indeterminAção e fenômenoS fronteiriçoS: ConSiderAçõeS Segundo o Ponto de viStA do PrAgmAtiSmo PeirCeAno
Jorge de Barros Pires[1]
lauro Frederico Barbosa da Silveira[2]
ReSUMO: O pragmatismo, como método formal, nos fornece uma importante arena para discussões a respeito do modo pelo qual conceitos podem ser construídos, independentemente de qualquer posição antropocêntrica ou linguística. O presente trabalho tem por finalidade efetuar uma discussão sobre a máxima pragmática e a tese sobre a indeterminação do significado (meaning) que ela traz consigo. Ou seja, busca-se entender o trânsito que há entre o indefinido e o definido, entre o indeterminado e o determinado, bem como algumas fronteiras intermediárias encontradas nos processos de determinação relativa do conceito.
PALAVRAS-ChAVe: Conceitos Científicos. Fenômenos Fronteiriços. Pragmatismo. Vagueza. Indeterminação.
O pragmatismo, como método formal, nos fornece uma importante arena para discussões a respeito do modo pelo qual conceitos podem ser construídos, independentemente de qualquer posição antropocêntrica ou linguística. O presente trabalho tem por finalidade efetuar uma discussão sobre a máxima pragmática e a tese sobre a indeterminação do significado (meaning) que ela traz consigo. Ou seja, busca-se entender o trânsito que há entre o indefinido e o definido, entre o indeterminado e o determinado, bem como algumas fronteiras intermediárias encontradas nos processos de determinação relativa dos conceitos científicos[3].
Por uma questão de parcimônia, não serão exploradas as abordagens mais clássicas sobre o pragmatismo. Assim, por exemplo, aspectos relativos à noção de ciência,[4] à lógica da descoberta,[5] às relações entre os tipos de raciocínio,[6] bem como aos fundamentos fenomenológicos da lógica como semiótica,[7] não serão enfatizados. Esses são assuntos que, embora tenham grande importância, já possuem amplo tratamento na literatura.
O que, aqui, deve ser considerado inicialmente é que, frequentemente, proposições condicionais são utilizadas pelos cientistas para expressar hipoteticamente processos que acontecem na Realidade. Como construções sígnicas[8], esses condicionais permitem que o conhecimento a respeito do mundo Real seja expresso, avaliado, corrigido etc., e, nesse processo, nossos conceitos vão sendo elaborados. Uma vez que, usualmente, tais proposições se baseiam na representação linguística dos padrões, na forma “se... então”, a máxima pragmatista pode ser aplicada para um melhor esclarecimento conceitual dessas regras. Isso se justifica na medida em que o nosso conhecimento a respeito das leis da natureza consiste, em última instância, nos hábitos de ação e da expectativa que nossas representações simbólicas dessas leis sejam interpretáveis.
O pragmatismo, para Peirce (EP 2.400)9, não é uma doutrina metafísica e muito menos se destina a determinar a verdade das coisas. É apenas uma forma de avaliar os significados de termos e de conceitos abstratos. Esse método não é diferente do método experimental que todas as ciências bem sucedidas têm utilizado. De acordo com Cooke (2003), o Pragmatismo estabelece o suporte e os critérios para a investigação e distingue aquelas investigações que são significativas (meaningful) daquelas que não são. Notemos que os limites sugeridos por essa teoria não dizem respeito a tipos de coisas que não podemos conhecer, mas ao que é considerado significativo e à precisão do nosso conhecimento. Para Silveira (2007), trata-se de um método de produção teórica de pensamento para fins conceituais, que assume a forma de uma máxima lógica orientadora da conduta científica. Em uma formulação datada de 1905, portanto da fase mais madura do pensamento peirceano, podemos ler:
[...] uma concepção, isto é, o conteúdo racional de uma palavra ou outra expressão, reside exclusivamente em seu concebível efeito sobre a conduta da vida; de modo que, uma vez que obviamente nada que não possa resultar de um experimento pode ter qualquer efeito direto sobre a conduta, se for possível definir cuidadosamente todos os concebíveis fenômenos experimentais que a afirmação ou a negação de um conceito pudesse implicar, ter-se-ia aí uma definição completa do conceito, e nele absolutamente nada mais haverá. (CP 5.412).
Com essa máxima, como nos sugere Silveira, no texto ao qual se fez referência, Peirce empreende uma mudança radical na busca da clareza dos conceitos. Tal clareza não está na evidência dos fatos ou em algum modo de apresentação imediata das ideias: ela está baseada na possibilidade de se verificar experimentalmente quais são as consequências decorrentes da representação dos fenômenos. Fundamentalmente, Peirce está nos aconselhando que, ao tentarmos esclarecer conceitos, devemos antecipar criativa e rigorosamente as consequências possíveis de serem derivadas daquele termo, num experimento. O conjunto dessas consequências será a expressão da concepção do objeto, o que diminuirá significativamente a possibilidade de equívoco em sua construção, já que as consequências previstas deverão ser passiveis de teste indutivo.
De acordo com Lane (2007), a máxima pragmática, como considerada no clássico exemplo a respeito da “dureza de um diamante”, dá o significado à afirmação “x é um diamante” como uma lista de condicionais especificando os da(s) página(s). Do mesmo modo, os Collected Papers serão citados pelas iniciais CP, seguidas do número do volume e do parágrafo. A mesma convenção vale para The New Elements of Mathematics, NEM.
fenômenos que resultariam da interação com x. A máxima pode ser entendida como geradora de condicionais, tais como: “se aplicar pressão em x, ele resistirá” (modo indicativo); ou “se você fosse aplicar pressão em x, ele resistiria” (modo subjuntivo). Condicionais no modo indicativo, contudo, cobrem apenas eventos atuais. Logo, se o significado de “x é duro” é uma lista de condicionais indicativos, a alegação de que o diamante é duro é analisada apenas em termos de eventos concretos e só se refere às interações que se realizam de fato. Por outro lado, condicionais subjuntivos abrangem não só esse tipo de caso, mas também casos meramente possíveis. Se o significado pragmático de “duro” é dado por condicionais subjuntivos, o diamante seria duro mesmo que nunca tivesse sido submetido à pressão. Nesse último entendimento da máxima pragmatista, o significado pragmático de “duro” não está relacionado ao teste de fato, mas à possibilidade de teste. Para que seja verdade “se você fosse aplicar pressão em ‘x’, ele resistiria”, deve ser realmente possível ser aplicada pressão sobre “x”, sendo ela realmente aplicada ou não (cf. também CP 5.403).
Em decorrência, “se uma substância de um certo tipo devesse ser exposta a um agente de certo tipo, um certo tipo de resultado seguiria” (CP 5.457). Convém perceber, conforme nos lembra Robin (1997), que ao mudar a relação entre o antecedente e a expectativa experimental consequente de um condicional indicativo para um condicional subjuntivo, Peirce está assumindo um compromisso com leis reais (gerais) e modalidades reais (inclusive possibilidades reais e necessidades reais).
Peirce considerava um erro interpretar as experiências descritas nos condicionais gerados pela máxima pragmatista como coisas isoladas, ações individuais, acontecimentos singulares ou discretos (o que proíbe qualquer tipo de entendimento verificacionista sobre a máxima). Pelo contrário, elas devem ser concebidas como “tipos gerais de fenômenos experimentais” e, portanto, para que qualquer um dos condicionais gerados pela máxima seja verdadeiro, devemos aceitar que há elementos genuinamente gerais na realidade. Mais que isso, a característica aberta dos condicionais subjuntivos é fundamental para seu crescimento, e isso só é alcançado por haver espaço para as possibilidades, como aspectos dessa realidade.[9]
Cremos ser importante fazer algumas considerações a respeito de gerais e potenciais reais. Vamos começar frisando que o conhecimento exigido na clarificação de conceitos é do tipo geral. Veja-se que, ao dizer que “x é duro”, ou “vermelho”, ou “pesado”, ou que possui quaisquer outras propriedades, estamos dizendo que “x” é regido por uma lei, a qual é um estatuto que se refere ao futuro. Por conseguinte, ao expressarmos um condicional, gerado a partir da máxima pragmatista, ele se torna sinônimo da expressão de uma lei que rege a experiência e que constitui o sentido último da proposição (cf. ENGEL-TIERCELIN, 1992; CP 5.491).
Aquilo que qualquer proposição verdadeira assevera é real, no sentido de ser tal como é sem referência ao que você ou eu pense a respeito. Caso seja essa proposição, uma proposição condicional quanto ao futuro, ela será um geral real na medida em que se calcula que realmente influencie a conduta humana; e este é o teor racional que o pragmaticista afirma ser o de qualquer conceito. Desse modo, o pragmaticista não faz com que o summum bonum consista na ação, mas que consista naquele processo de evolução pelo qual o existente cada vez mais incorpore aqueles gerais aos quais estava destinado, sendo o que nos esforçamos para expressar ao chamá-los, a esses últimos, razoáveis [reasonable]. Em seus estágios mais elevados, a evolução toma lugar cada vez mais amplamente através do auto-controle, e isso fornece ao pragmaticista uma certa justificativa para fazer com que o teor racional seja geral. (CP. 5.432-3).
Peirce nos deu um muito bom e bem conhecido argumento a respeito desse assunto, em suas harvard lectures sobre o pragmatismo, em 1903: sabemos que, ao segurar na mão um objeto sólido, tal como uma rocha, podemos prever que ele cairá. Nós sabemos que esse objeto vai cair, porque sabemos por experiência própria que esses tipos de objetos sempre caem. Nós sabemos que todos os corpos sólidos caem na ausência de qualquer força ou pressão que os force para cima. Essa lei é um “princípio geral ativo”, que é realmente operativo na natureza (EP 2.181 e 183).
Para Hookway (2004), o jogo entre o geral e o particular é ali ressaltado. Afinal, se um esclarecimento explícito dos condicionais deva ser uma ferramenta viável para gerar conceitos, tais condicionais deverão revelar alguns padrões gerais ou leis que podem ser aplicados a casos particulares. Quer dizer, nós precisamos gerar condicionais que sejam relevantes para a nossa situação em qualquer ocasião especial. Enfatiza Silveira:
Nossa concepção diz respeito aos fenômenos gerais dos quais procuramos conhecer as leis e os efeitos que produzem quando com eles interagimos. O experimento é fundamental no processo do conhecimento, mas, por isso mesmo, não se constitui em mero fato bruto. Vale para verificar a verdade de nossas crenças pois delas independe, mas só o faz porque confere um caráter concreto às nossas expectativas de confrontarmo-nos com exemplares fatuais de fenômenos gerais. Os experimentos constituemse em instâncias de um processo geral crescente e evolucionário da experiência, sendo esta da natureza do hábito e da ordem do espírito. O que verificamos no experimento é a pertinência das representações que fazemos de classes gerais de fenômenos. Mesmo em termos da efetivação experimental, estamos tratando de amostras significativas, levanta Peirce a questão, de um grande experimento coletivo constituído de nossa intervenção no mundo exterior ou quase-exterior. Nada significa ou pode exemplificar um fenômeno geral, se tomado isoladamente sem referência a uma classe a que poderia pertencer. (SILVEIRA, 2007, p. 188-189).
Assim, o significado pragmático de um condicional acarreta generalidade, de sorte que, quanto mais geral ela for, mais exigirá que o método adote um caráter conjectural, cuja forma hipotética deverá ser desdobrada nas relações conceituais nela implicadas (de acordo com as exigências lógicas). Se quisermos testar uma hipótese experimentalmente, será preciso saber quais as consequências experienciais deveríamos esperar que nossa atividade experimental tenha, caso a proposição seja verdadeira. Ou seja, devemos saber quais efeitos sensíveis podem ocorrer, se realizarmos um experimento.
De acordo com Peirce (CP 5.453; EP 2.354), se as concepções forem representadas na forma de proposições condicionais, com seus antecedentes hipotéticos sendo da natureza última do significado e seus consequentes descrevendo as consequências que poderão vir a ser experimentalmente verificadas, essas serão verdadeiras, independentemente de essa verdade ter sido pensada em qualquer juízo, ou em qualquer outro símbolo de qualquer homem ou homens. Isso equivale a afirmar que há possibilidade real de ser verdadeiro.
De fato, a verdade dos condicionais gerados pela máxima pragmatista exige a realidade das possibilidades, pois elas não são apenas uma questão de ignorância, mesmo a ignorância de um ser hipotético. Assim como os pontos de uma linha contínua ou as gotas de água no oceano, os eventos futuros meramente possíveis, aos quais um condicional subjuntivo se refere, não constituem uma coleção de indivíduos distintos. Dizer que “x é duro” não é dizer algo sobre uma coleção de eventos ou ações individuais, no passado, ou mesmo no futuro. O “seria” (would) dos condicionais subjuntivos é inesgotável por qualquer multiplicidade de acontecimentos fatuais, bem como a linha contínua é inesgotável por qualquer conjunto de pontos (cf. LANE, 2007 e CP 8.208).
Com isso, podemos perceber que Peirce trouxe para a contemporaneidade a distinção escolástica entre realidade e existência, sendo a primeira a expressão ontológica das categorias fenomenológicas e a segunda se resumindo ao existente atual e particular. Para Santaella (2004), é exatamente nesse ponto que Peirce frequentemente criticava seus “descendentes” no pragmatismo. Ele afirmava que tais pragmatistas não conseguiram entender que, sem a compreensão das categorias fenomenológicas, não é possível obter um entendimento satisfatório a respeito da natureza do pragmatismo (cf. CP 8.256).
No entanto, embora esse assunto seja de fundamental importância, deixaremos essa discussão para outra oportunidade. No momento, para os fins deste artigo, conduziremos nosso texto em direção ao entendimento do problema da indeterminação e vagueza em fenômenos fronteiriços. No que se segue, ilustraremos como funcionam esses princípios, com uma breve apresentação daquilo que Peirce chama de lógica da vagueza.
A máxima pragmatista, de acordo com Legg (2005), é que nos impele a esclarecer os significados de nossos conceitos, por meio de seus efeitos concebíveis. Ela traz consigo uma tese sobre a indeterminação do significado (meaning), segundo a qual nós nunca teremos o significado completo dos termos por nós usados. Na verdade, uma grande parte do progresso que obtivemos na ciência foi alcançada porque cientistas esclareceram e expandiram significados de termos científicos (tais como força, eletricidade, fractalidade, estocasticidade, entre outros), ao criarem hipóteses observáveis em situações específicas com relação às quais a compreensão do termo era indeterminada. Com isso, fizeram as observações necessárias e ajustaram os significados dos termos. Esse processo de descoberta a posteriori constitui-se, exatamente, no experimento científico. Segundo Peirce (CP 7.587), podemos nos perguntar: quanto a palavra eletricidade significa nos dias de hoje, em relação ao que ela significava nos dias de Franklin? Ou, quanto mais o termo planeta significa agora do que na época de Hiparco? Sem dúvida, essas palavras adquiriram alguma informação e provavelmente continuarão a adquirir.
Zalamea (2011) enfatiza que a lógica da vagueza proposta por Peirce visa a entender o trânsito do indefinido para o definido, do indeterminado ao determinado, e estudar algumas fronteiras intermediárias nos processos de determinação relativa. De acordo com Engel-Tiercelin (1992), Peirce foi um dos primeiros filósofos interessados na ideia de uma lógica da vagueza. O que ele tinha em mente, quando tratava desse assunto, era, em sentido amplo, o estudo formal do que ele chamava de significado (significs). A disciplina constituída por um tal estudo consiste, em primeiro lugar, numa discussão formal de todas as variedades de determinação e indeterminação as quais afetam tanto a extensão (ou seja, a referência, denotação), quanto a profundidade (isto é, o significado, a conotação ou intenção) de um termo. Para Liszka (1990), embora Peirce geralmente defina determinação como um aumento da profundidade em um termo, com ou sem troca de informações, ele também parece sugerir que a determinação não é apenas um aumento na profundidade, mas pode resultar numa restrição da extensão de determinados assuntos vagos.
Santaella (1992, p. 50) sublinha que o signo não pode ser absolutamente preciso, porque “[...] a relação do signo com seu objeto é uma fonte de indefinição na extensão do signo”, e sua relação com o interpretante é uma fonte de indefinição na profundidade do signo. Assim, um termo ou signo não pode ser completamente determinado. Caso contrário, ele deveria designar uma propriedade partilhada com relação a cada uma de todas as características de seu objeto. Além disso, conforme Engel-Tiercelin (1992 e 1993), no caso da indeterminação absoluta, nós teríamos que conhecer, quanto ao seu sujeito, todos os seus predicados possíveis com relação aos quais é indeterminado. Isso é impossível, pois a lista é infinita. Caso queiramos saber a respeito do que se está falando, e manter-nos dentro do universo do cognoscível, devemos aceitar que todo termo é potencialmente determinado.
É, de fato, da própria natureza do signo, segundo a concepção peirceana, essa radical distinção face ao objeto. A natureza icônica do signo, já anteriormente apontada, fundamenta sua função significativa em alguma qualidade que ele tenha em comum com o objeto, qualidade que, nele reconhecida entre múltiplas outras que possam oferecer, permita que fique no lugar do objeto precisamente sob aquele aspecto e venha, em sua função mediadora, determinar signos interpretantes. Poder significar supõe uma escolha e uma eleição dessa qualidade, deixando as outras indeterminadas. O equilíbrio entre o determinado e o indeterminado e, no interior desse último, entre o vago e o geral será, reconhecidamente, uma das mais centrais preocupações de Peirce ao trabalhar a lógica como semiótica (e a construção pragmaticista dos conceitos). (SILVEIRA, 2001).
Desse modo, segundo Liszka (1990), a vagueza é o análogo antitético da generalidade (cf. CP 5.505). Um signo é geral quando delega ao intérprete o direito de completar a determinação do signo por si mesmo. A vagueza, por sua vez, se relaciona com signos que não são suficientemente inequívocos, a ponto de permitir que se expresse uma determinada e incontestável interpretação. Isto é, um signo será vago ao deixar que sua determinação seja completada por algum outro signo ou por uma experiência possível (cf. SANTAELLA, 1992; p. 50; MERRELL, 1996, p. 50; CP 5.448n).
Para Zalamea (2011), as investigações a respeito da generalidade podem ser vistas como o estudo do quantificador universal (“qualquer homem”), enquanto as investigações sobre a vagueza são estudos a respeito do quantificador existencial (“um grande evento”). Ressalta Peirce:
Um signo, (sob essa denominação, eu designo toda espécie de pensamento e não somente os signos exteriores), que se encontra sob alguma relação por ele mantida objetivamente indeterminada (isto é, cujo objeto não é determinado pelo próprio signo) é objetivamente geral na medida em que ele concede ao intérprete o privilégio de fazer avançar mais longe sua determinação: Exemplo: ‘O homem é mortal.’ À questão: qual homem? A resposta é que a proposição lhes deixa explicitamente o cuidado de aplicar sua asserção ao homem ou aos homens que vocês quiserem. Um signo que é objetivamente indeterminado quanto a alguma relação, é objetivamente vago na medida em que autoriza que seja feita uma determinação ulterior em um outro signo conceptível, ou ao menos enquanto ele não designa o intérprete como seu embaixador nesse assunto. Exemplo: ‘Um homem que eu poderia mencionar, parece um pouco preocupado’. O que aqui se sugere é que o homem em questão é a pessoa a quem se dirige; mas a elocutora não autoriza tal interpretação ou qualquer outra aplicação do que ela diz. Ela pode ainda dizer, se quiser, que ela não tem em vista a pessoa a quem se dirige. Cada elocução confere ao elocutor o direito de prosseguir em sua exposição; e, portanto, na medida em que o signo é indeterminado, ele é vago, salvo se ele for constituído como geral expressamente ou através de uma perfeitamente compreendida convenção. (CP 5.447).
Assim, conforme Lane (1997), a proposição geral “Os homens são mortais” é equivalente à proposição “Todo homem que você desejar é mortal”. Na proposição “Os homens são mortais”, aquele que a afirma deixa ao intérprete a escolha do individual ao qual o predicado “é mortal” será aplicado. A Vagueza reserva àquele que afirma a proposição a escolha de determinar o sujeito. Nesse sentido, a proposição vaga “Um homem casa-se” é equivalente à proposição “Um homem que pode ser exemplificado casa-se”. “Um homem casa-se” possibilita até que o falante escolha o indivíduo que o predicado “casa” pode ser aplicado (Cf. NEM 3:812).
Desse modo, segundo Annoni (2006), se a característica que é própria à atualidade (secundidade) é a determinação, no nível lógico, seus opostos são vagueza (primeiridade) e generalidade (terceiridade), sendo ambas consideradas formas de indeterminação. Mas o que distingue a vagueza da generalidade, na visão lógica de Peirce? Para responder a essa pergunta, temos de olhar para um artigo, escrito em 1905 e intitulado “Issues of Pragmatism” (CP 5.438-63), bem como acompanhar a análise que Lane (1999) dedicou a esse assunto. A esses textos podemos acrescentar Lane (1997 e 2001).
Peirce (CP 5.447-8) escreveu que “[...] um sujeito de atribuição é geral na medida em que o princípio do terceiro excluído não se aplica a ele”, por exemplo, a proposição “O homem é mortal” e esse “qualquer coisa” é vago, “[...] na medida em que o princípio da não contradição não se aplica a ele”, por exemplo, a proposição “Um homem a quem eu poderia mencionar parece ser um pouco pretensioso”. Margolis (1993) sugere que esses comentários podem parecer insatisfatórios, numa leitura mais canônica. De acordo com Lane (2001 e 1999), se tomarmos o que Peirce afirmou, parece que ele quis negar o princípio da bivalência (segundo a qual todas as proposições são verdadeiras ou falsas), no que concerne a proposições universalmente quantificadas e que proposições existencialmente quantificadas são verdadeiras e falsas. Essas afirmações são difíceis de se aceitar, em um primeiro olhar. Afinal, por que pensar que “O homem é mortal”, que parece ser verdadeiro, não é nem verdadeiro nem falso? E por que pensar que a proposição “Um homem a quem eu poderia mencionar parece ser um pouco pretensioso” é verdadeiro e falso? Felizmente, não temos que aceitar essas afirmações baseados em nossas primeiras impressões. Depois que virmos o que Peirce entende por “princípio do terceiro excluído e contradição”, veremos qual o sentido que ele dá a suas afirmações.
Para Lane (1997), o entendimento de Peirce quanto aos princípios do terceiro excluído e da contradição se assemelhava mais ao de Aristóteles do que dos lógicos contemporâneos. Embora os princípios sejam simples e diretos, muitas observações de Peirce sobre esse assunto têm sido mal interpretadas por comentadores. Em particular, a sua convicção de que o princípio do terceiro excluído não se aplica à generalidade (ou a proposições que expressem necessidade) e que o princípio da contradição não se aplica à vagueza (ou a possibilidade de expressar proposições) tem sido erroneamente ligada à sua eventual rejeição do princípio da bivalência e ao desenvolvimento de uma lógica de três valores (ternária). Uma compreensão da visão de Peirce desses princípios lógicos mostra que essas crenças não motivaram nem sua rejeição da bivalência, nem mesmo o desenvolvimento de sua lógica triádica.
Na perspectiva de Lane (1997), do ponto de vista contemporâneo, a concepção que Peirce possuía dos princípios acima citados pode parecer algo fora do padrão. O princípio, ou lei, do terceiro excluído é frequentemente expresso como: cada instância de “p ou não p ” é verdadeira. O princípio, ou lei, da contradição, ou não-contradição, é frequentemente expresso como: cada instância de “p e não-p” é falso. Esses princípios estão intimamente associados com outro princípio, o da bivalência: para qualquer proposição p, ou p é verdadeiro ou então p é falso. A bivalência parece implicar a lei do terceiro excluído, quer dizer, parece que, se toda proposição é ou verdadeira ou falsa, logo, a disjunção de qualquer proposição e sua negação deve ser verdadeira. Além disso, é amplamente (mesmo que não universalmente) considerado que o terceiro excluído implica bivalência. Ou seja, é considerado que, se a disjunção de qualquer proposição e sua negação é verdadeira, qualquer proposição deve ser verdadeira ou falsa. No que tange à não contradição, esse princípio, como postulado, implica ambos e é inerente ao afirmar que nenhuma proposição pode ser verdadeira e falsa.
Lane (2001) afirma que a noção de terceiro excluído, de acordo com a noção peirceana, é um princípio sobre objetos individuais. Especificamente, ele dá uma condição necessária da individualidade, no modo material: se “s” é um individual, então, para qualquer propriedade “p”, ou “s é p” ou “s não é p”; ou, no modo formal: se “s” é um termo individual, então, para qualquer predicado “p”, ou “s é p” é verdadeiro ou “s não é p” é verdadeiro. Assim, o princípio do terceiro excluído (no modo formal) é equivalente à afirmação de que para qualquer termo individual (não-geral) “s” e para qualquer predicado “p”, a proposição “s é p ou s não é p” é verdadeira. Por exemplo, “esse estudante da UNESP vive em Marília ou esse estudante da UNESP não vive em Marília”, é verdadeiro. No entanto, esse princípio não se aplica aos casos gerais, porque, com relação a cada predicado “p” e todos os termos gerais “s”, proposições “s é p ou s é não-p”, por vezes, são falsas. Por exemplo, “estudantes da UNESP vivem em Marília ou estudantes da UNESP não vivem em Marília”. A proposição será considerada verdadeira ou falsa apenas na verificação dos casos particulares. Em decorrência, a alegação de Peirce de que o terceiro excluído não se aplica aos gerais não acarreta que as proposições gerais não são nem verdadeiras nem falsas. Pelo princípio do terceiro excluído, Peirce significou o princípio de que nenhum par de predicados mutuamente contraditórios de qualquer individual é falso (Cf. MS 611)[10]. Esse é o princípio do terceiro excluído, que não suporta a generalidade geral, porque o geral é parcialmente indeterminado (cf. CP 1.434).
Da mesma forma, o princípio da não contradição de Peirce se aplica apenas aos sujeitos definidos; se “s” é um termo definido, então “s é p” e “s é não-p” não são ambos verdadeiros. Assim, a não contradição é equivalente à afirmação de que, para qualquer sujeito definido (não um termo vago) “s” e para qualquer predicado “p”, a proposição “s é p” e “s é não-p” é falsa. A não contradição não se aplica aos termos vagos, porque não é o caso, com relação a cada predicado “p” e todos os sujeitos indeterminados “s”, que “s é p e s é não-p” é falso; às vezes, essas proposições são verdadeiras, como é o caso de “alguns homens são carecas e alguns homens não são carecas”. Dessa maneira, para Lane (1999), a alegação de Peirce de que a não contradição não se aplica ao termo indefinido (vago) não significa que proposições indefinidas (vagas) sejam verdadeiras e falsas. De acordo com Annoni (2006), devemos, portanto, diferenciar cuidadosamente os casos em que um princípio não se aplica daqueles em que é aplicado e é falsificado.
De acordo com Peirce (MS 641), não podemos sustentar que o princípio da contradição de termos indefinidos é falso. Não poderia ser assim, sem aplicar-lhes o que exatamente estamos negando disso. Um argumento contra o que Peirce afirma, isto é, que o princípio do contraditório não se aplica a “um homem”, porque “um homem é alto” e “um homem não é alto” só pode ser o equivalente a dizer que aquele homem que é alto não é, enquanto alto, não alto. Peirce concorda com esse argumento, recusando-se a admitir que o princípio da contradição de “um homem” é falso, mas, quando se fala que um homem é alto, afirma-se que ele não é não-alto, isto é dito de um determinado homem existente. Nesse caso, homem não está sendo tomado de modo indefinido; trata-se, pelo contrário, um determinado homem e não outros. Vejamos outro exemplo, num texto de Peirce:
Caso S seja um termo particular, ele pode não ter extensão e então nada acrescentar à extensão de P. Este último caso freqüentemente ocorre em metafísica, e por conta de não-P assim como de P serem predicados de S, dão lugar a uma aparência de contradição aonde não há realmente nenhuma; pois, como uma contradição consiste em dar aos termos contraditórios alguma extensão em comum, segue-se que, se o sujeito comum do qual forem predicados não tem extensão, há tão somente uma contradição verbal e não real. Não é, realmente contraditório, por exemplo, dizer-se que uma borda está dentro e fora daquilo que ela limita. (CP 2.420).
Uma importante questão nos é colocada por Engel-Tiercelin (1992): “[...] vagueza e generalidade podem ser eliminadas?” Com relação à generalidade, ela nos responde que a resposta é clara: é impossível, porque seria preciso observar todas as classes possíveis e os sistemas de objetos aos quais a determinação pode ser aplicada. A generalidade é a série indefinida de interpretantes que surgem na ação do signo (cf. CP 1.339), generalizando a experiência com o objeto. Segundo Peirce (CP 1.82), para a generalização, a operação mais importante da mente em matemática e em qualquer lugar é, em primeiro lugar e acima de tudo, uma operação da especificação e, como tal, é a manifestação da inteligência, pois se trata menos de uma extensão da informação prévia do que “um aumento da extensão e diminuição da profundidade, sem alteração da informação” (CP 2.422). Acreditar que a generalidade pode ser eliminada é acreditar que o significado (meaning) ou inteligência que pertence às coisas podem ser reduzidos – e isso é uma ilusão. Com relação à vagueza, destaca que a questão da sua eliminação é mais complexa. Em um primeiro sentido, vago significa indefinido (mas não quer dizer que seja ambíguo) um signo é indefinido se a sua interpretação continua a ser duvidosa. (Cf. MS 283). Imprecisão não é, portanto, uma noção semântica que corresponderia ao fato de que um signo não tem nenhuma referência, uma vez que a vagueza não afeta o objeto do signo, mas o seu interpretante.
Uma vantagem dessa definição é que nos salva do erro de pensar que um signo é indeterminado simplesmente porque ele não faz referência a muitas coisas: por exemplo, dizer “C. S. Peirce escreveu este artigo” é indeterminado, porque não informa que cor de tinta foi usada, quem fez a tinta, quantos anos o pai do fabricante da tinta tinha quando seu filho nasceu, nem qual era o aspecto dos planetas, quando seu pai nasceu. Ao transferir a definição para a interpretação, tudo isso é cortado (cf. CP 5.448 n.1).
Para Engel-Tiercelin (1992), a vagueza, tal como Peirce a conceitua, é uma noção que pode ser chamada pragmática, dependente do contexto em relação às regras de conversação ordinária. Nesse sentido, é ilusório tentar eliminá-la. Contudo, a vagueza também pode ser devida à indeterminação essencial encontrada em diferentes níveis de realidade. É, por exemplo, a indefinição em torno de nossos hábitos e nossas crenças. Nesse sentido, a imprecisão é irredutível, pois é uma característica das crenças que temos acerca do mundo. Essas são de senso comum, crenças instintivas, as quais são, por essa razão, indubitáveis.
Há, no entanto, um outro sentido importante (talvez o mais importante), no qual é preciso falar da relação entre a realidade e a irredutibilidade da vagueza. A vagueza, nessa perspectiva, se deve ao fato de que a realidade se apresenta sob a forma de um continuum, e que temos na maioria do tempo que lidar com casos de fronteira. Nesse aspecto, como em outros, temos de admitir que a vagueza é um princípio universal real, e não uma deficiência de nosso conhecimento ou de nosso pensamento (cf. CP 4.344). Pelo raciocínio de Annoni (2006), se tomarmos como exemplo o falecimento, veremos que ele divide o continuum do tempo em duas partes distintas e determinadas: o estado anterior de vida e o estado sucessivo de morte. No entanto, existem três elementos envolvidos e não apenas dois, os quais devem ser levados em consideração. O terceiro elemento é a fronteira existente entre os dois estados determinados.
De acordo com Silveira (2008a, n. 20), o problema dos elementos fronteiriços estava presente ao longo dos estudos realizados por Peirce. Eles podem ser encontrados no estatuto do continuum verdadeiro e, em especial, em sua concepção de tempo como um continuum (cf. SILVEIRA, 2008b, PUTNAM, 1995). Também teriam características fronteiriças suas investigações a respeito dos pontos com relação a uma reta, ou o instante em relação ao continuum temporal (já que eles seriam potenciais, vindo à existência por meio do seccionamento do continuum, apresentando propriedades de infinitesimais), bem como a questão do menor número necessário de cores diferentes para preencher superfícies adjacentes, na qual as fronteiras entre as superfícies apresentam potencialidade-limite nas questões de identidade.
Comecemos com o texto Elements of logic (CP 2.420), que trata da correlação entre a profundidade e a extensão dos conceitos, cujo produto é denominado, por Peirce, Informação. Nesse texto, ele considera que em alguns casos esse produto ou permanece inalterado ou tem um valor zero, de maneira que a informação seria nula. Nesse último caso, o sujeito de atribuição “s” estaria localizado na fronteira entre os domínios e, portanto, permaneceria indeterminado. Assim, ele comportaria, disjuntivamente, os predicados “p” e “não-p” (cf. SILVEIRA, 2009). No mesmo texto, Silveira salienta:
O estatuto indeterminado, em termos de predicação, destes elementos, irá, no argumento peirceano, comprovar que a forma enquanto tal é um possível e a matéria responsável pela existência é vaga, não tendo, diz o texto “aversão a qualquer contradição”. Os elementos fronteiriços, pontuais, encontrando-se precisamente no bordo e não em sua vizinhança, serão puros existentes, não sujeitos à predicação de uma qualidade determinada ou de sua negação. As superfícies adjacentes, por seu lado, caso se trate de cores, serão de uma ou de outra cor, pois “não serão pura matéria, e se encontrarão dentro dos limites de “uma certa regularidade geral, ou lei.” O ponto, como individual, é somente existência. (SILVEIRA, 2009 ; ver também: NEM 4.293-294)
Conforme Annoni (2006), uma característica fundamental do modelo proposto por Peirce é que esses limites não restringem uma região intermediária com qualquer área especificável entre os dois estados que ela divide, mas eles ocupam uma região infinitesimal a qual coincide com o limite de sua relação. A noção de infinitesimal desempenha, aqui, um papel central. Peirce, seguindo o caminho de seu pai, detém, em contraste com a grande maioria dos matemáticos da época, que a noção de infinitesimal não implica qualquer tipo de contradição. (cf. CP 6.113).
Na opinião de Silveira (2009), no texto The law of Mind, de aproximadamente 1900-1901, Peirce (CP 6.124-6) dá um importante passo adiante, na compreensão dos elementos de fronteira à luz da teoria do continuum verdadeiro. Nesse texto, o conceito de infinitesimal é minuciosamente explicitado. Primeiramente, ele apresenta todo número real como limite a que uma série de números indefinidamente tende, podendo-se tomar entre dois números reais quaisquer uma série inumerável de números (ou pontos) que a eles tendem. Em seguida, os infinitesimais são conceituados como o número ordinal que ocupa a infinitésima casa de uma série de números imensurável. Segue-se a isso que o contínuo supõe quantidades infinitesimais, podendo-se aplicar as funções de adição e multiplicação (desde que não seja exigido que a série seja denumerável). Tal ação não modificará o tamanho da série, mesmo que a série seja finita, pois, se A é uma série finita e i um infinitesimal, poderíamos escrever que A+i=A. Quer dizer, isso é assim para todos os fins de medição. O infinitesimal, nesse sentido, é uma potencialidade genuína. Ao conferir aos elementos fronteiriços as características infinitesimais de séries inumeráveis, Peirce reitera que a exclusividade imposta pelo princípio de contradição não se aplica a eles, e que em duas superfícies contíguas, sendo uma vermelha e a outra azul, nenhuma parte será simultaneamente vermelha e azul. Será necessário, portanto, expandir a superfície em consideração para além da linha divisória, de sorte a efetivamente existir sujeitos de atribuição com valores maiores do que i, sendo a vizinhança imediata da linha (sendo assim, considerado o conjunto) metade vermelha e metade azul.
Segundo Annoni (2006), uma quantidade infinitesimal é simplesmente uma quantidade positiva menor que qualquer quantidade especificável. Onde o modelo cantoreano de continuidade se baseia na noção de “ponto”, o modelo peirceano de continuidade utiliza a noção de infinitesimal. Em matemática, no ponto-limite entre uma curva e sua tangente, temos que o ponto na curva em contato com a tangente e o ponto da tangente em contato com a curva não são mais distinguíveis um do outro. Sua distância é infinitesimal, não mensurável, e assim se segue que os dois pontos iniciais devem ser considerados como juntos. Essa noção é central para Peirce. Cada quebra de continuidade provoca uma relação de oposição entre um primeiro (o continuum original) e um segundo (a descontinuidade relativa), através de um limite infinitesimal colocado entre eles. Como destacamos antes, entre a curva e a tangente, no limite, temos uma singularidade objetivamente indeterminada. Cada indivíduo é singular e definido, embora indeterminado (aqui aludindo ao indivíduo fronteiriço entre a curva e a tangente).
A força da exceção trazida pelo estatuto dos elementos fronteiriços é tão forte aos olhos de Peirce, que [...] promete o autor dedicar uma nova classe de valores, além dos dois clássicos – verdade e falsidade - a um terceiro valor, que poderia ser denominado “estado nascente” antes da restrição trazida pelo princípio de contradição. [...] sua realidade é suficientemente contundente para exigir que receba um equacionamento adequado. Os casos fronteiriços, somente vão confirmar de modo extremamente agudo a importância conferida por Peirce à teoria do verdadeiro continuum, e a decisiva contribuição que a noção de potencialidade, como um modo afirmativo de ser para que uma visão realista da lógica e dos fenômenos não escamoteie os problemas, mas busque soluções que determinem de modo razoável a conduta futura da ciência. (SILVEIRA, 2009).
Portanto, de acordo com Annoni (2006), em contraste com uma teoria epistêmica ou semântica da vagueza, há entidades reais e objetivamente indeterminadas que não podem ser tratadas adequadamente por um sistema de lógica clássica.
Recorrendo ao exemplo do elemento fronteiriço fornecido por Peirce, por ocasião de propor uma lógica de três valores, Lane (1999) defende que, àqueles que seriam de si mesmos determinados mas aos quais se atribuiria valor muito próximo a zero e que, portanto, não forneceriam informação sobre o que lhes deveria ser atribuído, a saber, p ou não-p, seria sempre falso aplicar à predicação o principio de contradição e o do terceiro excluído. Dada essa dupla falsidade, Peirce teria reservado à predicação cabível a tais elementos um terceiro valor mais atenuado, por ele designado como L.
Keefe (1998), por sua vez, faz notar que argumentos de que a lógica clássica é insuficiente para lidar com a incerteza são muito familiares, nos dias de hoje: sua classificação exaustiva de verdadeiro/falso não deixa espaço para predicações de casos fronteiriços (por exemplo, um homem que não é claramente nem alto nem não-alto; ou qualidades discretas, como duas cores diferentes cobrindo cada uma delas uma superfície adjacente uma da outra) e impõe limites para extensões (por exemplo, um corte entre o alto e o nãoalto), quando a falta de tais limites é uma característica central de predicados vagos.
Nadin (1983, p. 163), ao discutir a respeito da semiótica e dos conjuntos fuzzy, ressalta que demoramos a chegar à conclusão de que muito da cognição e interação humana com o mundo exterior envolve construções que não são conjuntos no sentido clássico, mas “conjuntos fuzzy” (ou subconjuntos). Ou seja, classes com limites não precisos em que a transição de pertencente ou não ao conjunto é gradual e não abrupta. Na verdade, pode-se argumentar que grande parte da lógica do raciocínio humano não é a lógica clássica de dois valores, mas está relacionada a uma lógica de verdades cujas regras de inferência são fuzzy.
Devemos, neste ponto, lembrar que, de acordo com o princípio pragmático, “não há maneira de determinar em que medida um objeto fronteiriço pertencente a uma determinada classe de objetos ou a outra, exceto ao considerarmos os possíveis efeitos experimentais decorrentes da adoção de uma regra que possibilite sua predicação.” Quer dizer, podemos definir melhor o que um elemento de fronteira é, a partir de ações guiadas por essas regras e dos resultados que esperamos dessas ações. É exatamente isso que, por exemplo, a teoria fuzzy faz. Como método, ela permite nossa interação com o fenômeno e a tentativa de predição das consequências experimentais de nossas representações a respeito dele, atuando como geradora de proposições condicionais. Tais regras orientam nossa experiência com o objeto. Nesse sentido, ela é pragmática, porque fornece os limites do que será considerado significativo e a precisão a ser atingida em uma dada aplicação.
Como pudemos mostrar, ao longo deste texto, quando o significado de um conceito ou termo necessita ser determinado, isso ocorrerá em relação a um fim, devendo estar relacionado ao propósito do raciocínio e regulando e direcionando a conduta. Mais uma vez, é desse modo que o cientista procede ao tentar, por exemplo, encontrar a função que melhor se ajuste aos dados, em relação aos fins desejados (classificação, predição, por exemplo).
O Pragmatismo, sendo uma estratégia para a construção de conceitos, estabelece o suporte e os critérios para a investigação científica, apontando para o que pode ser significativo (meaningful) e para a sua precisão. Assim, essa teoria se coloca como um método de produção teórica de pensamento, cujos fins são conceituais. Muitas vezes, esse método assume a forma de uma máxima lógica, que orienta a conduta científica.
A máxima é uma espécie de geradora de condicionais, tanto no modo indicativo como no subjuntivo. Contudo, como de início afirmamos, condicionais no modo indicativo cobrem apenas eventos atuais, enquanto os do caso subjuntivo abrangem casos meramente possíveis. Com isso, Peirce assumiu um compromisso com leis reais (gerais) e modalidades reais (inclusive possibilidades reais e necessidades reais). Dessa maneira, seria um grande erro tentar interpretar as experiências descritas nos condicionais como coisas isoladas. Os condicionais gerados a partir da máxima, para serem verdadeiros, devem envolver elementos genuinamente gerais da Realidade e, para seu crescimento, deve haver espaço para possibilidades, como aspectos dessa realidade.
Com isso, Peirce promoveu uma importante mudança no modo de busca da clareza dos conceitos; essa clareza, que antes se acreditava estar baseada na evidência dos fatos, passou a repousar na possibilidade da verificação experimental das consequências futuras da representação do fenômeno. Ou seja, o esclarecimento de conceitos passa pela antecipação criativa e rigorosa das consequências possíveis de serem derivadas de um termo num experimento. O conjunto dessas consequências será a expressão da concepção que se tem do objeto.
Além disso, pudemos ver, ao longo do texto, que a máxima pragmatista traz consigo uma interessante tese sobre a indeterminação do significado (meaning). Peirce visava a entender o trânsito que há entre o indefinido e o definido, entre o indeterminado e o determinado, bem como algumas fronteiras intermediárias encontradas nos processos de determinação relativa. Sua discussão girava em torno das variedades de determinação e indeterminação que afetam a extensão (denotação) e a profundidade (conotação) de um termo. É importante notar que uma das principais consequências do entendimento a respeito da indeterminação é que, em contraste à teoria epistêmica ou semântica da vagueza, nós encontramos entidades reais as quais são objetivamente indeterminadas (que a lógica clássica não pode tratar adequadamente). Com base nisso, tem-se a ideia de que grande parte da lógica do raciocínio humano não é aquela baseada na lógica clássica de dois valores, mas está relacionada a uma lógica de multivalores. Por esse motivo, acreditamos que investigações futuras nesse universo poderiam contribuir significativamente para um entendimento mais amplo a respeito do raciocínio. Nesse sentido, parece-nos que os Grafos Existenciais de Peirce se apresentam como um bom recurso lógico para tratar desse assunto, uma vez que eles nos proporcionam um ambiente formal para a análise e a elaboração de conceitos. Agradecimentos: Este artigo foi produzido com o apoio do CNPq, por meio de bolsa de Doutorado.
ABSTRACT: Pragmatism, as a formal method, has provided a fabulous arena for discussions about the way concepts may be constructed, irrespective of any anthropomorphic or linguistic position. We will see that the pragmatic maxim possesses an interesting thesis regarding the indetermination of the meaning. Such idea helps to understand the transit between the indefinite and the defined, indeterminate and determined, as well as some found intermediate borders in the processes of relative determination.
KeYWORdS: Scientific concepts. Bordering phenomena. Pragmatism. Vagueness. Indetermination.
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Recebido em: 14.05.2012
Aceito em: 15.04.2013
[1] Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNESP/Marília. E-mail: jorge. barros.pires@gmail.com.
[2] Professor no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNESP/Marília.
https://doi.org/10.1590/S0101-31732013000200013
[3] Ciência e o adjetivo “científico” devem ser entendidos como “[...] a determinação conceitual da conduta racional futura diante de uma classe de objetos” (SILVEIRA, 1989). Desse modo, ciência não pode ser confundida com acúmulo de conhecimento ou como conhecimento organizado, muito menos como algum tipo de domínio do objeto.
[4] Cf.: SANTAELLA, 2004; SILVEIRA, 2011; KENT, 1987.
[5] Cf.: ANDERSON, 1986; TURRISI, 1990; PAPE, 1999.
[6] Cf.: HOUSER, 1992; SILVEIRA, 2007.
[7] Cf.: HAUSMAN, 2008; IBRI, 1992.
[8] Podemos salientar que a construção sígnica é uma relação lógica triádica entre a representação (signo), o objeto representado e a norma de conduta futura decorrente dela (interpretante). Para saber mais sobre as definições de signo e suas divisões, confira SILVEIRA (2007) e SANTAELLA (1995). 9 As citações aos textos de Peirce, contidos no The Essential Peirce, seguirão a convenção já estabelecida pela comunidade de leitores de suas obras: as iniciais EP, seguidas pelo número do volume e número
[9] Cf.: CP 5.425-26; EP 2:340; ENGEL-TIERCELIN, 1992.
[10] MS corresponde aos manuscritos de Peirce, seguindo a paginação de acordo com o Institute for Studies in Pragmatism. A paginação adotada por esse instituto é a mesma elaborada originalmente por ROBIN (1967).