ORTEGA Y GASSET, José. Unas Lecciones De Metafísica. Obras Completas. V. III. Madrid: Fundación Ortega-Marañon; Taurus, 2010.
O livro de Ortega y Gasset foi escrito em quatorze lições às quais o editor espanhol agregou dois apêndices, que haviam sido inicialmente publicados, separadamente, em 1965, na Revista do Ocidente. Sua origem foram os manuscritos deixados pelo filósofo e usados num curso ministrado em 1932/33, na Universidade de Madrid, cujo título oficial era Princípios de metafísica segundo a razão vital. O curso reúne as meditações de Ortega y Gasset como professor de metafísica naquela Universidade e insere na tradição ocidental um pensamento original sobre o problema metafísico que ele desenvolveu em numerosos trabalhos, desde 1910.
Na lição inicial, o filósofo explica que fazer metafísica é uma ocupação falsa, porque é uma ação que se afasta das necessidades da vida mesma, mas, acrescenta, a atividade é importante para quem dela necessita. Explica o pensador o sentido da necessidade: “[...] uma ciência não é tal senão para quem a busca com afã” (p. 16). Observa Ortega y Gasset que algumas pessoas buscam o saber metafísico, não por vocação íntima, mas para atender exigências alheias e, quando assim ocorre, seu estudo tem algo de falso. Considerando que alguns homens precisam do saber que a metafísica proporciona, Ortega y Gasset o define como o que se faz “[...] quando se busca uma orientação radical em uma situação” (p. 25). Situação, ele acrescenta, é a vida de cada um e, como na vida cada homem se encontra irremediavelmente perdido, a Metafísica o ajuda a se orientar.
A lição seguinte parte do ponto aonde chegou a lição inicial: “[...] o fazer metafísico consiste no que o homem busca como orientação radical em sua situação” (p. 26). Ortega y Gasset diz que, durante algum tempo, os homens sabiam o que as coisas eram, mas, em certa ocasião, começaram a duvidar de suas crenças. Por que motivo ele começou a se indagar pelo ser? Porque não se pode saber o que as coisas são, se não se sabe o que é o ser das coisas. É assim que surge, na Antiga Grécia, o problema radical que a filosofia acolheu: saber o que as coisas são. Para responder a essa questão, a metafísica se ocupa não de reunir informações, mas de elucidar a raiz ou fundamento do ser. Por que o homem passou a buscar tal fundamento? Para se orientar numa situação em que a sua vida passou a ser percebida como desorientação. A orientação não se consegue apenas com conhecimento, esclarece o autor, mas saber é uma forma de orientação. E, como a vida autêntica é, essencialmente, desorientação, o homem a busca, nem que para isso utilize de convicções alheias. E por que havemos de nos voltar para elucidar o que a vida é? Porque a Metafísica é algo que fazemos para clarear o fundamento e “[...] a vida é algo anterior, anteposto a quanto a Metafísica ou qualquer outra ciência ou religião mesma vai descobrir” (p. 31). A vida é uma experiência imediata, não nos chega com verdades distantes, mas é sentida próxima: “[...] vida é o que somos e o que fazemos: é, pois, de todas as coisas a mais próxima” (p. 31). E, se vida é o que estamos fazendo agora, ela reúne neste presente o passado e o futuro. E como estamos sempre fazendo alguma coisa, procuramos saber por que estamos. Vida é saber de si e do que nos rodeia: “[...] em suma, encontrar-se a si mesmo ocupado com coisas e seres do mundo” (p. 34). Ocupar-se não é tocar objetos, mas saber como esses objetos nos afetam, ameaçam e atormentam. E aí está o drama que o mundo representa: a circunstância que tenho para viver não é por mim escolhida e tenho que resolver seus problemas, não importa se eles são grandes ou pequenos. E se tenho que encontrar solução para os problemas é porque a vida não é dada pronta nem possui trajetória pré-fixada como a bala de um fuzil. Cabe a cada homem escolher a trajetória que quer seguir, na circunstância em que se encontra. A vida consiste em decidir o futuro, explica o filósofo: “[...] o presente e o passado se descobre depois, em relação com o futuro” (p. 38).
A lição três constata que, se a vida é fazer escolhas, decidir o futuro, então ela é atividade consciente. Mesmo quando não tinha consciência disso, cada pessoa contava consigo para fazer as coisas. Eis a caracterização da vida que o filósofo propõe: “[...] viver é esta realidade estranha, única, que tem o privilégio de existir para si mesma” (p. 42). Em outras palavras, viver é saber-se viver. E como a Metafísica é algo que se faz na vida, não pode ser teoria distante, mas constatação. Se viver é assim como Ortega y Gasset diz, então a vida é evidente ou uma verdade. E, em seguida, ele nomeia mais três características para a vida: “1 – a vida se inteira de si mesma; 2 – a vida se faz a si mesma; 3 – a vida se decide a si mesma” (p. 47). Com essa caracterização, termina a lição.
A lição quatro trata da Metafísica como uma forma de saber que descreve as características da vida. E as características enunciadas na lição anterior revelam que cada homem está só na condução de sua vida; além disso, afirma que ele “[...] se encontra rodeado do que não é ele, se encontra em um contorno” (p. 50). Desse entorno não há como escapar e já sabemos que ele não é escolhido pelo sujeito, diz o filósofo, pois “[...] nossa vida começa por ser a perpétua surpresa de existir, sem nossa anuência prévia, náufragos em um orbe não escolhido” (p. 51). E o entorno espacial é também temporal, porque a vida em sociedade é histórica, como o é cada sujeito. Estar no entorno não é uma questão física, pois sou mais que um corpo físico e sou também constituído “[...] por algo imaterial, chame-se a isto alma, espírito ou como se queira” (p. 53). O Eu é esse conjunto de algo material e algo imaterial e está num contorno que não é ele. Daí, “[...] viver é existir fora de si, estar fora, afastado de si [...]. O homem é, por essência, forasteiro, emigrado, desterrado” (p. 54). É assim que se forma a compreensão orteguiana de existência traduzida em “[...] ser efetivamente o que se é, em suma, execução de uma essência” (p. 56). Entre outras coisas, o homem é um ser frágil, com um corpo e uma alma facilmente afetados, mas é a partir deles que buscará alterar a circunstância que o afeta e o impede de realizar seu projeto vital.
A outra lição aprofunda o significado de habitação. A habitação é um ingrediente da vida e sabemos muitas coisas sobre ela. Frequentemente, nós nos enganamos: quando pensamos conhecer o que a vida é porque conhecemos aspectos da habitação. Os filósofos modernos entenderam que as coisas são o que pensamos, mas elas não se reduzem a pensamento. Quando as coisas perdem a clareza, elas começam a possuir um ser. Então, o ser que a Metafísica examina “[...] é o que falta em nossa vida, o enorme buraco ou vazio que o pensamento, em seu esforço incessante, se esforça por alcançar” (p. 72), quando o mundo perde o significado que tinha para o sujeito.
O capítulo seis trata a vida como uma operação que se faz para frente, em direção ao futuro. Escolher o destino é algo que a circunstância permite e é esse movimento o ingrediente da vida. O capítulo seguinte retoma a linha desenvolvida no anterior e, nele, o filósofo explica que, quando falamos que algo é de determinado modo, substituímos a coisa percebida pelo pensamento. Quando digo algo, construo o saber elementar que é uma interpretação do ser. Quando se pergunta sobre o ser, perdemos o rumo da investigação sobre as coisas. É o que acontece, esclarece o filósofo no capítulo oito, quando substituímos o que tenho diante de mim por outra coisa, que é o seu ser. A pergunta pelo ser que a Metafísica faz espera levar ao conhecimento do que há por traz do vazio. Por sua vez, “[...] quando um pensamento ante mim funda uma verdade que parece evidente, o princípio que o leva a adotá-lo se chama razão” (p. 89). Por esse motivo, tais princípios não parecem teorias, não as vemos como ideias, mas como realidades.
Na lição nove, o filósofo afirma que, para tratar de assuntos profundos, tenho que começar examinando o que aparece para mim. E o que aparece revela algo que não aparece, isto é, uma realidade interior ou escondida que a Metafísica denomina substância. Quando quero falar do conhecimento científico do mundo, falo da realidade substancial e não da mesa que resiste à minha presença, quando apoio nela para comer. Na visão científica, a ideia de substância elimina as categorias estanques, mas a mesa descrita pela ciência contém elementos que estão além dos sentidos. Ao dizer que a mesa se forma de elétrons, estou falando de algo que não toco, percebo e sinto. Diz o filósofo: “[...] o fato radical é que o homem vivendo, encontra-se com o fato que nem as coisas, nem ele tem ser, ele não tem outro remédio que fazer algo para viver, que decidir seu fazer a cada instante” (p. 95).
A lição dez parte do entendimento bem firmado nas anteriores: “[...] a vida é sempre ter que fazer algo em vista da circunstância onde estamos, é ter que se ocupar com algo” (p. 97). Algo que ganha sentido, quando possuo um plano, quando o levo adiante. A Metafísica é um plano sobre todas as coisas que existem e serve, portanto, de orientação radical para a vida de cada um. Ortega y Gasset elabora, então, uma definição para Metafísica: “[...] ela não é uma ciência, é construção do mundo e isto de construir o mundo com a circunstância, é a vida humana” (p. 99). Pois bem, conscientes que a substância radical da vida é insegurança, alguns homens, desde a antiga Grécia, perceberam que fazer Metafísica é inevitável. Trata-se, como já anunciado nas lições anteriores, de tarefa solitária, pois, “[...] quando fabricamos nossas convicções radicais temos que fazê-lo cada qual por si e para si, em radical solidão” (p. 101).
A lição seguinte mostra que a certeza fundamental que desejamos alcançar para que outras se tornem possíveis é tarefa da Metafísica. E o que existe de forma radical? O que há, verdadeiramente, é o ser, garante o filósofo. No início da História da Filosofia, o ser significava coisas que, em sua totalidade, formavam o cosmo; o ser da coisa precisava estar sendo, para que ela fosse o que é. Definir o ser como o que existe é realismo, um tipo de perspectiva radical que se formou na antiga Grécia. De modo diverso, a modernidade trouxe uma nova perspectiva, a idealista, porque seus representantes perceberam que o estar aí da coisa depende de Eu e que a ideia de um fundamento do mundo e ela depende do sujeito. Em resumo, entender que a realidade é o Mundo leva a outra: a realidade é um sujeito que pensa o Mundo.
A lição doze recorda a trajetória histórica da Metafísica, saber que, na busca da segurança radical, a Metafísica formulou primeiro uma perspectiva realista e depois outra idealista. O idealismo acabou gerando um novo problema: não há nada fora do sujeito em que ele possa se apoiar. No entanto, explica Ortega y Gasset, a consciência não resume toda a realidade. Quando está diante de uma parede, o sujeito reconhece: “[...] há uma coisa independente de mim que é esta parede” (p. 113). Então o sujeito descobre algo além dele. O que é isto, o mundo? Na lição seguinte, ele responde que é algo cuja presença o sujeito constata. Este mundo pode ser pensado, tornar-se objeto do pensamento, mas o pensamento tem algo que não tem origem nele. Havia uma parede e ela pede ser pensada, mas é preciso distinguir as duas coisas: o que resiste a minha presença e o pensamento da parede. Chega-se, assim, à posição orteguiana: “A realidade não é a existência da parede por si só – como queria o realismo – porém, tampouco é a parede em mim como um pensamento puro, minha existência só e por mim. A realidade é a coexistência minha com a coisa” (p. 119).
A última lição é uma revisão do livro para justificar a posição raciovitalista sintetizada na lição anterior. A Metafísica raciovitalista, esclarece Ortega y Gasset, “[...] conserva a verdade do idealismo que é a imanência e a verdade do realismo que é a transcendência” (p. 128). O que leva a uma conclusão interessante: a minha vida não é minha, sou parte dela. O que é meu é o meu pensamento do mundo, mas minha vida é mais que ele.
O primeiro dos apêndices incluído pelo editor no livro é um texto de Ortega y Gasset que explica que a Metafísica é algo que o homem faz para se orientar. É um complemento das lições propostas no livro. A orientação possível à Metafísica nasce da crença de que ela pode ser alcançada pela razão. O homem busca conhecer, porque não sabe tudo, mas também não é um ignorante completo acerca da realidade. Como forma de conhecimento, a Metafísica é um tipo especial de saber, pois contempla a certeza radical “[...] ou última instância de verdade” (p. 132). Esta é a razão pela qual ela se diferencia das demais ciências. Apesar das diferenças, Ciências e Filosofia têm em comum o esforço para superar a dúvida e a incerteza que povoam a vida. Em relação à Religião, a Filosofia tem em comum a procura de uma verdade universal e, de diferente, o propósito “[...] de ser prova de si mesma” (p. 133). A Filosofia é pergunta pela realidade radical e em sua trajetória construiu duas grandes perspectivas na busca da verdade: o realismo e o idealismo, ambas insuficientes para tratar do fundamento como ele esclareceu, nas lições do livro.
O último apêndice possui duas partes. Na inicial, o filósofo distingue as duas dimensões em que o homem se encontra enquanto vive, em si mesmo e fora de si ou imerso naquilo que o rodeia. Viver é estar fora de mim na circunstância, mas para ali atuar há a necessidade de voltar para si. O homem vive, pois, o movimento que ele denomina alterar-se (ir para fora) ou ensimesmar-se (mergulhar em si). Na segunda parte do apêndice, o filósofo lembra Goethe, poeta e literato mágico que convida o sujeito a instalar-se em si para descobrir o que é verdadeiramente na sua intimidade. Esse movimento para dentro parece fundamental ao filósofo, porque a atuação no entorno do eu depende da descoberta do que se é. Quando olho para o íntimo do meu eu, encontro “[...] não uma coisa, mas um programa do que fazer, uma norma ou perfil de conduta” (p. 141). Então não há uma norma pronta para ser seguida, conclui o filósofo, mas uma para ser construída e executada. Isto é viver.
Recebido em: 02.01.2012
Aceito em: 03.03.2012