oSCilAçõeS entre o reduCioniSmo e o fiSiCAliSmo não-redutivo no nAturAliSmo biológiCo de john SeArle[1]

Tárik de Athayde Prata[2]

Maxwell Morais de lima Filho[3]

ReSUMO: O artigo examina a concepção de Searle sobre a redução da consciência (em especial a sua teoria acerca de seus poderes causais), que se mostra obscura e incoerente. Porém, essa incoerência não é inevitável, pois o naturalismo biológico possui elementos que permitiriam a articulação de uma teoria mais clara a respeito das capacidades causais. O exame da teoria de Pereboom e Kornblith possibilita entender por que a afirmação de identidade das capacidades causais leva a um reducionismo. Essa teoria aponta um caminho promissor para que se possa aprimorar o naturalismo biológico. PALAVRAS-ChAVe: Consciência. Reducionismo. Causação mental. Fisicalismo não-redutivo.

1   introdução

Para o problema mente-corpo, o filósofo John R. Searle oferece uma solução supostamente simples: a teoria da mente por ele chamada de “naturalismo biológico” (cf. SEARLE, 1983, p. 264; 1992, p. 1). Essa teoria tem como teses básicas que os fenômenos mentais conscientes são (1) causados por processos cerebrais, no nível micro, e (2) realizados no sistema cerebral, no nível macro.[4] A tese da causação implicaria a redução causal dos fenômenos mentais aos processos cerebrais (cf. SEARLE, 1992, p. 115; 2004, p. 113), o que significa que os fenômenos mentais conscientes seriam (a) causalmente explicáveis através dos processos cerebrais e (b) não teriam capacidades causais além das capacidades causais desses processos (cf. SEARLE, 2002b, p. 60). Searle afirma que “[...] os poderes causais da consciência são exatamente os mesmos do substrato neuronal” (SEARLE, 2004, p. 127-128).[5] Um sério problema decorre dessa concepção sobre as capacidades causais da consciência e do cérebro, pois tal concepção pode ser interpretada como uma afirmação de identidade das capacidades causais, a qual parece implicar uma identidade entre os próprios fenômenos mentais e os processos cerebrais, constituindo um reducionismo que é veementemente negado por Searle.

Por um lado, em virtude da relação estreita entre os poderes causais da consciência e do cérebro, ficaria evidente que “[...] não estamos falando sobre duas entidades diferentes, mas sobre o mesmo sistema em diferentes níveis” (SEARLE, 2004, p. 128, grifos nossos), o que pode ser interpretado como uma asserção de identidade entre os fenômenos de consciência e a atividade cerebral. Mas, por outro lado, apesar de aceitar a redução causal, Searle recusa a redução ontológica das propriedades subjetivas às propriedades objetivas (cf. SEARLE, 1992, p. 117; 2004, p. 119), recusa baseada em uma não-identidade de tipos entre a consciência (âmbito de propriedades subjetivas) e a atividade do cérebro (âmbito de propriedades objetivas).[6]

Uma possível saída para essa aparente contradição se encontra na tese da realização dos fenômenos mentais no sistema cerebral, já que o modo como Searle concebe essa realização é o das propriedades sistêmicas: os fenômenos mentais seriam realizados pelo sistema cerebral, no sentido de que tais fenômenos seriam propriedades instanciadas por partes do sistema cerebral dotadas da devida complexidade (cf. SEARLE, 1992, p. 111). No nível dos neurônios e sinapses, seria impossível encontrar estados de consciência como sensações, percepções, crenças ou desejos, de sorte que tais fenômenos mentais não poderiam ser idênticos às propriedades encontradas no nível micro (processos cerebrais). Sendo assim, para o naturalismo biológico, os fenômenos mentais conscientes seriam propriedades de tipo diferente das propriedades neurobiológicas no nível dos elementos do sistema[7], ainda que esses diferentes tipos de propriedades estejam fortemente conectados. Em algumas passagens de seus livros sobre filosofia da mente, Searle descreve essa conexão por meio do conceito de superveniência[8], embora prefira o conceito de causação (um conceito bastante peculiar de causação, vale ressaltar).

Porém, mesmo se o naturalismo biológico é interpretado dessa maneira, em que a identidade entre consciência (nível macro) e atividade cerebral (nível micro) é evitada, a teoria permanece em dificuldades, pois o modo como Searle concebe as capacidades causais da consciência não é tão facilmente harmonizável com a irredutibilidade ontológica (porque parece conduzir a um reducionismo). Ao defender que a consciência é, a um só tempo, causalmente redutível e ontologicamente irredutível aos processos cerebrais, Searle parece estar tentando articular uma forma de fisicalismo não-redutivo, concepção da mente que, a partir da influência de Hilary Putnam, Jerry Fodor[9] e Donald Davidson, se tornou muito difundida na filosofia da mente, desde o final dos anos de 1960 (cf. KIM, 1993, p. 310; SCHLOSSER, 2009, p. 73). Em outras palavras, ao combinar a irredutibilidade ontológica da consciência com algum tipo de relação de dependência entre ela e o cérebro, Searle parece estar tentando permanecer no território do fisicalismo, sem cair no extremo do reducionismo.[10]

O problema é que a noção de redução causal efetivamente formulada por ele não parece compatível com a irredutibilidade ontológica. Apesar da estratégia dos níveis de descrição enunciada acima (que apela para a diferença entre as propriedades no nível macro e no nível micro), existem diversas colocações que sugerem uma identidade das capacidades causais (cf. SEARLE, 1980, p. 455; 1983, p. 270; 1995, p. 219), o que parece resultar em uma redução ontológica.

Nosso objetivo, no presente trabalho, é esclarecer, de modo mais detalhado, essa incompatibilidade entre a redução causal e a irredutibilidade ontológica e mostrar que a teoria de Searle sobre as capacidades causais da consciência e do cérebro precisa ser rearticulada, pois ela pode levar a um reducionismo inconsistente com a própria teoria. Para isso, seguiremos o seguinte percurso: em primeiro lugar, examinaremos a teoria de Searle sobre a causação mental (seção 2), em seguida, abordaremos as linhas gerais do fisicalismo não-redutivo, na proposta de Derk Pereboom e Hilary Kornblith (que destacam a não-identidade das capacidades causais como a mais importante característica metafísica da irredutibilidade) (seção 3). Depois disso, discutiremos o modo como a teoria dos autores ajuda a esclarecer a visão de Searle a respeito da identidade das capacidades causais, esclarecendo, assim, a posição dele em relação ao reducionismo e ao fisicalismo não-redutivo (seção 4). Finalmente, iremos defender a tese de que Searle deveria pensar a relação entre as capacidades causais da consciência e da atividade do cérebro em termos mais flexíveis do que os de uma identidade (seção 5).

2  SeArle Sobre A identidAde doS PodereS CAuSAiS

Em sua discussão sobre o problema da causação mental, em Mind: a Brief Introduction, Searle destaca duas dificuldades no que concerne à interação causal entre a consciência e o mundo físico (cf. SEARLE, 2004, p. 209): (1) como pode o mental, que é sem peso e etéreo, afetar o físico? (2) se o mental funciona causalmente, isso não acarretaria uma sobredeterminação causal? A solução que ele propõe para esses problemas está em abandonar os pressupostos (assumptions) que estariam na sua base, e o pressuposto fundamental seria a ideia errônea de que a irredutibilidade do mental significa que ele é algo acima e além do físico, e não faz parte do mundo, tal como descrito pelas ciências naturais básicas (cf. SEARLE, 2004, p. 209-10).

Searle defende a irredutibilidade ontológica dos fenômenos mentais conscientes (subjetivos) aos processos cerebrais (objetivos), mas não crê que isso seja impedimento para que o mental, com suas características próprias, seja físico (em um sentido mais amplo do termo).[11] A irredutibilidade decorre do fato de que os fenômenos mentais conscientes existem subjetivamente (subjetividade ontológica)[12], todavia, isso não impede que esses fenômenos sejam físicos, pois “[...] a consciência é uma característica do cérebro e, portanto, uma parte do mundo físico” (SEARLE, 2004, p. 115). O que ele está propondo é uma ampliação do conceito de físico, de sorte que tal conceito se estenda à subjetividade (ontológica)[13], e não uma separação dualista entre o físico e o mental. Tanto o modo de existência objetivo quanto o subjetivo (característica essencial da mente) fazem parte da realidade física. Searle sintetiza o abandono do pressuposto de que a irredutibilidade significa uma separação radical entre a mente e o mundo físico (abandono que constitui sua solução para o problema da causação mental) da seguinte maneira:

Uma vez que nós abandonamos esse pressuposto, a resposta para os dois enigmas é, primeiramente, que o mental é simplesmente uma característica (no nível do sistema inteiro) da estrutura física do cérebro e, em segundo lugar, causalmente falando não existem dois fenômenos independentes, o esforço consciente e as descargas neuronais inconscientes.[14] Existe apenas o sistema cerebral, que tem um nível de descrição onde descargas neuronais estão ocorrendo e outro nível de descrição, o nível do sistema, onde o sistema é consciente e de fato tenta conscientemente levantar o braço. (SEARLE, 2004, p. 210).

 É possível interpretar essa passagem como significando que a irredutibilidade, ainda que seja equivalente à não-identidade entre fenômenos subjetivos e objetivos (propriedades subjetivas e objetivas são diferentes – cf. SEARLE, 1992, p. 117), não exclui que haja uma conexão, isto é, uma relação de dependência entre eles, dentro do domínio físico (“não existem dois fenômenos independentes”). É claro que a ideia de uma “conexão” é muito vaga, tão vaga que é compatível com o dualismo, mas a insistência do autor na universalidade do mundo físico – “tudo o que existe são partículas em campos de força” (SEARLE, 1992, p. 28) – e na natureza biológica da mente abre margem para a possibilidade de se tratar de um tipo mais forte de conexão, capaz de excluir o dualismo e caracterizar um fisicalismo aceitável.

A afirmação de que não existem dois fenômenos independentes, mas apenas um sistema descrito em diferentes níveis, é um indício de que a conexão entre o mental e o físico é concebida por Searle como uma conexão forte, de maneira a ser capaz de excluir o dualismo. A ideia de duas descrições do mesmo sistema em diferentes níveis pode ser interpretada como uma afirmação de identidade entre o mental (consciência no nível do sistema) e o físico (processos cerebrais no nível dos elementos constituintes).[15] Contudo, como foi ressaltado acima (cf. a Introdução), a diferença dos níveis de complexidade do sistema (micro e macro) implica uma diferença de propriedades: as propriedades do sistema, no nível mais complexo, e as propriedades de seus elementos constituintes, no nível mais simples. Se é afirmada uma identidade, ela é afirmada a respeito do sistema, e não a propósito de suas propriedades (neurobiológicas, por um lado, e conscientes, por outro): o mesmo sistema possui propriedades objetivas (nos níveis micro e macro) e propriedades subjetivas (apenas no nível macro). Isso significa que, se é afirmada uma identidade, se trata de uma identidade de ocorrências (tokentoken identity), ou seja, é afirmado que todo sistema particular (concretamente existente em porções determinadas do espaço e em períodos determinados do tempo) que tem propriedades subjetivas tem também propriedades objetivas.[16] Desse modo, há espaço para se interpretar o naturalismo biológico como uma teoria fisicalista, no sentido de que as propriedades mentais (subjetivas) estão fortemente conectadas a outras propriedades físicas (objetivas)[17] ou, mais exatamente, no sentido de que as propriedades subjetivas são dependentes das propriedades objetivas. Estaríamos, portanto, diante de um fisicalismo nãoredutivo.[18]

Porém, essa não é uma interpretação livre de concorrentes, pois outras reflexões de Searle sobre a causação mente-corpo sugerem que ele defende um fisicalismo reducionista. Ele compara o caso da causação mental com um tipo de evento que já fora discutido no capítulo final de Intencionalidade: a explosão em um cilindro de motor de carro (cf. SEARLE, 1983, p. 269). Podemos dizer tanto que a explosão no cilindro causou o movimento do pistão, quanto que a oxidação das moléculas de hidrocarboneto produziu energia térmica que exerceu pressão sobre a estrutura molecular da liga metálica. Assim como no caso da causação mental, “[...] essas não são duas descrições independentes de dois conjuntos independentes de causas, mas sim descrições de um sistema completo em dois níveis diferentes” (2004, p. 209).[19] O paralelo entre a causação mente-corpo e situações comuns de causação nos permite traçar o mesmo tipo de esquema que Searle utilizou, em Intencionalidade (cf. também Searle, 2004, p. 210):

Figura 1

As linhas diagonais correspondem ao fato de que, segundo o filósofo, é perfeitamente correto dizer que a intenção causa mudanças fisiológicas e que as descargas neuronais causam o movimento corporal (SEARLE, 1983, p. 270). O problema é que, quando se leva essas afirmações em consideração, o resultado parece ser uma asserção de identidade entre o fenômeno mental subjetivo e o processo cerebral objetivo (a aceitação dessa causação entre os níveis – representada pelas linhas diagonais – e o fato de os fenômenos em cada nível de descrição existirem simultaneamente – nos tempos t1 e t2 – sugerem essa identidade). O modo como Searle resvala em direção à tese da identidade fica bastante claro em passagens como a seguinte, onde ele discute a relação entre as capacidades causais da consciência e da atividade do cérebro:

Eu agora, deixe-nos supor, tenho uma sensação consciente de dor. Esta é causada por padrões de descargas neuronais e é realizada no sistema de neurônios. Suponha que a dor cause um desejo de tomar aspirina. O desejo também é causado por padrões de descargas neuronais e é realizado no sistema de neurônios. [...] Eu posso com razão dizer tanto que minha dor causou meu desejo quanto que seqüências de descargas neuronais causaram outras seqüências. Essas são duas descrições diferentes, embora consistentes, do mesmo sistema, dadas em níveis diferentes. (SEARLE, 1995, p. 219).[20]

E, neste ponto, é muito importante perceber que, quando ele discorre sobre as capacidades causais da consciência, sugerindo que elas são idênticas às capacidades causais dos processos cerebrais, Searle compara a consciência a propriedades como a temperatura, que é considerada como redutível à movimentação das moléculas (cf., abaixo, a seção 3). Isso é um forte indício de que ele pensa o tema das capacidades causais a partir de um ponto de vista, no fundo, reducionista.[21]

Todavia, uma tal asserção de identidade das propriedades, enquanto tipos, equivaleria a uma redução ontológica, que Searle nega, no caso da consciência. Estamos de volta ao mesmo problema que a distinção entre níveis de complexidade deveria resolver. O ponto decisivo para uma redução ontológica é a possibilidade de se deixar de lado as características superficiais do sistema (no nível macro), redefinindo-as em termos de suas causas (no nível micro) – (cf. SEARLE, 1992, p. 119) – coisa que não seria possível para a consciência.

Talvez o aspecto central da ambiguidade de Searle a respeito da redução da consciência seja uma certa indeterminação a propósito da efetiva relação entre os estados de consciência e o cérebro. Por um lado, ele concebe essa relação por meio das noções de propriedade sistêmica e de causa (cf. SEARLE, 2002a, p. 9), sendo que a ideia de uma relação causal sugere uma certa contingência na conexão entre mente e cérebro (algo muito distante da relação de identidade).[22] Por outro lado, o modo como ele concebe a relação entre as capacidades causais da consciência e da atividade cerebral não é nada claro, pois ora sugere uma identidade de tipos entre essas capacidades (o que acarretaria uma identidade de tipos entre a consciência e a atividade cerebral), ora sugere uma identidade de ocorrências, ou mesmo alguma outra relação (como a superveniência – cf. a nota de rodapé no 8, acima).

Figura 2

Relação entre os fenômenos  mentais e o sistema cerebral

Relação entre as capacidades causais dos fenômenos mentais e do sistema cerebral

ð  Ser uma

propriedade

sistêmica

ð  Relação causal

ð    Identidade de ocorrências?                Identidade de tipos?

ð    Outra relação?

                      (não está claro)

Na nossa maneira de entender, uma adequada teoria das relações entre a mente e o mundo físico (capaz de resolver o problema da causação mental) não poderia tolerar esse tipo de indeterminação. Para compreender como seria possível formar uma concepção mais clara acerca da relação mente-cérebro, passemos agora a um exame do fisicalismo não-redutivo.

3  reduCioniSmo e A identidAde doS PodereS CAuSAiS

Para avaliar criticamente a teoria de Searle sobre as capacidades causais da consciência e do cérebro, iremos recorrer às reflexões de Derk Pereboom e Hilary Kornblith, a respeito da irredutibilidade da mente. Os autores defendem uma forma de fisicalismo não-redutivo a propósito do mental, mas consideram que a múltipla realizabilidade das propriedades mentais (isto é, o fato de elas poderem ser realizadas por muitas propriedades físicas diferentes) não é a característica mais importante da irredutibilidade. Para eles, a característica metafísica mais importante da irredutibilidade é a diversidade das capacidades causais nos dois níveis de descrição. A importância da realização múltipla para uma teoria fisicalista não-redutiva é mostrar que leis e explanações dos fenômenos mentais, em termos de estados e processos neurobiológicos, são insatisfatórias, pois (no caso da relação entre mente e corpo, por exemplo) não há um único tipo de fenômeno neurobiológico subjacente a cada tipo de fenômeno mental. De acordo com os autores:

A base, então, para a tese de que a psicologia não é redutível à neurofisiologia não é simplesmente que os estados mentais são multiplamente realizáveis no nível neurofisiológico, mas sim que essa múltipla realizabilidade mostra que as tentativas de redução iriam exigir leis e explanações de um tipo muito peculiar, tão peculiar, na verdade, que elas seriam insatisfatórias como leis e explanações. (PEREBOOM; KORNBLITH, 2004, p. 711).

Isso significa que o fato de um estado mental poder ser realizado por diferentes estados neurofisiológicos (em diferentes situações) tem valor como prova de que a não há uma lei satisfatória (quer dizer, não há algo que possa, propriamente falando, ser denominado como uma “lei”) conectando aquele estado mental com seus múltiplos realizadores (os diversos estados neurofisiológicos, que, em diferentes circunstâncias, realizam aquele estado mental). Isso ocorre porque a conexão entre o estado mental e seus realizadores envolve uma disjunção aberta, que pode ser representada através da seguinte figura (cf. PEREBOOM; KORNBLITH, 2004, p. 710), onde “P” se refere a um determinado predicado psicológico, “N” se refere a um determinado predicado neurofisiológico, “” significa a bi-implicação e “v” significa a disjunção:

Figura 3

P ↔ n1 v n2 v n3 (…)

Todavia, o ponto enfatizado pelos autores é que o fato de um estado psicológico ser realizado por diversos estados neurofisiológicos, em si mesmo, não é o que define a irredutibilidade do estado mental à neurofisiologia, visto que o fato mais fundamental a respeito da irredutibilidade seria atinente à relação entre as capacidades causais do estado psicológico e de seus realizadores.

Para compreender a maneira como Pereboom e Kornblith concebem a diversidade das capacidades causais de fenômenos irredutíveis e de seus fenômenos subjacentes (como fenômenos mentais e processos cerebrais), é preciso considerar a distinção que eles fazem entre explanação causal e explanação constitutiva. Uma explanação causal é feita com base no vínculo de causa e efeito entre dois eventos, de sorte que a ocorrência de um (o efeito) é explanada em termos da ocorrência do outro (a causa). Exemplos de explanação causal são: “[...] o aumento na temperatura do gás em um balão de ar quente causa a subida do mesmo” ou “[...] a meiose causa a formação dos gametas”. Já a explanação constitutiva, procura dizer “[...] do que a coisa é feita, especificar sua constituição” (PEREBOOM; KORNBLITH, 2004, p. 712). Um exemplo desse tipo de explanação seria “[...] este líquido é constituído por moléculas de H2O”, isto é, indicar a constituição de algo, o que, aliado ao conjunto de leis e explanações que governam o domínio de fenômenos em questão[23], possibilita explicar como esse algo é capaz de causar aquilo que ele causa (o que é anunciado na explanação causal).

O caso é que, dependendo do fenômeno de que se trata, a explanação constitutiva (a especificação do modo como ele é constituído) tem um valor maior ou menor para o esclarecimento de explanações causais feitas com base nesse fenômeno. Tomando o exemplo do balão de ar quente, podemos enfatizar que o gás que o preenche é constituído por certos tipos de moléculas e, já que a temperatura de um gás consiste no nível médio de energia cinética de suas moléculas, a explanação constitutiva esclarece a explanação causal, isto é, permite que se entenda como o aumento da temperatura está relacionado à subida do balão, pois, nesse caso específico, o aumento da energia cinética média das moléculas reduz a densidade do gás, o que causa a subida do balão. É importante perceber que, nesse caso, estamos diante de um único tipo (type) – a energia cinética média das moléculas – que constitui todas as ocorrências (tokens) – a temperatura do gás x, a temperatura do gás y, a temperatura do gás z etc. – o que leva ao esclarecimento das explanações causais no nível dos tipos e, consequentemente, à redução das explanações causais em termos de temperatura, a explanações causais em termos de energia cinética média das moléculas.[24] Em outras palavras, entendemos melhor como X causa Y, ao reconhecer que X é constituído por X’:

Entretanto, em outros casos, a explanação constitutiva não tem a mesma capacidade de esclarecer todas as explanações causais, porque não há um único tipo natural subjacente a todas as ocorrências que estão envolvidas em cada explanação causal. Pereboom e Kornblith discutem o exemplo da relação entre a genética clássica e a biologia molecular. A formação dos gametas (gametogênese) se dá em virtude de um tipo de separação celular, a meiose, que consiste na separação de cromátides e cromossomos (portanto, na separação dos genes). Mas o caso é que (segundo Pereboom e Kornblith) a meiose é multiplamente realizável em nível molecular, isto é, diferentes tipos de processos moleculares podem separar as cromátides e cromossomos (p. ex. a ação do citoesqueleto, forças nucleares ou a gravidade), de modo que não há um único tipo natural subjacente à meiose, e a explanação constitutiva de cada caso não ilumina a explanação causal.[25] Nesse sentido, não é possível uma redução (quer dizer, uma identificação de tipos) entre a meiose e o processo subjacente (pois poderiam, na verdade, ser processos de vários tipos diferentes). Figura 5

O ponto decisivo para os propósitos do presente trabalho é que, para Pereboom e Kornblith, quando a explanação constitutiva ilumina as explanações causais, permitindo uma redução de tipos, pode-se reconhecer a identidade dos poderes causais nos dois níveis, pois há um único tipo de fenômeno no nível micro, cujos poderes causais atuam em todas as ocorrências no nível macro.[26] Mas, quando o termo antecedente, em uma explanação causal, é multiplamente realizável (de maneira que não há uma única explanação constitutiva possível), não haveria identidade das capacidades causais. E é importante ressaltar que, para eles, não haveria sequer uma identidade de ocorrências (token identity) entre essas capacidades causais, mas uma relação de constituição das ocorrências dessas capacidades, porque uma mesma ocorrência de fenômeno mental pode ser realizada por diferentes ocorrências de fenômenos físicos. Conforme os autores:

Onde há irredutibilidade da explanação, há apenas constituição de ocorrências [token constitution] e não identidade dos poderes causais. De fato, quando um tipo de explanação não se reduz a uma explanação no nível mais básico, os poderes causais no nível mais elevado não são idênticos nem enquanto tipo nem enquanto ocorrências aos poderes causais no nível mais básico. (PEREBOOM; KORNBLITH, 2004, p. 714).

No caso de um determinado fenômeno mental, por exemplo, um desejo (que seja a causa para uma determinada ação de minha parte), como não há uma única explanação constitutiva, é bastante claro que não há identidade de tipos entre os poderes causais (do desejo e de seus realizadores). Entretanto, além disso, tem-se que admitir que o desejo poderia ter a mesma eficácia (causar a mesma ação), mesmo que a ocorrência física que o realizasse fosse uma ocorrência diferente da ocorrência física que de fato o realiza, de modo que também não há identidade de ocorrências entre os poderes causais.[27] Não havendo nem identidade de tipos nem de ocorrências, o que há é uma relação mais flexível, em virtude da qual, em situações particulares (delimitadas em determinadas porções do espaço e em determinados períodos do tempo), uma ocorrência de um tipo F é constituída por uma ocorrência de um tipo G, o que tem como consequência que os poderes causais de F são constituídos pelos poderes causais de G (cf. PEREBOOM; KORNBLITH, 2004, p. 714).

Na nossa forma de entender, as reflexões de Pereboom e Kornblith evidenciam por que uma afirmação de identidade das capacidades causais da consciência e do cérebro acarreta uma afirmação de identidade dos próprios fenômenos: existem casos em que um fenômeno no nível macro pode causar exatamente os mesmos efeitos, mesmo se existem muitos fenômenos no nível micro que podem corresponder a ele (no caso da genética, diferentes processos moleculares podem corresponder à meiose; no caso da psicologia, diferentes processos cerebrais podem corresponder a um desejo, sem que essa diferença nos processos subjacentes altere aquilo de que o fenômeno no nível superior é capaz de causar). Isso mostra que a preservação dos mesmos poderes causais de um fenômeno no nível macro não está necessariamente atrelada a uma identidade com os fenômenos no nível micro. Pode haver identidade (caso no qual temos uma redução de tipos), mas também pode não haver identidade, mas uma relação mais flexível (como a constituição proposta por Pereboom e Kornblith). Se interpretarmos as colocações de Searle como uma afirmação de identidade das capacidades causais, temos de concluir que ele está comprometido com a identidade entre a consciência e a atividade cerebral (redução ontológica).

A identidade das capacidades causais é um caso particular, e não uma regra geral. Em alguns casos, temos identidade das capacidades causais (correspondente à identidade de tipos dos fenômenos em questão); em outros casos, o fato de duas ocorrências de um fenômeno no nível macro poderem causar efeitos exatamente semelhantes (pertencentes ao mesmo tipo)[28] não implica a identidade de suas capacidades causais, pois temos diferentes ocorrências no nível micro.

Quando as reflexões de Searle sugerem que há uma identidade das capacidades causais da consciência e da atividade cerebral, elas sugerem também um compromisso com um caso particular, que é o caso dos fenômenos redutíveis enquanto tipos, ou seja, sugerem uma perspectiva reducionista a respeito das capacidades causais (e dos próprios fenômenos em questão).

4 nAturAliSmo biológiCo: reduCioniSmo ou fiSiCAliSmo não-redutivo?

As reflexões de Pereboom e Kornblith sobre a redução e o fisicalismo não-redutivo evidenciam que a ideia de uma identidade das capacidades causais dos fenômenos, nos níveis micro e macro, acarreta uma identidade dos próprios fenômenos em questão (por exemplo, fenômenos mentais e fenômenos neurológicos), o que revela que, na medida em que suas reflexões sugerem a identidade entre as capacidades causais da consciência e do cérebro, Searle se aproxima do reducionismo. Porém, a leitura de que Searle afirma a identidade das capacidades causais, como já apontamos anteriormente, não é a única possível.

Formulando, em termos gerais, a sua concepção da redução causal, ele defende que, quando um fenômeno é causalmente redutível a outro, ele “[...] não tem poderes causais em adição aos poderes causais” (SEARLE, 2004, p. 119) desse outro fenômeno. E, ao se referir ao caso específico da redução causal da consciência, Searle escreve, de modo explícito: “[...] a consciência é causalmente redutível a processos cerebrais, porque [...] a consciência não tem capacidades causais por si mesma em adição às capacidades causais da neurobiologia subjacente” (SEARLE, 2002b, p. 60, grifos nossos). Embora essa afirmação possa ser lida como uma inconsistência (uma vez que ela contradiz explicitamente a defesa que Searle faz da eficácia causal da consciência – “[...] a consciência funciona causalmente na produção de movimentos corporais e outros efeitos físicos no mundo” (SEARLE, 2007, p. 171)), tal atribuição exclusiva da verdadeira eficácia causal aos processos cerebrais nos parece apontar um caminho através do qual o naturalismo biológico de Searle poderia ser aprimorado: explicar a relação entre os poderes causais da consciência e do cérebro, por meio do conceito de constituição.

Conforme exposto anteriormente (cf. seção 3), na versão de fisicalismo não-redutivo defendida por Pereboom e Kornblith, os poderes causais dos fenômenos mentais não são idênticos, nem enquanto tipos, nem enquanto ocorrências, aos poderes causais dos processos cerebrais subjacentes, mas são constituídos (enquanto ocorrências) por esses poderes causais neurobiológicos. De acordo com a noção de constituição de ocorrências (token constitution), defendida por eles, “[...] os poderes causais de uma ocorrência do tipo F são constituídos pelos poderes causais do tipo G apenas no caso em que a ocorrência do tipo F tem os poderes causais que ela tem em virtude de ser constituída por uma ocorrência do tipo G” (PEREBOOM; KORNBLITH, 2004, p. 714, grifos nossos). Tomando o exemplo de um fenômeno mental como a dor (segundo a opinião corrente, realizável de modo múltiplo), devemos considerar que, embora a dor de um indivíduo A possa ser realizada pelo processo cerebral P1, enquanto a dor de um indivíduo B possa ser realizada pelo processo cerebral P2 (onde P1 e P2 são ocorrências de tipos diferentes), tanto a dor de A quanto a dor de B possuem (em certo sentido) os mesmos poderes causais (ambas causam o mesmo tipo de comportamento, correspondente à dor), ainda que, no caso da dor de A, esses poderes causais sejam constituídos pelos poderes causais de P1, ao passo que, no caso da dor de B, esses poderes causais sejam constituídos pelos poderes causais de P2.

Figura 6

Esse panorama é compatível com a negação da identidade de tipos entre consciência e atividade cerebral defendida por Searle – “[...] as características de primeira pessoa são diferentes das características de terceira pessoa” (SEARLE, 1992, p. 117) [29] – mas incompatível com as passagens nas quais ele sugere uma identidade de ocorrências – “[...] um e o mesmo evento é uma seqüência de descargas neuronais e é também doloroso, [...] toda ocorrência de um processo de dor é uma ocorrência de um processo neurobiológico” (SEARLE, 2004, p. 125).[30] Nessa passagem, Searle nos parece seguir uma direção equivocada, pois a ideia de uma constituição das capacidades causais da consciência pelas capacidades causais da atividade do cérebro é mais vantajosa do que a ideia de uma identidade de ocorrências entre tais capacidades, porque permite uma superação do reducionismo consistente com o fisicalismo.

Segundo uma crítica amplamente difundida, todo dualismo de propriedades (inclusive o dualismo atenuado de um fisicalismo não-redutivo) se mostra insustentável, por não conseguir explicar de modo coerente a eficácia causal dos fenômenos mentais. Se há uma diferença entre propriedades físicas e mentais (ou, como quer Searle, objetivas e subjetivas), só temos três opções: 1) ou as propriedades mentais são ineficazes (epifenomenalismo); 2) ou as propriedades físicas e mentais são causas parciais de seus efeitos (o que rompe o fechamento causal do mundo físico); 3) ou os efeitos (no caso, nossos comportamentos e ações) possuem duas causas (sobredeterminação).[31] A conclusão é que a única forma de se permanecer fisicalista é aderindo ao reducionismo.[32]

Na visão de Pereboom e Kornblith, tal problema não se coloca para a forma de fisicalismo não-redutivo proposta por eles, na medida em que a negação da identidade entre propriedades mentais e físicas (antirreducionismo) não nos obriga a escolher entre as três opções elencadas acima, porque os poderes causais da mente não são nem insuficientes (opções 1 e 2), nem independentes (opção 3) dos poderes causais do cérebro, mas completamente constituídos por esses poderes causais neurobiológicos. A explanação de um determinado comportamento, em termos de estados mentais, não está em competição com sua explanação em termos de processos neurobiológicos, “[...] porque os poderes causais mentais referidos na explanação psicológica são totalmente constituídos [made up] pelos poderes causais referidos na explanação física” (PEREBOOM; KORNBLITH, 2004, p. 724).[33]

Apesar de toda a falta de clareza de Searle a respeito da relação entre as capacidades causais da consciência e do cérebro, existem elementos no seu naturalismo biológico que dão margem para uma interpretação nos termos de um fisicalismo não-redutivo, como o exposto acima. Em uma passagem decisiva de seu livro Mind: a Brief Introduction, ele escreve, de modo bastante elucidativo:

Esse ponto é tão crucial para todo o argumento deste livro que irei explicálo em algum detalhe. O fato de que os poderes causais da consciência e os poderes causais de sua base neuronal são exatamente os mesmos mostra que não estamos falando sobre duas coisas independentes, consciência e processos neuronais. Se duas coisas no mundo empírico real tem uma existência independente, elas tem que ter diferentes poderes causais. Mas os poderes causais da consciência são exatamente os mesmos que os do seu substrato neuronal. Essa situação é exatamente como a dos poderes causais de objetos sólidos e dos poderes causais de seus constituintes moleculares. Não estamos falando sobre duas entidades diferentes, mas sobre o mesmo sistema em diferentes níveis. (SEARLE, 2004, p. 127-128, grifo nosso).

Essas afirmações podem ser interpretadas no sentido de que dois tipos diferentes de entidades (fenômenos conscientes e processos cerebrais) não possuem “existência independente”, pois um desses tipos (a consciência) depende do outro (a atividade cerebral), o que se evidencia no fato de que os poderes causais da consciência são exatamente os mesmos poderes causais da atividade do cérebro.[34] Uma vez que a diferença entre as propriedades em cada nível de descrição inviabiliza uma identidade de tipos (cf. nota de rodapé no 7), Searle parece se encaminhar para a ideia de uma identidade de ocorrências, isto é, a ideia de que as propriedades subjetivas e neurobiológicas (que são diferentes) são instanciadas pelos mesmos concretos particulares – “[...] um e o mesmo evento é uma seqüência de descargas neuronais e é também doloroso” (SEARLE, 2004, p. 125) – ideia que tem como consequência, para as  capacidades causais, o epifenomenalismo, visto que é mais razoável atribuir eficácia causal às propriedades neurobiológicas.[35]

Entretanto, Searle nega reiteradamente o epifenomenalismo (cf., p. ex., SEARLE, 2004, p. 114) e, quando ele escreve que os poderes causais da consciência e do cérebro são os mesmos, exatamente como no caso “[...] dos poderes causais de objetos sólidos e dos poderes causais de seus constituintes moleculares” (SEARLE, 2004, p. 128), que se encontram em diferentes níveis de complexidade, essa afirmação mostra que existem elementos no naturalismo biológico que o aproximam da teoria de Pereboom e Kornblith, porque Searle também se refere ao fato de que as entidades no nível superior são constituídas por entidades de nível inferior. De acordo com ele: “A abordagem que considera as coisas grandes como constituídas de coisas pequenas fez tamanho sucesso na ciência que mal conseguimos resistir a ela. A teoria atômica, a teoria celular e a teoria microbiana são exemplos disso” (SEARLE, 2002a, p. 56).

Não há dúvida de que Searle (2004, p. 125) enfatiza a noção de identidade de ocorrências e abre margem para a ideia de uma identidade das capacidades causais (cf. a seção 2 acima), mas nós consideramos que esses são equívocos do filósofo, já que tais posicionamentos levam aos diversos problemas que discutimos, no presente trabalho. Por mais que Searle rejeite o valor da noção de superveniência constitutiva para a filosofia da mente36, acreditamos que seria muito proveitoso para o naturalismo biológico que ele fosse rearticulado em termos do conceito de constituição.

ConSiderAçõeS finAiS

O fato de Searle, simultaneamente, defender a irredutibilidade ontológica (cf. SEARLE, 1992, p. 117; 2002b, p. 60; 2004, p. 119) e sugerir a identidade entre os poderes causais (SEARLE, 2002b, p. 60; 2004, p. 127-128) constitui uma incoerência de sua teoria, pois a identidade dos poderes causais leva a uma identidade de tipos entre a consciência e a atividade cerebral, que é, por sua vez, incompatível com a irredutibilidade ontológica.

propriedades em questão: as mentais ou as neurobiológicas. Naturalmente, estas últimas são a opção mais plausível, de modo que as propriedades mentais resultam epifenomênicas (causalmente inertes).

36 No caso da superveniência de propriedades morais sobre propriedades naturais, “[...] as características de um objeto que o fazem bom não causam que ele seja bom, mas antes constituem sua bondade [goodness]. Mas no caso da superveniência mente/cérebro, os fenômenos neurais causam os fenômenos mentais” (SEARLE, 1992, p. 125). Em virtude do fato de a relação entre processos cerebrais e consciência ser uma relação causal, Searle acredita que a superveniência constitutiva não tem lugar na filosofia da mente: “Portanto, há pelo menos duas noções de superveniência: uma noção constitutiva e uma noção causal. Creio que somente a noção causal é importante para as discussões do problema mente-corpo” (SEARLE, 1992, p. 125).

Entretanto, essa incoerência não é inevitável, primeiramente, porque a identidade entre os poderes causais da consciência e da atividade cerebral não é explicitamente afirmada por Searle[36] e, em segundo lugar, porque o naturalismo biológico (inclusive em virtude de sua grande imprecisão a respeito dessa questão das capacidades causais) também pode ser interpretado de maneiras que não o comprometem com a identidade dos poderes causais.

Se o naturalismo biológico de Searle concebe um sistema físico (o cérebro) com dois tipos de propriedades (subjetivas e objetivas), onde um tipo de propriedades sobrevém ao outro (sendo que essas propriedades de base é que seriam o fundamento da eficácia causal das propriedades supervenientes), então uma teoria como a de Pereboom e Kornblith, baseada na noção de constituição de ocorrências, se mostra uma saída bem mais viável para o naturalismo biológico.

É bem verdade que Searle não estaria inclinado a aderir a esse tipo de teoria (cf. 1992, p. 125). Entretanto, uma teoria de constituição é certamente bem mais viável do que a confusa teoria de Searle a propósito das capacidades causais, porque permite: (a) refutar o reducionismo; (b) manter o fisicalismo; e (c) explicar de modo mais plausível a relação entre as capacidades causais da consciência e do cérebro (cf. PEREBOOM; KORNBLITH, 2004, p. 724).[37] Por isso, concluímos que a adoção de uma forma de fisicalismo não-redutivo, baseada no conceito de constituição, seria um caminho promissor para que se pudesse aprimorar o naturalismo biológico.

ABSTRACT: The paper examines Searle’s conception of the reduction of consciousness (especially his theory of its causal powers), which seems confused and incoherent. Such incoherence, hovever, is not inevitable, as biological naturalism has elements that enable the articulation of a better theory of causal powers. An examination of Pereboom and Kornblith’s theory allows us to understand why an identity statement of causal powers leads to a reductionism. This theory indicates a promising path for improving biological naturalism.

KeYWORdS: Consciousness, Reductionism, Mental causation, Non-reductive physicalism.

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Recebido em: 29.08.2012

Aceito em: 17.03.2013



[1] O presente trabalho foi produzido no âmbito do projeto de pesquisa “O naturalismo biológico de John Searle e o fisicalismo não-redutivo”, registrado no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Agradecemos aos pareceristas anônimos da Trans/Form/Ação por suas proveitosas observações e sugestões.

[2] Doutor em Filosofia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha). Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFPE (Mestrado). E-mail: tarikbilden@yahoo.de

[3] Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor Assistente do Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes (ICHCA) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). E-mail: max.biophilo@gmail.com

[4] Para uma apresentação mais detalhada da teoria e uma discussão de suas teses básicas, ver: SEARLE, (1999, p. 53; 2004, p. 113-114; 2007, p. 170-171); CORCORAN (2001, p. 309); NIDA-RÜMELIN (2002, p. 205).

[5] É essencial perceber que a afirmação de que os poderes causais nos dois níveis são “os mesmos” não tem de ser, necessariamente, interpretada como levando a uma asserção de identidade entre a consciência e a atividade do cérebro, pois sustentar que os poderes causais são “os mesmos” é algo relativamente vago, que igualmente poderia ser interpretado, por exemplo, como a afirmação de que a consciência não tem poderes causais, que os únicos poderes causais são os do substrato neuronal (a consciência como epifenômeno, diferente da atividade cerebral, mas causalmente irrelevante). Em outro texto, ele escreve que “[...] a consciência não tem capacidades causais por si mesma em adição às capacidades causais da neurobiologia subjacente” (SEARLE, 2002b, p. 60). As citações em inglês foram traduzidas pelos autores do presente trabalho.

[6] “Nenhuma descrição dos fatos de terceira pessoa, objetivos, fisiológicos, iria expressar o caráter subjetivo, de primeira pessoa, da dor, simplesmente porque as características de primeira pessoa são diferentes das características de terceira pessoa” (SEARLE, 1992, p. 117).

[7] Ou seja, tratar “[...] sobre o mesmo sistema em diferentes níveis” (SEARLE, 2004, p. 128) não significaria uma asserção de identidade entre propriedades, pois, em cada nível de complexidade do sistema, teríamos propriedades ontologicamente diversas. Essa seria uma asserção a respeito do sistema, que seria portador tanto das propriedades objetivas quanto das propriedades subjetivas.

[8] “Na explicação que eu tenho proposto, estados mentais são supervenientes a estados neurofisiológicos no seguinte aspecto: causas neurofisiológicas de tipo idêntico teriam efeitos mentalísticos de tipo idêntico” (SEARLE, 1992, p. 124). “É certamente verdade que a consciência é superveniente ao cérebro” (SEARLE, 2004, p. 148).

[9] “A atual popularidade do fisicalismo antirreducionista é devida, em sua maior parte, à influência do argumento baseado na realização múltipla, originalmente desenvolvido por Hilary Putnam e reelaborado por Jerry Fodor” (KIM, 1993, p. 310).

[10] Comentando o livro A Redescoberta da Mente, Suzanne Cunningham (2000, p. 34) afirma que parte do que Searle apresenta nessa obra soa razoavelmente próximo ao fisicalismo não-redutivo. Para embasar sua avaliação, a autora cita a seguinte passagem do livro: “Aquilo em que quero insistir sem cessar é que podemos aceitar fatos óbvios da física – por exemplo, que o mundo é constituído inteiramente de partículas físicas em campos de força – sem, ao mesmo tempo, negar os fatos óbvios de nossas próprias experiências – por exemplo, que somos todos conscientes e que nossos estados de consciência têm propriedades fenomenológicas irredutíveis bastante específicas” (SEARLE, 1992, p. 28).

[11] “Esta é uma das mensagens mais importantes deste livro. Desde que você revise as categorias tradicionais para que se adéqüem aos fatos, não há problema em reconhecer que o mental enquanto mental é físico enquanto físico. Você tem de revisar as definições cartesianas tradicionais de ‘mental’ e ‘físico’, pois elas eram inadequadas aos fatos em qualquer caso” (SEARLE, 2004, p. 118).

[12] Ele caracteriza a subjetividade ontológica do seguinte modo: “Estados conscientes só existem quando eles são experienciados por algum sujeito humano ou animal” (2002a, p. 41). “Para que sensações como a minha sede existam, elas têm de ser vivenciadas [experienced] por um sujeito, um ‘eu’ que está sedento” (2004, p. 111).

[13] “Se nós iremos manter essa terminologia completamente, nós precisamos de uma noção expandida do físico que permita seu intrínseco componente mental subjetivo” (SEARLE, 2004, p. 116).

[14] Searle teria sido mais preciso, nessa passagem, se tivesse empregado a expressão “não conscientes”, pois ele faz uma distinção entre inconsciente e não consciente: possuo a crença de que Brasília é a capital do Brasil, mesmo quando não estou pensando nisso, isto é, na maior parte do tempo, essa é uma crença inconsciente. Já a mielinização dos neurônios não é, de maneira alguma, um fenômeno mental (como é o caso de um estado inconsciente), sendo mais correto chamar a mielinização de um fenômeno não consciente (SEARLE, 1992, p. 221-223).

[15] Essa interpretação é reforçada pelo fato de Searle admitir que, normalmente, reduções causais levam a reduções ontológicas: “Onde temos uma redução causal bem sucedida, nós simplesmente redefinimos a expressão que denota o fenômeno reduzido de modo que o fenômeno em questão pode ser agora identificado com suas causas” (SEARLE, 1992, p. 115). Ver também: SEARLE (2004, p. 119).

[16] Jaegwon Kim formula a tese da identidade de ocorrências a respeito de eventos da seguinte maneira: “[...] todo evento que cai sob um tipo de evento mental também cai sob um tipo de evento físico (ou todo evento que tem uma propriedade mental também tem alguma propriedade física)” (KIM, 1996, p. 59).

[17] Conforme exposto anteriormente, as propriedades mentais são, para Searle, propriedades físicas: propriedades físicas subjetivas.

[18] Kim caracteriza o fisicalismo não-redutivo como um dualismo de propriedades “atenuado”, pois, ao mesmo tempo em que reconhece uma diferença entre as propriedades mentais e físicas (no caso de Searle, trata-se de uma diferença entre propriedades subjetivas e objetivas – que são, ambas, físicas), pretende ser uma teoria fisicalista, quando admite relações de dependência do mental em relação ao físico (cf. KIM, 1993, p. 340).

[19] Interessante notar que essa formulação de Searle confirma a leitura proposta acima, de uma afirmação de identidade do sistema aliada ao reconhecimento da diferença entre suas propriedades subjetivas e objetivas.

[20] Embora Searle mencione aqui a diferença entre níveis de descrição, nesse contexto, tal diferença parece se inserir em uma asserção de identidade, como aquela entre temperatura (nível macro) e energia cinética média das moléculas (nível micro). Para uma discussão mais detalhada do modo como a tese da identidade das capacidades causais parece levar a uma asserção de identidade da consciência com a atividade do cérebro, cf. PRATA (2009, p. 159-163).

[21] Em um de seus primeiros trabalhos sobre a filosofia da mente, Searle recusou a ineficácia causal da consciência, em termos que evocam uma identificação entre esta e a atividade cerebral, recorrendo a outras propriedades físicas passíveis de redução ontológica: “Estados mentais não são mais epifenomênicos do que são a elasticidade e a resistência a perfurações de um pneu de carro cheio, e as interações podem ser descritas tanto no nível superior quanto no nível inferior, exatamente como no caso análogo do pneu” (SEARLE, 1980, p. 455, grifos nossos).

[22] “Como eu, Searle sustenta que a consciência é superveniente de modo meramente natural ao físico. Ele admite que uma réplica zumbi é logicamente possível, sustentando que a consciência é meramente causada por estados do cérebro. Mas ele nega que isso seja uma variedade de dualismo, mesmo de dualismo de propriedades” (CHALMERS, 1996, p. 130). Nessa passagem, David Chalmers sugere que o uso do conceito de causação por Searle é um indício de que ele pensa a relação mente-cérebro como uma relação de superveniência natural, isto é, uma relação que não se dá em todos os mundos conceitualmente possíveis (concebíveis), mas apenas nos mundos possíveis, de acordo com as leis da natureza, o que torna essa relação, em sentido lógico ou conceitual, contingente.

[23] “É claro que tal esclarecimento não é fornecido pela explanação constitutiva por si mesma, mas sim em conjunção com o sistema de leis e explanações que governam a constituição especificada em seu domínio científico particular” (PEREBOOM; KORNBLITH, 2004, p. 712).

[24] “A explanação constitutiva da temperatura do gás, portanto, invoca propriedades que iluminam a explanação causal no nível de tipos [type-level] apresentada acima. Nesse caso, a explanação constitutiva nos provê com uma redução da explanação causal no nível dos tipos porque a explanação constitutiva ilumina essa explanação causal” (PEREBOOM; KORNBLITH, 2004, p. 712).

[25] “Não há uma explanação constitutiva que ilumine, em lugar de obscurecer, o processo genético enquanto tipo. Em geral, porque explanações constitutivas em termos de moléculas falham em iluminar explanações causais genéticas em nível de tipos, estas explanações causais não são redutíveis a explanações em termos de moléculas” (PEREBOOM; KORNBLITH, 2004, p. 713).

[26] Isso simplesmente porque há um único tipo correspondente, no nível macro, que abrange todas as ocorrências.

[27] Suponha-se que eu tenha o desejo de tomar sorvete – desejo D – e que, nos meus neurônios que realizam esse desejo, existe o conjunto de moléculas M, com os poderes causais P. Pereboom e Kornblith se questionam se o panorama seria alterado, caso eu não tivesse efetivamente em meu cérebro as moléculas M, mas outras moléculas M’, que seriam ocorrências do mesmo tipo de molécula. Evidentemente, a diferença entre as ocorrências (M e M’) desse tipo não afetaria as capacidades causais P do desejo D, donde se conclui que, assim como não há identidade de tipos, também não há identidade de ocorrências, mas sim uma relação mais flexível, que é a relação de constituição: “Você claramente poderia ter tido exatamente o mesmo desejo particular [token desire] por sorvete com seu poder causal psicológico particular D [token psychological causal power]. Portanto, um estado psicológico particular e seu poder causal particular podem permanecer os mesmos, ainda que sua constituição molecular particular [token], e desse modo seu poder causal molecular particular [token], sejam alterados. Esse resultado pode ser facilmente generalizado; portanto, quando um tipo de explanação não se reduz a outro, não há nem identidade de tipo [type] nem de ocorrência [token] entre os poderes causais” (PEREBOOM; KORNBLITH, 2004, p. 714-15).

[28] Pensemos no caso em que a sede de Maria causa seu movimento de levar um copo de água à boca.

[29] Vale lembrar que, ao mesmo tempo em que ele nega a identidade entre propriedades subjetivas e objetivas, quando Searle explica a relação entre a consciência e o cérebro seguindo o modelo de propriedades como a temperatura ou a solidez, ele parece recair em uma tese da identidade entre propriedades (identidade de tipos).

[30] No prosseguimento dessa citação, Searle sustenta que, do fato de toda ocorrência de dor ser uma ocorrência neurobiológica, “[...] não se segue que a sensação dolorosa de primeira pessoa seja a mesma coisa que o processo neurobiológico de terceira pessoa” (2004, p. 125), o que está em harmonia com a afirmação de uma diferença ontológica de propriedades subjetivas e objetivas expressa em outra obra (SEARLE, 1992, p. 117).

[31] Sobre esse problema, ver: KIM (1995, p. 194)  e  PEREBOOM; KORNBLITH (2004, p. 723).

[32] Kim considera que o fisicalismo não-redutivo é uma posição insustentável, de modo que as únicas opções no debate mente-corpo seriam o dualismo cartesiano, o reducionismo e o eliminativismo (cf. KIM, 1993, p. 267). Entretanto, na visão dele, o dualismo cartesiano, exatamente como o fisicalismo não-redutivo, fracassa diante do problema da causação mental (cf. ibid., p. 339), de maneira que o reducionismo e o eliminativismo permanecem como as únicas opções.

[33] A relação de constituição se revela ainda vantajosa do ponto de vista científico, pois as informações provenientes da pesquisa do cérebro são relevantes para explicar e predizer os processos psicológicos, já que os poderes causais dos fenômenos mentais seriam totalmente constituídos por poderes causais neurobiológicos (explanação constitutiva). Enfim, além de propiciar uma boa objeção filosófica contra o reducionismo, a relação de constituição também é compatível com o programa de pesquisa das neurociências, o que confere, por sua vez, um caráter naturalista à proposta de Pereboom e Kornblith: compreender a neurociência é fundamental para se compreender a psicologia, apesar de esta não se reduzir àquela.

[34] A ideia de uma relação de dependência já sugere que Searle tem em vista alguma noção de superveniência e, de fato, ele escreve de modo categórico: “[...] é certamente verdade que a consciência é superveniente ao cérebro” (SEARLE, 2004, p. 148). Vale ressaltar que a noção de superveniência é tradicionalmente associada à irredutibilidade, ou seja, ela seria uma relação entre propriedades mutuamente irredutíveis (cf. KIM, 1993, p. 140). Quer dizer, temos mais um indício a favor da irredutibilidade, contradizendo os momentos reducionistas da argumentação de Searle.

[35] Segundo as reflexões de Pereboom e Kornblith, identidade das capacidades causais implica identidade de tipos, portanto, a não identidade de tipos acarreta a não identidade das capacidades causais, o que (diante da inviabilidade da sobredeterminação) nos obriga a atribuir a eficácia causal a apenas uma das

[36] Cf. a nota de rodapé no 5, acima.

[37] Conforme discutido na seção 4, acima, de acordo com eles, a ideia da constituição das capacidades causais permite evitar os dilemas a respeito da causação mental, uma vez que os poderes causais da mente não seriam nem insuficientes nem independentes dos poderes causais do cérebro, mas completamente constituídos pelos poderes causais dos processos cerebrais.