doS SAntoS, leonel ribeiro. RetóRica da evidência: ou deSCArteS Segundo A ordem dAS imAgenS. liSboA: Centro de filoSofiA dA univerSidAde de liSboA, 2013.

Pedro Falcão Pricladnitzky[1]

O livro Retórica da Evidência: ou Descartes segundo a ordem das imagens, de Leonel Ribeiro dos Santos, apresenta uma diferente abordagem da filosofia cartesiana. Propõe uma interpretação onde o suposto rompimento do cartesianismo com as fontes medievais e renascentistas precisa ser atenuado. Afasta-se, portanto, da hermenêutica tradicional, que toma Descartes como um racionalista resoluto, caracterizado pela ideia de um conhecimento científico mecanicista, sustentado por uma cadeia de razões certas e evidentes, obtidas através de um método preciso, buscando romper radicalmente com o paradigma da metafísica aristotélico-escolástica, bem como do espírito humanista preconizado pelos pensadores do renascimento.

Ao longo dos seis ensaios que compõem o livro, o autor pretende mostrar elementos importantes do sistema filosófico desenvolvido por Descartes, que constituem uma continuidade com o pensamento medieval tardio e o humanismo desenvolvido no Renascimento. Entre esses elementos, destaca-se a análise de como a retórica e de seus diversos aspectos contribuem de forma fundamental para a compreensão adequada da argumentação das demonstrações propostas pela filosofia cartesiana. A retórica, que é salientada no título do texto de Leonel Ribeiro dos Santos, desfruta de uma revalorização nos manuais de lógica no período de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna. Uma breve observação dos sumários desses manuais indica que não é correto tomar a retórica como mero supérfluo estilístico; na verdade, os seus autores emprestavam um importante papel epistêmico à retórica do discurso filosófico. Em Retórica da Evidência, encontramos a mesma estratégia. O autor tenciona destacar a função positiva da retórica na formação da metafísica cartesiana. Entretanto, esse viés interpretativo não procura se contrapor totalmente à leitura tradicional de Descartes, que teria sido fundada pela obra seminal de Martial Guéroult e predomina nos estudos cartesianos do mundo anglo-saxão. Antes, pretende ser um complemento que visa à compreensão mais profunda da obra desse autor clássico.

Com isso, através de uma mudança de enfoque, a abordagem proposta por Leonel Ribeiro dos Santos procura, por sua vez, atenuar a concepção de Descartes como o filósofo “da ordem das razões” para salientar, como o autor afirma, os espaços desse sistema onde se insinuam o poder da imaginação, a ordem das paixões, a dimensão retórica da obra e do pensamento. Isto é, apontar para as fendas da cadeia das razões que são complementadas por um diferente elemento de demonstração.[2] Essa atitude interpretativa traz à baila a possibilidade de vislumbrarmos Descartes como um pensador revolucionário sem ser intransigente; um pensador capaz de incorporar elementos de diversos movimentos intelectuais, inclusive daqueles a que ele, em alguma medida, se opõe.

Os seis ensaios que compõem o livro, ainda que possuam uma estrutura argumentativa autônoma, estão conectados por essa temática comum: os diversos aspectos em que a obra de Descartes se utiliza de elementos já presentes no pensamento dos antecessores dos quais ele supostamente é crítico. Segundo o autor, destacam-se: a linguagem, a analogia, a poética do espírito, as imagens textuais e as metáforas. Esses elementos são tomados, por sua vez, como diversas apresentações do conceito de retórica, tal como Descartes o compreendeu. Desse modo, “retórica” é a concepção-chave e fio condutor da obra. O autor pretende deslindar e esclarecer as diversas facetas em que a retórica contribui para o estabelecimento do sistema filosófico de Descartes.

O primeiro ensaio analisa os elementos que constituiriam uma filosofia da linguagem cartesiana e como, a partir desses elementos, Descartes também defende a ideia de uma linguagem, ou estilo literário, específico para o discurso filosófico. A primeira parte dessa proposta é capaz de gerar estranhamento aos intérpretes de Descartes, pois o estudo minucioso da estrutura da linguagem e a sua relação com o pensamento não é um tema clássico entre os estudiosos da filosofia cartesiana. Diferentemente de outros filósofos do século XVII, como Locke e Leibniz, por exemplo, Descartes, aparentemente, não torna a linguagem um tópico central em sua filosofia. Yvon Belaval[3] e André Robinet[4] apontam essa ausência, na obra de Descartes. E, ainda que haja uma tendência em identificar a lógica e, em certa medida, a gramática de PortRoyal com o pensamento cartesiano, a questão de quais elementos podem ser correlacionados e de qual a real influência que eles exercem, nessas obras do final do século XVII, está longe de ser um consenso na literatura secundária. Até mesmo Noam Chomsky, autor de Cartesian linguistics, livro em que preconiza um modelo inatista para as estruturas básicas da linguagem e atribui esse modelo à concepção do mental desenvolvida por Descartes, reconhece o tratamento superficial da natureza da linguagem apresentada pelo filósofo: “Descartes dedicou pouca atenção para a linguagem, e as suas pequenas observações são vagas e dão azo a uma diversidade de interpretações”[5].

Na vertente oposta, entretanto, está a interpretação de Leonel Ribeiro dos Santos. Seguindo a linha desenvolvida por Pierre-Alain Cahné[6], defende a ideia de que do fato de a linguagem não possuir uma tematização explícita na obra de Descartes não se segue, sem mais, que ela seja considerada como irrelevante para seu sistema filosófico. Acredita que, tomadas em conjunto, as passagens onde Descartes discute a linguagem representam um arcabouço conceitual suficiente para formar uma filosofia da linguagem propriamente cartesiana. Assume, por sua vez, que o pensamento de Descartes é essencial para o desenvolvimento dos textos acerca da lógica e da linguagem em PortRoyal. Tal valorização da linguagem aproximaria Descartes da concepção filosófica renascentista. Mas é preciso destacar que há tal concepção em Descartes. O autor, nesse sentido, procura explorar a concepção cartesiana de linguagem através da tese defendida na Quinta Parte do Discurso do Método[7], onde a linguagem é tomada como um sinal distintivo da racionalidade e a consequente irredutibilidade do sujeito pensante a um autômato. O que diferencia o homem dos demais animais ou autômatos é o pensamento. A linguagem genuína, a capacidade semântica de compreensão e formação de conceitos, é exclusiva aos homens, sendo o signo que permite o reconhecimento de uma faculdade pensante subjacente.

No centro da discussão a propósito da natureza da linguagem em Descartes, sustenta o autor, encontramos a sua inter-relação com o estabelecimento da linguagem apropriada à filosofia. Descartes faz questão de notar que as Meditações Metafísicas são escritas através da via analítica de demonstração, sendo essa a estratégia adequada para apresentar o caminho da descoberta. Nas Segundas Respostas[8], Descartes ressalta: “A maneira de demonstrar é dupla: uma se faz pela análise ou resolução, e a outra pela síntese ou composição. A análise mostra o verdadeiro caminho pelo qual uma coisa foi descoberta e revela como os efeitos dependem da causa...”

Tomando essa afirmação de Descartes como a maneira correta de se fazer metafísica, partindo dos efeitos em direção às causas, conduzindo o leitor a descobrir por ele mesmo a verdade e, por conseguinte, desenvolvendo uma ciência por ele mesmo, o estilo literário, ou linguístico, que deve estar associado ao modo de escrita das Meditações adquire, assim, grande importância para a compreensão correta da obra. Por sua vez, a eventual investigação das razões que levaram Descartes a adotar a via analítica e não a sintética trará uma compreensão ainda mais precisa do texto das Meditações. Nesse sentido, o autor defende, a obra de Descartes constitui um campo privilegiado para a reflexão a propósito da prática linguística em filosofia. Nesse ensaio, ele se propõe responder, portanto, às seguintes perguntas: 1) Que pensa Descartes da linguagem e como vê, em geral, a relação entre pensamento e linguagem? 2) Como encara o filósofo o problema da necessidade de uma linguagem filosófica correspondente à ideia da verdadeira filosofia? Designadamente, pode ele com razão ser responsabilizado pelo projeto moderno de matematização do pensamento, não só no nível do método, mas também no nível da forma e expressão literária da filosofia? 3) Considerada a filosofia enquanto objeto literário, como realiza a escrita cartesiana a aliança entre a forma e o conteúdo? Dito de outro modo: qual a parte da retórica e do estilo, no pensamento cartesiano? 4) Finalmente, poderia ainda atender-se à poética do pensamento cartesiano, tentando-se captar a lei que rege a sua economia própria, que determina o seu peculiar campo semântico, a sua estratégia de invenção e exposição, a tópica ou a rede das suas comparações e analogias.[9]

No segundo ensaio do livro, encontramos uma análise que pretende identificar a origem das atribuições de pureza e autonomia à racionalidade em Descartes. Afirmar que os sentidos e o mundo corpóreo são um empecilho para o funcionamento adequado do intelecto humano e que é necessário, por assim dizer, uma espécie de esforço para evitá-los na atividade filosófica, não é uma tese exclusiva a Descartes. Possivelmente, tal posição possui a sua origem nas doutrinas platônicas e neoplatônicas. A peculiaridade proposta pelo autor é que a maneira em que esse tema é tratado por Descartes está diretamente influenciada por um filósofo humanista do período renascentista; estabelecendo, assim, um vínculo entre a filosofia cartesiana e a filosofia dos séculos XV e XVI.

Não parece haver dúvidas de que a pureza e a independência do entendimento perante os sentidos seja um aspecto de fundamental importância para Descartes. O percurso argumentativo da Primeira Meditação, onde Descartes pretende iniciar o estabelecimento de uma nova metafísica, trata-se de uma purificação da mente, seja da maneira aristotélico-escolástica de fazer ciência, seja a do senso comum de conceber o papel cognitivo dos sentidos, para então ser capaz de estabelecer a verdadeira, ou a correta, maneira de fazer metafísica e ciência. Esse percurso, por sua vez, culmina, em um primeiro momento, na prevalência e autonomia do espírito e de suas representações para, apenas em um segundo momento, reconceber o valor epistêmico daquilo que é sensível.

O autor pretende enfatizar que essa estratégia adotada por Descartes já está presente em Marsilio Ficino, um pensador do Renascimento de tendências neoplatônicas. Na sua Theologia Platonica de Immortalitate Animorum, de 1559, Ficino sustenta que é necessário afastar ou separar a alma dos sentidos e do corpo para que o homem consiga atingir a contemplação da verdade (ideias). E, na medida em que o texto de Ficino teve diversas reedições, nos séculos XVI e XVII, sendo uma obra consagrada entre os contemporâneos de Descartes, até servindo como material escolar no período de formação do pensador francês, não é implausível supor que Descartes tenha tido contato e até mesmo adotado alguns aspectos do pensamento de Ficino. O autor reconhece, contudo, que essa especulação pode requerer uma maior evidência histórica, mas acredita que a atividade comparativa é profícua para o estudo de um importante tema do cartesianismo. Ele pretende, nesse ensaio, mostrar os limites do espaço da racionalidade em Descartes – até onde o intelecto humano é capaz de obter verdade e ciência, diferenciando as funções da razão e dos sentidos, no domínio científico, e de que modo Descartes e Ficino se aproximam na maneira pela qual procuram determinar as formas em que o entendimento pode se distanciar dos sentidos.

É a presença de um elemento essencialmente retórico no princípio de evidência o tema do terceiro ensaio. Ao notarmos que a sustentação do princípio de evidência – tudo aquilo que é percebido clara e distintamente é verdadeiro – é concomitante com a recusa da lógica e dialética aristotélica e que o seu emprego inclui a quase permanente referência à uma analogia visual ou fenomenológica, somos levados a nos questionarmos, pretende o autor, se a evidência em Descartes é um instrumento lógico, psicológico ou uma composição dessas duas características. Como ele mesmo salienta, “[...] podemos questionar se há uma teoria da evidência que não seja uma fenomenologia da evidenciação”[10]. Ele não afirma que a estrutura da justificação epistêmica em Descartes é problemática por envolver uma espécie de psicologismo; antes, pretende chamar a atenção para o papel positivo que a analogia ao vocabulário perceptual tem na filosofia cartesiana.Vislumbra, dessa forma, mostrar que as analogias são fundamentais para conduzir o entendimento na busca da verdade. Através da análise de uma carta que Descartes enviou a Morin, em 12 de setembro de 1638, deslinda a concepção propriamente cartesiana das analogias e das comparações. Esse esforço tem por objetivo expor de que maneira esses artifícios retóricos contribuem para o desenvolvimento do projeto científico de Descartes.

Diretamente relacionado com o tema do terceiro, o quarto ensaio analisa a concepção moderna do conceito de analogia, a partir do caso de Descartes. Fundamentado em um quadro mais amplo, o autor apresenta a função e a concepção da analogia em toda a filosofia cartesiana. A sua linha interpretativa toma, desse modo, a direção oposta do que defende Jean-Luc Marion[11]. Isto é, não aceita a tese de que Descartes não possui uma teoria coerente da analogia, nem que o tema não é por ele problematizado. Contraria, portanto, a ideia de que o pensamento moderno abandona ou rejeita a teoria da analogia. Descartes, para ele, adota uma teoria da analogia que se diferencia, pela sua concepção e função, tanto das teorias aristotélico-escolásticas como do princípio de semelhança renascentista. Contudo, essa diferenciação não é absoluta, de maneira que a concepção propriamente cartesiana parece guardar elementos de ambas as posições. Como destaca o autor:

Decai o sentido predominantemente metafísico ou teológico da analogia e recupera-se o seu sentido gnosiológico e epistemológico. Esbatese progressivamente a distinção entre a analogia de atribuição e a de proporcionalidade e é esta última que vai conquistando as preferências e revelando a sua fecundidade heurística. Deste modo, a analogia não é já invocada tanto para legitimar o discurso humano acerca de Deus ou para estabelecer a relação entre o finito e o infinito, entre as criaturas e o criador, quanto para estabelecer proporções entre as próprias coisas finitas e mundanas. Ela revela-se, assim, como o instrumento essencial e imprescindível daquela concepção moderna de ciência [...][12]

O quinto ensaio é dedicado à obra científica de Descartes. A física cartesiana nunca obteve êxito no quesito de ser adotada como o paradigma para a compreensão do mundo material. Sempre foi alvo de veementes críticas, desde os contemporâneos de Descartes até possivelmente os historiadores da ciência dos dias de hoje. Em comparação com as obras de Galileu e Newton, por exemplo, as quais desfrutam de grande apreciação e foram extremamente influentes no desenvolvimento da física moderna, Descartes parece ocupar uma posição menor. O autor acredita que esse juízo sobre a física cartesiana é resultante de uma certa concepção consequencialista da empreitada científica. Se tomarmos a ciência apenas pelos resultados que certas teorias alcançam e, por consequência, o conhecimento científico como um progresso contínuo, somos levados a tomar como absolutamente irrelevante toda teoria que esteja ultrapassada ou que foi mostrada como equivocada. Essa concepção de ciência não dá importância para o contexto da descoberta, ou para o contexto em que uma hipótese é construída. Ao apenas olhar para os resultados, todo o engenhoso e meticuloso processo intelectual que culmina na formação de uma teoria é relegado ao esquecimento.

Não obstante, se deixarmos de lado essa concepção de ciência e analisarmos, como historiadores, os processos que conduziram os cientistas a desenvolver as suas teorias, somos capazes de obter algo de útil mesmo em teorias antigas e definitivamente ultrapassadas. Nessa esteira, nesse quinto ensaio, pretende-se rever alguns aspectos da física e cosmologia cartesiana. O autor reconhece no Descartes cientista uma característica semelhante ao Descartes metafísico. Assim como a sua metafísica é explicitada pela análise dos efeitos e depurando as suas causas, também na física Descartes enfatiza o processo que o levou a assumir tais posições, evidenciando como foi capaz de construir certas hipóteses e experimentos. A análise conjunta dos experimentos de Descartes permite, acredita o autor, a constituição de uma lógica da descoberta científica, em que são explicitados os modos e mecanismos de pensamento empregados na formulação das hipóteses científicas. Esse procedimento, por sua vez, seria útil para auxiliar as investigações atuais acerca dos processos epistêmicos que estão envolvidos na adesão de certas crenças e na aceitação de certas teorias. Quer dizer, ele pretende ressaltar os pontos positivos no modo propriamente cartesiano de fazer ciência.

O sexto e último ensaio do livro discute a recepção que Descartes obteve, na história da filosofia. Em particular, analisa um aspecto peculiar da recepção do cartesianismo. Embora seja inegável a importância e influência da obra de Descartes, na filosofia moderna, e que suas teses ecoem nos debates contemporâneos sobre a natureza da mente, é muito comum – ou até mesmo uma posição padrão – adotar uma postura contrária e de repúdio às teses assumidas pelo pensador francês. O autor associa essa atitude a uma certa imagem que se vinculou ao cartesianismo e não àquilo que o filósofo de fato defendeu. É preciso fazer uma distinção, portanto, entre aquilo que Descartes de fato escreveu e aquilo que lhe é atribuído, mas, na verdade, tudo não passa de má compreensão dos seus textos. Ou seja, que aquilo a que se põe o rótulo de cartesiano ou cartesianismo é na maior parte das vezes bem diferente daquilo que Descartes escreveu. O autor, pois, apresenta uma defesa e indica o antídoto para o espírito anticartesiano da filosofia e ciência contemporânea.

Recebido em: 03.10.2012

Aceito em: 06.05.2013



[1] Doutorando do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: pricladnitzky@gmail.com

[2] Cf.  Retórica da Evidência, p. 10.

[3] les Philosophes et leur langage. Paris: Gallimard, 1952, p.35.

[4] le langage à l’Âge Classique. Paris: Klincksieck,1978, . p. 79-103.

[5] Cartesian linguistics: A Chapter in The History of Rationalist Thought. Nova Iorque: Harper & Row, 1960, p. 2. A tradução para o português é de minha responsabilidade.

[6] Un Autre Descartes: Le Philosophe et Son Langage. Paris, 1980.

[7] Cf. AT VI, 56-7.

[8] Cf. AT IX, 121-2.

[9] Cf. Retórica da Evidência, p. 17-8.

[10] Cf. Retórica da Evidência, p. 94.

[11] Sur la Théologie Blanche de Descartes: Analogie, création des verités éternelles et fondement. Paris, 1981.

[12] Cf. Retórica da Evidência, p. 114.