A DesignAção Id Quod Summum omnIum e os “nomes Divinosem Anselmo De CAntuáriA

Paulo Martines[1]

Quod nomen eius et quod nomen  filii eius, si nosti Pr 30,4

RESUMO: Anselmo de Cantuária investiga no Proslogion (caps. 5-12) se o conteúdo de nossas palavras se refere de modo adequado à substância criadora. Essa obra de Anselmo pode ser considerada como uma meditação realizada por um espírito que busca entender aquilo que inicialmente crê a respeito do ser divino. O Proslogion nos oferecerá um caminho para pensar o sentido da busca de razões no domínio exclusivo da fé, do esforço da palavra humana para encontrar aquilo que já fora dito por outra palavra. Este artigo visa a explicitar o sentido dessa racionalidade, naquilo que diz respeito aos “nomes divinos”. A designação id quod summum omnium (Proslogion, cap.5) retoma um tema já presente na reflexão anselmiana e impõe ao teólogo um desafio: articular, sob a dialética do melius, o modo propriamente humano de a criatura referir-se a Deus, reconhecido como maius e distante de qualquer relação de continuidade com o mundo.

PALAVRAS-CHAVE: Racionalidade. Fé. Argumento. Essência.

O tratamento dos nomes divinos ocupa parte considerável da reflexão de Anselmo, no Proslogion. Os capítulos 5 – 12 investigam se os termos justo, misericordioso, bom e sensível são empregados de modo correto, quando aplicados a Deus, todos considerados imediatamente após a reflexão sobre a sua existência, explicitada pelo argumento único[2]. O ponto de partida dessa reflexão reconhece a excelência divina: Deus é entendido como aquele que “[...] é supremo a tudo, o único existente por si, e que fez todas as coisas do nada” (P. 5,104:11-17)[3]. Continua Anselmo: “[...] o que faltaria a esse ser supremo, através do qual se reconhece todo e qualquer bem” (P. 5,104:1117). O esforço para pensar algo positivamente acerca de Deus é manifesto: “E assim, tu és justo, verdadeiro, feliz e tudo aquilo que é melhor ser do que não ser. De fato, é melhor ser justo, do que não ser justo, feliz do que não ser feliz” (P. 5,104:11-17).

Deve-se destacar que, na economia do texto do Proslogion, o reconhecimento do Id quod summum omnium segue aquela outra denominação expressa na fórmula Id quo maius[4]. Esta última designação determina o aliquid (= Deus) de uma maneira negativa, em relação a nós, proibindo o pensamento de circunscrevê-lo; em oposição à primeira designação, que coloca a criatura em face de Deus, diante daquele que é supremo, o único verdadeiramente existente e o criador. Esse grupo temático de capítulos (5-12) investiga se o conteúdo de nossas palavras pode referir-se à substância criadora e, algo não menos importante, como é necessário, de nossa parte, aquela experiência nascida da audição da palavra (humana ou divina), a qual aponta para a dignidade e profundidade de Deus[5]. Essas duas fórmulas, antes de serem antagônicas, aprofundam a reflexão sobre o ser supremo.

O tratamento dessa questão requer a utilização daquilo que aqui denominaremos princípio do melius, explicitado por Anselmo no capítulo 5 e citado mais acima, no início desse trabalho, da seguinte forma: a natureza divina é constituída por tudo “aquilo que é melhor ser do que não ser”. O termo chave aqui é melius, que substitui o maius do argumento, dito agora do seguinte modo: sendo algo tal que nada maior pode ser pensado, Deus é aquele cujo ser é melhor ser do que não ser, pois, de modo diferente, não seria o algo tal que não se pode pensar nada melhor. Essa regra do melius aprofundará a intelecção do summum (supremo). Este não será tratado como o ser que coroa a série dos relativos, mas nele mesmo, do ponto de vista de sua excelência: o termo melius (um comparativo em latim) aparece na reflexão de Anselmo para indicar uma decisão preferencial entre dois julgamentos contrários atribuídos ao termo em questão: a reflexão é conduzida em direção ao ser que aceita ou não tal qualidade, segundo aquilo que é o melhor. Uma passagem do Monologion confirma essa ideia: “Na verdade, é melhor ser algo do que não ser algo, assim como sábio, do que não sábio, isto é, é melhor o sábio do que o não sábio” (M. 15, 28: 33-34). Anselmo propõe um deslocamento (semântico) na maneira de dizer algo a respeito de Deus: ele não é o melhor entre todas as coisas que são, mas é o melhor de todas as coisas que não são o que ele é. É tão somente nessa perspectiva que se pode, de acordo com Anselmo, dizer algo a respeito da substância criadora, compreendendo-a como aquela que absolutamente é a melhor.

Convém ainda lembrar que a reflexão sobre o summum já fora desenvolvida no Monologion, a partir da caracterização do par per se e per aliud. Entre as coisas que nomeamos boas, dirá Anselmo, existe uma medida única que é a bondade, através da qual podemos apreender o correto modo de entender aquilo que se julga bom. A bondade em si mesma resta idêntica, ainda que presente na diversidade. O summum aqui descrito será caracterizado pelo bonum subsistente: “Por outro lado, quem duvidará de que aquilo mesmo, pelo qual tudo é bom, seja um grande bem? Portanto, ele é bom por si mesmo, pois todo bem é por ele” (M. 1,15: 4-6). Mas o tratamento dessa questão exige não apenas o reconhecimento do termo superior de uma série de entes relativos, mas daquilo que é transcendente, que é por si[6]. Ao indagar sobre a origem das coisas, Anselmo pergunta se tudo o que é provém de algo ou do nada. Como não é possível pensar que algo tenha a sua origem do nada, pois o nada não pode gerar nada, deve admitir-se que aquilo que “é” provém de algo, sendo mais verdadeiro (verius) afirmar que as coisas derivam de um único algo do que de muitos: “Assim, como a verdade exclui de qualquer modo que sejam muitos, aquilo pelo qual tudo é, é necessário que seja um, aquilo pelo qual é tudo o que é” [...] “Quer se diga essência, substância ou natureza, é o ótimo e o máximo, e o supremo de tudo o que é” (M. 3,1: 26-28). 

Para a exposição deste trabalho, serão considerados inicialmente os atributos de sensibilidade, onipotência e misericórdia (caps. 6-8) e, depois, aqueles atributos de justiça e bondade (caps. 9-11).

1. sensibiliDADe, onipotênCiA e miseriCórDiA

Tomemos como ponto de partida os seguintes enunciados: 1) Deus é dotado de experiência sensível, ainda que não tenha um corpo; 2) é onipotente, mas não pode fazer muitas coisas, mentir e fazer com que o verdadeiro seja falso; 3) é misericordioso, mas não sujeito às paixões. Deus tem as qualidades das coisas sensíveis (é sensível, potente e misericordioso), porém, não tem o limite delas (não é corpo, não pode fazer o mal, não se compadece). O movimento dialético a ser desenvolvido clama pela superação da oposição inicial. A solução para esses três casos consiste em mostrar, conforme uma clarificação de ordem semântica, a compatibilidade dos termos que estão em aparente contradição.

Como o ser supremo pode ser concebido como sensível, ainda que não tenha um corpo? Apenas as coisas dotadas de um corpo são sensíveis, pois os sentidos lhe pertencem de um modo próprio. Assim, pergunta Anselmo: “[...] como és sensível, se não tens um corpo, sendo, pois, espírito supremo, algo que é melhor do que o corpo?” (P. 5,104: 24-25). Como é possível afirmar que Deus é sensível e incorpóreo? Temos que a sensibilidade é um modo de conhecer, especialmente daquele conhecimento que diz respeito aos particulares. No entanto, uma vez que Deus conhece tudo, poder-se-ia alegar que ele possui tão somente um conhecimento das ideias das coisas criadas no verbo, onde tais coisas seriam a verdade de sua essência. Todavia, não é só isso, porque se trata de mostrar que Deus conhece suas criaturas de uma maneira única; sua sensibilidade é a condição de sua misericórdia, como se verá mais abaixo, ao se levar em conta a consolação divina[7]. O conhecimento dos sentidos concerne aos sensíveis que lhes são próprios. Assim, como a visão tem a cor, o gosto tem os sabores. Tal o modo de sentir, alcança-se certo tipo de conhecimento.

A incompatibilidade entre os atributos, ser sensível e incorpóreo, é dirimida se ambos forem considerados em si mesmos, segundo a dignidade divina, e não pela condição humana. Assim, ainda que Deus não seja um corpo, ele “[...] é verdadeira e sumamente sensível” (P. 5, 105: 6-7), segundo o seu modo supremo de conhecer todas as coisas, diferentemente do animal, que conhece pelos sentidos corporais.

A aparente aporia entre a onipotência e a incapacidade para fazer algumas coisas é superada pela consideração do termo potentia - impotentia. Por exemplo, a possibilidade de fazer o mal não é um poder, mas uma impotência. Assim, Deus é mais potente quanto menos tem a capacidade de realizar tal ato. Deus não pode aquilo que não lhe convém fazer; em si mesmo, ele pode e quer, pois é a sua própria norma, fidelidade a si mesmo e fecundidade geradora. Quem pode tais coisas, mentir ou pecar, pode o que não é bom e o que não deve[8]. Aquele que tem o poder de fazer aquilo que não é bom para consigo, ou o que não deve, manifesta uma impotência[9]. O raciocínio é levado a inverter a nossa compreensão desse atributo, quando relacionado a Deus: o não poder de Deus é justamente reconhecido como um poder acima de qualquer outro. Ainda mais: ao se dizer que Deus não pode certas coisas, não lhe é negado nenhum poder, mas, ao contrário, o pensamento alcança uma significação que aponta para sua insuperável potência e força. A onipotência divina está além de toda capacidade humana de pensá-la.

Essa discussão sobre a potentia remete ao tratamento clássico oferecido por Anselmo ao tema da liberdade: o não poder pecar da liberdade é mais livre do que a vontade que pode afastar-se de Deus e voltar-se para as coisas ínfimas, isto é, pecar. A vontade mais livre (liberior) é aquela que possui o que convém, o que é mais vantajoso e o que não pode ser abandonado. Por fim, é mais livre a vontade que não pode ser desviada de sua retidão de não pecar[10]. Liberdade é definida nos termos desse tratado como “[...] o poder de conservar a retidão da vontade pela própria retidão” (DLA. 3, 212: 19-20). Na confirmação da liberdade enquanto um poder, temos a presença da eficácia de um querer: o de não se submeter (a algo que lhe é estranho, como a força da tentação) e de conservar a retidão da vontade, que é exatamente o fato de querer aquilo que se deve, que no caso da natureza criada será o de identificar seu querer com o de Deus. Dessa maneira, pode-se falar muito justamente de submissão à vontade de Deus, da criatura em relação ao criador, pois ela não é a expressão da servidão.

De fato, a dificuldade não se encontra na natureza divina, porém, na linguagem humana que tenta exprimi-la: não se trata de um limite imposto à potência divina, mas de um modo impróprio de falar.

Como pensar ao mesmo tempo a misericórdia e a impassibilidade divinas? Antes de enfrentarmos as dificuldades nesse par de atributos, convém destacar aquilo que pertence propriamente à misericórdia divina, e descrevê-la como signo da profundidade do amor de Deus. Dizemos com frequência que Deus é misericordioso, porque ele se compadece daqueles que sofrem qualquer tipo de mal. Nesse sentido, teríamos de admitir algum tipo de mudança ou alteração naquele que se compadece. Como admiti-la para aquele que é indivisível e imutável? O movimento racional colocará em evidência um duplo ponto de vista, secundum nos e secundum te, a fim de alcançar a ideia de que Deus é misericordioso em si mesmo: “Como é que és e não és misericordioso, senhor, senão porque és misericordioso segundo nós e não segundo o que tu és?” (M. 8, 106: 9-11). Do nosso ponto de vista, decorre a experiência afetiva, a criatura sente os efeitos da misericórdia divina; Deus, ao contrário, não é afetado pelas misérias humanas: “Com efeito, quando olha para nós, sentimos o efeito da misericórdia, mas tu não te sentes afetado” (M. 8, 106: 11-12). O tema da sensibilidade, considerado mais acima, é recolocado numa dupla perspectiva: da parte divina, quanto ao seu conhecimento da criatura (cap. 6 ); da nossa parte, quando a criatura sente os efeitos da misericórdia divina (cap. 8). A compaixão de Deus se concilia com a ideia de não estar sujeita às afecções, ao distinguir o nosso ponto de vista do seu: a criatura sente o efeito da compaixão divina, mas Deus não sofre modificação alguma.

2. JustiçA e bonDADe

Na aporia entre a justiça e misericórdia de Deus e sua relação com os pecadores, três são as questões a resolver: 1) Como Deus pode perdoar os maus, se é a expressão da justiça suprema? (cap. 9); Como pode punir e perdoar justamente os maus? (cap. 10); Como pode punir os maus, se é a bondade suprema? (cap. 11). A dificuldade desse conjunto temático reside no fato de que Deus, em sua bondade, pode perdoar e premiar mesmo os maus; todavia, Deus é justo, e a justiça exige que o mal seja punido. Em outras palavras, há oposição entre justiça e misericórdia, se as considerarmos segundo o padrão da criatura racional: esta perdoa aquilo que a primeira condena. Ambas, justiça e misericórdia, estão presentes na soberana bondade. A razão humana encontra-se diante de algo incompreensível e fonte de espanto. Quando se diz que Deus é bom e justo, deve-se dizer que é bom e misericordioso, porque é justo. Ora, entre a bondade e a justiça deve haver não apenas compatibilidade, mas recíproca implicação. Ainda que seja incompreensível pensar ao mesmo tempo justiça e misericórdia, é necessário afirmar ambas, em sua única e infinita bondade[11]. Não alcançamos a inteligência plena disso, precisamos crer que isso seja assim. Reaparece aqui o “crer para entender”, já entrevisto nos capítulos iniciais do Proslogion.

O importante capítulo 9 discute o tema da justiça mediante uma meditação cujo eixo central é o enunciado de fé: “[...] embora seja difícil entender como tua misericórdia não é incompatível com tua justiça, é necessário crer que não é contrário à justiça aquilo que nasce da bondade, que nada é sem a justiça, antes converge para a justiça” (p. 9, 108: 2-5). Aqui, o pensamento de Anselmo retoma a ideia do aliquatenus intelligere: não cabe ao intelecto humano penetrare naquilo que certamente é inacessível, mas alcançar certo tipo de entendimento (= aliquatenus), almejado por aquele que se põe no caminho do conhecer[12]. O que foi visto quanto à sensibilidade e onipotência de Deus vale igualmente para a sua misericórdia e justiça, isto é, é preciso considerar esses atributos a partir da dignidade e excelência divinas, o que leva a inverter a ordem da atribuição. Ser misericordioso significa salvar os miseráveis, perdoar os pecadores, mas não por um sentimento de compaixão, pelo qual o agente é levado a sentir determinada afecção.

A resolução da primeira dificuldade, focalizada mais acima, faz menção à denominação do id quo melius nequit cogitari (algo tal que nada de melhor pode ser pensado), expressão correlata ao argumento id quo nihil maius cogitari possit (algo tal que nada de maior pode ser pensado). O raciocínio é assim estruturado: aquele que é bom para os bons e maus é melhor do que aquele que somente o é para os bons, fruto da imensa bondade divina. Deus deve ser pensado justo de tal sorte que não seja possível pensá-lo de modo mais justo, devendo haver um tipo de justiça cujo ser é absolutamente melhor que o não ser: “[...] porque é justo que tu sejas bom a ponto de não poderes ser entendido como melhor do que és; e justo que operes tão poderosamente que não possas ser pensado como mais poderoso do que és” (P. 9, 108:11-13). Anselmo indica para uma solução na qual é possível entender (em certo sentido) aquilo que necessariamente devemos crer, tudo isso pontuado pelas noções de grandeza e perfeição (maius e melius).

A justiça humana retribui em função do mérito; a justiça divina, ao contrário, é idêntica à sua bondade. Não há, então, justiça retributiva em Deus? Ela deve ser afirmada pela fé, conforme o modo da criatura referir-se àquela essência suprema e transcendente, como simplesmente justa, como algo que é impenetrável para nós.

O segundo problema é resolvido de uma forma já apresentada: quando Deus pune os maus, é justo com respeito aos méritos deles; por sua vez, quando os perdoa, é justo do ponto de vista de sua bondade, e não do nosso ponto de vista. Em outras palavras, o termo “justo”, pode ser lido de dois modos diferentes: 1) no clássico sentido retributivo e distributivo – dar a cada um o que é seu – ; 2) no princípio da grandeza e perfeição; o primeiro na chave de leitura secundum nos; o segundo, naquela identificada pelo secundum te. Deus é misericordioso, dirá Anselmo, porque ele o é segundo nós, e não segundo ele próprio. Somos nós que sentimos o efeito da misericórdia divina; Deus, ao contrário, não sente nenhum tipo de afecção, não é afetado por nenhuma compaixão.

A resposta à terceira antinomia: ao punir os maus, Deus é justo com respeito a si mesmo: “[...] é justo segundo o que tu és” (P. 11,109:14). O raciocínio é breve: ao retribuir segundo o mérito, aos bons e aos maus, é mais justo do que aquele que retribui apenas aos bons. Com o capítulo 11 do Proslogion, aparece o tema da vontade divina. O “secundum te” poderia ser assim expresso: não é justo que sejam salvos aqueles que Deus quer punir, nem que sejam condenados aqueles que Deus quer perdoar. Tal raciocínio poderia levar a determinado tipo de pensamento, que pode ser expresso na seguinte máxima: é “[...] justo apenas aquilo que Deus quer, e injusto aquilo que não quer”[13]. A relação entre misericórdia e justiça como aqui desenvolvido não pode ser pensada em termos de necessidade, mas de uma vontade livre. Vejamos um pouco mais esse tema.

Intrinsecamente ligado à misericórdia está o epíteto justo aplicado a Deus: como, ao perdoar aqueles que não merecem, Deus pode ser sumamente justo? Que justiça é essa que concede vida perpétua àqueles que merecem a morte eterna? Da imensidão da bondade divina, onde nenhuma inteligência pode penetrar – luz inacessível – reconhece-se a fonte de sua misericórdia. Ao perdoar os maus e retribuir aos bons, a vontade divina não faz algo contrário à justiça, mas se harmoniza com ela. Deus é verdadeiramente misericordioso, porque é justo.

A vontade de Deus identifica-se com a sua justiça, porque Deus quer necessariamente a justiça. Quando se diz que é justo aquilo que Deus quer, e injusto aquilo que ele não quer, não se deve entender com isso o poder absoluto da vontade divina, nem a possibilidade de se afirmar alguma arbitrariedade, como, por exemplo, dizer que a mentira é justa, porque Deus quer mentir. Como já vimos, querer mentir é próprio de uma vontade corrompida ou que renunciou à verdade. Isso não pertence a Deus.

O conceito de justiça pertence propriamente a Deus e, de modo menos adequado, às criaturas; dentre essas, apenas à racional, a quem o louvor ou a censura são devidos quando se é ou não justo, quando se age ou não com justiça. Para Anselmo, verdade, justiça e retidão se dizem reciprocamente.

É na vontade que vamos discernir o sentido mais profundo da formulação anselmiana da justiça. É justo aquele que faz querendo aquilo que deve: não basta inteligir ou agir de um modo correto, é preciso querer retamente. À vontade deve corresponder, em primeiro lugar, querer o que se deve (o quod) e por que se deve querer (quia); em segundo lugar, deve ultrapassar aquilo que é devido (debitum) e alcançar a retidão por causa da retidão (propter ipsam rectitudinem)[14]. Assim, a vontade é justa, quando conserva a retidão da vontade por ela mesma, o que permite a Anselmo propor a definição de justiça: “[...] a retidão da vontade conservada por ela mesma”[15]. É na esfera do amor que está o sentido último da justiça: justos são os “retos de coração”, isto é, os retos de vontade (segundo os Salmos 32,11 e 107,42). A retidão da vontade, expressão da justiça em Anselmo e centro da definição de liberdade, deve ser pensada em seu horizonte próprio, que é aquele do amor. Somente um coração purificado pela fé recebe a retidão como dom de Deus, o que não é outra coisa senão a graça.

A concordância dos atributos de misericórdia e justiça é bem delineada na pessoa do Deus-homem. Somos levados para o terreno da cristologia, onde o Cur deus homo ocupa um papel central na reflexão moral anselmiana: se a justiça exige que uma satisfação integral seja oferecida pelo homem a Deus, e se essa satisfação é uma misericórdia que ultrapassa a capacidade do homem, o acordo supremo da misericórdia com a justiça coincide na união de Deus com o homem na pessoa do reconciliador. Vejamos como Anselmo estrutura seu raciocínio, a partir da hipótese da salvação humana sola misericordia: seria possível admitir que a salvação do homem fosse realizada tão somente por um ato de misericórdia de Deus[16]? Admitir a salvação humana nesses termos, dirá Anselmo, equivale: 1) a não punir o pecado cometido pelo homem; 2) a não manter a ordem justa exigida por Deus no mundo, o que seria permitir a desordem (= injustiça); e 3) considerar o pecador nos mesmos termos daquele que não pecou. Sem a ordem no mundo, sinônimo da justiça divina, a injustiça seria semelhante a Deus, na medida em que não se submeteria a nenhuma lei. Mesmo diante de posições tão claras, como não reconhecer, indagará um dos interlocutores desse diálogo, o preceito de “perdoar sem restrições aqueles que nos ofendem” – referência ao Evangelho de S. Mateus (6, 12)? Ou, ainda, como não reconhecer as afirmações de que Deus “[...] é livre (liber) de modo que não está submetido a nenhuma lei ou ao julgamento de outrem [...] e benevolente, de tal modo que não se pode pensar ninguém mais benevolente”? É justo o que Deus quer. Contudo, surge a dificuldade: se Deus não pode perdoar o pecado pela misericórdia, parece que não é totalmente livre, se não quer, parece que sua benevolência não é absoluta.

Essa aparente dificuldade, ao formular a limitação dos atributos divinos, deve ser superada pela inteligência humana, no exercício que faz da ratio (rationabiliter intelligere), de forma a não comprometer a dignitas de Deus. A liberdade deve ser considerada como “[...] ordenada em vista daquilo que é útil e conveniente”, e a benevolência deve merecer esse nome sempre quando referida a Deus[17]. Com a noção de dignitas, Anselmo alcança a plenitude da perfeição divina. Não há dilema entre Deus e as suas denominações, ao reconhecer a sua superabundância.

Como entender, então, a “[...] inefável profundidade da misericórdia divina”, que ergueu o homem e o restitui à sua dignidade, senão considerála como “[...] tão grande e tão concordante com a justiça, que não pode ser pensada nem maior ou mais justa”[18]? Longe de qualquer incompatibilidade, temos uma verdadeira consonância entre os atributos de misericórdia e justiça. A argumentação desse tratado cristológico alinha-se àquela desenvolvida no Proslogion, seja pelo conteúdo, seja pela forma de exposição, na qual assume importância o sentido do unum argumentum.

O final dessa discussão sobre as propriedades de Deus retoma a lista inicial do capítulo 5 e reconhece Deus em si mesmo: “Mas, certamente, tudo quanto és, és não por outro e, sim, por ti mesmo. Tu és, portanto, a vida mesma pela qual vives, a sabedoria pela qual és sábio, a bondade pela qual és bom para os bons e para os maus, e o mesmo vale para outros [atributos] semelhantes” (P. 12, 110:6-8).

ABSTRACT: In his Proslogion (chapter 5-12), Anselm of Canterbury investigates whether the content of our words refers in an adequate way to the creative substance. This work of Anselm may be considered as the meditation of a soul who seeks to understand that which it already believes about the divine being. The Proslogion offers us a way to think about the meaning of the search for reasons within the domain of faith, and about the power of human words to find out what has already said in other words. This article attempts to explain the meaning of this rationality with respect to ‘divine names’. The designation id quod summum omnium (Proslogion, chapter 5) takes up a theme presented earlier in Anselm’s reflections, and it imposes on the theologian a challenge: to articulate, within the melius dialectic, the properly human way of referring to God, recognized as maius and distant from any relation of continuity with the world.

KEYWORDS: Rationality. Faith. Argumentation. Essence.

referênCiAs

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SCIUTO, I. Introduzione al Proslogion. In: ANSELMO. Monologio e Proslogio. Milano: Bompiani, 2002.



[1] Professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

[2] O Proslogion foi escrito em 1078, dois anos após o Monologion. Trata-se de uma obra cujo conteúdo pode reduzir-se aos temas centrais de Deus e da alma. Essa obra apresenta duas partes indicadas pelo próprio Anselmo: trata-se de entender, a respeito de Deus, (1) que ele é como cremos (caps. 1-4); e, 2) que é aquilo que cremos (caps. 5-26). A primeira diz respeito à investigação de sua existência, a segunda, uma tentativa de explicação da sua natureza ou essência; um duplo procedimento que, na escolástica posterior, será expresso pela concisão das fórmulas an sit e quid sit.

https://doi.org/10.1590/S0101-31732012000400006

[3] Para as obras de Anselmo, utilizam-se aqui as seguintes abreviaturas: M (Monologion); P (Proslogion); CDH (Cur deus homo); DV (De veritate); DLA (De libertate arbitrii); EIV (Epistola de incarnatione verbi). As indicações numéricas que seguem as abreviaturas correspondem, respectivamente, ao capítulo da obra, página e linhas da edição de F. S. Schmidt, S. Anselmi. Opera omnia. Stuttgart: Bad Cannstad, 1984, 2 vols.

[4] Trata-se de uma variante da designação aliquid quo nihil maius cogitari possit, núcleo do argumento único.

[5] O termo experientia não é usado aqui no sentido de uma acumulação empírica relacionada ao saberfazer, mas no sentido de um retorno para si, introspectivo, próprio do exercício da meditação, à qual se entrega o monge Anselmo. Nesse sentido, vale mencionar uma passagem de Anselmo que reafirma o papel da experiência como algo prévio à aquisição de um determinado tipo de conhecimento: “Aquele que não crer não entenderá. Pois, aquele que não crer não terá a experiência, e que aquele que não tiver a experiência, não conhecerá. Com efeito, tanto a experiência supera a audição da coisa, quanto a ciência de quem tem a experiência triunfa sobre o conhecimento de quem tem a audição” EIV, I,9.

[6] Aparece nesses capítulos iniciais do Monologion aquilo que P. Naulin chama de “postulado essencialista”. Cf. NAULIN, P. Réflexions sur la portée de la preuve ontologique chez Anselme de Cantorbéry. Revue de Métaphysique et morale, p. 1-20, 1969.

[7] Cf. GILBERT, P. Le Proslogion. Le silence de Dieu et joie de l’homme. Roma: Pontificia Università Gregoriana, 1990, p. 127 ss.

[8] O contexto de fala, no seu uso ordinário, dirá Anselmo, apresenta determinadas imprecisões, como, por exemplo, quando dizemos que algo ou alguém tem o poder ou a capacidade para realizar certas ações e, no entanto, trata-se de um poder ou capacidade que é estranho ao agente. Cf. ANSELMO, DCD 12, 253: 18-27; DV 7,188: 9-11 e o CDH II, 10,108: 1-5.

[9] A respeito do não poder de Deus, afirma Courtenay: “For Anselm, God does not have the ability to will that wich he has not willed or that which is contrary to his nature. For Anselm only one way was every really correct or possible, for God’s Will has to express God’s nature, and God’s nature, in turn, can never have been subject to multiple possibilities, since in such a case God’s nature would have no consistent meaning”. Necessity and freedom in Anselm’s conception of God. Analecta Anselmiana 4. Frankfurt/Main:Minerva, p.39, 1975. Do mesmo autor, cf. Capacity and volition. A history of the distinction of absolut and ordained power. Bergamo: Perluigi lumbrina, 1990, p. 31-36.

[10] Cf. ANSELMO, DLA. 1, 208: 14-21. No mesmo sentido é o opúsculo inacabado intitulado De potestate et impotentia, possibilitate et impossibilitate, necessitate et libertate. In: L’oeuvre de Saint Anselme de Cantorbery. Vol. 4. Trad. et notes par A. Galonnier. Paris: Cerf, 1990, p. 382-435.

[11] O esforço de concordar e harmonizar certos atributos de Deus, como aqueles que estamos analisando em Anselmo, é colocado como uma tarefa impossível para um pensador contemporâneo como Hans Jonas. Em seu conhecido livro O conceito de Deus após Auschwitz, o autor pergunta se, diante dos problemas do mundo moderno, como a miséria, a pobreza e, sem dúvida, o Holocausto, devemos mudar nosso discurso sobre Deus. Por que há o sofrimento humano, não obstante a afirmação da bondade divina? O argumento de Jonas refere-se ao “escândalo do mal”: se admitirmos a concordância da onipotência e sabedoria de Deus, teremos dificuldade em reconhecê-lo como misericordioso e bondoso, pois não se compreenderia o Holocausto. O esforço de Jonas é explicar esse tipo de abandono, do homem e da história, às forças do Mal. A resposta clássica oferecida pela teologia cristã aponta que a raiz do mal no mundo tem sua origem no pecado. Cf. JONAS, H. Le concept de Dieu après Auschwitz. Trad. Philippe Ivornel. Paris: Payot, 1994. Para a argumentação sobre a onipotência divina, cf. p. 27-33.

[12] Cf. Anselmo: “Desejo entender em alguma medida aquilo que meu coração crê a ama” (P. 1, 100: 18-18).

[13] Cf. SCIUTO, I. Introduzione al Proslogion. In: ANSELMO. Monologio e Proslogio. Milano: Bompiani, 2002.

[14] Cf. DV. 12: 194.

[15] Cf. DV. ibidem.

[16] Cf. CDH II, 18: 127.

[17] Cf. CDH I, 12: 70.

[18] CDH I,20: 131.