São Bernardo: ApologiA e arte arquitetural
RESUMO: Este artigo busca expor as críticas de Bernardo de Claraval às superfluidades humanas no texto da Apologia, especialmente aquelas referentes à arte arquitetural. Em segundo lugar, procura analisar as implicações estéticas do ascetismo cisterciense e bernardiano. As críticas de Bernardo exercem uma influência decisiva na ornamentação e fazem nascer uma nova arquitetura.
PALAVRAS CHAVE: Bernardo de Claraval. Ascetismo. Arte. Arquitetura.
Um texto apologético, de razão ascética, espiritual, relacionado ao nascimento de uma nova arte, de significativa importância para a história da arte e a estética: esse é o tema do presente estudo, que propomos desenvolver. O texto em questão pertence a Bernardo de Claraval e a referida arte é a arquitetura cisterciense, realizada em conformidade com sua reflexão.
Por volta de 1123-25, São Bernardo escreveu a Apologia, opúsculo dirigido a Guilherme, abade cluniacense de Saint-Thierry, a propósito de problemas monásticos. Em doze capítulos, os últimos cinco dizem respeito à crítica às superfluidades em várias abadias.
Nelas, diz Bernardo, encontra-se uma grande intemperança para com a comida, a bebida, as roupas, os cortejos e a construção de edifícios, a ponto de, onde isso é feito com mais zelo, prazer e abundância, falarem que aí há melhor ordem. Mas isto é, na verdade, uma inversão:
Eis, então, que a parcimônia é tida como avareza, a sobriedade é julgada como austeridade, o silêncio é reputado como tristeza. De modo contrário, o relaxamento é dito discrição, a dissipação liberalidade, a loquacidade afabilidade, a gargalhada alegria, a delicadeza das roupas e a altivez dos cavalos dignidade, o aparato supérfluo das camas limpeza, e quando dedicamos isso uns aos outros chama-se caridade. Esta caridade destrói a caridade, esta discrição destrói a discrição.[2]
Alguns se sujeitam aos apetites da carne e, claro, não cultivam as virtudes da alma. Um tal descuido está longe dos primeiros eremitas, que seguiam a ordem correta, quando em primeiro lugar cuidavam da parte mais digna. Porém, o que se observa, ao contrário, é o desprezo pelos alimentos simples e naturais, pois, fazendo misturas variadas e não respeitando os sabores naturais, estimulam os sabores alterados; ultrapassam o necessário, mas não ultrapassam o prazer. “Para que tudo isso, senão para prevenir o tédio?” Em seguida, cuidam da aparência desses alimentos, para que não tenham menos prazer com o aspecto do que com o gosto. O estômago, “[...] para quem não brilham as cores nem encantam os sabores”, é obrigado a receber tudo, mais oprimido do que refeito. No uso do vinho, a situação não é diferente. Vê-se em uma refeição cálices semicheios mais para serem cheirados do que bebidos, escolhendo depois entre vários vinhos aquele mais forte. Nas festas, bebem o vinho com mel ou especiarias. Tudo só serve para que bebam mais e com mais prazer. Há, por outra parte, jovens saudáveis e fortes que abandonam a comunidade indo para a enfermaria, sem estarem doentes, para comer carne. Não certamente para reparar um corpo enfraquecido pela doença, mas para realizar o desejo do luxo de terem carne na comida; inclinam-se a refeições longas, ficam rolando numa cama mole; possuem alimentos em abundância e não desejam a roupa, mas o adorno material. Para vestir, muitos não procuram a roupa mais útil, mas a mais fina; não aquela que repele o frio, mas a que estimula a soberba; não compram aquela de pouco valor, mas a mais elegante e que com mais vaidade se ostenta. Um coração vazio introduz no corpo a marca da vaidade, o supérfluo exterior é o sinal da vaidade interior. As roupas macias indicam a moleza da alma. Não teriam tanto cuidado com a roupa do corpo, se antes não tivessem deixado a mente descuidada das virtudes. É de notar a ostentação dos cortejos. Um abade (e aqui Bernardo estará fazendo alusão ao abade Suger[3]) levava uma comitiva suficiente para dois bispos e mais de sessenta cavalos; parecia, assim, um senhor de castelo ou um governador de província.[4]
No que concerne à arte arquitetural, maiores são as superfluidades: comprimentos imoderados, larguras vãs, alturas imensas, decorações suntuosas, pinturas que suscitam a curiosidade. Bernardo distingue claramente a arte das catedrais da arte das abadias.[5] As catedrais devem ser construídas tanto para os instruídos quanto para os simples, devem conter uma arte que estimule a devoção do povo, que é carnal, graças à ornamentação material. As abadias, ao contrário, são fechadas e destinadas exclusivamente aos monges, que já se retiraram do povo, renunciaram às coisas preciosas e belas do mundo e consideram os prazeres corporais como excremento para lucrarem o Cristo.[6]Alguns, prossegue Bernardo, espalham dinheiro com essa arte arquitetural, de sorte que ela se multiplica, gerando copiosidade, suntuosidade, riqueza e colorido. Os homens são incitados a admirar mais a beleza das imagens do que a venerar seu caráter sagrado. Gastam para ornamentar, deixando de cuidar dos pobres. A esse respeito, Bernardo assim expressa sua indignação:
Oh! vaidade das vaidades, mas não mais vã que insensata! Brilha a igreja nas paredes e há privação entre os pobres. Reveste de ouro suas pedras e abandona seus filhos nus. Do que se dá para as despesas com os necessitados reserva-se para os olhos dos ricos. Os curiosos encontram com que se deleitar e os pobres não encontram com que se manter.[7]
De nada vale, conclui, a ornamentação para os homens espirituais e que aderiram à pobreza monástica. Para eles, essa arte é supérflua, embora não o seja para os homens iletrados e devotos:
Enfim, que [vale] isso para os pobres, para os monges, para os homens espirituais?… Concordo: admitamos que isso se faça na igreja, pois ainda que seja nocivo para os que tem vaidade e cupidez, não o é, todavia, para os simples e devotos.[8]
Nos claustros, a ornamentação não faz sentido; tende à monstruosidade, “[...] certa formosura deformada e deformidade formosa”.[9] Por todo lado aparece a variedade das formas exteriores, cuja admiração consome mais tempo que a meditação, o estudo. Mais se tem vontade de ler nos mármores que nos códices.
As críticas da Apologia terão sido endereçadas em primeiro lugar a Cluny e, secundariamente, a uma ou outra abadia em particular. No que tange à arte arquitetural, Bernardo visa aos abusos tanto nas dimensões quanto na ornamentação.
De Warren (1953) observou, a esse propósito, que as dimensões das abadias deveriam variar inevitavelmente de acordo com a importância da abadia, o número de monges, se eram centros de peregrinação, se possuíam escolas no seu recinto. Os beneditinos recebiam numerosos leigos, estudantes, clérigos, oblatas e peregrinos, ao contrário dos cistercienses. As dimensões das igrejas era uma questão de bom-senso e modéstia, virtudes que faltaram aos monges, em alguns casos. Por isso, seria mais preocupante para Bernardo a questão do luxo na ornamentação. A mensagem bernardiana investe contra os exageros, não contra as concepções artísticas dos cluniacenses. Chama os beneditinos a se corrigirem e, ao mesmo tempo, aos cistercienses a agirem em conformidade com seu carisma.[10]
Desde meados da década de 1120, são fixadas, sob a influência de Bernardo, as características da arte arquitetural. Por isso, para se compreender a arte cisterciense, é necessário conhecer Bernardo.
Cabe examinar aqui como ele expressa seu pensamento sobre a arte e a beleza. Para o abade de Claraval, a verdadeira beleza é aquela da alma. “Falaciosa é a glória e vã a beleza”, diz ele, referindo-se à glória exterior, ligada ao corpo.[11] A primeira beleza é a candura da inocência, o brilho da incapacidade para fazer ou agir mal (in-nocentia), que é aumentada pela humildade. Desse modo, a beleza (decor) da alma é a humildade. A ausência da pureza e da humildade constitui a feiura, a deformidade.[12] O aspecto belíssimo próprio e particular da esposa (da alma) ocorre quando busca a Deus somente por ele mesmo.[13]
Em segundo lugar, como Leclercq (1987) apontou, Bernardo prefere considerar os efeitos da arte na alma, a conhecer e explicar sua essência, estrutura, leis. A arte musical está a serviço de algo maior que sua prática; sua função é aumentar e fortalecer a experiência interior, espiritual. Essa função atribuída à música, assinalou Leclercq, revela a significação que Bernardo confere à arte e à beleza. E o mesmo vale para a gramática e a retórica, que representam o estudo das letras. Elas não são suficientes para causar a experiência interior, nem mesmo lhes é necessária.
Não obstante, a busca pela beleza na expressão, nas obras, é legítima. A expressão artística brota da experiência espiritual seguida do emprego exato da matéria e dos meios próprios de cada arte. Do acordo entre a experiência e a expressão resulta a beleza sensível.
Essa experiência, fundamental, ascética, tem dois aspectos: a indigência (pobreza, miséria) e a esperança. O conhecimento do homem de sua indigência (necessidade de Deus), donde procede a humildade (o reconhecimento dessa necessidade), e a esperança (o reconhecimento de que é capaz de Deus, ou seja, de que é capaz de acolher a resposta de Deus, a graça). É uma ascese, um esforço de purificação e de aquisição gradual da humildade, que leva à caridade (o amor a Deus e ao próximo) e à contemplação interior. O homem, assim reformado, reencontra sua harmonia sob influência da graça; passa da experiência da miséria à experiência da glória, do Verbo. A harmonia reencontrada é, portanto, obra da graça; é a experiência da glória do Filho, do seu esplendor e, ao mesmo tempo, do nosso esplendor interior; é a restauração da semelhança divina no homem.[14] Essa harmonia se estende, tem seus efeitos no corpo e na matéria, a partir da alma. Assim, toda beleza exige ir da experiência interior, espiritual, à expressão.[15]
Por conseguinte, para Bernardo, a experiência ascética precede a expressão da arte. Ele não admite para os monges senão uma arte como reflexo dessa experiência; uma arte do puramente necessário, segundo De Bruyne (1998). A essa arte opõe-se uma outra, caracterizada pela superfluidade, que não parte da experiência ascética, mas da curiosidade, que tem como consequência a dispersão da alma.[16]
Duas artes “menores”, a caligrafia (cópia dos manuscritos) e a arte da iluminura, são as primeiras artes cistercienses. A arte arquitetural, que, além da própria edificação ou arquitetura, inclui a ornamentação através de outras artes menores (como o vitral, a estatuária e o afresco), é posterior. A arquitetura cisterciense, em particular, é de inspiração bernardiana.
É Bernardo quem leva a reforma monástica para a esfera da arte. Na década de 1120, uma mudança vai se afirmando, expressada nos estatutos dos capítulos gerais a partir de 1134: nada de imagens figurativas, fantasiosas, simbólicas, cores fortes, fundos de ouro, nas iluminuras; as letras iniciais serão de uma única cor, na caligrafia; nada de esculturas fantasiosas nos capitéis do claustro; somente se permitem cruzes de madeira pintadas; nada de vitrais coloridos, somente de vidro branco ligeiramente acinzentado, sem imagens, motivos geométricos, flores, folhagens.
Na origem dessa mudança estão os termos da Apologia, que de certo modo retoma o carisma cisterciense. Bernardo defende excluir todo supérfluo, tudo que contraria a simplicidade e a pobreza, tudo que pode suscitar a curiosidade e a dispersão da alma, desviando da prática da ascese.[17]
A partir disto, observou Dimier (1949), nasce uma nova arte, a arquitetura cisterciense. Essa nova arquitetura é, portanto, expressão de uma postura exclusivamente espiritual, ascética. Entre suas notas, estão: clareza e simplicidade do partido, distribuição racional das massas, perfeição da execução, despojamento da ornamentação. As edificações, segundo Dimier, são reduzidas ao essencial; seu efeito reside nas proporções simples e na disposição; tudo nelas é apto para favorecer a paz, o recolhimento e a contemplação interior. As condições exteriores favorecem as disposições interiores. O claustro funciona como um pedagogo da alma; é um livro; uma escola de sobriedade, nudez, simplicidade, beleza sincera.[18]
ABSTRACT: This paper is to expose the criticism of human superfluities at Bernard of Clairvaux in the text of the Apology, especially those related to architectural art. Secondly, analyzes the aesthetic implications of cistercian and bernardian asceticism. Criticism of Bernard exercise a decisive influence on ornamentation and give birth to a new architecture.
KEYWORDS: Bernard of Clairvaux. Asceticism. Art. Architecture.
DE BRUYNE, Edgar. Études d’esthétique médiévale. Paris: Albin Michel, v.1, 1998.
DE LA TORRE, Juan María. El carisma cisterciense y bernardiano. In: Obras completas de San Bernardo. Edição bilíngue. Madrid: BAC, v.1, 1983, pp.3-72.
DE WARREN, Henry-Bernard. Bernard et les premiers Cisterciens face au problème de l’art. In: Bernard de Clairvaux. Paris: Commission d’Histoire de l’Ordre de Cîteaux, Editions Alsatia Paris, 1953, pp.487-534.
DIMIER, Anselme. Recueil de plans d’églises cisterciennes. Introduction. Paris: Librairie d’Art Ancien et Moderne, 1949.
GILSON, Étienne. La théologie mystique de Saint Bernard. Paris: J. Vrin, 1986.
LECLERCQ, Jean. Essais sur l’esthétique de S. Bernard. In: Recueil d’études sur Saint Bernard et ses écrits. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 1987, p.35-77.
PLAZAOLA, Juan. La reacción cisterciense (cap. 17,4). In: El arte sacro actual. Madrid: BAC, 1965, pp.407-415.
SAN BERNARDO. Tratado sobre los grados de humildad y soberbia. Tradução de Juan María de la Torre. In: Obras completas de San Bernardo. Edição bilíngue. Madrid: BAC, v.1, 1983.
______. Apologia. Tradução de Iñaki Aranguren. In: Obras completas de San Bernardo. Edição bilíngue. Madrid: BAC, v.1, 1983.
______. Sermones sobre el Cantar de los Cantares. Tradução de Iñaki Aranguren. In: Obras completas de San Bernardo. Edição bilíngue. Madrid: BAC, v.5, 1983.
SANTOS, Luis Alberto Ruas. Um monge que se impôs a seu tempo: pequena introdução com antologia à vida e obra de São Bernardo de Claraval. Rio de Janeiro, Lumen Christi, 2001.
TATARKIEWICZ, Wladyslaw. Storia dell’estetica. Torino: Einaudi, v.2, 1979.
[1] Professor de História da Filosofia Medieval e Renascentista da UNESP de Marília. Endereço eletrônico: aivanov@marilia.unesp.br.
[2] Apologia ad Guillelmum, 8,16.
[3] Suger de Saint-Denis.
[4] Apol., 8,17-11, 27.
[5] Ibid., 12,28.
[6] Ibid.
[7] Ibid.: O vanitas vanitatum, sed non vanior quam insanior! Fulget ecclesia in parietibus, et in pauperibus eget. Suos lapides induit auro, et suos filios nudos deserit. De sumptibus egenorum servitur oculis divitum.
Inveniunt curiosi quo delectentur, et non inveniunt miseri quo sustententur.
[8] Ibid.: Denique quid haec ad pauperes, ad monachos, ad spirituales viros?… Assentio: patiamur et haec fieri in ecclesia: quia etsi noxia sunt vanis et avaris, non tamen simplicibus et devotis.
[9] Ibid., 12,29: quaedam deformis formositas ac formosa deformitas. Como exemplos de beleza deformada e deformidade bela, Bernardo cita, entre outros: animais como que imundos, centauros, figuras metade homem metade animal (ou com cabeça de homem e corpo de animal); figuras com uma cabeça e muitos corpos (ou com muitas cabeças e um corpo), um animal com metade anterior de cavalo e metade posterior de cabra, um animal com corno e corpo de cavalo.
[10] DE WARREN, 1953, p.500-501. O carisma cisterciense consiste na rectitudo Regulae, o compromisso de viver a retidão da Regra de São Bento; a quietude-solidão-frugalidade-simplicidade-desapegohumildade. Essas notas são vividas juntamente em cada uma das dimensões da vida monástica: na liturgia, na arte, no habitat etc. Cf. DE LA TORRE, v.1, 1983, p.11-13.
[11] Epist. 113,1: fallax gloria et vana pulchritudo. Cf. LECLERCQ, 1987, p.41-42; 50-52.
[12] Super Cantica Canticorum, 45,1,2. Cf. TATARKIEWICZ, v.2, 1979, p.218; DE LA TORRE, v.5, 1983, p.15.
[13] Esse aspecto belíssimo da esposa corresponde ao otium (ociosidade, paz, tranquilidade) de Maria e não ao negotium (ocupação) de Marta, que significa buscar o necessário para a vida, ainda que seja por Deus. Cf. Sup. Cant., 40,2,3.
[14] A descoberta do nosso esplendor interior, indica Leclercq, supõe a confissão, que é a acusação de nós mesmos, não a nós mesmos nem aos outros homens, mas em presença de Deus; essa acusação, destruindo o pecado, purifica o homem e torna possível a verdadeira beleza.
[15] LECLERCQ, 1987, p.39-40; 43; 45-47; 49-52.
[16] DE BRUYNE, 1998, p.508-509. A curiosidade é o primeiro grau da soberba. A alma torna-se curiosa pela ação de olhar em volta de si, embotando-se com a falta de cuidado de si; e porque ignora a si, lança-se ao exterior para saciar os olhos e os ouvidos. Desse modo, a curiosidade e a consequente dispersão da alma são a negação da experiência ascética. Cf. De gradibus Humilitatis et Superbiae, 10,28; GILSON, 1988, p.181.
[17] Cf. DE WARREN, 1953, p.527-530; PLAZAOLA, 1965, p.409-411; SANTOS, 2001, p.125-127.
[18] Cf. DIMIER, 1949, p.27-28; DE WARREN, 1953, p.515; DE LA TORRE, v.1, 1983, p.50-51.