Psicologia, Metafísica e literatura: a Descrição Dos sentiMentos ProfunDos eM Bergson
RESUMO: O objetivo deste artigo é o de explorar as relações entre psicologia, metafísica e literatura, a partir do exame do Ensaio sobre os dados imediatos da consciência; mais exatamente, a partir da compreensão dos “sentimentos profundos”, que representa, no Ensaio, o momento privilegiado para apreender a estrutura temporal da consciência. Porém, o presente estudo não abordará unicamente o texto de Bergson, suas descrições dos sentimentos profundos (como as emoções estéticas e morais), o que muito provavelmente seria repetitivo. O uso de um exemplo extraído da própria literatura (no caso, o romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa) será imprescindível aqui para compreender a possibilidade de uma descrição qualitativa do “fluxo da consciência”, revelando sua estrutura temporal. A partir disso, espera-se determinar com um pouco mais de clareza as interações entre psicologia, metafísica e literatura, na filosofia de Bergson.
PALAVRAS-CHAVE: Duração. Literatura. Metafísica. Psicologia. Sentimentos profundos.
i
A descrição dos sentimentos profundos2, encontrada logo no primeiro capítulo do Ensaio sobre os dados imediatos da consciência[2], desempenha uma função teórica essencial dentro do projeto geral da obra. Bergson parece ter percebido desde o início que é justamente essa dinâmica psicológica de difícil apreensão que poderia proporcionar uma compreensão mais precisa do tempo real ou duração (durée), cuja natureza representa, em sua filosofia, a realidade metafísica fundamental.
É a psicologia, portanto, o ponto de partida da reflexão bergsoniana. Porém, a psicologia do Ensaio é tão-somente aquela que recebe as críticas geradas pela análise filosófica, as quais denunciam a inadequação de seus procedimentos para compreender o que há de propriamente psicológico na vida psíquica. Ao expor os limites da descrição científica da consciência, Bergson será induzido a enxergar no registro literário uma forma mais apropriada de conhecimento da interioridade[3]. Assim, ao mesmo tempo em que a psicologia define o campo no interior do qual se dá a gênese temporal de sua reflexão filosófica, ela jamais circunscreve o território em que se compreende de maneira adequada a consciência como “dado imediato”, berço da duração pura. Para Bergson, é a metafísica a disciplina responsável pela elaboração teórica de semelhante conhecimento, mas uma metafísica que, para fazê-lo, precisa se apropriar da riqueza da linguagem literária.
Tudo se passa como se a psicologia, como via de acesso à consciência imediata e à realidade do tempo, fosse também um obstáculo nada desprezível para quem deseja conhecê-los para além da representação conceitual, tão própria da compreensão científica. O papel ambíguo que a psicologia desempenha na elaboração da primeira obra bergsoniana, que data de 1889, termina por apontar para uma curiosa interação entre psicologia, metafísica e literatura, de cujo atrito nasceria uma primeira “imagem” do tempo real. Pretende-se aqui, então, explorar tais relações entre os mencionados domínios, de modo a fazer surgir uma compreensão inovadora do tempo psicológico.
Vale dizer, antes de tudo, que a psicologia é a disciplina que tem como tarefa conhecer os “fatos de consciência”. Assim que ela se apropria do método das ciências naturais para organizar e descrever os dados de seu campo de investigação, se distancia de seu genuíno objeto de estudo, isto é, os estados psicológicos, uma vez que os exterioriza na exata medida em que passa a investigar a relação causal entre os estímulos sensoriais, as reações orgânicas ou as funções nervosas e os estados de consciência. É nesse movimento que a psicologia introduz na consciência relações de grandeza que são encontradas apenas nos mencionados eventos físicos ou fisiológicos. A descrição do psíquico passa a ser feita, por conseguinte, nos mesmos quadros conceituais em que são representados os fenômenos que se dão na exterioridade.
Bergson, ao constatar essa vocação defeituosa da psicologia experimental, estabeleceu distinções nítidas entre o domínio do conhecimento objetivo e o domínio do conhecimento subjetivo[4], entre o “eu superficial” e o “eu profundo”; enfim, entre psicologia e metafísica[5], reservando à verdadeira psicologia, ou seja, à “psicologia profunda”, um lugar no interior da própria metafísica; sendo ela, a bem dizer, seu primeiro momento.
Tais repartições discriminaram, essencialmente, dois âmbitos de investigação da consciência. Por um lado, a psicologia empírica, que tenta fundar uma espécie de objetividade para seus enunciados, recobrindo tãosomente o eu superficial, a parte da vida psíquica que mantém conexão constante com o corpo e com as ações que se dão no corpo. Nesse caso, a descrição da consciência se dá sempre à luz de sistemas físicos (estímulos sensoriais, abalos orgânicos etc.). Por outro lado, a metafísica, que pretende apreender a realidade imediata da consciência, sua dimensão em si, é completamente estranha aos instrumentos intelectuais que constroem a inteligibilidade científica. Psicologia empírica e metafísica atuariam, portanto, em níveis distintos na investigação da mesma realidade. A psicologia descrevendo a consciência a partir de suas manifestações corporais, observando e controlando externamente o que se dá no organismo; e a metafísica lançando seu olhar diretamente para a profundidade do espírito, onde fervilham os estados de consciência que não mantêm relação causal direta com o ambiente ou com os fenômenos orgânicos. É assim que a consciência profunda passa a circunscrever o campo inaugural da “filosofia da duração” proposta pelo bergsonismo. É assim que a “psicologia profunda” se torna o primeiro capítulo da metafísica.
Seguramente, não será na psicologia experimental que a metafísica irá buscar os instrumentos adequados para descrever a consciência profunda; será na literatura (Bergson o reconhece explicitamente, no Ensaio[6]) que surgirá um uso extraordinário da linguagem, capaz de inverter sua direção natural a ponto de elaborar um discurso que não “cristaliza o significado”. Semelhante habilidade da linguagem literária atraiu a atenção de Bergson desde o Ensaio, levando-o a desenvolver em obras posteriores importantes reflexões sobre o papel da metáfora e da imagem, na articulação do discurso metafísico8.
Contudo, a passagem da psicologia para a metafísica não se dá de forma simples, no Ensaio. Bento Prado Júnior chega a falar numa “redução” bergsoniana, por analogia à redução fenomenológica, para dar conta de elucidar a dificuldade9. É preciso que o “eu abstrato” da psicologia empírica, cujos estados são mais ou menos intensos, seja suprimido pelo “eu concreto” da abordagem metafísica, cujos estados mudam de qualidade. Fala-se em “redução”, porque é preciso recusar a atitude natural da ciência e do senso comum para descrever diretamente o que se dá na consciência. No entanto, a descrição direta não pode prescindir de uma crítica à categoria “grandeza intensiva”, tal como foi utilizada pela psicologia empírica. A origem do erro, que acabou falsificando o “eu concreto” em “eu abstrato”, encontra-se justamente nessa assimilação das qualidades psíquicas como intensidades que variam apenas quantitativamente, assimilação que foi viabilizada pela noção de “grandeza intensiva”. Porém, a psicologia não desliza por mera inadvertência, mas porque o erro é natural à inteligência e à linguagem humanas. Bergson afirma:
Talvez a dificuldade do problema derive sobretudo do fato de darmos o mesmo nome e representarmos da mesma maneira intensidades de natureza muito diferente, a intensidade de um sentimento, por exemplo, e a de uma sensação ou de um esforço. (BERGSON, 2001, p. 09).
Todo o problema parece estar no hábito cognitivo de tratar as “sutilezas da análise psicológica” no mesmo esquema de inteligibilidade com o qual se representa a consciência superficial, cujo conteúdo se encontra visivelmente impregnado de extensão, como é o caso das sensações simples e dos esforços musculares. A psicologia prolonga as tendências do senso comum e acaba objetivando a vida psicológica profunda, uma vez que interpreta os sentimentos “que bastam a si mesmos”, ou seja, que não mantêm vínculo aparente com
uma penetração infinita de mil impressões diversas que já cessaram de o ser no momento em que as nomeamos, nós o louvaríamos por nos ter conhecido melhor do que nos conhecemos a nós próprios” (BERGSON, 2001, p. 88).
8 Cf., principalmente, O pensamento e o movente, 2001, p. 1249-1330.
9 Cf. PRADO JÚNIOR, 1989, p. 81.
a exterioridade, da mesma maneira que entende os fenômenos psíquicos provocados por evidentes causas físicas ou fisiológicas. Daí a necessidade da recusa da postura científica. A atitude natural do intelecto e da linguagem está inteiramente comprometida com a quantificação de um domínio que é essencialmente qualitativo, porque esse é seu modus operandi. Em última análise, a inteligência e a linguagem estão marcadas inelutavelmente pela forma do espaço[7]. A espacialização lhes é inerente. Franklin Leopoldo e Silva, na obra Bergson: intuição e discurso filosófico, observa:
De nada adianta distinguir entre grandezas extensiva e intensiva. A qualidade pura não é atingida e assim se perde a verdadeira essência da multiplicidade psicológica. A isso Bergson chama objetivação, pela linguagem, dos estados subjetivos. (SILVA, 1994, p. 123).
Nota-se que não é apenas a psicologia, por um desvio de sua destinação natural, que incide nessa verdadeira contaminação do eu concreto com a estrutura da extensão. É a própria inteligência e sua linguagem que são capazes de apreender tão-somente “diferenças de grau”. É por isso que os instrumentos da inteligência e da linguagem, os conceitos e as palavras, não dão conta de exprimir adequadamente o eu profundo e a duração psicológica. É por isso, também, que a metafísica de Bergson terá sempre que se aproximar da arte, na medida em que precisa encontrar um novo uso da linguagem, o qual não reproduz as tendências já sabidamente impróprias da racionalidade científica, que faz do conceito a forma por excelência de apreensão e compreensão do mundo.
Pode-se dizer, então, que a passagem da psicologia para a metafísica exprime aqui uma ruptura com o paradigma da ciência, que orientou a reflexão filosófica desde os gregos, substituindo-o pelo paradigma da arte[8]. A derrocada da linguagem científica seria, ao mesmo tempo, afirmação da linguagem literária. Mas o que ocorre não é bem isso, pois Bergson não se dispôs a levar até as últimas consequências certas diretrizes de seu pensamento. Ao indicar na linguagem literária um potencial expressivo capaz de registrar a natureza qualitativa e dinâmica da consciência, ele não pretendia estetizar o saber filosófico. Com efeito, não se trata de glorificar uma filosofia literária, carregada de compromissos estéticos; tampouco de propor uma literatura filosófica, impregnada de pretensões cognitivas. Bergson não faz literatura no Ensaio, nem mesmo recorre a ela diretamente para ilustrar sua concepção da consciência ou da duração. O que ele faz é apenas reconhecer na literatura, especificamente em sua linguagem, um poder expressivo em geral desaproveitado pela filosofia. Enfim, Bergson soube enxergar na arte literária os indícios de uma afinidade entre a multiplicidade das imagens e a “multiplicidade qualitativa” da vida psicológica, de modo que a literatura apenas representaria em seu pensamento a forma de discurso mais apropriada para descrever o eu concreto e a duração.
Todavia, a arte, assim como a filosofia, não é capaz de encarcerar a consciência e o tempo em conceitos ou imagens. É preciso dizer que a natureza fluida dessas realidades escapa a toda tentativa fácil de determinação. Logo, qual a vantagem de se abandonar as concepções elaboradas pela ciência, em especial pela psicologia científica, para aderir a um ponto de vista anoético sobre a natureza da consciência e do tempo? Uma possível resposta a essa indagação indicaria que, se a literatura também não pode definir o eu profundo e o tempo psicológico, ao menos pode substituir as abstrações e as generalizações do pensamento conceitual por um discurso capaz de incidir sobre o que há de concreto e singular na experiência humana, construindo não uma nova “inteligibilidade” da consciência e da duração, mas um caminho para se apreender o “vivido”. É nesse sentido que a metafísica deve absorver algo da literatura. Incidir sobre o próprio conteúdo vivo da experiência subjetiva é, talvez, a maior virtude de algumas obras literárias. Ainda se tentará fazer aqui um exame de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, justamente dessa perspectiva, isto é, tentando encontrar em sua estrutura narrativa uma descrição concreta da experiência interna da personagem.
Antes, porém, parece conveniente notar que um dos méritos da interpretação, já célebre, que Bento Prado Júnior fez da filosofia de Bergson[9] se encontra justamente na constatação de que o dinamismo dos sentimentos profundos já é uma descrição do tempo real. Bento Prado observa, com muita propriedade, que Bergson aponta para a experiência da duração antes de construir seu conceito, o que só será realizado no segundo capítulo do livro, quando a duração comparecer teoricamente como “multiplicidade qualitativa”, após a discussão com a matemática, especificamente em torno da noção de número (“multiplicidade quantitativa”). Para Bento Prado, é um retorno ao vivido que se manifesta logo no primeiro momento do Ensaio, pois a verdadeira natureza do tempo se descortina não no interior de um conceito lapidado pelo entendimento, como é o tempo da Física e mesmo o da Metafísica tradicional; mas na experiência concreta da consciência, ou seja, na experiência dos sentimentos profundos. A descrição bergsoniana da emoção estética da graça ou a descrição do sentimento moral da compaixão são exemplos eloquentes de experiências psicológicas que revelam a estrutura temporal da consciência[10]. Ao que tudo indica, em Bergson, os sentimentos profundos representam a via de acesso à atividade das qualidades puras que caracteriza a vida psicológica. Em seu livro, Bento Prado Júnior elegeu o sentiments esthétiques para um exame mais detalhado, dentre os quais a experiência da graça ocupa o lugar de destaque. Seu objetivo foi o de tornar visível que a duração, a noção metafísica fundamental do bergsonismo, já se encontra presente na dinâmica interna de tais sentimentos[11]. É, portanto, para o domínio da psicologia profunda que o Ensaio aponta, porque é no âmbito da psicologia profunda que se dá a primeira aparição da duração pura, quer dizer, no âmbito das descrições que visam a erradicar o vocabulário conceitual e quantitativo da ciência, substituindo-o por uma abordagem capaz de atingir o dado qualitativo.
Convém notar, contudo, que a descrição de qualquer experiência psicológica comporta dois tipos de registros. Num caso, que se pode chamar de científico, a experiência psicológica é examinada externamente (au-dehors), isto é, à luz de suas causas ambientais ou corporais. Noutro caso, que se pode chamar de metafísico, a experiência é descrita internamente, a partir de uma simpatia ou coincidência com seu conteúdo (au-dedans). Nesse sentido, a ciência positiva se limitaria a explicitar o invólucro observável do estado psicológico, ao passo que a metafísica buscaria penetrar em seu cerne. Cada uma das disciplinas correria, portanto, em direções opostas, uma para a exterioridade e a outra para a interioridade. Igualmente, cada uma das disciplinas teria seu papel epistemológico preservado, pois Bergson jamais negou a relevância do procedimento científico, tampouco do metafísico. A bem dizer, sempre preservou a legitimidade teórica das duas modalidades de conhecimento. O que ele nega desde o Ensaio é a universalização do paradigma do saber objetivo, estendendo-o também para o interior da consciência, ou seja, para um nível de realidade que não comporta esse tipo de tratamento.
Do ponto de vista objetivo, um sentimento (tomaremos como exemplo o ódio) pode ser investigado como um sistema de manifestações orgânicas bem definidas. Darwin dedicou um de seus livros ao estudo das emoções justamente dessa perspectiva. Na obra A expressão das emoções no homem e nos animais, além de alinhar a psicologia humana à dos animais, o naturalista inglês estabeleceu como princípio que tudo o que se passa na consciência de um indivíduo de alguma maneira se manifesta nos gestos corporais, em geral, e nas expressões fisionômicas, em particular, de tal modo que as repercussões orgânicas manifestam inteiramente a experiência da emoção, não sendo apenas fenômenos concomitantes. A descrição do psíquico dá-se aqui através do físico. A descrição visa a uma objetividade que é, aliás, imprescindível para a ciência. A postura naturalista optou, evidentemente, pela observação externa. Darwin definirá o ódio, que se manifesta como fúria, mediante um conjunto de “sintomas” orgânicos:
Sob essa poderosa emoção, a ação do coração se acelera muito, ou pode ser bastante perturbada. O rosto fica vermelho, ou roxo pelo sangue impedido de refluir, ou pode ainda ficar pálido de morte. A respiração é forçada, arqueando o peito com tremor e dilatação das narinas. Muitas vezes o corpo todo treme. A voz é afetada. Cerram-se os dentes e o sistema muscular é geralmente estimulado a uma ação violenta, quase frenética. (DARWIN, 2000, p. 77).
De fato, Bergson não nega que todos esses elementos participam da experiência do ódio, mas apenas como movimentos concomitantes que não podem ser confundidos com a própria experiência do ódio. Suas análises dos fatos psicológicos superficiais e intermediários, desenvolvidas também no primeiro capítulo do Ensaio, indicam que o corpo representa um componente relevante para se compreender a natureza do sentimento. No entanto, a questão está em saber se esse componente constitui a própria experiência da emoção, recobrindo todo seu conteúdo, inclusive seu significado interno. O naturalista, provavelmente, não enxergará nada além de tais repercussões orgânicas na constituição dos estados psicológicos. Sua inteligibilidade de tais estados encontra-se inteiramente ancorada no plano físico. Porém, é a filosofia que deve se atribuir a tarefa de investigar a natureza dos sentimentos de um ponto de vista radicalmente distinto da ciência (leia-se, aqui, da psicofísica). Para isso, é preciso que haja uma recusa em transportar para a descrição dos sentimentos profundos os hábitos cognitivos utilizados para equacionar o eu superficial. Semelhante recusa só é possível através de uma crítica filosófica aos procedimentos da ciência e através de uma tematização direta do que se dá à consciência.
Entretanto, tematizar diretamente o conteúdo profundo da consciência implica sempre um movimento de interiorização, sem o qual a inspeção do espírito fatalmente se fixaria na superficialidade. Para entender uma paixão violenta, uma tristeza, uma esperança etc., faz-se necessário apreender pouco a pouco os elementos que se agregam e passam a participar da constituição da “emoção fundamental”. Sendo a “multiplicidade qualitativa” a própria marca da consciência profunda, o conhecimento interno de sua realidade se dá através da apreensão do contínuo processo de interpenetração de qualidades afetivas que enriquecem o sentimento em questão. Assim, o movimento de interiorização, que não é apenas um movimento complementar, caracteriza de início a abordagem filosófica da consciência profunda. Ora, a disciplina capaz de desenvolver esse movimento até o fim é, para Bergson, a metafísica, cuja realização denuncia o limite da abordagem científica: a cegueira da ciência em relação ao que há de propriamente psicológico na vida interior. Sem dúvida, por mais aguda que seja a observação externa, por mais ricas que sejam as descrições das manifestações corporais de um sentimento, por mais vasto e penetrante que seja o aporte fisiológico acumulado pela ciência, o enfoque naturalista jamais atingirá o componente qualitativo da emoção. Daí a relevância do movimento inverso, uma vez que somente a simpatia ou coincidência com o conteúdo vivo da experiência pode ensinar algo a respeito da consciência e do tempo; ou ainda, a respeito da estrutura temporal da consciência.
O aprofundamento interior representa, portanto, a via de acesso ao movimento das qualidades psicológicas[12]. Descrever os sentimentos profundos implica renunciar ao enquadramento da ciência para se desligar das formas de pensamento e de linguagem que exteriorizam a experiência interna. Porém, aqui, não se trata mais de recorrer aos próprios exemplos de Bergson, tais como foram apresentados no Ensaio. Trata-se de abordar na própria literatura um exemplo capaz de expor a riqueza da consciência profunda de um modo familiar ao espírito do bergsonismo. Com efeito, se a descrição naturalista das emoções remetia ao que se manifestava na superfície do corpo, a descrição literária agora poderá mergulhar sem rodeios na vida subjetiva da personagem, acompanhando o movimento de interiorização dos sentimentos e inspecionando-os em seu domínio próprio. A passagem da ciência para a literatura se dá então como “opção pela interioridade”, pois a literatura permite uma apreensão da consciência fora do horizonte abstrato e conceitual próprio da inteligência humana. Dessa forma, a relevância da arte dentro da concepção geral da obra de Bergson parece essencial, porque denuncia os limites da atuação legítima da inteligibilidade conceitual, indicando na metáfora uma modalidade de expressão do espírito seguramente mais adequada e promissora. A respeito disso, Franklin Leopoldo e Silva observa:
[...] a arte do romancista e do poeta consiste em estabelecer dentro das regras fundamentais da linguagem um jogo simbólico em que a cristalização conceitual cede lugar à fluidez imagética que pretenderia nos fazer, na medida do possível, coincidir com a personagem para compreendermos por dentro a mobilidade dos sentimentos que constitui o ser de cada personagem e a trama das subjetividades aí envolvidas. O artista torce a linguagem, no limite com a finalidade, diz Bergson, de nos fazer esquecer que ele emprega palavras. (SILVA, 1994, p. 96).
Na obra Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, nota-se uma incursão pelo “tempo vivido” a partir do eixo emocional do ódio. Tal narrativa expõe toda a promiscuidade de sentimentos, desejos e lembranças que povoam a consciência do protagonista. Valendo-se de uma linguagem vertiginosa, já exaustivamente estudada pela teoria literária, Rosa consegue oferecer uma expressiva compreensão da intimidade do ser humano, ao narrar a saga de um vaqueiro pelo interior de Minas Gerais. Rememorando as peripécias de sua vida, o narrador não compõe apenas um quadro factual de uma trajetória marcada pela violência, mas percorre novamente a correnteza de seu destino, buscando um sentido para o que viveu.
Uma curiosa proximidade, por mais inusitada que possa parecer, entre a prosa regionalista de Guimarães Rosa e a “psicologia profunda” proposta pelo bergsonismo poderia ser sustentada aqui. O retorno ao vivido representa o primeiro elemento de congregação entre os dois autores. E a elaboração de uma concepção da consciência como realidade temporal figura como o horizonte dessa possível aproximação. Porém, para que a cumplicidade entre psicologia profunda e literatura se justifique, é preciso identificar os aspectos que Bergson atribuiu ao tempo psicológico, na própria atmosfera do romance do escritor mineiro. Assim, ao acompanhar a descrição rosiana do sentimento violento do ódio, espera-se encontrar alguns indícios da duração pura, tal como foi caracterizada por Bergson, a saber: “mudança interna”, “multiplicidade de fusão”, “progresso qualitativo” e “totalização”.
É notável que em Grande sertão: veredas, o ódio manifesto, legível no corpo, conforme o discurso naturalista o definiu, dá lugar ao ódio inibido, interiorizado, ressentido cada vez sob um novo matiz, coberto mesmo por outros tantos sentimentos apenas aparentemente desconexos, aparentemente justapostos. O narrador, testemunha ocular e protagonista da barbárie desencadeada pela maldade humana, oferece seu depoimento, sua versão emotiva, eivada de culpa e de medo, sobre o significado do mal, envolvendo, portanto, a investigação da aparição do mal na vida psicológica como ódio. Nesse sentido, o tratamento literário do sentimento remeterá à experiência vivida por uma consciência que se identifica com a voz narrativa; porém, sobretudo, à experiência de uma consciência que, através da memória, se reconhece como realidade temporal.
Importa destacar, de início, que Rosa elaborou uma concepção da vida interior que a compreende como “mudança interna”. Primeiramente, sua literatura parece estar em sintonia com o bergsonismo não por compreender que a consciência muda sem cessar, mas por perceber que a consciência é a própria mudança, sendo um processo que se faz no próprio movimento de interiorização do vivido. Na consciência não há lugar para a “repetição”, tampouco para o “acabado”. A consciência não é um sistema de átomos psicológicos, um conjunto de experiências petrificadas em estados psíquicos que só podem manter relações através de leis associativas, de sorte que a mudança poderia ser explicada através de remanejamentos dos elementos preexistentes. A própria noção de “estado de consciência” ou de “fato psicológico” já se compromete com o “acabado” ou com o “já feito”; numa palavra, com o que é artificialmente construído pelo entendimento, a fim de elaborar uma inteligibilidade conceitual da dinâmica interior. Ao contrário, na obra de Bergson e no romance de Rosa, a consciência pode ser exibida como o movimento contínuo de interiorização de suas experiências. Quando Rosa declara que
[...] o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas __ mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. (ROSA, 1983, p. 20).
O que está se articulando logo no início do romance é uma concepção da experiência humana como mudança, como transformação ininterrupta da personalidade. A justaposição entre estados de consciência (tal como surge no associacionismo, por exemplo) é de alguma maneira substituída por um processo contínuo de renovação interior. Nota-se que na descrição do ódio, a convivência confusa das emoções expõe não apenas uma concomitância afetiva, que de fato ocorre, inclusive entre sentimentos opostos (amor e ódio, por exemplo); porém, principalmente, um enriquecimento interior que é índice de amadurecimento psicológico. Ao interiorizar seus momentos, a consciência muda de qualidade e, ao mudar de qualidade, torna-se mais rica, mais carregada de conteúdo vivencial. Em decorrência, a mudança não é assimilada aqui como um rearranjo de estados já prontos, o que muito bem caracterizaria a mudança externa, como as que ocorrem no âmbito da objetividade e que são quantitativamente determináveis. A mudança é interna, porque o que muda assim o faz na medida em que interioriza os componentes envolvidos. E os componentes envolvidos, a multiplicidade de afetos que se identifica na consciência profunda, são qualidades que se fundem reciprocamente, embora ainda seja possível identificar nessa “multiplicidade confusa” uma emoção fundamental que parece orientar todo o processo de interiorização. É, talvez, por isso que Deleuze caracteriza a “mudança interna” como o momento principal do processo de diferenciação[13].
Ao que tudo indica, Grande sertão: veredas descreve concretamente a vida emocional da personagem de modo coerente com tais concepções. É curioso verificar que a passagem de um sentimento a outro é feita, num certo momento da narrativa, através do verbo “virar”, que exprime aqui transformação, metamorfose. Não há salto de um sentimento a outro, como faria pensar uma concepção atomista e associacionista do espírito, mas sim uma maturação na qual as múltiplas emoções se interiorizam até o ponto de se converterem num sentimento novo. Escreve Rosa:
O prazer muito vira medo, o medo vai vira ódio, o ódio vira esses desesperos? __ desespero é bom que vire a maior tristeza, constante então para um amor – quanta saudade... –; aí, outra esperança já vem... (ROSA, 1983, p. 166).
A “exterioridade recíproca”, que tão bem caracteriza o espaço geométrico e as relações que nele se pode estabelecer, é finalmente banida da vida psicológica. Na obra de Guimarães Rosa, nada recomenda conceber as transformações emocionais da personagem como meras transições entre experiências afetivas exteriores umas às outras. A voz narrativa lamenta, a certa altura do romance, o caráter confuso, misturado, de sua experiência interna. Semelhante confusão comunica que a dinâmica da consciência da personagem envolve a retenção dos momentos passados, com toda carga emocional que os caracteriza, organizando-os com o presente da consciência. O que o narrador vivencia no próprio ato de narrar é a “heterogeneidade” radical da experiência subjetiva. A mudança interna, que de alguma maneira a literatura intui em suas descrições, jamais irá representar uma sucessão de estados psíquicos desfilando num “meio vazio e homogêneo”. Tudo se passa como se a literatura psicologicamente densa deixasse visível que a interioridade só pode ser caracterizada de modo adequado por uma multiplicidade de perfis qualitativos que, ao se interpenetrarem, exprimem a própria atividade do espírito17.
É possível colher fragmentos de Grande sertão: veredas que sublinham a ligação interna entre os diversos sentimentos que o narrador vivencia, mostrando que é justamente esse nexo entre os afetos que torna concebível o psiquismo como mudança, fusão e progresso. Nas palavras de Rosa:
jamais haver número ou vários. [...] Em suma, a duração é o que difere, e o que difere não é mais o que difere de outra coisa, mas o que difere de si” (DELEUZE, 1999, p. 103).
17 Cf. SILVA, 1994, p. 306.
Raiva tampa o espaço do medo, assim como do medo a raiva vem (ROSA, 1983, p. 405).
Agora, por me valer, eu tinha de me ser como os outros, a força unida da gente mamava era no suscenso da ira. O ódio quase sem rumo, sem porteira (ROSA, 1983, p. 245).
E, aquilo forte que ele sentia, ia se pegando em mim – mas não como ódio, mas em mim virando tristeza (ROSA,1983, p. 25).
Do ódio, sendo. Acho que, às vezes, é até com ajuda do ódio que se tem a uma pessoa que o amor tido por outra aumenta mais forte (ROSA, 1983, p. 136).
Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar (ROSA, 1983, p. 15).
Tais passagens, dispersas pelo romance, testemunham que a consciência não se organiza no esquema da justaposição. Ao contrário, aqui, é o esquema da “multiplicidade de fusão” que preside os desdobramentos da vida emocional do protagonista, uma vez que todos os sentimentos pelos quais passou (culpa, medo, ódio, amor) estão presentes no ato de narrar. Suas vivências, então, não são momentos estanques perdidos num passado longínquo, mas experiências vivas que emergem e impregnam o presente. Bergson havia caracterizado a vida psicológica como “progresso qualitativo”[14]. Do mesmo modo, em Grande sertão: veredas, é possível reencontrar essa caracterização, à medida que o passado do narrador se manifesta inteiramente a cada página. Pode-se dizer, fazendo uso da terminologia de Bergson, que na concepção rosiana da consciência profunda a diversidade emocional designa uma “multiplicidade de fusão”, assim como a passagem de um sentimento a outro designa um “progresso qualitativo”, visto que o sentimento novo não exclui o que passou, mas o absorve e compõe com ele o presente da consciência. Entretanto, isso só é possível porque as qualidades afetivas se interiorizam, assegurando ao mesmo tempo a unidade do conteúdo psicológico e seu enriquecimento contínuo, o que significa que o presente da consciência é mais denso a cada novo instante, porque contém em si todo o acervo de experiências passadas[15].
O movimento de interiorização, que torna possível a “multiplicidade de fusão” e o “progresso qualitativo”, conduz também ao último componente identificado por Bergson na constituição do tempo real, isto é, à totalização. Nesse sentido, os trechos citados acima não exprimem unicamente a heterogeneidade da consciência que interioriza o vivido (evolução do medo ao ódio, do ódio como desespero explosivo ao ódio convertido em tristeza, do ódio contaminado de tristeza ao amor e, por fim, do amor ao ódio novamente), mas igualmente um movimento de expansão da emoção dominante. No contexto da descrição dos sentimentos profundos, Bergson observa o seguinte:
Quando se diz que um objeto ocupa um grande lugar na alma, ou mesmo que a ocupa inteiramente, deve-se simplesmente entender com isso que sua imagem modificou a nuança de mil percepções ou lembranças, e que neste sentido as penetra, sem que para tanto se deixe ver. (BERGSON, 2001, p. 10).
A totalização resulta, portanto, da contaminação progressiva das experiências com o mesmo matiz afetivo, como se a alma inteira fosse tomada por uma única paixão. Na narrativa examinada aqui é visível a influência do ódio na vida emocional do protagonista. Tal emoção dominante pouco a pouco passa a impregnar toda sua vida psicológica, influenciando cada sentimento, cada lembrança, “tingindo-os por assim dizer com sua própria cor”. Contudo, o processo de totalização não se restringe às fronteiras da subjetividade humana. De fato, é a subjetividade o palco onde atua primeiramente. Todavia, talvez, seu elemento mais importante seja a capacidade de ultrapassar a interioridade da consciência para absorver o mundo externo, organizando-o de acordo com as qualidades afetivas internamente vivenciadas.
Na narrativa de Guimarães Rosa, algumas passagens emblemáticas e de poderoso teor plástico exibem a experiência do ódio desenhada na exterioridade, como se a consciência que aprofundou esse sentimento o reencontrasse até mesmo na matéria impessoal da natureza, modelando a percepção das coisas, dimensionando a experiência do domínio objetivo. Nesse sentido, o movimento de interiorização da experiência do ódio permite que ele seja reencontrado no exterior, não respeitando mais as fronteiras entre o interno e o externo, a consciência e o mundo, o psicológico e o ontológico. É assim que a fisionomia do ódio aparecerá estampada na própria tessitura das coisas: no homem, no animal, no vegetal, no mineral. É assim, também, que não se tratará mais de uma experiência meramente subjetiva. Tratar-se-á, doravante, de uma fusão do interno com o externo. O espetáculo do mundo obedece agora ao jogo das emoções de uma subjetividade extraordinária, desvinculada de qualquer interesse prático, absorta que está em si mesma. É o que Bergson chama de “simpatia física”[16].
É nesse processo de totalização que se inscrevem as seguintes passagens de Grande sertão: veredas, onde o narrador encontra nas coisas algo de si:
[...] nunca vi cara de homem fornecida de bruteza e maldade mais, do que nesse. Como que era urco, trouxo de atarracado, reluzia um cru nos olhos pequenos, e armava um queixo de pedra, sobrancelhonas; não demedia nem testa. Não ria, não se riu nem uma vez; mas, falando ou calado, a gente via sempre dele algum dente, presa pontuda de guará. Arre, e bufava, um poucadinho (ROSA, 1983, p. 16).
Eh, o senhor já viu, por ver, a feiúra de ódio franzido, carantonho, nas faces de uma cobra cascavel? [...] E gavião, corvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar para adiante, rasgar e estraçalhar a bico, parece uma quicé muito afiada por ruim desejo (ROSA, 1983, p. 11-12)
A mandioca-doce pode de repente virar azangada [...] vai se amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas (ROSA, 1983, p. 11).
Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas – que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme (ROSA, 1983, p. 12).
E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... (ROSA, 1983, p. 11).
Se no exame crítico da psicologia experimental o filósofo identificou uma contaminação do psiquismo com a estrutura da exterioridade, assimilando a consciência como coisa; no aprofundamento da experiência interna, apropriadamente registrado pela linguagem literária, constata-se o movimento inverso, pois é a interioridade que de alguma maneira regula o mundo em si mesmo indiferente da matéria. A totalização da emoção dominante identifica sujeito e objeto. No limite, identificam-se igualmente, no mesmo movimento de totalização, espetáculo e espectador, o artista e quem o aprecia, a obra literária e seu leitor[17]. “Assim, cairá a barreira que o tempo e o espaço interpunham entre sua consciência e a nossa” (BERGSON, 2001, p. 16). Como bem notou Bento Prado Júnior, semelhante fusão do espetáculo com o espectador, do “si mesmo” com o “outro”, rompe o “círculo da ipseidade”[18], completando o sentido da passagem de Bergson pela psicologia profunda. A totalização é enfim a radicalização da experiência, fazendo com que o psicológico se dilua no ontológico.
No caso de Guimarães Rosa, como se vê, o discurso literário tornase capaz de expor a totalização no próprio movimento de descrição dos sentimentos do protagonista. Grande sertão: veredas registra, em seu longo monólogo, a experiência vivida de uma consciência que se absorve em seu passado e o faz “durar” no presente da enunciação do próprio discurso que articula tal experiência na linguagem. O “romancista audacioso” de Bergson parece surgir aqui justamente para trazer uma nova “imagem” da vida do espírito, implodindo as construções conceituais edificadas pela filosofia e pelas ciências, a fim de nos pôr em contato direto com a carne do “eu concreto”. Tudo se passa, então, como se a literatura fosse a única dimensão da cultura capaz de conhecer a consciência como realidade temporal.
V
A identificação dos aspectos mais importantes da duração na narrativa rosiana não significa que há aí uma definição do tempo. Definir o tempo não é a função da literatura. O que se pode sustentar é que a narrativa de Rosa, ao exibir o devir afetivo do protagonista, caracteriza a consciência de tal maneira que alguns indícios da natureza do tempo psicológico se manifestam, aproximando-se muito de algumas concepções de Bergson. Sem dúvida, a literatura não pode narrar o próprio tempo, não porque ele é abstrato ou formal, mas porque sua natureza só pode ser apreendida a partir de uma desconstrução da inteligibilidade filosófico-científica, essa sim abstrata e formal. É por isso que, para Bergson, a duração interna do Ensaio é teoricamente caracterizada apenas após o diálogo crítico com a psicologia empírica. Seu método filosófico, aliás, exige uma passagem obrigatória pela crítica da ciência, que se amplia como crítica da inteligência e da linguagem. A abordagem da literatura não é feita, portanto, para trazer à luz um novo conceito do tempo, mais preciso ou mais verdadeiro, mas apenas porque para Bergson a descrição da experiência deve anteceder a demonstração teórica. Coerentemente, então, o que se obtém na literatura são sempre “figuras da duração”, descrições de conteúdos capazes de dimensionar a realidade concreta da consciência, jamais pretendendo elaborar definições fechadas sobre sua dinâmica. Nesse sentido, a literatura apenas forneceria à metafísica exemplos privilegiados de uso não instrumental da linguagem, rompendo o paradigma do significado/significante. A respeito do papel da literatura na metafísica, Franklin Leopoldo e Silva declara:
Para que a metáfora sirva como meio de aproximação direta da realidade é preciso que a imagem não cristalize um significado, mas sugira uma visão, que não é interpretação, mas contato. Portanto, a imagem não vai figurar a realidade espiritual; ela vai conscientemente sugerir algo que sabemos situar-se para além da imagem. (SILVA, 1994, p. 97).
Ao que parece, a contribuição que a literatura pode dar à filosofia, sobretudo à metafísica, encontra-se em seu potencial expressivo. Se a linguagem comum ou especializada é necessariamente organizada no espaço[19], a linguagem literária, sua multiplicidade de imagens, pode registrar o movimento dos significados como um processo que simula o movimento temporal da consciência, acompanhando-o até o ponto extremo no qual se totaliza. Nesse caso, a linguagem literária buscaria violar a espacialidade que caracteriza toda linguagem, trabalhando contra as próprias tendências que possibilitam sua constituição. Apesar de ser também uma estrutura espacializada, de sorte que a justaposição acaba sendo sua forma essencial, a linguagem literária consegue inverter essa espacialidade, quando faz um conjunto de metáforas incidir sobre o mesmo ponto[20], suprimindo a justaposição na exata medida em que expõe a fusão de múltiplos significados, reproduzindo em sua ordem discursiva o movimento temporal das coisas. Desse modo, tudo se passa como se a literatura facilitasse a coincidência entre o sujeito do conhecimento e a realidade conhecida, o conteúdo da intuição e sua expressão, embora tal coincidência seja em última análise parcial. É em conformidade com isso que Franklin Leopoldo completa:
É nesse sentido que a metafísica tem algo a ver com a literatura no sentido em que a entende Bergson, isto é, expressão imagética da fluidez do universo afetivo: assim como o escritor emprega palavras para que não reparemos nas palavras em sua simples opacidade, mas para que atravessemos as imagens na direção da coincidência com a personagem e a trama, assim também o metafísico recorrerá às imagens para que o movimento metafórico que ele estabelece na linguagem provoque o espírito a captar no jogo imagético uma realidade situada mais além. (SILVA, 1994, p. 97).
O ideal metafísico da filosofia de Bergson de coincidência com o objeto do conhecimento implica, portanto, a relação íntima com a literatura, pois, ao ampliar o alcance da linguagem, a literatura indica à filosofia a possibilidade de se ampliar o alcance do conhecimento discursivo. Seguramente, o conhecimento discursivo da filosofia estará sempre aquém do que pode ser vivido ou intuitivamente apreendido, mas, ao aceitar a contribuição da arte[21], ele pode se posicionar sempre além da inteligibilidade abstrata da ciência, de maneira que a filosofia, estando à frente da ciência, poderá inclusive orientá-la.
Assim, a literatura psicologicamente densa pode descrever adequadamente a atividade afetiva do eu profundo, tocando o próprio tempo vivido das personagens. Porém, somente a metafísica, a partir de um itinerário metódico que envolve o diálogo crítico com a ciência, no caso do Ensaio com a psicologia empírica, pode demonstrar teoricamente a realidade do tempo interior. É, portanto, da interação entre psicologia, metafísica e literatura que surge, para Bergson, a primeira compreensão da duração pura.
ABSTRACT: This paper aims to explore the relation between psychology, metaphysics and literature, through an examination of Bergon’s Time and Free Will: An Essay on the Immediate Data of Consciousness, or, more precisely, through the description of “deep feelings”, which represent in the Essay a privileged moment for understanding the temporal structure of consciousness. However, this study will not be restricted only to Bergson’s text and its descriptions of deep feelings (such as aesthetic and moral emotions), which would probably be repetitive. Instead, we shall use a work of literature (Guimarães Rosa’s novel, Grande sertão: veredas) to exemplify the possibility of a qualitative description of “stream of consciousness”, revealing its temporal structure. We hope in this way to clarify the interaction between psychology, metaphysics and literature in the philosophy of Bergson. KEYWORDS: Duration. Literature. Metaphysics. Psychology. Deep feelings.
referências
BERGSON, Henri. Oeuvres. (Édition du centenaire). 6. ed. Paris: PUF, 2001.
DARWIN, Charles. A expressão das emoções nos homens e nos animais. Tradução de Leon de Souza Lobo Garcia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 1999.
PRADO JÚNIOR, Bento. Presença e campo transcendental: consciência e negatividade na filosofia de Bergson. São Paulo: Edusp, 1989.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
SILVA, Franklin Leopoldo e. Bergson: intuição e discurso filosófico. São Paulo: Loyola, 1994.
Recebido em: 15.02.2012
Aceito em: 29.09.2012
[1] Graduado em Filosofia pela UNESP - Universidade Estadual Paulista - Campus de Marília, Mestre e Doutor em História da Filosofia Contemporânea pela UFSCar - Universidade Federal de São Carlos. Atualmente é Professor Adjunto da UFCG- Universidade Federal de Campina Grande. Como pesquisador, possui interesse pelas seguintes áreas: Filosofia Francesa Contemporânea e Filosofia da Psicologia. Fundou e lidera o Grupo de Pesquisa Filosofia da Psicologia, vinculado ao CNPq. 2 Cf. Ensaio, 2001, p. 09-17.
[2] Doravante, a obra será chamada unicamente de Ensaio.
[3] É preciso dizer, a título de esclarecimento, que a interioridade em Bergson não é apenas a interioridade da consciência, assim como a duração não é apenas psicológica. As obras posteriores do filósofo irão ampliar o sentido da interioridade e da duração, dando-lhes um alcance cosmológico ou ontológico. Semelhante constatação está presente também nas obras dos comentadores da filosofia bergsoniana.
Cf. DELEUZE, 1999, p. 37; SILVA, 1994, p. 302 e 310; PRADO JÚNIOR, 1989, p. 115.
[4] Cf. Ensaio, 2001, p. 57.
[5] Cf. Matéria e memória, 2001, p. 167.
[6] Convém registrar uma curiosa passagem do Ensaio, na qual Bergson menciona o “romancista audacioso”, e não o psicólogo preciso, como o porta-voz do “eu profundo”. Escreve ele: “Se agora algum romancista audacioso, dilacerando a teia habilmente tecida de nosso eu convencional, mostranos sob esta lógica aparente uma absurdidade fundamental, sob esta justaposição de estados simples
[7] Cf. BERGSON, 2001, p. 03.
[8] “[...] no pensamento de Bergson, as exigências de expressão da metafísica são mais bem cumpridas pela Arte” (SILVA, 1994, p. 3013).
[9] Cf. Presença e campo transcendental: consciência e negatividade na filosofia de Bergson.
[10] Cf. Ensaio, p. 9-17.
[11] Na obra Presença e campo transcendental, interpretando os sentiments esthétiques do primeiro capítulo do Ensaio, Bento Prado elabora uma fenomenologia do sentimento da graça. Tal fenomenologia discrimina as quatro imagens dessa experiência, mais propriamente, quatro “figuras da duração” continuamente ligadas e que se totalizam na última imagem. A primeira delas é a interrupção da relação laboriosa com o mundo, que a própria desenvoltura do movimento gracioso instaura. A segunda imagem traz a experiência da secreta unidade do tempo, ordinariamente escandido no interior da vida prática em passado, presente e futuro. Já o ritmo, terceiro elemento da graça, culmina na identificação da simpatia física com a simpatia moral. Salienta Bento Prado: “Como a simpatia moral, essa simpatia física é a apreensão da possibilidade da extinção da separação entre as consciências. No imaginário ‘mover-se com...’, nessa ‘comoção’, há, da mesma maneira que na simpatia moral, uma ruptura do círculo da ipseidade, onde a consciência faz sua a perspectiva do outro” (PRADO JÚNIOR, 1988, p. 84). E, por fim, a comoção, última imagem da graça, que “[...] reinterioriza a série de que é o resultado e dá a lei interna da passagem [...]” (Idem, ibid., p. 86). Para Bento Prado, portanto, a análise da graça exibe o esquema próprio das qualidades dentro do tempo, de modo que é uma descrição da própria duração o que encontramos nos sentimentos profundos abordados por Bergson. Cf. Idem, ibid., p. 80-87.
[12] Cf. Ensaio, 2001, p. 24.
[13] Para Deleuze, que lê a filosofia de Bergson como uma “filosofia da diferença”, a diferenciação é o próprio “movimento da diferença” que constitui a consciência e a duração. Enfatiza ele: “Com efeito, o que é a duração? Tudo o que Bergson diz acerca dela volta sempre a isto: a duração é o que difere de si. [...] A vida psíquica, portanto, é a própria diferença de natureza: na vida psíquica há sempre outro sem
[14] Cf. Ensaio, 2001, p. 13.
[15] Nota-se que o passado do narrador está presente desde as primeiras linhas do romance. Ao tranquilizar o interlocutor oculto, dizendo que os disparos que acabara de dar não sinalizam guerra, o narrador já indica seu passado de jagunço.
[16] Cf. Ensaio, 2001, p. 12.
[17] Franklin Leopoldo explora a relação entre coincidência, intuição e expressão. Cf. SILVA, 1994, p. 304-305; 314.
[18] Cf. PRADO JÚNIOR, 1989, p. 84.
[19] Cf. Ensaio, Avant-Propos, 2001, p. 03.
[20] A respeito disso, Cf. Introdução à metafísica, 2001, p. 1392-1432.
[21] Acerca da relação entre arte e filosofia, cf. Ensaio, 2001, p. 14-16.