o compêndio de gramática hebraica de eSPinoSA é umA obrA more geometrico demonstrata?

homero Santiago[1]

ReSUMO: No prefácio das Obras póstumas de Espinosa, o inacabado Compêndio de gramática da língua hebraica é apresentado como um trabalho que, segundo a intenção do autor, quando concluída, assumiria a forma de uma exposição more geometrico da gramática hebraica. Nos estudos espinosanos, muitas vezes se buscou determinar o aspecto geométrico do trabalho, sobretudo em comparação com a Ética, ou então renegá-lo, afirmando a incongruência de aplicar-se tal método a um objeto, um idioma, inapreensível à geometria. A partir da reconsideração desses argumentos e do estudo de algumas passagens do Compêndio, acreditamos ser possível concluir que a obra era realmente redigida como uma exposição geométrica da gramática hebraica, o que se revela especialmente pela presença de um movimento ordenado e dedutivo a comandar sua composição.

PALAVRAS-ChAVe: Espinosa. Método geométrico. Gramática.

Espinosa morre em fevereiro de 1677, tendo publicado em vida apenas um livro sob seu nome (os Princípios da filosofia cartesiana, em 1663) e outro anônimo (o Tratado teológico-político, em 1670). Em novembro do mesmo ano, publicam-se as suas Obras póstumas, editadas por alguns amigos, que vêm finalmente apresentar ao mundo letrado da época parte significativa dos trabalhos que consagrarão o espinosismo como um dos expoentes da filosofia moderna: além das obras publicadas em vida, o Tratado da emenda do intelecto, o Tratado político, várias cartas e, sobretudo, a Ética demonstrada à maneira geométrica, o opus magnum do filósofo. No mesmo conjunto se incluía ainda um Compêndio de gramática da língua hebraica. Inacabado, com pouco mais de uma centena de páginas e cujo histórico nos é quase inteiramente desconhecido, de entre os trabalhos de Espinosa foi o que ao longo dos séculos menos interesse despertou nos leitores e, talvez por isso mesmo, seja ainda hoje o texto espinosano menos estudado. Com efeito, qual poderia ser sua contribuição para o correto entendimento do espinosismo? O que uma gramática pode ter a ver com a filosofia de Espinosa? Fato é que a combinação de incompletude da obra, desinteresse dos leitores pelo seu objeto (a língua hebraica) e carência de informações sobre sua gênese produziu, no caso do Compêndio, uma série de dúvidas acerca de seu caráter que o estudioso do espinosismo tem de enfrentar.

Os únicos dois documentos sobre a obra que possuímos são da lavra dos mesmos amigos que se encarregaram da edição do texto. Primeiro, uma nota de apresentação anteposta ao texto – “advertência ao leitor” – similar àquela que, no mesmo recolho póstumo, precede o igualmente inacabado Tratado da emenda do intelecto e cuja generalidade não ajuda muito a conferir um valor filosófico à obra.[2] O outro documento é o prefácio geral das Obras póstumas, que foi redigido em holandês por Jarig Jelles e posteriormente vertido ao latim por Luís Meyer. Na edição holandesa das obras espinosanas (De Nagelate Schriften), não foi incluído o Compêndio, e Jelles limita-se a justificar a ausência com a alegação de que quem deseja conhecer o hebraico deve primeiramente aprender o latim; já a versão latina do prefácio ganha o acréscimo de três parágrafos preciosos para a inteligência da gramática, especialmente no que se refere a sua forma final. Meyer faz um breve balanço das novidades da obra, demarca-a relativamente às gramáticas tradicionais, invocando a célebre assertiva espinosana de que muitos escreveram a gramática da Escritura e nenhum a gramática do hebraico; explica que, à primeira parte, quase concluída em seus 33 capítulos, seguir-se-ia uma outra que traria a “sintaxe ou construção dos nomes e verbos”; por fim, ele nos relata que Espinosa “[...] sempre teve a intenção de expor com luz a gramática hebraica demonstrada à maneira geométrica (in animo semper habuit hebræam grammaticam, more geometrico demonstratam, luci exponere)”.[3]

Detenhamo-nos nessa anunciada pretensão geometrizante, pois é sobre ela que desejamos insistir, com vistas a iluminar parte do vínculo que liga o Compêndio ao sistema espinosano. Está aí, a nosso ver, a indicação de uma particularidade capital da gramática, uma operação sui generis no interior do espinosismo: a aplicação do método geométrico a um objeto, a língua hebraica, que à primeira vista parece bem pouco dado a esse gênero de consideração. Tendo Espinosa se notabilizado justamente como filósofo do método geométrico, sendo este um dos aspectos dos mais vultosos de seu sistema, não temos o direito de escamotear o valor de empresa tão insólita. Não é difícil concebermos o método geométrico aplicado à substância, atributos etc., mas será tão simples supô-lo capaz de dar conta de um objeto histórico, instituído, como a gramática do hebraico? Ora, se o Compêndio de gramática da língua hebraica foi efetivamente concebido como uma obra more geometrico, isso há de garantir-lhe um posto singular no interior do corpus espinosano, ao empreender uma tarefa que nenhuma outra obra realiza e que, mesmo quando confrontada com a filosofia de sua época, mostra-se inusual.

Não vamos discutir as implicações disso, especialmente quais as condições de possibilidade desse projeto gramatical, uma vez que alhures já o fizemos em pormenor e permitir-nos-emos remeter o leitor para lá (cf. SANTIAGO, 2009). Nossa questão aqui é outra. Postulando, sob o apoio do estudo aludido, que é possível uma exposição geométrica do hebraico, cumpre indagar: Espinosa realmente chegou a praticá-la? Retomemos as palavras de Meyer: o autor do Compêndio “[...] sempre teve a intenção de expor com luz a gramática hebraica demonstrada à maneira geométrica”. Com todo direito, podemos perguntar-nos se é mesmo acertada a observação. O Compêndio estava realmente destinado a ser uma obra more geometrico ou estamos só diante de um desatino do prefaciador? Se sim, ela deixa entrever, ainda que inacabada, algo dessa forma? Ou quem sabe se tratasse de uma “intenção” real de Espinosa, só que jamais concretizada. Nos estudos espinosanos, as respostas a tais indagações nunca foram consensuais, chegando a ser opostas e, por isso, cremos valer a pena retomar a questão a partir de alguns pontos de vista que nos habilitem a reconhecer certos torneios expositivos que pensamos nos indicar claramente, por sua própria construção, que a obra era deveras projetada como uma gramática more geometrico da língua hebraica. Eis o ponto que pretendemos aprofundar, no escopo de fornecer uma resposta afirmativa à interrogação que intitula este trabalho.

Logo após chamar a atenção para a novidade da empresa de uma gramática da língua hebraica em vez de uma gramática da Escritura, Luís Meyer adverte ainda o leitor de que encontrará no Compêndio inúmeras coisas que noutras gramáticas não se acham facilmente; a principal dentre elas, acerca de que, insiste, recomenda Espinosa “meditar acuradamente”, expressase nesta passagem:

[...] todas as palavras (voces) da língua hebraica, salvo interjeições, conjunções e algumas partículas, têm a força e as propriedades do nome; por desconhecer o fato muitos gramáticos creram irregulares coisas que segundo o uso são regulares, e ignoraram ainda várias coisas necessárias ao conhecimento e eloquência da língua. (ESPINOSA, 1972, v. I, p. 303; 1987, p. 78).

É inevitável reconhecer que sobre essa peculiaridade da abordagem espinosana do hebraico sempre insistiram os estudiosos. O privilégio do nome, ou mais exatamente do “nome substantivo”, foi assimilado por muitos à posição destacada da substância, na Ética; em ambas as obras, a uma só categoria seriam conferidas a unicidade, a onipresença, e isso constituiria prova cabal do interesse filosófico do Compêndio; uma “[...] projeção do espinosismo sobre a língua hebraica”, como resumem os tradutores franceses da obra (ASKÉNAZI; ASKÉNAZI-GERSON, 1987, p. 14). Perpetrado tal ajuizamento, é com inteira naturalidade que se segue a indagação pelo método empregado pelo autor. Seria ele reconhecível não somente na compreensão do nome substantivo como também na sistemática exclusão de formas irregulares e na dedução de formas ausentes da Bíblia, por meio do raciocínio lógico ou luz natural;[4] além disso, garimpou-se no texto Compêndio, para firmar seu paralelo com o ordine geometrico da Ética, índices de uma geometrização inconclusa, que se apresentariam na constância de algumas formas: “por nome entendo...”, “daí facilmente coligimos os gêneros dos nomes...” etc., e noutras passagens que, em maior ou menor grau, se prestassem a serem acomodadas ao figurino geométrico.[5]

À guisa de modelo desse veio interpretativo do Compêndio, tomemos um importante estudo de Ze’ev Levy (1987), o qual erige como mote de leitura a ideia de normatividade. A indagação de que parte o estudioso, capital para entendermos os desdobramentos de sua análise, é se o racionalismo espinosano ter-se-ia refletido não apenas na epistemologia como ainda em “[...] áreas suplementares de seu pensamento filosófico geral”. O próprio Espinosa, pondera o estudioso (LEVY, 1987, p. 356), “[...] decerto teria respondido afirmativamente, pois lhe seria óbvio que alguém que usa argumentos racionais deseja empregar o mesmo método em todos os domínios abertos ao pensamento discursivo”; e daí o seu objetivo no Compêndio ter sido, sempre segundo Levy, dar a ver que “[...] o determinismo que reina na natureza e na filosofia comanda fortemente também a língua hebraica”. Dessa forma, a noção de normatividade, “[...] conformidade com regras linguísticas e normas”, não é a ser entendida como a mera prescrição de regras, mas antes “[...] esforço para descobrir regras gramaticais existentes e eficazes” (LEVY, 1987, p. 356), inferência de um “comportamento linguístico regido por regras (rule-bound)” (LEVY, 1987, p. 357); e é por meio dessa abordagem que seria possível demarcar a fronteira entre Espinosa e os gramáticos anteriores, visto ela responder pela instalação de uma análise imanente que não deixa intervir nas explicações senão o que é pertencente à própria língua (LEVY, 1987, p. 360-361). Chegamos por aí à questão do método. Se o Compêndio tinha por escopo ensinar a língua hebraica, e Levy acredita que sim, parece-lhe claro que a normatividade atua na obra, porque concebida como o melhor método para a aquisição da língua (LEVY, 1987, p. 363).

Traçado sumariamente o quadro, entretanto, há dificuldades que são incontornáveis; em particular, aquelas a que o racionalista Espinosa se fadaria no interior de seu próprio trabalho, ao defrontar-se com um objeto bem diferente dos da Ética. Ao tempo mesmo em que força a mão, ao explicar as exceções do hebraico, serve-se de um “método dedutivo” que constrói a exposição a partir de “fundamentos”, letras e vogais, que se aproximam dos axiomas ou noções comuns da Ética; expediente “artificial”, conclui Levy, que nos obrigaria a “[...] definir a gramática de Espinosa como uma gramática de certo tipo de linguagem formal que repousa sobre os dados do hebraico bíblico” (LEVY, 1987, p. 368369), e nela identificar o uso de “procedimentos indutivos”, uma apresentação de “[...] toda regra linguística como consequência lógica de uma regra anterior” (LEVY, 1987, p. 372, 388). Por meio de “considerações puramente teóricas”, Espinosa queria garantir a objetividade do hebraico; para tanto, fez apelo à sua metafísica, e “arbitrariamente” aplicou à gramática “algumas de suas concepções filosóficas gerais de substância, atributos e modos”; principalmente postulou a identidade entre nome e substância. Aí precisamente, conclui Levy, residiria o maior problema. “A prioridade que ele [sc. Espinosa] concede ao substantivo não é uma suposição imanente da gramática, mas antes de tudo uma consequência de seu ponto de vista filosófico geral” (LEVY, 1987, p. 372). O Compêndio é originalíssimo, avalia-se por fim, “para o melhor e para o pior”. “Uma das falhas capitais, ou quiçá vulnerabilidades, da gramática de Espinosa foi a tentativa de aplicar por uma via completamente arbitrária os princípios de sua metafísica ao domínio da gramática” (LEVY, 1987, p. 387). O filósofo teria errado feio, ao pretender exatamente o que “nenhum linguista moderno” ousaria fazer, ou seja, “[...] confinar os múltiplos fenômenos de uma língua natural, isto é, uma linguagem nem artificial nem formalizada, à prisão das regras a priori” (LEVY, 1987, p. 388).

Ora, enfrentados a tal panorama, o que concluir? De nossa parte, resumiríamos a situação em poucas palavras, dizendo que, crédito concedido ao diagnóstico de Levy, a filosofia e o método da imanência simplesmente puseram de lado toda imanência. Espinosa teria anatemizado em vão os gramáticos da Escritura, por interpretar a língua hebraica segundo o padrão bíblico (fizeram “gramática da Escritura”); ele mesmo, no entanto, não teria feito coisa diferente, senão apelado a outros cânones, os da razão, no caso representados por sua própria filosofia. Anthony J. Klijnsmit deu um esquadro felicíssimo do problema. Advoga também ele que o autor do Compêndio de gramática da língua hebraica teria interpretado o nome sob o calco de sua concepção de substância; logo, “[...] as próprias palavras de Espinosa voltar-seiam contra ele como as flechas de um guerreiro tártaro, e então seria verdade que ‘há muitos que escreveram a gramática da Bíblia, um que escreveu a gramática de sua própria filosofia, mas ninguém que escreveu uma gramática da língua hebraica’” (KLIJNSMIT, 1988, p. 191).

Muito provavelmente em razão de complicações de monta como essa é que surgiram leituras como a de Pierre-François Moreau, a renegar terminantemente as aproximações entre metafísica e análise gramatical. Até onde nos é cabível ajuizar, mais que ninguém esse autor insistiu que Espinosa não reduz a linguagem à mera inadequação e irracionalidade, e seu objetivo principal é preservar os direitos da experiência no espinosismo, investigando certo “[...] rigor arquitetônico do sistema” que entrelaçaria, sem transgressões, a “ordem geométrica” e a “ordem experiencial” (MOREAU, 1994, p. 553). Desse modo, conquanto inegável que críticas à linguagem não faltem no interior do sistema espinosano, pondera o estudioso que elas são válidas “[...] somente no interior de certos limites: os da esfera do raciocínio geométrico” (MOREAU, 1994, p. 326). Ao largo dessas fronteiras, teria elaborado Espinosa uma teoria do uso em que este se salienta no posto de intérprete das palavras, testemunha da história e guardião da língua (MOREAU, 1994, p. 333). O uso liga-se à vida, a linguagem é efeito da imaginação, e um efeito que obedece a leis, que “[...] reenvia a uma realidade específica e não a uma fonte de irracionalidade”, “[...] realidade que tem seu sistema de causas próprias” e uma “consistência própria” (MOREAU, 1994, p. 330). O domínio da experiência e do uso impõe um limite à razão, já que não depende dela, sem abrir-se embora ao irracional; o que em verdade descobrimos na linguagem e no uso, afirma Moreau, é “[...] um jogo de propriedades existentes que não se deduzem automaticamente das essências” (MOREAU, 1994, p. 338); por isso, ainda que para analisá-la levantássemos um edifício a partir de noções comuns, uma etimologia racional, isso nada nos ajudaria com os fatos da linguagem.

Esboçado esse horizonte, quando da abordagem específica do Compêndio de gramática hebraica, Moreau não poupa críticas a interpretações como as de Levy e, principalmente, lamenta o descaso com o papel do uso em prol da busca de relações entre a metafísica e a descrição do hebraico.

O fato de Espinosa referir todas as palavras do hebraico a uma categoria única – a de nome – é tradicionalmente aproximada da doutrina da unidade da substância. Da mesma forma quis-se ver no Compêndio um esforço para apresentar a gramática more geometrico; isso é negligenciar pelos menos uma de suas dimensões. (MOREAU, 1994, p. 339).

Em rodapé a tal passagem, o autor é ainda mais taxativo:

Os comentadores parecem não observar que Espinosa enuncia essa unidade de categoria para uma só língua, o hebraico, que se distingue explicitamente do latim nesse ponto. Ademais, a menos que se devolva ao hebraico o estatuto de língua sagrada, não vemos interesse em encontrar uma homologia (que Espinosa, por sua vez, não menciona) entre uma língua e a estrutura do ser. (MOREAU, 1994, p.339, nota 6).

De um lado, perderíamos os fenômenos que Espinosa reduz ao uso; de outro, esvaneceria o traçado de “[...] uma fronteira entre o que se pode explicar racionalmente e o que escapa a essa explicação”. Moreau então conclui acerca do que nomeia a “[...] questão das relações entre razão e gramática”:

Se a gramática se reduz completamente à razão, no fundo não há mais que uma língua universal. É uma questão que, sabe-se, percorre o século XVII. Está aí a retomada, na idade clássica, da velha identificação hebræa mater linguarum. Num caso como noutro, com efeito, pensa-se poder dar conta da divergência entre línguas singulares apenas sob a jurisdição de seu distanciamento de um modelo comum. Simplesmente a Razão como língua geral abstrata substitui o modelo fornecido por uma língua particular. Ora, o método de Espinosa o leva a romper nos fatos com um tal ponto de vista. (MOREAU, 1994, p. 340-341).

Pois bem, qual ensinamento extrair dessa incursão através dos estudos de Levy e Moreau? Prioritariamente, a complexidade das relações entre metafísica e gramática, por conseguinte a obscuridade que envolve o Compêndio tão logo o interroguemos sob o prisma do método. Bastará ao leitor sopesar os argumentos desses dois estudiosos para aperceber-se da atroz disparidade entre elas: o bem fundado de cada um é exata contrapartida do outro; e, pior, dado que um se apega a uma leitura racionalizante e outro a uma leitura experiencial, é quase inevitável concluir que razão e experiência se contradizem mutuamente no espinosismo, sendo a saliência de uma sempre o rebaixamento da outra. O que apregoa Levy? Espinosa é um racionalista, natural portanto que aplicasse a razão não só à filosofia como também a “áreas suplementares”; o ponto de vista da razão quis abranger em suas malhas o hebraico e considerou-o uma língua formal; resultado: a filosofia encarcerouse a si própria em seus apriorismos e tombou diante dos fatos, dos fenômenos linguísticos. E Moreau, por seu turno? A experiência acerta-se por si mesma sem a intromissão do racional; ciente disso, ressabiado e com medo de falhar perante os fatos, o filósofo respeitosamente acata os limites e decreta a independência da linguagem, daquelas “[...] propriedades que não se deduzem automaticamente das essências”; a razão fica à distância, olhando do alto aquilo que, se não chega a ser seu adversário, tampouco lhe tem parentesco.

Mas será mesmo que essas duas leituras, de que aqui fazemos exemplares, tanto diferem quando apreciadas mais de perto? Atravessando a crosta das oposições, não devemos admitir mais pontos em comum do que parece, de início? Em Levy, os objetos propriamente filosóficos e os suplementares; em Moreau, a ordem da razão e a da experiência. Tornadas estanques essas categorias, erguem-se fronteiras e instala-se o apartheid da metafísica e da língua, a separar razão e não-razão, apriorismo e aposteriorismo, essência e existência, filosofia e fatos, e quantos outros pares se quiser acrescentar. Contudo, uma vez perfilado a eles, admitamos que o Compêndio de gramática da língua hebraica faz figura inusitada e singular, aquela mesma que anteriormente afloramos. É uma obra transfronteiriça, que renega separar o que no entender de alguns haveria de vir em separado. Natural, pois, que leituras diversas da obra possam compartilhar pressuposições, sem embargo de divergirem no que concluem, ou para renegar ou para confirmar o paralelismo entre metafísica (estudo do ser) e gramática (estudo de uma língua), a aplicação ou não do método geométrico sobre um objeto não-geométrico. Natural, dissemos, porque diante da rígida bipartição entre o metafísico e o não-metafísico, a comunicação entre tais heterogêneos somente pode conceber-se como espelhamento, projeção, paralelismo, reflexão.[6] Arma-se assim um impasse e de duas uma: se o Compêndio for produto de um artifício dessa estirpe, pouco importando sua designação, não saberíamos escapar da já aduzida crítica de Klijnsmit; se não o for, apenas retornamos àquela velha dicotomia que outrora, nos estudos espinosanos, opunham Tratado teológico-político, Tratado político, de um lado, Ética, Tratado da emenda do intelecto, de outro, o acidental e o filosófico – só que agora, com sinais valorativos invertidos, a obra espinosana valeria tanto mais por sua atenção com a experiência e o não-racional.

Ora, para compreender o Compêndio em suas especificidades, será preciso abandonar essas campanhas demasiado positivistas;[7] chapadas ao ponto de suas sendas só poderem nos guiar em linha retíssima ao propalado dogmatismo espinosano, que, ao lançar-se sobre o mundo, não faria senão inventar um outro, podendo nisso, observou Kant certa feita, competir com o matemático (KANT, 1985, p. 90 n. 6). O terreno em que brota a exposição da gramática hebraica é bem mais escarpado. Todo reflexismo, todo projecionismo ou paralelismo desse gênero resulta de uma má fundada compartimentação da esfera do real, que pouco faz jus ao pensamento do século XVII. Não é gratuitamente que se procede a certas partições do terreno filosófico, não sem um preço alto que não nos é lícito lançar sobre as espáduas do que MerleauPonty chamava o “grande racionalismo”, pois é bem duvidoso que estivessem seus mais insignes representantes dispostos a arcar com qualquer custo, num pacto de apequenamento da filosofia. Com efeito, se algo há de louvável na filosofia seiscentista, e particularmente no espinosismo, é a compreensão da metafísica como um saber que desconhece o não-metafísico; e não por aracnianamente enredar tudo que lhe vem à frente, mas, ao contrário, porque sua própria constituição adquire solidez a partir dos objetos que ela interroga. No Compêndio, Espinosa não assume papel de filósofo da linguagem, assim como no Tratado político não faz as vezes de filósofo político, nem no Tratado da emenda traveste-se de epistemólogo. Ele jamais se furta a ser um filósofo que ignora compartimentações; e se sua metafísica eventualmente tombasse diante dos fatos, não o seria por deparar seu outro, mas antes – como o próprio sem sombra de dúvida nos autorizaria a repreender – por não ser verdadeira, por se ter feito presa de abstrações, aceitado o ensimesmamento da ciência e olvidado a primordial emulação do todo e suas ramificações. Guardemo-nos, portanto, de excogitar qualquer projeção, de pressupor heterogeneidade, delimitação entre os sítios do “racional” (geométrico, epistemológico, ou como se quiser nomear) e do “não-racional” (experiência, história, dado). O conjunto das obras espinosanas é pródigo em exemplos de intensa solidariedade entre esses campos; esferas que alhures se apresentam incomunicáveis, ou comunicáveis só por paralelismo, em Espinosa confundem-se num único passo. Para ficarmos apenas no que se refere ao procedimento metódico, há o capítulo 7 do Teológicopolítico que aglutina história e dedução no respeitante à interpretação tanto da natureza quanto da Escritura; a carta 37 e o Da emenda do intelecto, que determinam o surgimento do método a partir da experiência, do dado; e talvez acima de tudo há o Compêndio de gramática hebraica em que o uso e as regras protagonizam um firme enlace, de forma que a gramática se faça, não apesar do uso, mas por causa dele; só porque falamos pode haver gramática, assim mesmo como a geometria euclidiana é um segundo tempo relativamente à nossa experiência espacial (cf. SANTIAGO, 2009). Podemos destarte concluir sem o menor pejo: a aplicação do método geométrico à língua hebraica e a unicidade do nome não deverão revelar nem reflexão da filosofia sobre o nãofilosófico, nem acantoamento de experiência e razão cada uma de um lado. Levy e Moreau têm ambos boas razões para sustentarem seus pontos de vista e devemos tê-las em conta; em oposição às duas leituras, porém, gostaríamos de ajuizar que as similaridades entre a Ética e o Compêndio, acima invocadas, podem resultar não de uma projeção, mas justamente do emprego nas duas obras de um método similar. Como afirma o segundo parágrafo do prefácio das Obras póstumas, apresentam-se ao leitor “[...] livros em que quase todas as coisas são demonstradas matematicamente”, e é notável que ali não se faça nenhuma ressalva acerca da especificidade da demonstração matemática presente num ou noutro texto; se diferenças houver, elas se determinam mais pelos objetos (diversos) que pelo procedimento (único). É isto que deve ser doravante questionado. O que haverá de geométrico numa obra que, em vez de aplicar-se aos mais nobres e universais objetos da metafísica, debruça-se sobre uma língua determinada? É por não terem respondido à questão que alguns estudiosos extraviaram-se pela via projetiva que até aqui buscamos denunciar.

Antes de determinar o que pode haver de geométrico no Compêndio, precisamos saber algo do que vem a ser o geométrico em sentido mais amplo, no todo do sistema espinosano. No preâmbulo de uma pesquisa, convém sempre versar sobre o que se indaga. Ela raramente tem êxito, se nada sabemos do que é procurado; e a ficar nessa situação, restaria apenas o apelo ao procedimento canhestro do “entrou na rede é peixe” ou antes, no nosso caso, fez cadeia é geométrico. A fim de cumprir tal exigência, não seguiremos outra via senão tentar iluminar uma obra espinosana a partir de outra; dessa forma, não será de mãos vazias que abordaremos a geometria do Compêndio.

Até aqui falamos bastante e muito despreocupadamente em “método”; chega o momento de precisar o termo. Já porque no interior do espinosismo ele não escapa a certa polissemia, já porque há ainda algumas outras palavras que, às vezes de maneira intercambiável, remetem ao domínio da geometria e costumam até surgir sob a tradução usual “método” – além de methodus, encontramos mais ou menos com esse mesmo significado mos, ordo, ratio, regula, via.[8] Dotemo-nos então de certo desprendimento vocabular; para lá da variância na letra, cremos poder reduzir os usos desses termos a três grandes sentidos, ainda que sem a implicação de exclusividades nem a ausência de entrecruzamentos e justaposições.

Num primeiro sentido, “método” designa uma maneira, um mos que resulta em certa forma imediatamente identificável pela disposição da matéria em definições, axiomas, proposições, demonstrações etc., como ocorre na Ética e nos Princípios da filosofia cartesiana. O mesmo termo também pode ser equacionado a ordem, ou seja, um movimento dedutivo que opera graduada e demonstrativamente, conquanto não se apresente de necessidade sob definições, proposições etc.; entre outras obras, podemos citar o Tratado teológico-político, o Tratado político e ainda, para reforçar a ausência de exclusivismos, a Ética e os Princípios há pouco mencionados. Por fim, existe um terceiro sentido de “método”, aquele surgido prioritariamente no Tratado da emenda do intelecto e que faz do método “ideia da ideia”, um processo reflexivo.[9]

De qual desses “métodos” partir? Qual mais se concerta às nossas indagações sobre o Compêndio? Afastemos prontamente o primeiro sentido, sob a fiança de nossos olhos. Se algum dia Espinosa pretendeu arranjar sua gramática em definições, proposições e axiomas, o estado presente do texto sequer permite afirmá-lo, muito menos investigá-lo; uma empresa como a que vimos ser a de Porges (1924-1926), a montagem de um texto geométrico a partir do texto corrente, é uma espécie de exercício anagramático que não produz nenhuma certeza; outros tantos textos poderiam igualmente ser assim dispostos, sem que avançássemos um só passo na compreensão do método geométrico espinosano. Posição semelhante parece-nos poder ser assumida com relação ao “método” do Tratado da emenda do intelecto. Não vamos dizer que as conclusões lá presentes sejam estranhas à Ética e a outras obras espinosanas (pensamos justamente o contrário), no entanto é certo que o sentido específico lá em jogo pouco nos auxilia quanto ao Compêndio, até por concernir mais a um processo que a uma disposição e dedução more geometrico. No final das contas, resta-nos apenas um sentido de método sobre que investir e tomar por guia, ao menos dentro dos limites impostos por nossos propósitos. Um sentido muito geral, o mais amplo que o termo pode assumir e que está por isso mesmo em consonância com outras filosofias seiscentistas, ou seja, o método geométrico como a assunção de uma ordem dedutiva. Exatamente o que Descartes, grande modelo de Espinosa nesses assuntos, estipulara como elemento condicionante da presença do “modo de escrever geométrico”, ao lado da forma demonstrativa. Como se explica ao final das Segundas Respostas, quer na análise, quer na síntese, a ordem é o elemento que dá a tônica da via geométrica, precipuamente dedutiva: “[...] a ordem consiste apenas em que as coisas que são propostas primeiro devam ser conhecidas sem precisão das seguintes, e depois de dispostas todas as demais assim, que sejam demonstradas só a partir das precedentes.” (DESCARTES, 1996b, v. VII, p. 155; 1996a, p. 370) Palavras que, sabe-se, são retomadas por Luís Meyer, com a anuência de Espinosa, no prefácio dos Princípios da filosofia cartesiana; prescrições, portanto, nas quais podemos nos fiar, pese embora sua generalidade, como expressão do pensamento espinosano acerca de ao menos um aspecto fundamental do more geometrico, qual seja, a ordem dedutiva.

Dado isso, a questão que nos toca é saber se o Compêndio pode ser dito satisfazer minimamente as exigências da dedução geométrica. Verificamos haver estudos que, nesse respeitante, batem fronte por fronte, como os de Levy e Moreau. É porque vale a pena levar em conta agora uma posição por assim dizer intermediária, que seria considerar o Compêndio de gramática hebraica nem obra geométrica nem obra apartada de uma ordenação racional, mas como a “história da língua hebraica” referida pelo Tratado teológicopolítico à guisa de etapa prévia imprescindível à descoberta de um método para a compreensão do idioma e do texto bíblico que o utiliza. É o parecer de Carl Gebhardt, que, anos antes daqueles dois comentadores e seguindo via diferente dos que situaram a obra ao fim da vida de Espinosa, quis vê-la como da época da redação do Teológico-político e, mais especificamente, como cumprimento das tarefas do primeiro conteúdo estipulado para a “história da Escritura” exigida pelo método interpretativo espinosano, ou seja, reiteremos, uma “história da língua hebraica”.[10] A identificação, claro, suscita dúvidas; mas nem por isso pode ser simplesmente descartada. Obras inacabadas como o Compêndio são o lugar por excelência das incertezas, e na leitura delas não é lícito ao intérprete seguir a regra meditativa cartesiana e alegar falso tudo que é duvidoso, sob pena de ficar impotente; cada dúvida, pelo contrário, tem de ser encarada com esperança de elucidação. Ademais, veremos, a equação não é nem um pouco despropositada a quem tem em mente os procedimentos espinosanos noutras obras além do Compêndio. Portanto, compreender o que poderia mover Gebhardt à sua conjectura (e, logo em seguida, adiantemos, por que o Compêndio não pode ser dito uma história) é um passo que guarda a virtude de lançar-nos no interior mesmo da questão do método geométrico espinosano, e numa boa situação apta a permitir-nos enxergar mais longe.

De maneira geral, o termo “história”, em seu uso clássico e seiscentista, designa um recolho de dados, organizados de maneira a possibilitar a determinação do objeto a ser estudado e a deposição de prejuízos que porventura o cerquem – é o que encontramos, por exemplo, quando Bacon nos fala de uma “história da natureza”. Porém, peculiarmente, no âmbito de algumas obras espinosanas, a história, um momento da experiência que ainda não é ciência, acopla-se à dedução, momento da ciência que já não é apenas experiência. É bem o que se tem no sétimo capítulo do Teológico-político, importante por ser o livro mesmo sobre que Gebhardt funda sua hipótese de leitura:

O método de interpretar a Escritura não difere em nada do método de interpretar a natureza; concorda até inteiramente com ele. Na realidade, assim como o método para interpretar a natureza consiste essencialmente em descrever (in concinnanda) a história da mesma natureza e concluir daí, com base em dados certos, as definições das coisas naturais, também para interpretar a Escritura é necessário elaborar a sua história autêntica e, depois, com base em dados e princípios certos, deduzir daí como legítima consequência o pensamento dos seus autores. (ESPINOSA, 1972, v. III, p. 98; 1988, p. 207).

Segundo tais prescrições, um arranjo escalonado deve ser perseguido no proceder do investigador: é pela prévia organização de uma história que ele alcança princípios, fundamentos que possibilitam uma dedução gradual. Em particular, a história possibilitaria descobrir o “fundamento” do objeto pesquisado, aquilo que encerra sua essência, seu universal.

Assim como ao estudar as coisas naturais procuramos, primeiro que tudo, aquelas que são absolutamente universais e comuns a toda a natureza, tais como o movimento, o repouso e as respectivas leis e regras, que a mesma natureza observa sempre e segundo as quais age continuamente, passandose depois gradualmente a outras coisas menos universais, também na história da Escritura é preciso, antes de tudo, procurar aquilo que é mais universal e constitui a base e o fundamento de toda ela, aquilo, enfim, que todos os profetas recomendam como doutrina eterna e de maior utilidade para qualquer mortal. (ESPINOSA, 1972, v. III, p.102; 1988, p. 211).

O fundamento opera como um limite entre a história e a dedução; nele principiamos para tudo derivar indo, “qual riacho” compara Espinosa (1972, v. III, p. 103; 1988, p. 212), do universal ao mais particular. No Teológicopolítico, o fundamento escriturístico será identificado no imperativo de “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos”, reconhecido propriamente como “[...] fundamento de toda a religião” (v. III, p. 165; 1988, p. 282). Na assertiva, encerra-se a doutrina de toda a Escritura e é dela que se deduzirão os dogmas da fé universal; ela dá o jaez próprio dos livros sagrados, de modo tal que, se mudada, a Escritura poderia ser expressão de qualquer outra religião, menos aquela que está em análise; uma única e diminuta passagem que contradiga o fundamento, e todo o edifício escriturístico, e por extensão a fé que é toda ela decorrente da Escritura, imediatamente desabaria.[11]

Em suas linhas gerais, essa estruturação é também perceptível noutras obras espinosanas, nas quais semelhantemente salienta-se a questão da passagem da história à ciência, da recolha e descrição à definição e dedução.[12] Nos Princípios da filosofia cartesiana, exposição geométrica do cartesianismo, a primeira parte se inicia por um Prolegômeno não geométrico que, considerado em sua funcionalidade, cumpre as tarefas do que seria uma história do cartesianismo similar à da Escritura e que, sobretudo, apresentanos o fundamento do cartesianismo, o cogito: “penso, logo existo”, verdade não por acaso qualificada de “[...] fundamento de toda a ciência”;[13] de tal maneira que a exposição espinosana da filosofia cartesiana possa inclusive ser concebida, no que lhe é cardinal, como exaustivo deslindamento do conteúdo da fórmula “penso, logo existo”; sem isso, talvez até fosse possível alcançar várias teses cartesianas, jamais porém o cartesianismo como sistema, em sua singularidade perante outras filosofias.[14] Por fim, podemos tecer sérias suspeitas de que até mesmo o Tratado da emenda do intelecto siga algo dessa organização. Conforme afirmado na carta 37, “o verdadeiro método” é o conhecimento do “intelecto puro, de sua natureza e suas leis”, o que exige primeiramente separálo da imaginação, distinguindo “as ideias verdadeiras e as demais, a saber, as fictícias, falsas, duvidosas”. Para lograr tanto, acrescenta Espinosa, “[...] ao menos quanto exige o método, não é necessário conhecer a natureza da mente por sua causa primeira, mas basta elaborar uma historíola da mente ou das percepções, do modo como ensina o Verulâmio” (ESPINOSA, 1972, v. IV, p. 188-189). Ora, essas prerrogativas são em boa parte cumpridas pelo Tratado da emenda, que, apesar de inconcluso, sabemos caminhar para uma definição que apresentasse a essência ou natureza do intelecto, a qual entretanto nunca poderia ser dada pela “historíola da mente ou das percepções”, simplesmente porque a história não trata de essências nem de causas.[15]

Sopesados esses argumentos, haveremos de aquiescer à identificação de Gebhardt? Será o Compêndio a “história da língua hebraica” preconizada pelo Tratado teológico-político e que vem ativar, no que lhe cabe, os passos deste trabalho? A dificuldade mais flagrante é que, no Compêndio, não há linha que faça alusão a “história”, e no Teológico-político Espinosa é categórico quanto à impossibilidade de alcançarmos algo assim: “[...] não podemos ter uma perfeita história da língua hebraica” (1972, v. III, p. 106; 1988, p. 215). Poderia alguém retorquir: talvez não a “perfeita”, mas a possível. E em parte – e somente em parte – deveríamos concordar: uma história suficiente para a interpretação bíblica, a apoiar-se na tradição das palavras, jamais no entanto a exigida por uma exposição geométrica que tem o dever de apreender a natureza e as propriedades do objeto; Espinosa não faria, se insistisse nisso, nada diferente do que ele denunciou nos gramáticos da Escritura, ou seja, errar por terras eivadas de incertezas e ao gosto da sorte (cf. SANTIAGO, 2009). Noutra tentativa, não seria o caso de supor a “história perfeita”, não do hebraico bíblico consignado no texto, porém a do hebraico vivo, usado? Alternativa apreciável e com mais de um mérito. Permitiria articular de vez o Teológico-político e o Compêndio nos termos mesmos exigidos pela distinção entre gramática da língua e da Escritura. Primeiro, porque o hebraico da “história” seria uma língua deveras florescente, ao menos à época bíblica; depois, uma vez que a história de ordinário acopla-se em outras obras espinosanas à dedução, sequer se faria necessário desdizer Meyer; o Compêndio teria de fato sido planejado como exposição geométrica, mas deveríamos entender os 33 capítulos que nos restaram como uma espécie de etapa prévia de fundamentação de passos dedutivos ulteriores que desconhecemos. Conjectura tentadora. Que pese não assentar-se diretamente em termos de Espinosa, possibilita conjuntar de modo coerente os dados do problema e, em última instância, beneficiar-se da razoabilidade da solução. As coisas se arranjariam bem assim, entretanto, se o próprio Espinosa, ao falar no Teológico-político de “história da Escritura”, não nos tivesse ensinado indubiamente “[...] como deve ser essa história e o que ela deve acima de tudo explicitar” (ESPINOSA, 1972, v. III, p. 99; 1988, p. 209). Do ensinamento do filósofo, nesse ponto, resulta claro que o Compêndio não é uma história justamente porque segue uma ordem dedutiva.

Já frisamos que a posição de Gebhardt era “intermediária” por ficar entre a de Levy e a de Moreau. Agora é possível precisar: o é igualmente porque a própria história, em certo sentido, é intermediária; é o termo médio que liga experiência e ciência, na medida em que leva a primeira a prestar valiosos serviços à segunda. Ordem, noção em cujo entorno gira boa parte de nossas questões, não é exclusividade das obras geométricas; também a história, como especificada pelo Tratado teológico-político, envolve um esforço ordenador. Quer dizer, em princípio ordem há numa obra geométrica e numa história, e se quisermos decidir o estatuto do Compêndio será necessário captar com precisão as diferenças desses dois modos de operar ordenadamente. Depreendemos do Teológico-político, do seu capítulo 7, que a ordem histórica é aquela que se imprime sobre um objeto conferindo-lhe uma organização tal que permita a apreensão imediata de certos conteúdos. Assim, a história da Escritura “[...] deve coligir as opiniões contidas em cada livro e reduzi-las aos pontos principais (ad summa capita redigere), por forma a encontrarem-se facilmente todas as que se referem ao mesmo assunto” (v. III, p. 100; 1988, p. 209). No interior do campo a que se restringe, recolhe a história todos os materiais e os dispõe de acordo com os seus grandes tópicos, dando forma a um catálogo raciocinado, grande instrumento remissivo que permite ter de pronto sob os olhos tudo o que respeita a um assunto, seja a vocação dos hebreus, sejam as cerimônias, seja qualquer outro. A eficácia da história, por conseguinte, aloja-se toda ela em sua composição e esconde-se sob a operação de ad summa capita redigere o material, a qual nos conduz da selva do casualmente disposto (sobre o mesmo tema, aqui está uma opinião, lá na frente por acaso outra...) à segurança e comodidade permitidos pela organização ponderada que concentra num único ponto as várias opiniões referentes a um mesmo assunto.[16] Com isso, a pergunta inevitável é: o Compêndio respeita tal cânone? Ora, sem delongas, um exemplo bastará para verificar a distância entre a organização histórica e a dedução geométrica e, logo na sequência, por que o texto da gramática afastase da primeira no mesmo passo em que se aproxima da segunda.

Transportemo-nos para o quarto capítulo do Compêndio, intitulado “Dos acentos”. Espinosa vem da apresentação dos chamados “fundamentos” da língua, as letras e vogais, com os quais o tema dos acentos encadeia-se naturalmente, uma vez que, tocando à pronunciação, devem deduzir-se das vogais. O capítulo propõe uma breve incursão pela gênese do sistema de acentos e prossegue pela apresentação de suas regras até que, em determinada altura, estanca com algumas explicações do autor.

Estas são as principais regras dos acentos, o quanto se pode conhecer só a partir das vogais (quantum ex solis vocalibus cognosci potest); resta ainda uma outra, a ser discernida a partir das preposições (ex Præpositionibus dignoscendi), que explicaremos em seu lugar. (ESPINOSA, 1972, v. I, p. 300; 1987, p. 60).

Observe bem o leitor que não defrontamos aí nenhuma exceção que obrigasse ao expediente do adiamento; a regra ausente aparecerá efetivamente no undécimo capítulo, que trata dos pronomes, depois de expostas as preposições no capítulo décimo. Ao perscrutar o ocorrido, notamos que a acentuação continua dependente das vogais, ou seja, conhecida a partir delas, só que Espinosa não podia ir além no capítulo sobre os acentos, porque a regra restante é proveniente de vogais em estado de regime, quando os nomes já não surgem sozinhos, mas postos em relações com outros.

Que as vogais do regime não se mantenham, mas mudem de vários modos, isto se dá porque os nomes são aumentados por ao menos uma sílaba, que, longa, traz para si o acento. [...] Portanto, é por causa das regras que os sufixos acarretam às vogais que se seguem tanto as mudanças dos plurais quanto do regime. (v. I, p. 336; 1987, p. 120).

Natural, pois, que a regra só possa ser conhecida após a intervenção das preposições. Se ela é conhecida a partir das vogais em regime, e o regime é uma relação, não há prescindir daquele nome que justamente é designado “relativo ou prepositivo” (v. I, p. 304; 1987, p. 67). Exemplo idêntico poderia ainda ser tirado do fim do mesmo capítulo sobre os acentos, quando diz Espinosa: “[...] seria agora o momento de mostrar quais palavras (dictiones) têm o acento na última sílaba e quais na antepenúltima [...] mas visto só se poder discernir isso a partir das vogais e letras (hoc ex solis vocalibus, & literis dignosci non potest), difiro o assunto até quando tratar dos verbos.” (v. I, p. 302; 1987, p.62)

Surge assim, com toda clareza, por que não se pode classificar o Compêndio como texto histórico, pouco importando se história da língua dos antigos judeus ou do hebraico seiscentista. É que, se fosse uma história, vernos-íamos obrigados a admitir que ali o autor deu as costas a suas próprias diretrizes. De fato, em conformidade com o Tratado teológico-político, uma história da língua hebraica deveria aglutinar, ao tratar dos acentos, tudo o que se refere aos acentos (sem dúvida um summum caput); nunca um tanto aqui, um pouco após as preposições, outro tanto junto aos verbos. Extensivamente, ao mesmo tempo em que demonstra que o Compêndio não é história, o exemplo aduzido demonstra que a construção da obra presta contas às exigências da dedução, seguindo uma ordem dedutiva. Como visto, enfatizava Descartes consistir a ordem numa perfeita montagem de consequentes e antecedentes. Pois é exatamente isso que se revela no Compêndio. Postergar uma regra de acentuação para depois das preposições é expediente que não difere em essência do calar sobre o corpo ou a imortalidade da alma até a Sexta Meditação ou não acomodar a prova ontológica na Terceira.[17] Do proceder histórico ao proceder geométrico está a distância entre a conferência de ordem a um dado – o que até pode eventualmente resultar no estabelecimento de cadeias dedutivas – e o movimento de uma dedução ordenada a que incumbe concluir um dado.

Outras passagens de igual teor, como essa do capítulo sobre os acentos, poderiam ser aqui aduzidas e analisadas. Além disso, pode-se ainda discutir o teor específico dessa ordem dedutiva que acabamos de identificar em atividade. Em sua generalidade, por exemplo, pouco dista da ordenação geométrica cartesiana, será ela legitimamente espinosana? Será idêntica àquela “ordem” presente no título da Ética demonstrada segundo a ordem geométrica? Qual seria a forma final do Compêndio se concluído? Seja como for, isso aqui pouco importa. O que temos parece-nos indubitavelmente suficiente para assegurar que o Compêndio de gramática da língua hebraica de Espinosa, inacabado embora, apresenta vestígios de uma montagem conforme ao método geométrico naquele sentido atrás estipulado, ou seja, uma ordem dedutiva. Razão por que devemos confirmar, sem nenhum receio, o acerto das palavras de Luís Meyer, no prefácio das Obras póstumas, com respeito aos planos espinosanos para o Compêndio de gramática da língua hebraica: a “[...] intenção de expor com luz a gramática hebraica demonstrada à maneira geométrica (more geometrico)”. A obra pode até ter restado sem conclusão, mas em definitivo havia um propósito geometrizante, identificável, a guiar a composição dos 33 capítulos que nos sobraram.

ABSTRACT: In the preface to Spinoza’s Posthumous Works, the unfinished Compendium grammatices linguæ hebrææ is presented as a work which, according to the author’s intention, would when completed take the form of an exhibition more geometrico of Hebrew grammar. In Spinoza studies, scholars often seek to determine the geometric aspect of the Compendium, especially in comparison with the Ethics, or to deny it, arguing for the incongruence of applying this method to an object – a language – which is inapprehensible to geometry. Upon reconsideration of these arguments and after the study of some passages of the Compendium, we believe it is possible to conclude that the work was in fact written as a geometrical exposition of Hebrew grammar, as revealed by the presence of an ordered and deductive movement that directs its composition.

KeYWORdS: Spinoza, Geometric method, Grammar.

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Recebido em: 07.10.2012

Aceito em: 28.02.2013



[1] Professor Associado do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 – 05508-900 – São Paulo / SP. E-mail: homero@usp.br A pesquisa de que resulta este artigo contou com apoio da FAPESP.

[2] Ver ESPINOSA, 1972, v. I, p. 286; 1987, p. 33: “O Compêndio de gramática da língua hebraica que te é aqui oferecido, benévolo leitor, começou o autor a escrevê-lo a pedido de alguns amigos seus, enamorados da língua sagrada, pois sabiam bem que ele, desde tenra idade imbuído dela e após se ter a ela dedicado através de muitos anos, tinha o gênio custosamente conseguido dessa língua e era nela versadíssimo; e sabê-lo-ão todos que o conhecem e não desdenharem ler por inteiro este escrito, que devido à morte intempestiva do autor ficou inacabado, como vários outros escritos seus. Seja como for, benévolo leitor, te fazemos partícipe disso e não duvidamos que o trabalho do autor e o nosso te prestará um bom serviço e te será muito grato.”

[3] Todas as citações do prefácio serão retiradas de Akkerman & Hubbeling (1979), que traz o texto original holandês do prefácio e a tradução latina de Luís Meyer. Os parágrafos acerca do Compêndio são os 75, 75a e 75b do texto latino.

[4] Cf. J. M. Hillesum, “De Spinozistische Spraakkunst”, Chronicon spinozanum, no 1, 1921. Apoiamonos aqui sobre as breves indicações de Ze’ev Levy (1987, p. 358).

[5] Porges (1924-1926), por exemplo, propõe a seguinte remontagem de trecho do cap. 3 do Compêndio (ESPINOSA, 1972, v. I, p. 293-294), dedicado ao xevá hebraico: “[...] apprime notandum... omne scheva pronunciandum vel initio vel in medio dictionis occurrere (Propositio); nam in fine nunquam pronunciatur (Demonstratio); Notandum hic est, quo... (Explicatio); atque hinc sit... (Scholium); Unde apparet... (Corollarium I); Unde sequitur... (Corollarium II); Porro hinc etiam patet (Corol. III).”

[6] Os termos são reveladores: Levy (1987, p. 356) fala em reflexão (“reflected”), Moreau (1994, p. 339) em “paralelo”, os tradutores da versão francesa do Compêndio, como já mencionado, afirmam a “[...] projeção do espinosismo sobre a língua hebraica” (ASKÉNAZI; ASKÉNAZI-GERSON, 1987, p. 14).

[7] O adjetivo “positivista” é a ser entendido aqui em sentido preciso: dualidade de incomunicáveis, como surgido nesta reminiscência de Bento Prado Jr. (2000, p. 210): “Lembro-me, ainda na década de 60, quando [Jacques] Vuillemin esteve aqui, pela primeira vez, e perguntou o que eu pensava em fazer no futuro. Disse a ele: ‘Penso em fazer algo como a lógica da psicanálise’, entendendo por lógica da psicanálise uma espécie de epistemologia. Essa resposta provocou indignação em Vuillemin, que disse: ‘Então você imagina que tudo é lógica no mundo?’. Obviamente, como bom positivista que era, Vuillemin era dualista, quer dizer, tinha o domínio da lógica de um lado, e o domínio da irrazão de outro, que é igualmente respeitável. Para ele, a filosofia não fala do mundo, fala da estrutura da linguagem, e o mundo se revela através da poesia, da pintura, do inconsciente – uma espécie de dualismo.”

[8] Quanto ao uso dos termos, consulte-se Giancotti Boscherini (1970). Observe-se que inexiste em textos espinosanos referência a um “estilo” geométrico ou sintético, como nas Segundas Respostas Cartesianas: syntheticus stilus (DESCARTES, 1996b, v. VII, p. 159).

[9] Cf. ESPINOSA (1972, Tratado da emenda do intelecto, §§ 36-37): “[...] não é o verdadeiro método procurar o sinal da verdade depois de adquirir as ideias, mas o verdadeiro método é o caminho para que a própria verdade ou as essências objetivas das coisas ou as ideias (tudo isso quer dizer o mesmo) sejam procuradas na devida ordem [...] o método nada mais é que o conhecimento reflexivo ou a ideia da ideia”.

[10] Cf. GEBHARDT, 1972, p. 626. O trecho do Tratado teológico-político em questão é o seguinte: “[A história da Escritura] deve conter a natureza e as propriedades da língua em que foram escritos os livros da Escritura e que os seus autores costumavam falar. Só assim se poderá, com efeito, examinar todos os sentidos que um texto pode ter de acordo com o uso comum da língua (ex communi loquendi usu). E uma vez que todos os autores, tanto os do Antigo como os do Novo Testamento, foram Hebreus, é evidente que a história da língua hebraica é necessária para se compreenderem, não só os livros do primeiro, que foram escritos nessa língua, mas também os do segundo, os quais, embora tenham sido divulgados noutras línguas, trazem, no entanto, hebraísmos.” (ESPINOSA, 1972, v. III, p. 99-100; 1988, p. 209).

[11] Cf. ESPINOSA, 1972, v. III, p. 165; 1988, p. 281-282: “[...] é a própria Escritura que explica, sem qualquer dificuldade ou ambiguidade, que a lei se resume em amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. E isto não pode ter sido adulterado ou escrito por uma pena apressada e deturpadora. Porque se acaso a Escritura alguma vez ensinou algo diferente disto, então deve ter também ensinado diferentemente todo o resto, já que isto é o fundamento de toda a religião, retirado o qual todo o edifício se desmorona no mesmo instante.”

[12] Saltando fora do terreno das generalidades (o único que aqui realmente nos interessa), admitamos que o caráter dedutivo do Teológico-político é problemático. Por um lado, é indubitável a presença, ao longo de todo o texto, da dedução, base do método interpretativo. Por outro, é igualmente certo que a investigação dedutiva vai estancar-se em determinado momento, sem atingir a condição de ciência, uma vez que a doutrina escriturística, como o patenteia todo o cap. 13, não admite demonstração matemática. Para outras considerações acerca do peculiar caráter dedutivo do Teológico-político, tomamos a liberdade de remeter a SANTIAGO (2000, cap. IV).

[13] Cf. ESPINOSA, 1972, Princípios da filosofia cartesiana, I, Prolegômeno, v. I, p. 143. Também p. 144: “eu sou [...] o primeiro fundamento de todo o conhecimento”; prop. 4, esc.: “[...] este enunciado penso ou sou pensante é o único e certíssimo fundamento de toda a filosofia”.

[14] Gilson (1930, p.300), que soube estimar o valor da exposição espinosana, dizia com razão: “Se se quisesse reduzir a uma fórmula tão simples quanto possível todo o conteúdo das Meditações metafísicas, poder-se-ia dizer que elas se reduzem exclusivamente a uma explicação exaustiva do conteúdo do cogito pelo princípio de causalidade”. Até certo ponto, é o que Espinosa faz, por outra via que a meditativa, em sua exposição do cartesianismo (cf. SANTIAGO, 2000).

[15] O Tratado teológico-político é claro a esse respeito, ao advertir que a Escritura, assim como a natureza, não dá definições (ESPINOSA 1972, v. III, p. 99; 1988, p. 208).

[16] Para uma análise mais detalhada do procedimento de ad summa capita redigere (que busca mostrar inclusive que é isso que Espinosa faz no Prolegômeno dos Princípios da filosofia cartesiana), ver SANTIAGO (2000, p. 212-214).

[17] Cf. DESCARTES (1996b, v. III, p. 266, carta a Mersenne de 24-12-1640): “Você não deve achar tão estranho que eu não prove, em minha segunda Meditação, que a alma seja realmente distinta do corpo, e que eu me contente de fazê-la conceber sem o corpo, visto que não tenho ainda naquele lugar as premissas de que se pode tirar essa conclusão; mas a encontramos depois, na sexta Meditação. E é a observar, em tudo que escrevo, que não segui a ordem das matérias, mas somente a das razões; ou seja, que não empreendo dizer em um mesmo lugar tudo o que pertence a uma matéria, porque me seria impossível prová-lo bem, havendo razões que devem ser tiradas umas bem mais adiante do que outras; mas raciocinando por ordem à facilioribus ad difficiliora, deduzo o que eu posso, tanto para uma matéria quando para outra; o que é, a meu ver, o verdadeiro caminho para bem encontrar e explicar a verdade.”