Além dA dicotomiA FAto/VAlor: JustiFicAção e legitimAção[1]

Denis Coitinho Silveira[2]

RESUMO: Meu principal objetivo, neste artigo, é analisar o problema da justificação moral para John Rawls, caracterizando a teoria da justiça como equidade como um sistema coerentista de justificação que conta com uma epistemologia coerentista holística, uma teoria do contrato social que introduz uma ontologia social e uma estratégia pragmatista de justificação na teoria contratualista. No escopo deste trabalho, examinarei o pressuposto pragmatista de justificação na teoria do contrato social, o qual faz uso do argumento da estabilidade social e legitimidade política para garantir a validade da regra, isto é, dos princípios de justiça, a partir de dois artigos centrais para este debate: “Justice as Fairness: Political not Metaphysical” e “Reply to Habermas” § 1, 2. Um objetivo específico será o de mostrar a complementaridade entre o descritivismo e o prescritivismo nessa estratégia de justificação que possibilita a superação da dicotomia entre fato e valor.

PALAVRAS-CHAVE: Dicotomia fato/valor. Sistema coerentista de justificação. Estratégia pragmatista de justificação.

situAndo o ProblemA

Os valores morais podem ser inferidos dos fatos? Se respondermos afirmativamente a essa questão, podemos resolver o problema do input metafísico em filosofia moral. Essa forma de resposta parece ser uma tendência atual com a defesa da naturalização da moral. Por outro lado, em que medida os valores morais não perderiam todo o seu valor “absoluto” em razão desta derivação contingente, o que poderia implicar em determinação? Este é o problema enfocado por uma abordagem moral tradicional, ao defender uma dicotomia entre as esferas de fato e valor, assumindo uma posição dualista, ao estipular uma esfera valorativa independente da esfera dos fatos3.

Uma outra alternativa é procurar apontar para a inseparabilidade das esferas normativa e factual, defendendo holisticamente e pragmatisticamente um tipo de justificação o qual não faz uso do conhecimento inferencial, mas assume que a coerência entre aquilo que é e aquilo que deve ser é a melhor maneira de justificar um critério objetivo de moralidade o qual não depende de um fundamento último[3]. Quero mostrar que a teoria moral de John Rawls, justiça como equidade (justice as fairness), toma por pressuposto um modelo coerentista de justificação, que procura superar a dicotomia entre a

3  Essa dicotomia entre fatos e valores é apresentada de forma clássica por Platão, com sua distinção entre uma esfera inteligível e outra sensível, em que o bem não é inferido de fatos contingentes, mas autojustificado. Na filosofia moderna, essa separação é apontada tanto por Hume como por Kant, com base na distinção feita entre is/ought e sein/sollen, respectivamente, o que remete a uma diferença intransponível entre juízos descritivos (sobre o que é) e juízos prescritivos (sobre o que deve ser). Moore, em sua obra Principia Ethica, ao formular o problema da falácia naturalista (ou argumento da questão aberta), parece apontar exatamente para o erro lógico de justificação da norma a partir dos fatos, pois se definiria o bom pelas outras propriedades que pertencem a todas as coisas que são boas. Assim, toda teoria moral que tenta definir, deduzir ou derivar um dever (uma propriedade moral) a partir de um ser (uma propriedade não moral), ou uma norma de um fato, cai na falácia naturalista. Alternativamente, Moore defende que bom é indefinível e uma qualidade não natural que pode ser detectada pela intuição. Ver MOORE, 1971, I, 10. Também, Wittgenstein, no Tractatus e em “A Lecture on Ethics”, parece subscrever essa distinção, ao defender que nenhum valor absoluto pode ser inferido de um valor relativo, pois nenhum enunciado de fato pode ser nem implicar um juízo de valor absoluto, isto é, um juízo ético. Ver WITTGENSTEIN, 1965, p. 6.

esfera factual e normativa, a partir de uma estratégia holística e pragmatista de justificação dos juízos e princípios morais[4].

Importante ressaltar, já no início deste trabalho, o que eu estou compreendendo quando digo que Rawls toma por pressuposto um modelo coerentista de justificação. Ele não apresenta uma teoria epistemológica coerentista e pragmatista, para a qual a validade das crenças se daria por sua coerência com um sistema coerente de crenças (holismo) e por sua eficácia em garantir seu próprio suporte (pragmatismo), para, só então, fundamentar sua teoria da justiça, pois defende a independência da teoria moral frente à epistemologia, filosofia da mente e teoria do significado, uma vez que ela (justice as fairness) pode oportunizar o método do equilíbrio reflexivo para obter uma convergência prática entre os juízos morais, os princípios morais e as diversas crenças gerais que compõem uma teoria moral (IMT, p. 288-291; KCMT, p. 306; JFPnM, p. 388), convergência que não é alcançada pela própria epistemologia, haja vista a discussão ainda sem fim entre fundacionalismo, coerentismo, contextualismo e, também, fundacionalismo moderado. Isto, é claro, não o impede de fazer uso de pressupostos de uma epistemologia desse tipo, já que o método do equilíbrio reflexivo é sabidamente coerentista, bem como sua concepção de justificação como consenso é pragmatista. E mais, acredito que sem esses pressupostos sua teoria moral é ininteligível. Para entender por que essa teoria moral seria superior ao utilitarismo, kantismo e perfeccionismo (modelo das virtudes), precisamos compreender esses pressupostos de holismo, construtivismo contratualista e pragmatismo, os quais possibilitam integrar o problema da justificação da regra moral com o problema da estabilidade social e legitimidade política, o que parece interconectar a norma moral com os fatos sociais, políticos e jurídicos e, dessa forma, resolver o problema do dualismo e dogmatismo. Tendo isso em mente, creio que a teoria da justiça como equidade pode ser apresentada como sendo composta de:

(i)            uma epistemologia coerentista holística (ECH), com o uso do procedimento do equilíbrio reflexivo (reflective equilibrium), o qual possibilita uma justificação completa a partir do nosso ponto de vista;

(ii)          uma teoria do contrato social (TCS), que introduz uma ontologia moral social, com o uso do procedimento da posição original (original position) a qual opera com uma justificação freestanding do ponto de vista das partes;

(iii)         uma estratégia pragmatista (EP) na TCS, que a modifica para uma teoria do contrato social pragmatista (TCSP), com o uso do procedimento do consenso sobreposto (overlapping consensus) para a garantia da estabilidade-legitimidade, alcançando uma justificação pública do ponto de vista dos cidadãos.

Esse sistema parece integrar o problema da justificação com a questão da legitimação, visto que a justificação será alcançada pela coerência entre as crenças morais socialmente reconhecidas (repúdio à escravidão e tolerância religiosa) com os princípios morais (igual liberdade, igualdade equitativa de oportunidade/diferença), construídos em um experimento mental que reconstrói esses valores e, depois, aplica um teste de aceitabilidade para ver se esses princípios podem gerar o seu próprio suporte moral, possibilitando a estabilidade social e legitimidade política. Como já analisei anteriormente os itens (i) e (ii) em Silveira (2011a e 2011b), meu propósito aqui é examinar as características de (iii), que apresenta um teste de aceitabilidade para os princípios de justiça, em função de sua legitimidade política, o que contrasta com o teste da estabilidade realizado na terceira parte de TJ, com o argumento da congruência entre justo e bem (TJ § 86, p. 567-577/496-505 rev.). O ponto central a ser investigado é saber se esse novo teste não implicaria em um abandono da normatividade. Minha estratégia será mostrar a interconexão e eficácia de todo sistema para responder ao problema do descritivismo. No que segue, procurarei apresentar a importância do pressuposto de complementaridade entre justificação e legitimação; depois, esclarecer os elementos que compõem o sistema coerentista de justificação e a estratégia pragmatista de justificação da regra e, por fim, tentar responder a uma crítica específica de que essa estratégia contextualista acarretaria em descritivismo.

comPlementAridAde entre JustiFicAção e legitimAção

Por que podemos dizer que Rawls parece estabelecer uma relação de complementaridade entre o problema da justificação da regra moral com a questão da estabilidade social e legitimidade política? Isso se dá por sua reformulação na forma de apresentar a justiça como equidade como uma teoria freestanding, a partir do artigo JFPnM de 1985, o que significa que os princípios de justiça passam a ser afirmados de forma autossustentada, não fazendo uso de um fundamento nas doutrinas abrangentes.  Assim, diferentemente do é que dito no parágrafo 86 de TJ, que defende a estabilidade dos princípios com o argumento da congruência entre o justo e o bem, o que significa um uso de um argumento transcendental da autonomia racional e sociedade bem-ordenada (TJ § 86, p. 577/505 rev.), a justiça como equidade não pode ser compreendida como uma doutrina abrangente (comprehensive) e isso leva à rejeição de uma teoria moral que busca identificar uma concepção de bem a qual deve ser reconhecida como verdadeira por todas as pessoas vistas como inteiramente racionais, sendo as instituições justas por promoverem esse bem, adotando uma estratégia coerentista que identifica um critério de justo que pode ser aceito por uma pluralidade de concepções de bem opostas e até mesmo incomensuráveis. Rawls assumidamente enfatiza que essa estratégia pode ser vista como uma aplicação do princípio da tolerância à própria filosofia, porque procura formular uma concepção política de justiça que não estará fundamentada em uma realidade ontológica independente e, por isso, essa concepção é política e não metafísica (JFPnM, p. 388). Tal estratégia parece apontar para um deflacionamento das aspirações racionais em oportunizar um ponto último de ancoragem para o estabelecimento de um critério normativo que seria a referência última para o estabelecimento das verdades morais. Dito de outro modo, é uma refutação de uma ontologia realista e uma epistemologia representacionalista. Alternativamente, Rawls parece estar aceitando a diversidade moral, isto é, aceitando a pluralidade das concepções de bem como um fato social. A tarefa da filosofia não será a de dizer quais dessas concepções de bem são de fato verdadeiras, mas oportunizar um procedimento para saber que concepções de bem podem ser socialmente aceitas. As concepções de bem que respeitam os limites especificados pelos princípios de justiça, por exemplo, podem alcançar o reconhecimento social não por serem verdadeiras, mas por serem justas, de acordo com um experimento mental que reconstrói o valor da imparcialidade e por garantirem a estabilidade social. Importante notar que a justificação aqui é tomada como um consenso, uma vez que a justificação é mais bem compreendida por sua tarefa prática de garantia de estabilidade do que como um problema epistemológico ou metafísico (JFPnM, p. 389).

Todavia, como é possível uma unidade social, dado não existir um consenso sobre o que é o bem? A estratégia parece ser entender a unidade social como restrita a uma concepção de sociedade como um sistema de cooperação social entre pessoas livres e iguais. Assim, a unidade social não é caracterizada pela afirmação de uma mesma concepção de bem, mas pela aceitação pública de uma concepção política de justiça para regular a estrutura básica da sociedade. É por isso que o conceito de justiça é freestanding, quer dizer, é independente e prioritário em relação a uma concepção de bem, no sentido que seus princípios limitam as concepções permissíveis e são escolhidos por garantirem estabilidade e legitimidade. O que causa um estranhamento nessa tese de complementaridade é que, em geral, justificação é tomada como um problema epistemológico (teórico) que procura estabelecer a validade da regra (ou crença), enquanto legitimação é vista como um problema político prático a respeito do direito no exercício da coerção política. Em Rawls, esses problemas parecem complementares, pois tanto o que possibilita a validade da regra quanto o que permite a coerção política é o consenso[5]. Isso parece implicar na rejeição da tentativa de validação de crenças por uma estratégia representacionalista, em que se teria um dualismo epistemológico entre aquilo que pode ser conhecido e as condições de possibilidade do conhecer. A justificação por consenso pode ser tida como uma alternativa ao representacionalismo, ao tomar como referência para a correção não a verdade, mas o que é resultado de uma deliberação social.

Para compreender esse projeto, é importante ter me mente que ele está restrito em estabelecer critérios normativos apenas para a estrutura básica da sociedade e suas instituições e não para todas as situações morais da vida privada. E, assim, para entender a possibilidade da unidade social, dadas as condições históricas de uma sociedade democrática, inicia-se com as ideias intuitivas básicas de cooperação social, reciprocidade, sociedade e pessoas morais, ideias presentes na cultura pública de uma sociedade democrática, de sorte que se estabelece, a partir dessa referência, uma concepção pública de justiça como uma base da unidade social (JFPnM, p. 411-413). O liberalismo político de Rawls consiste nessa abordagem freestanding, isto é, que estabelece o que é justo e correto não como algo derivado de doutrinas morais, religiosas ou metafísicas, mas como algo que pode ser autossustentado, sustentado na esfera política. Porém, qual é o significado da categoria do “político” nesse contexto? Creio que é legítimo explicar o termo da seguinte maneira: (i) é autossustentado, o que não impede a harmonização com valores privados das doutrinas abrangentes; (ii) é inclusivista ou pluralista, ou seja, pode ser endossado por todas as doutrinas abrangentes razoáveis; (iii) trata do critério moral-político objetivo em sua função prática de estabilidade social e não do estatuto ontológico e epistemológico do critério normativo; (iv) é razoável, o que acarreta uma atitude de tolerância[6].

Com essa explicação, em mãos, do que está implicado na categoria de “político”, podemos, então, perceber que essa unidade social possibilita a estabilidade em razão dos valores públicos comuns (de liberdade, igualdade, reciprocidade, por exemplo) que são assumidos em um consenso sobreposto (overlapping consensus). Esse consenso pode afirmar a justiça como equidade não como uma consequência de uma teoria abrangente, mas como suficiente para expressar valores que se sobreponham aos valores subjetivos sob condições razoáveis favoráveis, sendo entendida como uma concepção política que permite conceber como a unidade pode ser possível e estável em uma sociedade com a característica do pluralismo moral razoável através dessa estreita relação entre justificação e legitimação (JFPnM, p. 414; JF V, § 55, p. 184-188). Penso que é bastante acertada a maneira com que Maffettone conceitua essa complementaridade entre justificação e legitimação, na teoria rawlsiana, a saber, como um “institucionalismo normativo” (normative institutionalism)[7]. Assim, a justificação filosófica oferecida pelos princípios de justiça encontra a legitimação factual dada pela história legal de uma sociedade democrática. Dado o fato do pluralismo moral razoável em sociedades contemporâneas, em que temos justificações plausíveis em conflito, é possível confiar ou acordar sobre a mesma legitimação institucional para a estabilidade social pelas razões corretas. Creio que esta seja a força e a fraqueza da teoria rawlsiana em fazer uso de um modelo pragmatista de justificação. Ela parece salvar o pluralismo moral, em detrimento da ausência de um critério normativo. Penso que uma forma interessante, para ver que este não é o caso, é observar detalhadamente como se apresenta o sistema coerentista de justificação da justiça como equidade.

sistemA coerentistA de JustiFicAção

A teoria rawlsiana conta com um sofisticado e complexo sistema de justificação da regra que integra três tipos diferenciados de justificação e estabelece uma conexão com as ideias de estabilidade pelas razões corretas e legitimidade, a saber: (i) justificação pro tanto (pro tanto justification); (ii) justificação completa (full justification); (iii) justificação pública (public justification)[8]. Na forma com que eu compreendo a questão, a ideia geral da justiça como equidade, pois, é (i) construir os princípios de justiça como freestanding a partir de condições razoáveis que podem ser acordadas (justificação pro tanto ou freestanding do mecanismo de representação), com base em crenças morais ponderadas tomadas da cultura pública e (ii) testar a validade desses princípios pelo equilíbrio reflexivo completo (full), que é amplo (wide) e geral (general). Isso indica que os princípios devem ser testados pelo (iia) equilíbrio reflexivo amplo (wide), isto é, pela coerência com os juízos ponderados em todos os níveis de generalidade (justificação completa) e (iib) consenso sobreposto, quer dizer, pelo seu resultado de aplicação para as instituições democráticas, gerando estabilidade e legitimidade (justificação pública) (RH, § 1 e 2, p. 381-386).

Antes de expor a maneira que Rawls vê esses três tipos de justificação, quero apontar que isso corresponde à distinção entre os três pontos de vista na justiça como equidade, conforme apresentada em PL: (i) o das partes na posição original, (ii) o dos cidadãos em uma sociedade bem-ordenada e (iii) o nosso, enquanto estamos elaborando a justiça como equidade e examinando-a como uma concepção política de justiça (PL I, § 4.6, p. 28). Rawls destaca que os dois primeiros pontos de vista pertencem à concepção de justiça como equidade e são especificados por referência às suas ideias fundamentais. É o ponto de vista das partes como representantes racionais que especificam os termos da cooperação social, acordando sobre os princípios de justiça, e o ponto de vista dos cidadãos, os quais procuram ver tais princípios como um consenso sobreposto entre as doutrinas abrangentes razoáveis com o uso de uma justificação pública. O terceiro ponto de vista corresponde ao teste do equilíbrio reflexivo, pois quer ver como esta visão de justiça é articulada com nossas convicções morais-políticas em todos os níveis de generalidade[9].

Passo para a apresentação dos três tipos de justificação, como expostos por Rawls, em RH e PL.

A justificação pro tanto é uma justificação política, o que implica em apenas levar em consideração os valores políticos no que tange às questões constitucionais essenciais e de justiça básica. Os valores políticos são de dois tipos: (i) valores de justiça política que estão implícitos nos princípios de justiça para a estrutura básica: igualdade política, liberdade civil, igualdade de oportunidade, igualdade social, reciprocidade econômica e valores do bem comum; (ii) valores da razão pública que recaem sobre as diretrizes para a investigação pública: razoabilidade e dever de civilidade (PL VI, § 4.1, p. 224). A ideia da justificação freestanding é procurar responder a determinadas questões políticas, sociais e econômicas, apelando apenas para os valores políticos. Como a justificação política é pro tanto, ela pode ser rejeitada pelas doutrinas abrangentes dos cidadãos, quando da análise desses valores. Essa concepção política de justiça é autossustentada e corresponde ao ponto de vista das “partes” no procedimento da posição original (original position), porque elas devem estabelecer os princípios de justiça e os critérios da razão pública para sua aplicação (RH, § 2, p. 386; PL I, § 4.6, p. 28; VI, § 4.4, p. 225-226)[10].

A justificação completa é realizada por um indivíduo como membro da sociedade civil. Os cidadãos podem aceitar uma concepção política de justiça a partir dos seus valores identificados em sua doutrina abrangente (doutrina moral, religiosa, metafísica). Cada cidadão, individualmente ou coletivamente, deve dizer quais as reivindicações da justiça política são justificadas pelos valores não-políticos. Rawls ressalta que, embora a concepção política de justiça seja autossustentada, isso não implica em não levar em consideração os valores defendidos de forma abrangente em diferentes doutrinas razoáveis afirmadas pelos cidadãos. A justificação completa corresponde ao “nosso” ponto de vista no procedimento de equilíbrio reflexivo amplo (wide reflective equilibrium), procurando estabelecer a coerência entre os princípios construídos na teoria da justiça como equidade e os juízos ponderados dos indivíduos (RH, § 2, p. 386387; PL I, § 4.6, p. 28). Este é o ponto de vista em que a teoria da justiça como equidade é acessada. Há um apelo aos elementos pressupostos do consenso, de sorte que a justificação não pode se dar em um vácuo moral, sendo necessário um consenso moral mínimo. A situação do equilíbrio reflexivo é aquela em que os princípios os quais seriam escolhidos na posição original (igual liberdade e igualdade equitativa de oportunidade e diferença) são idênticos aos que combinam com os juízos ponderados (repúdio à escravidão e tolerância religiosa), que são pontos fixos provisórios, e, nesse sentido, os princípios descrevem nosso senso de justiça. O equilíbrio reflexivo é amplo, quando as convicções gerais, os princípios e os juízos ponderados estiverem em harmonia. Ele possui um importante papel para testar a hipótese formulada na posição original, além de servir para a justificação da própria crença moral[11]

A justificação pública se dá na sociedade política. Esta é a ideia básica do liberalismo político, juntamente com as ideias de consenso sobreposto razoável (reasonable overlapping consensus), estabilidade pelas razões corretas (stability for the right reasons) e legitimidade (legitimacy). A justificação pública ocorre quando todos os membros da sociedade política que são razoáveis podem sustentar uma mesma concepção política de justiça, relacionando-a com suas várias concepções abrangentes razoáveis. A justificação, aqui, é indireta, já que depende das doutrinas abrangentes razoáveis. É importante ressaltar que o conteúdo expresso nessas doutrinas abrangentes não possui nenhum papel normativo na justificação pública, pois não se chega ao consenso sobreposto através de uma média com os valores morais privados (RH, § 2, p. 387).

O caso básico da justificação pública é aquele em que a concepção política compartilhada é assegurada em equilíbrio reflexivo completo (full), isto é, amplo (wide) e geral (general), afirmando a concepção política sobre a base de suas várias doutrinas abrangentes razoáveis. Assim, para se dar a justificação pública da concepção política de justiça, deve existir um consenso sobreposto, o que corresponde a levar em consideração as convicções ponderadas dos outros cidadãos razoáveis, quer dizer, implica em reconhecer o pluralismo razoável. Esse equilíbrio reflexivo com respeito à justificação pública fornece a melhor justificação da concepção política de justiça. Tal justificação pública corresponde ao ponto de vista dos “cidadãos” em uma sociedade bem-ordenada no procedimento de consenso sobreposto razoável (RH, § 2, p. 386-388).

O que podemos concluir desse modo de apresentação desses três tipos de justificação e o que contará como uma justificação adequada de crenças, em um ambiente de pluralismo moral?  A resposta é que a justificação adequada de crenças morais será dada em equilíbrio reflexivo completo (full), que pode ser visto como um consenso sobreposto razoável e é uma condição necessária para a justificação pública (public), que eu identifiquei como uma TCSP, a qual supera e guarda os momentos anteriores da justificação política (pro tanto), identificada como uma TCS, e da justificação completa (full), caracterizada por mim como uma ECH. Assim, a alegada tensão entre um aspecto normativo kantiano da posição original e um aspecto contextualista do consenso sobreposto, que é feita por muitos intérpretes, como Habermas (1995, p. 119-122) e Scanlon (2003, p. 165-166), por exemplo, não é legítima, porque a justificação só será dada pela interconexão dos três procedimentos de justificação, em que os procedimentos do equilíbrio reflexivo, posição original e consenso sobreposto estarão em harmonia e não em tensão.

O que eu estou defendendo é que não existe um confronto entre dois tipos de justificação, uma normativa em TJ e outra descritivista em PL. Isso pode ser esclarecido se analisarmos o significado da distinção dos dois estágios de construção da justiça como equidade. Esses dois estágios correspondem às duas partes do argumento da posição original para o estabelecimento dos princípios de justiça. Em TJ, no estágio 1, as partes selecionam os princípios, sem levar em conta os efeitos das concepções de bem dos indivíduos, enquanto, no estágio 2, as partes se perguntam se uma sociedade bem-ordenada pelos princípios de justiça selecionados no estágio 1 pode ser estável, ou seja, se ela pode gerar um senso de justiça (senso moral) suficientemente forte para garantir a unidade social. No PL, o estágio 1 é visto como uma concepção moral-política de justiça autossustentada para a estrutura básica da sociedade que estabelece os princípios de justiça de forma provisória. É no estágio 2 que tais princípios são testados a partir da análise se a justiça como equidade é suficientemente estável[12].       

Com isso posto, podemos identificar que o processo de justificação se dá da seguinte maneira: (i) justificação autossustentada, em que é necessário o procedimento da posição original para o estabelecimento dos princípios de justiça: o véu da ignorância garante a condição de imparcialidade, enquanto o argumento dos bens primários oportuniza o elemento substancial; (ii) justificação completa, em que é necessário o procedimento do equilíbrio reflexivo amplo para estabelecer a coerência entre os princípios morais e as crenças morais dos agentes com a escolha da teoria moral mais razoável que reúne coerentemente, crenças morais e não-morais; (iii) justificação pública, em que é necessário o procedimento do consenso sobreposto para ver como os princípios morais podem ser assegurados de forma coerente com as convicções morais dos indivíduos pelo uso da razão pública para garantir a estabilidade e legitimidade. Note-se que se chega ao consenso sobreposto pelo equilíbrio reflexivo completo (full), isto é, que é amplo (wide) e geral (general), visto que os princípios de justiça são tomados como tendo valor a partir do consentimento dos cidadãos em uma sociedade democrática.

Esse sistema de justificação não é excludente, mas complementar, em razão de seu coerentismo e pragmatismo e, assim, a justificação pública incorpora os modelos justificacionais anteriores, o autossustentado e o completo, integrando os procedimentos da posição original e equilíbrio reflexivo, o que traz por consequência tomar como complementares os elementos descritivos e normativos e, também, os aspectos internalistas e externalistas para a justificação, ou seja, que leva em conta o ponto de vista, tanto em primeira quanto em terceira pessoa, para a justificação da crença moral e a consequente ação[13]. Essa complementaridade entre os aspectos descritivista e prescritivista, bem como entre os elementos internalistas e externalistas, será abordada com maior consistência na sequência do texto, em que focalizarei a estratégia pragmatista de justificação e o tipo de epistemologia (coerentista e pragmatista) que está pressuposto na justiça como equidade.

estrAtégiA PrAgmAtistA de JustiFicAção

O que foi abordado até aqui mostra que o consenso sobreposto razoável é um procedimento de justificação pública que integra a justificação autossustentada e a justificação completa e, dessa maneira, integra os procedimentos da posição original, oportunizando os valores de justiça política e o uso da faculdade da razão pública e seus valores, com o procedimento do equilíbrio reflexivo completo, que é geral, por afirmar a mesma concepção política de justiça, e amplo, por conectar essa concepção política com as crenças ponderadas dos indivíduos. O próximo passo é demonstrar que essa estratégia de justificação coerentista holística deve contar com o argumento da estabilidade pelas razões corretas e com o argumento da legitimidade, integrando uma estratégia pragmatista para a justificação da regra, que é externalista, indicando um sistema complexo de justificação coerentista que toma como complementares o holismo e o pragmatismo. Esse sistema de justificação não é dedutivo, indutivo e nem instrumental. Ele faz uso dos critérios de razoabilidade, reciprocidade, estabilidade e legitimidade de uma forma coerentista. Assim, esses critérios são válidos por sua coerência e eficácia dentro do sistema e não podem ser considerados de um modo independente, isto é, como premissas autojustificadas15.    

SOSA, 2008, p. 3-96; SOSA, 1995, p. 193-198; AUDI, 2003, p. 328-242; WILLIAMS, 2008, p. 292-298.

15                     A esse respeito, importante ver LEHNING, 2009, p. 144-145 e 167-172; MAFFETONE, 2010, p. 142-155; AUDARD, 2007, p. 33-34; FREEMAN, 2007a, p. 37-42; POGGE, 2007, p. 37-38. De forma geral, a literatura fala de coerentismo, contextualismo e pragmatismo em Rawls de uma forma não muito precisa. É oportuno salientar que o modelo coerentista de justificação defende que uma crença é justificada quando ela está em harmonia com um sistema coerente de crenças. Audi explica que, para o coerentismo holístico, a justificação não é inferencial, enfatizando o apoio mútuo entre as crenças no interior de um sistema, levando em consideração os sistemas de crenças. Assim, (i) cada crença é justificada em razão de sua coerência com uma ou algumas crenças e (ii) as crenças permaneceriam justificadas, mesmo se algumas das crenças não estiverem justificadas. Ver AUDI, 1988, p. 419-420. Uma maneira alternativa é afirmar que a justificação da crença se dá por sua coerência com um sistema coerente de crenças. O contextualismo epistemológico, por sua vez, concorda com o coerentismo em sustentar que não há crenças justificadas intrinsecamente que podem servir como um fundamento monolítico para um sistema de conhecimento moral, mas discorda do coerentismo, ao considerar que uma crença é justificada quando está baseada em crenças que não são

Até este ponto, eu evitei definir o que é uma justificação pragmatista e considerei como algo dado a associação desse conceito com a proposta de Rawls de encontrar a justificação a partir da legitimação. A esta altura, de posse da arquitetura da justificação rawlsiana, penso que uma definição é necessária para a melhor compreensão dos aspectos que compõem esse tipo de proposta. Parto do entendimento de que uma justificação pragmatista em ética ao estilo de Dewey, por exemplo, sustenta que a justificação é um problema prático antes que teórico, em que um juízo prático é um juízo sobre a adequação de um curso de ação para cumprir uma função específica e, dessa forma, é empiricamente confirmável. Da mesma maneira, um juízo moral é realizado para resolver um problema prático, em que são apresentadas diversas alternativas possíveis. Nesse contexto, o agente deve considerar as implicações funcionais para escolher a melhor alternativa viável entre as possíveis em uma convergência social, quer dizer, por uma justificação intersubjetiva da norma, em que se escolhe por um processo de deliberação que não está dissociado de uma consideração consequencialista. A ética, por conseguinte, está ligada à solução de problemas práticos e é guiada por vários suportes mútuos, tais como as ciências, a história, a economia, a política etc. e, em decorrência, supera a dicotomia fato e valor em razão da importância do contexto para justificação16.

elas próprias justificadas. E isso porque, para o contextualismo, uma crença não-básica é justificada por outras crenças que não são elas próprias autojustificadas, mas justificadas em um contexto. Ver TIMMONS, 2004, p. 6-7, 182. O ponto de aproximação entre o contextualismo e o pragmatismo se dá pela importância do contexto para a justificação das crenças que justificam as outras crenças. Ver TIMMONS, 2004, p. 7, 178-183. Tenho evitado dizer que a justificação em Rawls é contextualista, pois teria que abordar o problema de saber qual o papel epistemológico das crenças morais ponderadas que são identificadas na cultura pública da sociedade e tomadas como pontos fixos provisórios, tais como, “a intolerância é má” e a “discriminação racial é injusta”, e isto ultrapassa e muito as ambições deste trabalho. Sabe-se que são delas que se retiram as ideais fundamentais de sociedade cooperativa e pessoa moral ou, alternativamente, ideias de cooperação e reciprocidade que configurarão a base moral para a posição original. Elas seriam crenças básicas que fundamentariam as crenças não-básicas? Se sim, isso implicaria em fundacionalismo, fundacionalismo moderado ou contextualismo? Procurarei abordar essa questão em um trabalho posterior.

16                     Isso pode ser encontrado em DEWEY, 1932, p. 286-287 e DEWEY, 1915, p. 8, 17-19. Ver, também, um interessante artigo sobre a filosofia moral de Dewey em WELCHMAN, 2010, p. 166169, 174-177. Essa definição de justificação pragmatista é encontrada tanto em sua formulação clássica em Dewey, por exemplo, mas também em James e Pierce e contemporaneamente é encontrada tanto em Rorty como em Putnam. Aliás, a concepção de justificação usada por Putnam para a resolução de problemas morais é tomada de Dewey. Ver PUTNAM, 2004, p. 28-32 e PUTNAM, 1992, p. 17717 8. É, igualmente, a forma com que Rorty compreende o papel da justificação, situando-a em um ambiente prático antes que teórico. Ver RORTY, 2011, p. 175-196. 

Tendo isso em mente a partir deste ponto, podemos ver de que maneira a justificação em Rawls se encaixa com os elementos apontados em uma justificação de tipo pragmatista. Parto da definição de justificação usada por Rawls:

Preferencialmente, justificação é endereçada aos outros que discordam de nós e, dessa forma, deve sempre proceder de algum consenso, isto é, de premissas que nós e os outros reconhecemos publicamente como verdadeiras; ou melhor, que reconhecemos publicamente como aceitáveis para nós para o propósito de estabelecer um acordo viável sobre questões fundamentais de justiça política. (JFPnM, p. 394)[14].

Como a justificação não tratará de uma descoberta de premissas verdadeiras, mas de um reconhecimento social de premissas aceitáveis, chegase a uma concepção de justificação pública que deve mostrar a possibilidade da estabilidade pelas razões corretas em uma sociedade democrática marcada pelo pluralismo razoável. Assim, a possibilidade do consenso sobreposto sobre uma concepção política de justiça é um modo de checar se existem razões suficientes para propor e defender a concepção de justiça como equidade que pode ser sustentada de forma sincera, sem rejeitar ou criticar os valores religiosos e morais dos membros da sociedade. Isso garante a base moral da legitimidade do poder político em uma sociedade democrática. Dessa maneira, uma dada sociedade política com tal consenso sobreposto razoável alcança uma base profunda e mais razoável da unidade social disponível em uma democracia moderna. Tal unidade social produz a estabilidade pelas razões corretas (stability for the right reasons), o que significa: (i) que a estrutura básica é regulada pela concepção política de justiça mais razoável; (ii) que essa concepção de justiça é endossada por um consenso sobreposto formado por todas as doutrinas abrangentes razoáveis; (iii) que a discussão política sobre as questões constitucionais essenciais e de justiça básica será realizada sobre a base de razões especificadas pela concepção política de justiça mais razoável (RH, § 2, p. 391; JF V, § 55, p. 184-188; LoP I, § 5.1, p. 44). Imperioso notar que essa concepção de estabilidade pelas razões corretas é normativa, uma vez que não pode ser confundida com a estabilidade dada pelo simples equilíbrio de forças em circunstâncias contingentes, isto é, como um modus vivendi. Rawls salienta que se obtém a estabilidade pelas razões corretas, quando os cidadãos atuam corretamente de acordo com os princípios apropriados de seu senso de justiça, senso este que é adquirido pelos indivíduos por terem crescido sob instituições justas e convivido com esse mundo social ordenado[15]. Essa estabilidade é assegurada pelo compartilhamento de uma mesma concepção moral-política, a qual pode ser coerente com as diversas doutrinas razoáveis dos cidadãos, de sorte a assegurar a legitimidade desse valor moral-político. Vejase que isso já aponta para uma solução dada por convergência prática social, em que o contexto político institucional é fundamental para a justificação dos princípios de justiça. Também, que a justificação é uma questão de resolução de problemas práticos, é consequencialista e se dá intersubjetivamente, o que revela uma coerência entre a justificação pragmatista e a justificação utilizada na justiça como equidade.

A justificação pública, assim, oportuniza uma concepção política de justiça que é validada em razão de ser autossustentada, completa e que garante a estabilidade social pelas razões corretas e legitimidade política. Isso revela um tipo de justificação que integra elementos internalistas e externalistas de forma coerente, adicionando uma EP à TCS que a torna mais coerente com a ECH, porque os pontos de partida são tomados de práticas sociais existentes e, por isso, o papel da filosofia moral é reconstruir as principais ideias normativas presentes na cultura pública democrática: justiça, liberdade, igualdade e equidade, buscando transformar as intuições morais de senso comum em princípios de justiça que sejam aceitáveis por todos[16].

Note-se que o argumento da estabilidade é fortemente externalista, uma vez que o que contará para a justificação dos princípios será a confiança dos agentes no critério moral para assegurar estabilidade e legitimidade, não estando diretamente identificado com a motivação do agente. Creio que esse argumento da estabilidade visa a superar o problema da circularidade contida na justificação freestanding e full, visto que o que conta para a justificação é a aprovação que representantes racionais (as partes) podem dar para determinados princípios que constam em uma teoria moral (justice as fairness), a qual será escolhida em detrimento de outras teorias alternativas (como utilitarismo, kantismo, perfeccionismo, intuicionismo). Quero salientar que esses princípios, depois de escolhidos, devem ser coerentes com os juízos ponderados dos indivíduos, isto é, devem se harmonizar com o senso moral dos cidadãos de sociedades democráticas. Oportuno notar que tais juízos morais ponderados já estão pressupostos na consciência moral das partes, no momento da escolha dos princípios, o que aponta para uma circularidade neste processo de justificação. Em decorrência, a justificação pública parece representar uma tentativa de superação dos problemas originados pelo internalismo em filosofia moral, sendo, também, uma forma de justificação pragmatista bastante eficiente para evitar a circularidade ou, pelo menos, a má circularidade.

o ProblemA do descritiVismo

Uma crítica recorrente a essa concepção pragmatista de justificação, especialmente com o uso do procedimento do consenso sobreposto, é a respeito de seu estatuto epistemológico. Ele serve para a justificação da norma ou apenas estipula uma condição necessária para estabilidade? Quer dizer, esse procedimento é prescritivo e cognitivo ou puramente descritivo? Esta parece ser a questão central levantada por Habermas, a respeito do PL de Rawls: saber qual é o estatuto epistemológico do consenso sobreposto, ou seja, se ele tem um caráter cognitivo ou puramente instrumental, quer dizer, se ele contaria para a justificação da regra ou se apenas estipularia uma condição necessária para a estabilidade[17]. Hedrick faz uma crítica semelhante, ao identificar uma tensão entre um aspecto kantiano presente na abordagem construtivista dos princípios de justiça e um aspecto contextualista apresentado em sua concepção política, não metafísica, argumentando que Rawls não pode ser prescritivista ao abandonar o universalismo. Ele critica o descritivismo de Rawls em sua virada política (political turn), ao estabelecer uma distinção entre uma teoria abrangente e política. Enfatiza que este ponto de vista normativo que apenas pode ser tomado das circunstâncias da tradição é inevitavelmente condicionado de forma empírica. Acrescenta que a recusa em ver a teoria da justiça como equidade como uma doutrina abrangente é precisamente a rejeição de qualquer distinção entre o normativo e o factual, em filosofia política[18].

Acredito que uma maneira de responder a essa questão é observar que o sistema coerentista de justificação utilizado por Rawls de modo pressuposto parece tomar por base uma epistemologia moral diferenciada e inovadora, isto é, uma epistemologia coerentista holística e pragmatista (ECHP), já que sua compreensão de justificação está conectada com o problema prático da estabilidade e legitimidade. Esse sistema de justificação é coerentista holístico, pois busca a justificação da norma a partir de sua coerência com os juízos morais ponderados e com uma teoria moral, como é o caso da teoria da justiça como equidade. Quer dizer, a justificação da norma se dá em equilíbrio reflexivo amplo, o que contempla a normatividade com o procedimento da posição original, estando restrito a uma justificação internalista. Por outro lado, essa justificação é pragmatista, porque a teoria (e princípios) possui um postulado funcional de garantia de estabilidade e legitimidade, sendo a justificação dada em equilíbrio reflexivo completo, introduzindo um elemento externalista para a justificação. Assim, essa epistemologia moral não é correspondentista e nem toma por base a justificação inferencial, procurando estabelecer uma simetria entre crenças, princípios e funções. Para evitar o fundacionalismo, faz uso de uma estratégia que lhe garante um input e output não-metafísicos na ECH. Esta é a estratégia da TCSP, ou seja, de um acordo não-transcendental. A TCSP garante um input dado pelos valores políticos de uma sociedade democrática, os juízos morais-políticos ponderados compartilhados, e um output dado pela função de garantia de estabilidade-legitimidade de forma coerente com o pluralismo razoável e, assim, a validade da regra é dada por sua coerência dentro do sistema, incluindo aspectos internalistas e externalistas.

Outro ponto relevante a ser observado é que a descritividade é apenas um dos aspectos desse processo de justificação, sendo complementada pela prescritividade, que é primária. A descritividade é necessária para a não recaída no fundacionalismo e, desse modo, os princípios descrevem nosso senso de justiça (TJ I, § 9, p.  48/42 rev.). Por outro lado, a prescritividade pode ser identificada no processo deliberativo para a escolha dos princípios, já que deliberar implica em avaliar as concepções alternativas e escolher aquela que será a mais razoável para a realização da estabilidade social. Aqui está o caráter normativo do equilíbrio reflexivo, porque o coerentismo holístico está comprometido com a revisibilidade dos juízos morais a partir da teoria moral e vice-versa. A complementaridade entre prescritividade e descritividade pode ser identificada nas próprias características da justiça como equidade entendida como uma concepção moral-política: (i) ela é aplicada à estrutura básica da sociedade, (ii) é uma concepção autossustentada e (iii) seu conteúdo é encontrado na cultura pública de uma sociedade democrática (PL I, § 2, p. 11-15). O elemento autossustentado é normativo, porque os valores políticos (de justiça e da razão pública) devem ser prioritários em relação aos valores morais privados. Por sua vez, esses valores normativos são tomados da cultura pública de uma sociedade democrática, o que demonstra seu aspecto descritivo. Qual é, então, a validade da regra nesse sistema de justificação? A ECHP parece sustentar que a regra é justificada (i) por sua coerência com os juízos ponderados e com a teoria moral razoável (ECH) e (ii) por sua função de garantia da estabilidade (TCSP).

Dado que justificação é uma reconciliação com base em razões, estabelece-se uma harmonização entre as crenças e os critérios morais que são acordados por sua função, encontrando a objetividade da norma a partir do mútuo reconhecimento, estabelecendo uma profunda interconexão entre os direitos e os deveres, bem como entre o justo e o bem, reconciliando de forma holística e pragmatista as normas com os fatos, uma vez que determinados fatos contam como razões dentro do procedimento. Essa ECHP parece defender a conexão entre teoria e prática, ao reivindicar a complementaridade entre justificação e estabilidade-legitimidade, aproximando o problema teórico da justificação epistêmica do problema prático da legitimação política. Isso pode ser desalentador para alguns, mas, também para Rawls, apenas “[...] quando as sombras do entardecer começam a cair é que levanta voo a coruja de Minerva” (HEGEL, 1967, p. 13).

ABSTRACT: My main aim in this paper is to analyze the problem of moral justification in John Rawls, characterizing the theory of justice as fairness as a coherentist system of justification that relies on a holistic coherentist epistemology, a social contract theory that introduces a social ontology, and a pragmatist strategy of justification in contractarian theory. I will analyze the core characteristics of the pragmatic presupposition of justification in social contract theory, which uses the argument of social stability and political legitimacy as a guarantee of the legitimacy of the rules, that is, of the principles of justice. I will mainly make use of two articles relevant to this debate: “Justice as Fairness: Political not Metaphysical” and “Reply to Habermas” § 1, 2. A specific objective here is to show the complementarity between descriptivism and prescriptivism in this strategy of justification that allows an overcoming the fact/value dichotomy.

KEYWORDS:  Fact/value dichotomy. Coherentist system of justification. Pragmatist strategy of justification.

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Recebido em: 21.04.2012

Aceito em: 27.05.2012



[1] O presente trabalho foi realizado com apoio da CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – e do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.

[2] Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Bolsista de produtividade do CNPq. E-mail: deniscoitinhosilveira@gmail.com.

[3] Hilary Putnam, por exemplo, aponta para o colapso da dicotomia entre fato e valor, ao sustentar que fato e valor estão entrelaçados em qualquer discurso ou esquema conceitual, sendo impossível distinguir as descrições do mundo dos valores que seres humanos projetam sobre esse mundo e, assim, sem valores não se teria um mundo. Isso implica em considerar que juízos factuais pressupõem um background de juízos valorativos, como juízos cognitivos de coerência e simplicidade e juízos éticos de bondade e gentileza, por exemplo, e que a justificação só ocorre em um esquema conceitual, isto é, com um mecanismo intersubjetivo. Ver PUTNAM, 1990, p. 135-192. Ver, também, PUTNAM, 1981, p. 127-149 e PUTNAM, 2004, p. 15-85. Quine, por sua vez, apresenta uma defesa do holismo como contraposto ao atomismo, ao buscar superar a distinção entre juízos analíticos e sintéticos, propondo uma justificação pragmatista. Ver QUINE, 1953, p. 20-46. Também Bernard Williams procura superar essa dicotomia, afirmando que, se os valores humanos são projetados com base em preocupações humanas, não sendo isso uma característica “do mundo”, disso não segue que exista uma descrição do mundo que seja livre de valores (value-free), salientando que expressões éticas densas (thick), como coragem e brutalidade, por exemplo, expressam a união entre fato e valor em razão de conterem elementos descritivos e prescritivos. Ver WILLIAMS, 1985, p. 129. Ver, também MURDOCH, 2001, p. 75-100.

[4] No decorrer do trabalho, eu utilizarei as seguintes abreviações das obras de Rawls: A Theory of Justice (TJ), Political Liberalism (PL), The Law of Peoples (LP), Collected Papers (CP), Justice as Fairness: A Restatement (JF), “Justice as Fairness: Political not Metaphysical” (JFPnM), “Reply to Habermas” (RH), “The Independence of Moral Theory” (IMT), “Kantian Constructivism in Moral Theory” (KCMT).

[5] Para Rawls, justificação é um problema prático e não puramente teórico. Disso não segue uma oposição entre teoria e prática, mas, antes, a defesa da interconexão entre epistemologia e política, por exemplo, isto é, um tipo de epistemologia moral que se aproxime do mundo social, político e econômico. Isso parece já contido na sua definição de justificação: ela é (i) uma reconciliação a partir de razões e, então, (ii) deve se tomar os valores comuns dos envolvidos como ponto de partida e (iii) validar esses valores pelo consenso, acordo e, assim, (iv) os princípios escolhidos devem ser coerentes com os juízos ponderados dos envolvidos, (v) uma vez que a justificação é dada não por prova, mas por mútuo reconhecimento (TJ IX, § 87, p. 580-581/508 rev.). Ver SIMMONS, 1999, p. 759, e LADEN, 2003, p. 379.

[6] Assim, “político” pode ser compreendido como autossustentado, inclusivista, objetivo e razoável (tolerante), o que integra justificação e legitimação. Ver RH, § 1, p. 373-376 e JF V, § 54, p. 180-184. Ver, também, AUDARD, 2007, p. 186-190 e MANDLE, 2009, p. 142-148.

[7] Ver MAFFETONE, 2010, p. 16-24; 215-228. Kukathas e Pettit fazem referência a uma complementaridade entre viabilidade (feasibility) e desejabilidade (desirability), também ressaltando como complementares os fatos e os valores. Ver KUKATHAS; PETTIT, 1990, p. 1-11.

[8] Rawls apresenta esse sistema complexo de justificação na sua resposta a Habermas. Para responder à crítica de Habermas a respeito da fraqueza epistemológica do consenso sobreposto e razoabilidade, Rawls procura mostrar que o “[...] liberalismo político especifica três tipos de justificação e dois tipos de consenso e, então, a conecta com a ideia de estabilidade pelas razões corretas e com a ideia de estabilidade” (RH § 2, p. 385).

[9] Importante ressaltar que o teste do equilíbrio reflexivo se dá pela coerência de um critério moral (equidade – fairness, por exemplo) com as crenças morais e não morais assumidas pelos indivíduos socialmente, isto é, que são justificadas intersubjetivamente. Além disso, fairness é um conceito moral com características descritivas, além de prescritivas, podendo ser identificado como um conceito ético thick (denso). Ver PL I, § 4.6, p. 28; JF I, § 10, p. 29-32.

[10] Lehning ressalta que a justiça como equidade tenta descobrir os valores que são necessários para construir essa justificação independente e autossustentada de uma concepção política de justiça, em certas ideias fundamentais, como as que parecem implícitas na cultura pública política de uma sociedade democrática, as quais formam as instituições políticas de um regime democrático e a tradição pública de sua interpretação, bem como com os textos políticos básicos que são de conhecimento comum. As ideias centrais são: (i) sociedade como um sistema de cooperação social; (ii) cidadãos como pessoas livres e iguais; (iii) sociedade bem-ordenada; (iv) estrutura básica da sociedade como objeto central; (v) posição original. A posição original desempenha um importante papel nesse processo de justificação, visto que é um mecanismo heurístico de representação ou experimento mental que auxilia a ordenar de forma coerente essas ideias fundamentais para o estabelecimento dos princípios a partir de determinadas restrições formais e materiais. Ver LEHNING, 2009, p. 107-110. Ver, também, POGGE, 2007, p. 63-71.

[11] Esse teste do equilíbrio reflexivo é feito pela coerência estabelecida entre as crenças morais ponderadas, os princípios morais e critérios gerais contidos na teoria, o que revela um método coerentista de justificação da crença, bem como um método para a escolha da melhor teoria. Tal interpretação contrasta com a visão defendida por Daniels. Ver DANIELS, 1979, p. 256-258. Sobre o método do equilíbrio reflexivo, ver: MANDLE, 2009, p. 40-41; LEHNING, 2009, p. 122-123; FREEMAN, 2007a, p. 37-42; KUKATHAS; PETTIT, 1990, p. 69-70.

[12] Isso parece mostrar que o argumento da estabilidade é uma peça central no projeto rawlsiano de justificação, tanto em TJ como em PL, o que revela uma unidade do projeto e não uma tensão entre kantismo e contextualismo. Ver TJ I, § 3 e 4, p. 11-22/10-19 rev.; VIII, § 76, p. 496-504/434-441 rev. e PL II, § 3.6, p. 64; IV, § 2.1, p. 140-141.

[13] O internalismo se constitui em uma perspectiva de justificação em primeira pessoa, enquanto o externalismo se explica por uma justificação em terceira pessoa. A diferença específica é que se pode falar de razões internas e externas para a justificação da crença moral e a consequente ação. Assim, em um esquema externalista, um A (agente) tem um R (razão) para fazer X (ação), sendo essa razão exterior à motivação de A. Para o internalismo, A deve acreditar em R em razão de S (conjunto motivacional subjetivo) e, assim, um A tem um S para crer na existência de um R para fazer X. Ver BONJOUR;

[14] JFPnM, p. 394: “Rather, justification is addressed to others who disagree with us, and therefore it must always proceed from some consensus, that is, from premises that we and others publicly recognize as true; or better, publicly recognize as acceptable to us for the purpose of establishing a working agreement on the fundamental questions of political justice”.

[15] Ver LoP I, § 1.2, p. 13. Freeman destaca acertadamente que a condição de estabilidade é fundamental para a justificação dos princípios de justiça, pois seria um erro pensar que nossas intuições filosóficas e racionais abstratas sozinhas poderiam propiciar uma justificação suficiente para uma concepção moral de justiça, independente de uma avaliação de sua viabilidade. Ver FREEMAN, 2007b, p. 109 e 192. Ver, também, MANDLE, 2009, p. 142-148; AUDARD, 2007, p. 162-176; POGGE, 2007, p. 59; GRAHAM, 2007, p. 135; KUKATHAS; PETTIT, 1990, p. 142-143. 

[16] Audard chama atenção para o papel das instituições democráticas no modelo de justificação usado por Rawls. Enfatiza que as instituições democráticas proporcionam as ferramentas necessárias e proteções que permitem aos cidadãos comuns desenvolverem seus poderes morais, isto é, seu senso de justiça e concepção de bem, estabelecendo uma conexão entre democracia e filosofia, oportunizando uma justificação pública. Ver AUDARD, 2009, p. 11-14. Laden igualmente sustenta que o projeto de Rawls está circunscrito em uma concepção de filosofia como “defesa” preferencialmente a uma concepção teórica de filosofia. Ver LADEN, 2003, p. 379.

[17] Essa crítica aponta para o não-cognitivismo e descritivismo da teoria rawlsiana. Ver HABERMAS, 1995, p. 119-122.

[18] Ver HEDRICK, 2010, p. 10-11 e 65. Críticas semelhantes são também encontradas em McCARTHY, 1994, p. 58-63, BIRD-POLLAN, 2009, p. 21-25, BAYNES, 1992, p. 74-76, WEBER, 2010, p. 101-110.