servirá para favorecer o trabalho e, segundo, que só fará por confirmar e fortalecer nossa amizade. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 192-193).

É, sem dúvida, digno de nota que, em vez de oferecer uma “resposta detalhada” aos implacáveis argumentos adornianos, Benjamin faça questão de ratificar a enorme amizade nutrida pelo casal, a despeito das eventuais discordâncias teóricas. Assim, após reconhecer a precariedade do “momento construtivo” em seu esboço programático, o autor das Passagens não se furta a ensaiar uma hesitante e certamente rudimentar conclusão, ou melhor, “confissão” – que, se, por um lado, não soluciona a totalidade das graves insuficiências apontadas por Adorno, por outro, não deixa de ressaltar sua convicção quanto à centralidade das “figuras oníricas” em sua planta de construção (BRETAS, 2008):

Mas permitam-me concluir, de novo sob pena de fazê-lo na forma de confissão, apontando uma problemática que me parece decisiva. Se levanto esse ponto é porque quero chamar a atenção para duas coisas: primeiro, como a descrição de Wiesengrund da imagem dialética em termos de uma “constelação” me parece pertinente, e, depois, como certos elementos que apontei nessa constelação parecem também indispensáveis, quais sejam, as figuras oníricas. A imagem dialética não copia simplesmente o sonho – jamais foi minha intenção afirmar isso. Mas me parece claro que ela contém as instâncias, as irrupções da vigília, e que é precisamente a partir desses loci que é criada sua figura, como a de uma constelação a partir dos pontos luminosos. Aqui também, portanto, um arco precisa ser retesado, e uma dialética forjada: aquela entre imagem e vigília. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 195).

Ao encerrar sua réplica com a menção à dialética da “imagem” e da “vigília” como uma “tarefa filosófica decisiva” em seus estudos, Benjamin sinaliza o irrevogável afastamento, tanto dos teóricos das imagens arcaicas quanto, ao mesmo tempo, dos autores surrealistas – não obstante ter, com efeito, recorrido a uns e outros como expediente preparatório, sobretudo na primeira fase de seu projeto. No entanto, conforme explicita no arquivo “N” das Passagens, a tarefa de “dissolver a mitologia no espaço da história” – isto é, de contrapor às instâncias oníricas a lucidez da vigília – é precisamente o fator que permite distinguir seus fundamentos teóricos, tanto da “sobrerrealidade” anunciada pelos autores franceses, quanto do “inconsciente coletivo” difundido pela psicologia analítica. Em linhas gerais, tanto uns quanto outros tendem a incorrer em um equívoco de mesma natureza, a saber, ater-se à vertiginosa imediaticidade dos móbiles oníricos, sem, todavia, preocupar-se com as possibilidades concretas subjacentes às instâncias do despertar. Precisamente nesse ponto, aliás, a postura benjaminiana revela sua heterogeneidade fundamental, não apenas em relação a Jung, Klages e Aragon, como também a Hegel e ao materialismo dialético incorporado pelos cânones marxistas.

entre a maGia e o positivismo

Por sinal, tais especificidades são identificadas e postas em relevo com a decisão que resultaria no abandono, ou melhor, no adiamento tático do que Benjamin se refere como “fundamentos epistemológicos” de seu estudo sobre Jung, em proveito de um ensaio “materialista” sobre Baudelaire – o qual, por recomendação do Instituto de Pesquisa Social, viria a assumir o papel de modelo em miniatura de seu projeto principal. É a ele que Benjamin dedica a maior parte do tempo, a partir de 1937, o que explica as significativas alterações sofridas pelo texto do “Exposé”, em sua última versão, redigida em 1939. Com relação a esse trabalho, a interferência de Adorno se revela mais uma vez determinante, o que fica patente em sua carta de 10.11.1938, onde o filósofo formaliza seus incisivos comentários a respeito do primeiro manuscrito sobre Baudelaire.

Não via a hora de o “Baudelaire” chegar, e literalmente devorei-o. Estou cheio de admiração pelo fato de você ter sido capaz de concluí-lo a tempo. E é essa admiração que me torna tanto mais difícil falar daquilo que se interpôs entre as minhas apaixonadas expectativas e o próprio texto. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 399).

Logo após o breve preâmbulo, Adorno, porém, é bastante contundente ao dizer, sem meias tintas, que a leitura do ensaio lhe teria causado “certa decepção”, porque, segundo ele, o trabalho não corresponderia tanto a um “modelo” quanto a um “prelúdio” para as Passagens. “Temas são reunidos, mas não elaborados” (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 399), ele avalia. Ao evocar os ensaios anteriores sobre Proust e os surrealistas, o teórico indaga se a mesma modalidade de “ascese” poderia ser transposta, com o devido rigor, para o projeto em questão.

Panorama e “vestígios”, flâneur e passagens, modernidade e sempre- igual, tudo isso sem interpretação teórica – será esse um “material” que pode aguardar paciente por interpretação sem que seja consumido em sua própria aura? Não conspira antes o conteúdo pragmático desses objetos, quando isolado, de uma forma quase demoníaca contra a possibilidade de sua própria interpretação? Durante nossas inesquecíveis conversas em Königstein, você disse certa vez que cada uma das idéias das Passagens tinha na verdade de ser arrebatada ao domínio onde reina a loucura. Desconfio se a tais ideias seja tão vantajoso emparedá-las atrás de camadas impenetráveis de material como exige sua disciplina ascética. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 400).

Grosso modo, Adorno exige que a abordagem benjaminiana do século XIX preserve sua originalidade, sendo fiel a seus fundamentos, ou seja, tratando as “fantasmagorias” não como simples “visão de caracteres sociais”, mas como “categoria histórico-objetiva” no sentido estrito do termo. Segundo ele, o peculiar método de interpretação requerido pelo texto de Benjamin é, em grande medida, falho, posto recair justamente no mesmo âmbito contra o qual se dirige: “[...] a esfera onde oscilam história e magia” (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 401). Ao mencionar suas deficiências em relação aos cânones materialistas dialéticos, Adorno alega expressar-se “de modo tão simples e hegeliano quanto possível”, quando censura no texto de Benjamin a propensão a relacionar imediatamente os “conteúdos pragmáticos” de Baudelaire, seja com os traços de natureza econômica, seja com os aspectos da história social de sua época. De acordo com sua argumentação, sem a adoção de uma mediação suficiente, torna-se precária a transição do plano das considerações teóricas para a dimensão das representações propriamente concretas. Ele é enfático:

Reputo metodologicamente infeliz dar emprego “materialista” a patentes traços individuais da esfera da superestrutura ligando-os de maneira imediata, e talvez até casual, a traços análogos da infraestrutura. A determinação materialista de caracteres culturais só é possível mediada pelo processo total. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 402-403).

Ao aludir, uma vez mais, à ausência de mediação capaz de relacionar a universalidade das ideias à particularidade dos fenômenos, Adorno desaprova a fragilidade conceitual desse “tipo de materialismo imediato” ou “antropológico”, sedimentado em um locus um tanto quanto suspeito: “a encruzilhada de magia e positivismo”.

Esse tipo de materialismo imediato – eu já ia quase dizendo esse tipo de materialismo antropológico – embute um elemento profundamente romântico, e sinto-o com tanto mais clareza quanto mais abrupto e cru é seu confronto entre o mundo baudelairiano das formas e as necessidades da vida. A “mediação” de que sinto falta e julgo encoberta pela evocação materialista-historiográfica não é outra coisa senão a própria teoria de que seu trabalho se abstém. A abstenção da teoria afeta o material empírico. De um lado, confere-lhe um caráter ilusoriamente épico, e, de outro, priva os fenômenos, experimentados que são de forma meramente subjetiva, do seu verdadeiro peso histórico-filosófico. Dito de outro modo: o tema teológico de chamar as coisas pelo nome tende a se tornar uma apresentação estupefata de meras facticidades. Se se pudesse falar em termos drásticos, poder-se-ia dizer que seu trabalho situa-se na encruzilhada de magia e positivismo. Esse lugar está enfeitiçado. Só a teoria seria capaz de quebrar o encanto: a sua própria teoria especulativa, a sua boa e resoluta teoria especulativa. É no simples interesse dela que lhe chamo a atenção. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 403-404).

Desse modo, Adorno solicita de Benjamin um maior apuro na articulação de sua “boa e resoluta teoria especulativa”, de modo a solucionar a lacuna aberta entre a intenção “teológica” de “chamar as coisas pelo nome” e a exposição “materialista” dos elementos empíricos. De acordo com tal perspectiva, o ensaio sobre Baudelaire teria sido elaborado a partir de uma espécie de “censura prévia” segundo categorias pseudomarxistas que, em última análise, só teriam prejudicado o desenvolvimento de uma produção teórica consistente que estivesse de fato à altura de seu autor. Adorno sintetiza:

Com isso creio tocar no cerne do problema. A impressão que passa todo o seu trabalho, e não só para mim com minha ortodoxia das Passagens, é que nele você violentou a si mesmo. Sua solidariedade com o Instituto, com a qual ninguém se alegra mais do que eu próprio, induziu-o a pagar ao marxismo tributos que não fazem jus nem a ele nem a você. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 404).

ConClusão

Conforme se percebe, as críticas de Adorno ao “Baudelaire” são tão extensas quanto profundas e, compreensivelmente, tiveram um impacto bastante duro, “vibrando como um golpe” junto a seu interlocutor. Afinal, além das dificuldades internas inerentes ao trabalho, Benjamin, precisamente nesse momento, passava por contingências externas da mais pungente gravidade. Em sua resposta ao colega, ele escreve:

A chegada de sua carta, cuja espera, como você pode imaginar, preocupoume muito com o tempo, era iminente quando meus olhos caíram um dia num capítulo de Regius. Sob a rubrica “À espera”, lê-se: “A maioria das pessoas espera cada manhã por uma carta. Que a carta não chegue, ou contenha uma negativa, sucede em geral àqueles que já estão tristes”. Quando dei com essa passagem, estava triste o suficiente para descobrir nela um palpite e um pressentimento sobre sua carta. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 416).

Pois a carta de Adorno trazia não apenas uma série de objeções ao texto apresentado, como ainda oferecia sérios empecilhos à publicação do mesmo na revista do Instituto, o que vinha frontalmente de encontro às expectativas benjaminianas. Este último, contudo, não se deixa abater pelas adversidades, e elabora uma réplica, se não conclusiva, bastante detalhada, às críticas recebidas. Tomando a própria correspondência do amigo como fio condutor, Benjamin mostra que a “compreensível impaciência” com que Adorno teria “vasculhado o manuscrito” em busca de uma elaboração definitiva o teria desviado do tema principal “em alguns aspectos importantes”. Ele então procede a uma cuidadosa refutação de cada um dos tópicos presentes na carta anterior, procurando defender suas ideias, sem descurar das perspicazes observações adornianas, com base em sólida argumentação. Com relação às vicissitudes de sua controvertida “solidariedade com o Instituto”, ele reconhece:

Já que aludi às nossas conversas de San Remo, gostaria de avançar ao trecho no qual você faz o mesmo. Se lá recusei, em nome de interesses produtivos próprios, seguir uma trilha de pensamento esotérica e passar à ordem do dia para além dos interesses do materialismo dialético e do Instituto, havia mais em jogo que solidariedade com o Instituto ou mera fidelidade ao materialismo dialético, mas solidariedade com as experiências que nós todos partilhamos nos últimos quinze anos. Aqui também se trata dos meus interesses mais próprios; não quero negar que eles possam eventualmente tentar violentar meus interesses originais. Eis um antagonismo do qual nem em sonho eu poderia desejar ver-me desonerado. Dominá-lo constitui o problema do trabalho, e esse é um problema de construção. Creio que a especulação só ascende a seu vôo necessariamente audaz com alguma perspectiva de sucesso se, em vez de vestir as asas de cera do esoterismo, buscar a fonte da sua força unicamente na construção. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 413).

Aqui, Benjamin não se furta a reconhecer as questões ainda em aberto em seu trabalho, levando em conta, sim, sua irredutível “fidelidade” ao materialismo dialético bem como ao Instituto de Pesquisa Social, mas também em relação a suas próprias intenções e, principalmente, às “experiências que todos nós partilhamos nos últimos 15 anos”. Reportando-se ao insolúvel antagonismo entre seus interesses “originais” e os atuais, Benjamin toca novamente naquele que, seguramente, pode ser considerado o ponto de maior vulnerabilidade do “Baudelaire”, em particular, e das Passagens, em geral: o “problema da construção”.

Em todo caso, em correspondência redigida já em Nova Iorque, Adorno é bastante efusivo ao parabenizar o colega pelo ensaio sobre Baudelaire, desculpando-se pela “insistente critiquice” e, ao mesmo tempo, deixandose ceder ao “vaidoso orgulho” pelo resultado final, obtido graças a um certo movimento dialético entre a produção benjaminiana e a sua própria.

Você sabe com que entusiasmo li seu “Baudelaire”, e nenhuma das respostas telegráficas e de resto abreviadas que lhe chegaram às mãos a respeito é de modo algum exagerada. Isso vale para Max tanto quanto para mim. Creio que mal é um exagero qualificar esse trabalho como o mais perfeito que você publicou desde o livro sobre o drama barroco e o “Kraus”. Se por vezes tive consciência pesada pela minha insistente critiquice, essa consciência pesada transformou-se então em vaidoso orgulho, e o culpado disso é você próprio – tão dialeticamente está hoje orientada nossa produção. É difícil assinalar algo em particular, tão perto do centro está cada um dos seus elementos nesse trabalho e tão feliz é a construção. (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 448-449).

Não obstante o êxito do artigo sobre Baudelaire, a construção do projeto das Passagens em seu conjunto permanece fragmentária e incompleta. No caso de Benjamin, às dificuldades de ordem propriamente teórica soma-se o peso das circunstâncias históricas responsáveis pela extrema precariedade de sua situação como estrangeiro junto às autoridades francesas sob o jugo alemão. Suas Passagens ficam, pois, para sempre interrompidas – ou, quem sabe, ainda à espera de uma intempestiva “salvação”. O que só vem confirmar a penetrante impressão de Adorno, que, em carta de 29.02.1940, observa: “Estou convencido de que nossos melhores pensamentos são sempre aqueles que não podemos pensar plenamente” (ADORNO; BENJAMIN, 2012, p. 451).

abstRaCt: This is a critical review of the controversial correspondence between Theodor W. Adorno and Walter Benjamin – two of the most significant representatives of the so-called first generation of critical theorists associated with the Institute for Social Research. Refering his letters to the intellectual experience of each of them, this text attempts to provide a reasoned analysis of such intriguing philosophical dialogue far beyond the rigid polarization between “Adornians” and “Benjaminians” – that as a rule has prevailed in their specialized reception inside and outside Brazil. To this end, this article seeks to emphasize the productive counterpoint between Adorno’s Negative Dialectics and Benjamin’s Arcades Project, taking the construction process of this last work as the gravitational center of both affinities and insoluble dissonances between the two authors. This research is funded by FAPESP.

KeYWoRDs: Adorno. Benjamin. Correspondence. Arcades Project. Dialectical images.

reFerênCias

ADORNO, Theodor; BENJAMIN, Walter. Correspondência, 1928-1940/Theodor Adorno, Walter Benjamin. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Editora UNESP, 2012.

ADORNO, Theodor. Dialética negativa. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. Organização: Willi Bolle. Colaboração: Olgária Chain Féres Matos. Tradução do alemão: Irene Aron. Tradução do francês: Cleonice Paes Barreto Mourão.

BRETAS, Aléxia. A constelação do sonho em Walter Benjamin. São Paulo: Humanitas/ FAPESP, 2008.2

Recebido em: 08.01.2013

Aceito em: 21.08.2013



[1] Pesquisadora colaboradora do IEL-UNICAMP e bolsista de Pós-Doutorado da FAPESP. E-mail:

alexia.bretas@gmail.com.