A eStruturA do Sentido: goldStein e merleAu-Ponty
RESUMO: Ao reatar o elo mais profundo entre a psicologia e a filosofia, Merleau-Ponty revisita a obra clínica de Kurt Goldstein (1878-1965), reavivando, em especial, seu contributo fenomenológico. As noções de “estrutura” (Gestalt) e “sentido” são, aqui, agenciadas quanto a uma compreensão mais integral do comportamento, da vida e da linguagem; alcance que Goldstein obtém, ao estudar os diferentes distúrbios linguísticos, na contramão das teorias intelectualistas e empiristas, essencialmente causais. Ao retomar esse inventário crítico, Merleau-Ponty atenta para o caráter original, dinâmico e, sobretudo, ontológico dessa proposta.
PALAVRAS-CHAVE: Kurt Goldstein. Merleau-Ponty. Estrutura. Sentido. Comportamento.
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Em seus cursos ministrados na Sorbonne, no período de 1949 a 1952, Merleau-Ponty explora o estatuto das relações entre a filosofia e a psicologia. Inspirando-se numa ideia oriunda de Bergson, observa:
A filosofia deve descobrir o sentido dos fenômenos descritos pelo cientista. O papel do filósofo é o de reconstituir o mundo que o físico vê, mas com aquela “margem” que o cientista não menciona, e que é fornecida pelo contato do físico com o mundo qualitativo [...]. Não haverá diferença entre psicologia e filosofia: a psicologia é sempre filosofia implícita, incipiente; a filosofia nunca deixou de entrar em contato com os fatos. (MERLEAUPONTY, 2001, p. 14, grifo meu).
Essa observação parece tornar-se especialmente significativa, na medida em que põe em pauta os papéis do filósofo e do cientista como dois gestos profundamente recíprocos. Para além de qualquer cisão rígida entre tais domínios, há um acordo mútuo, uma cumplicidade mais fecunda nem sempre entrevista, a ser mais bem explorada. Ora, essa análise não é inconsequente, se examinarmos, com a devida atenção, o quanto a filosofia pode não só colaborar como também instruir-se na sua relação com a ciência e, em particular, com a psicologia. No caso dessa última, deve-se levar em conta que a renovação que as análises filosóficas ou fenomenológicas buscam está bem longe de ser uma invasão. O que se pretende, é tão somente,
[...] renovar a psicologia em seu próprio terreno, de vivificar seus métodos próprios por meio de análises que fixem o sentido, sempre incerto, das essências fundamentais. A fenomenologia distingue expressamente o método “eidético” e o “método indutivo” (quer dizer, experimental) e não contesta jamais a legitimidade deste. (MERLEAU-PONTY, 1996a, p. 22-23; 23)[2].
Em tal perspectiva, “[...] a experiência antecipa uma filosofia, assim como a filosofia nada mais é que uma experiência elucidada” (MERLEAUPONTY, 1945, p. 77). Diante disso, sem se substituírem uma na outra, descaracterizando-se conjuntamente, há entre filosofia e psicologia uma coesão íntima, de modo que é, sob esse critério, que entre elas não haverá diferença. Se há alguma distinção aí a ser ponderada, ela será apenas uma diferenciação de graus de ingenuidade ou de explicitação, já que se trata, antes, de um só saber (MERLEAU-PONTY, 1996b, p. 119).
Ora, é reavivando esse colóquio que Merleau-Ponty reconstitui a figura de Kurt Goldstein (1878-1965), importante neuropsiquiatra alemão, cuja obra parece projetar não só com relação às pesquisas clínicas de início de século, mas, sobretudo, no contexto da tradição fenomenológica emergente, um contributo decisivo. Goldstein é um autor que jamais perspectiva sua prática científica à margem de qualquer interesse filosófico. Não há sentido algum – enfatiza ele – querer impor alguma oposição entre ciência e filosofia. Nessa medida, “[...] conhecer e agir mantém bem antes, uma relação de ação recíproca de caráter dialético. Um conhecimento sem ação não é um conhecimento; uma ação sem conhecimento não é uma ação; ambos nascem um do outro – se justificam mutuamente” (GOLDSTEIN, 1983, p. 360). Esse princípio põe em evidência que o cientista não pode mais manter-se isento às consequências filosóficas em meio ao labor de seu ofício, operando sem refletir mais seriamente, isto é, deixando de interrogar os limites de sua prática. Problema similar também pode ser posto ao filósofo: é improcedente quando o metafísico se abstém absolutamente ao domínio dos fatos, negligenciando o terreno da observação e da análise.
É sob esse ângulo que o questionamento acerca da linguagem parece ser um parâmetro privilegiado para se mensurar de que maneira a dialética entre a ação e o conhecimento dá lugar a uma crítica mais consciente, solidária e, portanto, engajada. É o que Adhémar Gelb (1887-1936), colaborador de Goldstein, vislumbra, quando mostra que “[...] a questão da essência e do valor da linguagem tem sido ligado de modo um pouco mais indissociável aos problemas filosóficos, não unicamente aqueles que tocam ao conhecimento e à lógica, mas, em última análise, ao problema mesmo da natureza do homem” (GELB, 1969, p. 229). Dessa maneira, o que parece tornar a linguagem um tema especialmente fecundo é a ampla e rica experiência clínica sobre a qual tanto Gelb quanto Goldstein incansavelmente se debruçam. Eles anteveem, no curso de suas pesquisas conjuntas, consequências filosóficas decisivas, ao ponto de Goldstein chegar a destacar que os estudos médicos clássicos escamoteiam a natureza da linguagem e, consequentemente, os transtornos patológicos dela decorrentes. O investigador é incapaz, por exemplo, de resolver os problemas que lhe põe o estudo prático da afasia, se não adota uma atitude filosófica requerida (GOLDSTEIN, 1948, p. xii). Assim, a fim de melhor situar esse juízo crítico, Goldstein passa em revista duas concepções clínicas nas quais o distúrbio linguístico é interpretado à luz da teoria clássica do conhecimento. O que entrará, em jogo aí, é uma certa concepção de “sentido” ou de “significação” na esfera do comportamento em geral.
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O primeiro modelo explicativo, que se tornou predominante na medicina moderna, é o do empirismo clássico (Hobbes, Berkeley e Locke)3 que reconhece, na linguagem, uma função exclusivamente instrumental. A constituição da linguagem se encontra estreitamente vinculada aos estímulos neurofisiológicos, caracterizando-se apenas como um fenômeno físico-sonoro associado pelo cérebro. É esse argumento que Locke, no livro terceiro do Essay, enuncia decididamente: “[...] o uso de palavras consiste nas marcas sensíveis das ideias, e as ideias que elas enunciam são seus significados adequados e imediatos
3 Aproximadamente 40 anos antes de vir a público An Essay Concerning Human Understanding, de Locke, Hobbes enuncia, no capítulo quarto da primeira parte do Leviatã, as bases nominalistas de sua teoria da linguagem. Coerente com uma visão mecanicista vinculada ao estudo do corpo e do movimento, o filósofo admite que o uso de palavras tem como função o registro de nossos pensamentos. Assim, por meio de um associacionismo psicológico, descobrimos a causa de algo, pois o “[...] uso geral da linguagem consiste em passar nosso discurso mental para um discurso verbal, ou a cadeia de nossos pensamentos para uma cadeia de palavras. E isto com duas utilidades, uma das quais consiste em registrar as consequências de nossos pensamentos, os quais, podendo escapar de nossa memória e levar-nos deste modo a um novo trabalho, podem ser novamente recordados por aquelas palavras com que foram marcados. De maneira que a primeira utilização dos nomes consiste em servirem de marcas ou notas de lembrança. A linguagem serve para a recordação das consequências de causas e efeitos, através da imposição de nomes, e da conexão destes” (HOBBES, 1980, p. 21). Hobbes ainda adverte quanto ao fato de que, malgrado os diversos usos da linguagem, abusos podem ser praticados, pois os homens são propensos a se enganar, já que as diversas figuras de linguagem, como as metáforas e os tropos do discurso, estão sujeitos a uma mesma fonte de erro, porquanto veiculam um sentido diferente daquele que fora atribuído às palavras. É por isso que só os critérios de verdade e de falsidade são atribuídos à linguagem e não às coisas. A linguagem só terá autenticidade própria quando for reduzida, à maneira do cálculo matemático, a algoritmos unívocos, buscando exprimir, sem ambiguidades e sem polissemias, as leis do objeto, já que só teremos de fato conquistado o pleno conhecimento científico quando levarmos em conta que “[...] na correta definição de nomes reside o primeiro uso da linguagem” (HOBBES, 1980, p. 23). Também para Berkeley, a confusão ou miragem das palavras deve-se ao fato de elas serem fonte de abuso; disso provém a necessidade de uma “[...] libertação completa da falácia das palavras [...]. Ora, é bem difícil quebrar união tão antiga, confirmada por tão longo hábito, como esta entre palavras e ideias; dificuldade ainda muito aumentada pela doutrina da abstração [...]. Bom seria que todos se esforçassem por obter visão clara das ideias consideradas, separando-as da vestidura e acúmulo da palavra que muito contribuem para cegar o juízo e dividir a atenção [...]. Só precisamos afastar a cortina das palavras para alcançar a mais bela árvore do conhecimento” (BERKELEY, 1980, p. 11). [...] na medida em que há uma conexão constante entre o som e a ideia, e uma designação de que um significa o outro” (LOCKE, 1991, p. 207-208; 210). Locke postula que as palavras designam marcas ou sinais sensíveis e articulados de algumas ideias internas do intelecto, apreendidas conforme o uso constante e arbitrário. A esse modo, as palavras apenas traduziriam, univocamente, uma conexão sonora com as ideias, não passando de imagens verbais ou traços armazenados no cérebro mediante a audição e a pronúncia. Nessa medida, se toda percepção é a ressonância, na consciência, de uma excitação sensorial, as palavras nada mais são do que traços cerebrais resultantes dessas excitações vistas ou ouvidas. Ora, é desse princípio explicativo que se valerá a pesquisa experimental do anatomista francês Paul Broca (1824-1880), ao teorizar que o mecanismo da fala se encontra localizado numa porção particular do cérebro: a terceira convolução frontal. Numa experiência como a dos transtornos afásicos, a inferência clínica desse postulado não poderia ser outra: a cada lesão no córtex cerebral, há a produção direta e imediata de uma disfunção linguística. Assim, via de regra, a classificação de um distúrbio como a afasia corresponderia precisamente a uma determinada área cortical funcional. A linguagem nada mais é do que uma operação fisiológica, puramente motora, de sorte que o surgimento do sintoma se associa diretamente à alteração do setor ou da região cerebral correspondentemente afetada.
A segunda concepção é a do intelectualismo, corolariamente cartesiano. Em sua correspondência em 1º de fevereiro de 1647, dirigida a Chanut, Descartes fixa o primado do pensamento em relação à linguagem, atribuindo a esta uma função estritamente representativa, pois,
[...] ao aprendermos uma língua, juntamos as letras ou a pronúncia de certas palavras, que são coisas materiais às suas significações, que são pensamentos; de sorte que, ao ouvirmos novamente as mesmas palavras, concebemos as mesmas coisas; e, ao concebermos as mesmas coisas, recordamo-nos das mesmas palavras. (DESCARTES, 1979, p. 318).
Nessa lapidar passagem, Descartes corrobora o caráter essencialmente instrumental da linguagem. Sua função operatória consiste em traduzir as ideias, de sorte que o sentido das palavras se vincula aos estados de consciência. É por isso que, quando associamos os nossos conceitos a palavras que não correspondem rigorosamente às coisas, estamos suscetíveis a erros, porque, se “[...] perdemos” o sentido da função de mediação própria das palavras, o pensamento deixa de se exercer mais plenamente[3]. Isso esclarece a razão pela qual há de se “[...] distinguir prudentemente por meio de quais ideias os significados especiais das palavras devem ser propostos ao nosso entendimento” (DESCARTES, 1999, p. 113), já que a linguagem não pode prescindir de sua função mais essencial, qual seja, a de ser uma operação meramente subsidiária, o índice ou o sinal dos objetos e das significações. Como passa a observar Merleau-Ponty, no intelectualismo cartesiano o pensamento condiciona a linguagem enquanto seu produto, passando a existir “[...] fora do mundo e fora das palavras” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 213). A linguagem é apenas a tradução ou o invólucro do pensamento, visto que “[...] nomear um objeto é afastar-se do que ele tem de individual e de único para ver nele o representante de uma essência ou de uma categoria” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 205). Ora, é essa matriz teórica de que parte a clínica de Pierre Marie (18531940), outro notável neurologista francês. Ao criticar a doutrina empirista das localizações cerebrais, Marie interpreta os distúrbios afásicos, servindo-se, como bem destaca Goldstein, da “[...] análise da modificação da inteligência nos doentes” (GOLDSTEIN, 1969, p. 269). Ao isolar, por exemplo, certo número definido de sintomas, embora não ignorando o papel do processo neurofisiológico na constituição da linguagem, ele conclui que a afasia é um distúrbio intelectual. O que Marie sacramenta é o princípio cartesiano de que a capacidade para a linguagem é um fato do pensamento, ou seja, é um ato puramente intelectivo. Em suma: a afasia não passa de uma perturbação intelectual, de modo que não atinge a linguagem em sua materialidade mais evidente. O doente não perde o uso automático das palavras, mas se priva tão somente da disposição para certo tipo de linguagem, a linguagem material.
Como vemos, dois pesos, duas medidas. Merleau-Ponty chama a atenção para o fato de que, em que pesem suas diferenças teórico-metodológicas, empiristas e intelectualistas partem de um mesmo princípio de análise: a palavra não possui significação. “Ela é apenas um fenômeno articular, sonoro, ou a consciência desse fenômeno. Em qualquer caso, a linguagem é apenas um acompanhamento exterior do pensamento” (MERLEAU-PONTY,
1945, p. 206). A verdade é que, sob essa convergência de princípio, “[...] o intelectualismo mal difere do empirismo e não pode, tanto quanto este dispensar-se de uma explicação pelo automatismo” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 206). Nem uma concepção nem outra dão conta do fenômeno linguístico: “[...] para um não há sujeito falante, há só imagens verbais; para o outro não há sujeito falante, mas simplesmente um sujeito pensante” (MERLEAU-PONTY, 2001, p. 62).
Isto posto, a partir de qual critério epistêmico-fenomenológico Merleau-Ponty e, como veremos, Goldstein podem sentenciar tal juízo crítico?
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A experiência clínica empreendida e coletada por Goldstein, já no início de século, parece radicalmente subverter tais modelos explicativos até então vigentes. Numa de suas experiências, Goldstein descreve a situação em que se ordena a um paciente afásico que distribua, numa pilha, todas as fitas azuis que ele consegue encontrar numa caixa. Ao dar início à separação, o doente passa a colocar uma fita cuja cor é azul-claro na pilha das fitas azuis, conforme solicitado pelo seu médico. Ao mesmo tempo, prossegue dispondo ali fitas de cor verde-claro, rosa-claro e lilás-claro. Goldstein observa que a palavra azul não forma uma categoria ou uma ideia geral para o afásico e que, portanto, seu problema de linguagem é também um problema de pensamento, uma vez que, do ponto de vista fisiológico, a região do córtex cerebral permanece inteiramente ilesa. Ao reconhecer essa implicação do mecanismo da fala no processo intelectivo, Goldstein jamais adere, como aparentemente poderia se supor, à tese intelectualista. De saída, ele se adianta em problematizar o que seria um pensamento puro, mudo, absolutamente silencioso. Ora, esse pensamento não passaria de um vácuo, seria um puro nada, porque só podemos pensar quando pudermos falar. Goldstein aviva, pois, a ideia de que a fala se encarna no pensamento e, este, por sua vez, se realiza enquanto fala, “havendo”, portanto, como diz Merleau-Ponty, “um pensamento na fala” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 209). Assim sendo, o que essa observação clínica visa a confirmar? Confirma que o afásico não é alguém que não fala mais, mas é alguém que fala menos ou simplesmente de outra forma. Ele é até capaz de se recordar de uma palavra nessa situação e não noutra. De fato, essa nova hipótese é o que também permite flagrar o disparate da explicação empirista[4] de que, a rigor, não há qualquer evidência direta quanto à existência daquelas áreas corticais autônomas até então presumidas por Broca. O que os novos experimentos fisiológicos denotam precisamente é que “[...] o cérebro funciona como uma totalidade e que o cérebro todo é envolvido no desempenho de todas as funções mentais superiores. Os resultados gerais desses estudos mostram que no interior de lobos cerebrais específicos localizam-se centros de funções definidas, mas de caráter muito genérico” (TERWILLIGER, 1974, p. 254). Com isso, pode-se então concluir que a afasia não constitui um fenômeno motor em “terceira pessoa” (a palavra não é coisa nem objeto), pois o que o afásico perde ou o que o normal possui, “[...] não é certo estoque de palavras, mas certa maneira de utilizá-lo” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 204). Cabe frisar que, sintomaticamente, o paciente não sabe empregar as palavras num dado conjunto, de maneira que a compreensão de sua patologia se insere num contexto mais amplo do próprio comportamento. O fenômeno da afasia não passa de um sintoma ou limite periférico de uma manifestação geral que se interliga dialeticamente a outras esferas da conduta. Redescobre-se, desde então, que atrás da palavra há, num sentido abrangente, uma atitude, visto que, “[...] se o doente não pode nomear as amostras, não é porque tenha perdido a imagem verbal da palavra vermelho ou da palavra azul, mas porque perde o poder geral de subsumir um dado sensível sob uma categoria” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 205).
É assim que, em seu notório trabalho de 1948, Language and Language Disturbances, Goldstein irá distinguir, na linguagem, duas funções possíveis: uma atitude concreta e uma atitude categorial6. A primeira é uma apreensão da realidade em situações efetivas como as coisas ou as expressões da própria língua. a memória verbal motriz era uma memória especial ‘dos movimentos necessários para articular as palavras’; não estava em relação ‘com as outras memórias nem com o resto da inteligência’. Ora, isso tem sido fatal para o desenvolvimento ulterior da teoria” (GOLDSTEIN, 1969, p. 272-273; 273).
6 Conforme descreve Wolman, “[...] o funcionamento do organismo em relação ao ambiente pode ser flexível ou inflexível, ou, na terminologia de Goldstein, abstrato ou concreto respectivamente. Se o organismo aceita o ambiente tal como é e se adapta passivamente à situação dada, adota a atitude concreta. Isso conduz a um tipo de conduta rígido e inflexível; o organismo aceita a situação concreta, presente e atua em consequência, sem nenhum esforço por alterar a situação ou modificar seus próprios métodos de conduta. A conduta abstrata é aquela em que o organismo percebe a situação em suas potencialidades, se adapta a ela consequentemente e modifica o ambiente ou sua própria conduta ou ambos de cada vez” (WOLMAN, 1972, p. 223-224). Desse modo, Goldstein pode avaliar que “[...] nos atos ‘abstratos’, a ação não é determinada direta nem imediatamente por uma configuração de estímulos, senão pela interpretação da situação que o indivíduo se faz a si mesmo. O ato é, por conseguinte, mais uma ação primária que uma mera reação e constitui um modo inteiramente diferente de permutar-se com o mundo exterior. O indivíduo deve considerar a situação em seus diversos aspectos, selecionar o que é essencial e atuar de forma adequada em relação à situação total” (GOLDSTEIN, 1940, p. 60).
A segunda abstrai esses contextos efetivos, apreendendo suas propriedades gerais. Ora, no transtorno afásico nominal (incapacidade de compreender nomes), o doente é capaz de se servir adequadamente do objeto dado. Ele é, ainda, até capaz de empregar o nome num contexto concreto, embora seja, por sua vez, incapaz de compreender e pronunciar conceitualmente esse nome. A perda da função nomeadora equivale à perda da atitude categorial, de modo que o enfermo não mais generaliza, já que as palavras evocadas no âmbito da atitude concreta se privam de sua função simbólica. Isso significa que a perda afeta apenas o sentido abstrato da evocação linguística (GOLDSTEIN, 1948, p. 60-63). Por outro lado, admoesta Goldstein, essa distinção entre os dois níveis linguísticos não deve ser fixada como absolutamente rígida. Como comenta Merleau-Ponty, Goldstein compreendera a segunda ordem (atitude categorial) não como um ato intelectual puro e simples, mas, antes, como um funcionamento ágil da forma interior da linguagem. Há, aí, um “espírito da linguagem”, a linguagem nada mais é do que “[...] um sistema de diferenciações no qual se articula a relação do sujeito ao mundo” (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 37). Portanto, longe de ser um pensamento puro, a função categorial se revela como um estilo, uma forma de relacionamento com o mundo: ela é a “[...] maneira pela qual as cores se agrupam para o observador, à maneira segundo a qual o campo visual se articula do ponto de vista das cores” (GELB; GOLDSTEIN, 1925, p. 162). Esse contexto clínico põe em evidência por que a linguagem só se torna acessível numa dada situação concreta, uma vez que o paciente já havia aprendido certa palavra antes mesmo de sua enfermidade, correlacionando-a, categorialmente. Nessa circunstância, o que, de fato, o paciente perde? Ele perde uma qualidade essencial, ressalta Merleau-Ponty: “[...] sua linguagem cessou de ser viva. É assim que um dos doentes de Goldstein só podia falar seguindo um plano, sem nenhum acento pessoal, sem nenhuma improvisação. Havia no conjunto de sua linguagem algo de pálido; uma ausência total de estilo” (MERLEAUPONTY, 2001, p. 63). O que o doente carece é a atitude de gratuidade ou, no dizer de Head, recitado por Goldstein, o “[...] poder de expressão simbólica” (GOLDSTEIN, 1969, p. 284).
Como se bem vê, Goldstein promove a descoberta capital de que o sintoma afásico é tão somente a mudança estrutural do sistema fonemático; tal distúrbio manifesta um estado de esvaziamento da linguagem, à medida que ela deixa de ser, no fundo, estruturada. Diversamente, pois, do que até então se postulava, a perturbação da linguagem é acompanhada de uma perturbação mais geral: a incapacidade de classificar objetos percebidos. É o que MerleauPonty reitera, ao observar que a “[...] incapacidade de classificar, no doente, está ligada a uma transformação de sua própria percepção: enquanto que no indivíduo normal há, de imediato, organização do campo perceptivo segundo linhas de força. No doente, ao contrário, há desagregação desse campo” (MERLEAU-PONTY, 2001, p. 62-63). É sob esse escopo que os trabalhos de Goldstein tomam uma projeção inédita e particularmente fecunda:
O trabalho de Goldstein ganha realce pelas descrições particularmente brilhantes da sintomatologia do paciente, descrições que sugerem fortemente ser a afasia algo muito diverso de como a concebiam os defensores das teorias da localização das funções cerebrais. Para ele, a afasia não é apenas uma perturbação da linguagem; é uma perturbação do espírito – de pensamento e comportamento. É perturbação que resulta da perda de uma capacidade que diz respeito a todas essas coisas e que é, aparentemente, determinada pelo conjunto de funcionamento do cérebro. É difícil, em verdade impossível, explicar a riqueza dos sintomas observados, relacionando-os à especial área cortical lesada. (TERWILLIGER, 1974, p. 262-263).
Por isso, na contramão das doutrinas “localizacionista” e “intelectualista”, Goldstein emancipa uma nova gramática interpretativa, isto é, uma concepção organicista acerca dos distúrbios linguísticos, porque, conforme Schaff,
[...] é o cérebro enquanto um todo, e não as suas regiões determinadas, que sofre uma lesão no caso da afasia, e essa lesão causa, não alterações parciais desta ou daquela função, mas uma transformação de toda a personalidade do doente. Esta transformação manifesta-se na modificação da atitude do doente face ao mundo exterior. (SCHAFF, 1974, p. 172).
O que Goldstein descortina clinicamente é que o doente se priva da faculdade de uma percepção ordenada do mundo como essencialmente estruturante. Como escreve Merleau-Ponty:
Todo o cérebro contribui para cada operação parcial, logo, não há funcionamento em mosaico. Isso não quer dizer que as funções do cérebro sejam difusas; nem que todas as partes do cérebro contribuam do mesmo modo para cada operação: uma desempenha o papel de figura, as outras, de fundo; há localização no sentido de que a integridade de certa parte do cérebro é absolutamente necessária para a ativação de certa função. As suplementações nunca são o equivalente exato da função destruída.
(MERLEAU-PONTY, 2001, p. 62).
Em tal direção, é tomando esse contexto mais amplo de abordagem que a noção de estrutura (Gestalt) ganha corpo, entrando em cena como uma categoria promissora, demandando uma compreensão rigorosamente profunda acerca das relações do organismo com o meio. Ela parece instituir um sentido, de fato, integral do comportamento, seja em sua condição patológica, seja em seu quadro particularmente salubre da experiência normal. Assim, não é gratuito que a Gestalttheorie viria, metodologicamente, promover tal categoria, incorporando-a como mote de sua própria escola. Merleau-Ponty redimensiona essa matriz conceitual no programa de uma corrente que, no dizer de Guillaume, “[...] é, de uma só vez, uma filosofia e uma psicologia” (GUILLAUME, 1979, p. 5):
Se quisermos definir sem preconceito o sentido filosófico da Psicologia da Forma, seria preciso dizer que, revelando a “estrutura” ou a “forma” como ingrediente irredutível do ser, ela põe em questão a alternativa clássica da “existência como coisa” e da “existência como consciência”. Ela estabelece uma comunicação e uma espécie de mistura do objetivo e do subjetivo, ela concebe de uma maneira nova o conhecimento psicológico, que não consiste mais em decompor aqueles conjuntos típicos, mas, antes, em esposá-los e compreendê-los, revivendo-os. (MERLEAU-PONTY, 1996a, p. 105-106)[5].
É esta “psicologia mais integrada” proposta por Koffka – comenta Merleau-Ponty – que está na vanguarda de um novo horizonte da ideia de subjetividade que se institui, agora, em meio aos fenômenos psicológicos, uma vez que “[...] os gestaltistas pedem-nos que renunciemos à concepção de uma consciência contemplativa, desvinculada da ação: eles a substituem pela concepção de uma consciência ativa, para a qual o corpo é o instrumento de exploração do mundo” (MERLEAU-PONTY, 2001, p. 181). Em tal contexto, o fenomênico se desvela como uma experiência não mais fragmentada do indivíduo situado. Há um sentido total, um efeito global e indivisível entre o organismo e o meio.
De fato, se é certo que, por um lado, Merleau-Ponty reaviva, com especial simpatia, a intuição fundamental da escola gestáltica ao postular, via a categoria de estrutura, uma alternativa ao dualismo psicofísico, por outro, há um limite teórico nessa démarche. O conceito de Gestalt, haurido no seio dessa corrente, se define ainda como um princípio absolutamente rígido, imbuído de uma acepção puramente realista, materialista. O problema – precisa MerleauPonty – é que, surpreendentemente, a Gestaltpsychologie crê que uma explicação causal e mecânica permanece possível, nos próprios processos de estruturação:
[...] a psicologia da forma não pensa ter superado a noção do mundo físico como omnitudo realitatis, porque nele já se encontram estruturas [...]. A teoria da forma pensa ter resolvido o problema das relações entre a alma e o corpo e o problema do conhecimento perceptivo descobrindo processos nervosos estruturais que, de um lado, tenham a mesma forma do psíquico e, de outro, sejam homogêneos às estruturas físicas. Nenhuma reforma da teoria do conhecimento seria, pois necessária, e o realismo da psicologia como ciência natural seria conservado de modo definitivo. (MERLEAUPONTY, 1942, p. 144; 145)[6].
Ao pôr em questão a matriz conceitualmente ortodoxa com a qual a categoria de estrutura é enunciada pelo psicólogo gestaltista, Merleau-Ponty nota que este, à maneira do físico, termina por se instalar na “[...] atitude do observador onisciente” (MERLEAU-PONTY, 2001, p. 166), acreditando “[...] encontrar estruturas numa natureza tomada em-si, para constituir-lhe o espírito” (MERLEAU-PONTY, 1942, p. 151): a “[...] consciência permanece uma parte do ser” (MERLEAU-PONTY, 1942, p. 145-146). Tudo isso porque os “[...] modelos físicos da teoria da Gestalt têm assim tão pouca relação com os fenômenos da vida” (MERLEAU-PONTY, 1942, p. 164), fenômenos que, a bem da verdade, escapam à definição realista da noção de estrutura como sistema físico, “[...] fundamento real da estrutura do comportamento” (MERLEAU-PONTY, 1942, p. 156). Nessa perspectiva, “[...] são os próprios princípios da teoria da Gestalt que aqui invocamos contra ela. O todo, numa forma, não é a soma das partes [...]. A totalidade não é uma aparência, mas um fenômeno” (MERLEAU-PONTY, 1942, p. 163; 172). Tal reconhecimento põe à prova que “[...] qualquer psicologia que reponha a Gestalt no quadro do ‘conhecimento’ ou da ‘consciência’ erra o sentido da Gestalt” (MERLEAUPONTY, 1964, p. 259), já que “[...] ter a experiência de uma estrutura não é recebê-la em si passivamente: é vivê-la, retomá-la, assumi-la, reencontrar seu sentido imanente” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 299). Ora, é esse horizonte heurístico que o trabalho clínico de Goldstein dá mostras, em sua revisão crítica da Psicologia da Forma:
Assim, cada fenômeno nervoso assume dois aspectos: um aspecto local (figura) e um aspecto total (fundo). É graças a essa metáfora que podemos representar o funcionamento do sistema nervoso. Goldstein nem por isso se alia às teses da Gestalttheorie, contra as quais opõe objeções interessantes e importantes. Em especial, ele entende as formas de uma maneira mais dinâmica e mais biológica do que a teoria da forma. (MERLEAU-PONTY, 2001, p. 463-464).
Aos olhos de Merleau-Ponty, a obra goldsteiniana é exemplarmente aquela que lapidará o conceito de estrutura introduzido pelos gestaltistas, fulgurando-o sob um novo alcance semântico. Goldstein pensa a noção de estrutura sem adstringi-la a qualquer base imutável, causal, substancialista. A Gestalt não é nem “coisa”, nem “ideia”, mas, como as duas faces de Janus, ela exprime a dobra essencial, se tornando, agora, “[...] um sistema concreto e encarnado” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 146), em que cada elemento é significativo do conjunto, mesmo quando os demais elementos não parecem ter relação alguma entre si (MERLEAU-PONTY, 2001, p. 130). Desse modo, “[...] a estrutura não é um elemento do mundo” (MERLEAU-PONTY, 1942, p. 153), mas a inteligibilidade dialética, a mola propulsora que perfaz o vai e vem entre o natural e o cultural, circunscrevendo-os numa racionalidade mais alargada que os compreendam. Fenômeno indivisível, originariamente plástico, elástico e, por isso mesmo, produtivo, a Gestalt é um “[...] princípio de distribuição, o pivô de um sistema de equivalências, algo (Etwas) pelo qual os fenômenos parcelares seriam a manifestação” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 258). Ela se compreende então como uma espécie de charneira central, sendo a expressão de uma deiscência enquanto experiência de abertura e transcendência, carne, generalidade, duplo fundo do vivido, o princípio mesmo de coesão enquanto “[...] descoberta de uma nova maneira de ver o Ser” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 318).
Com efeito, é devidamente o alcance dessa dimensão ontológica que jamais escapara à concepção goldsteiniana de estrutura; concepção profundamente antirrealista em sua intenção primeira. Merleau-Ponty passa a tributar aos trabalhos de Goldstein uma importância sui generis, ao creditar, na categoria de estrutura, um valor não apenas metodológico, mas visceralmente ontológico em face de uma compreensão mais global do organismo e do fenômeno linguístico. É o que o psiquiatra alemão torna explícito em seu importante trabalho pioneiro, La Structure de l’Organisme, ao reconhecer no saber biológico um autêntico ato de criação. Ali, a ideia de organismo é trabalhada como um “evento vivido”, “[...] uma espécie de ‘vida’ conforme o sentido dado por Gœthe, isto é, uma vida que não perde jamais contato com os fatos mais empíricos” (GOLDSTEIN, 1983, p. 313). Qual é, então, a natureza última do organismo? “O organismo” – descreve Goldstein – “[...] é uma totalidade na qual cada delimitação é artificial e cada expressão, um fenômeno dessa totalidade” (GOLDSTEIN, 1983, p. 374)[7]. O que resta, ainda, por compreender é que essa totalidade aqui manifesta já prefigura um caráter ontológico mais amplo. Goldstein afirma expressamente: trata-se de revelar não somente o “ser do organismo”, mas também o “ser do mundo”, ou seja, o “valor situacional” no qual o comportamento se integra estruturalmente. Nessa perspectiva, “[...] o sentido do organismo é ser uma das características essenciais do ser” (GOLDSTEIN, 1983, p. 425). Quer dizer, a “[...] estrutura do organismo” exprime, a rigor, uma significação ontológica em sua definição mais plena e radical. Significação imanente à própria ideia de estrutura; aquela que nos conduz a uma “aproximação da forma original do organismo (Urbild)” (GOLDSTEIN, 1983, p. 255; 320).
Ora, esse registro metódico da pesquisa biológica goldsteiniana é especialmente instrutivo, na medida de que não se trata de desacreditar, puro e simples, o papel da fisiologia. O que se problematiza no fisiologismo é seu flagrante prejuízo naturalista calcado num modelo de análise pretensamente imediato, causal, exato. Como bem nota Merleau-Ponty, “[...] a fisiologia permanece inteiramente legítima, mas deve ser reposta na dialética do organismo e de seu meio. Ela fornece antes índices do que realidades, e é preciso proceder em seguida ao exame da qualidade ou do valor das condutas em relação ao a priori do organismo situado” (MERLEAU-PONTY, 2001, p. 461). É justamente essa constatação que conduzira, como vimos, Merleau-Ponty a reconhecer na doutrina de Goldstein uma compreensão mais biológica, mas, nem por isso, menos dinâmica da ideia de estrutura. Ocasião suficiente para compreender que uma vez “[...] reconhecendo que os comportamentos têm um sentido e dependem da significação vital das situações, a ciência biológica se proíbe concebê-los como coisas em si que existiriam, partes extra partes, no sistema nervoso ou no corpo; ela vê neles dialéticas encarnadas que se irradiam num meio que lhes é imanente” (MERLEAU-PONTY, 1942, p. 174)[8]. Cabe lembrar que,
[n]a realidade, os próprios reflexos nunca são processos cegos: eles se ajustam a um “sentido” da situação, exprimindo nossa orientação para um “meio de comportamento” tanto quanto a ação do “meio geográfico” sobre nós. Eles desenham, à distância, a estrutura do objeto, sem esperar suas estimulações pontuais. É essa presença global da situação que confere sentido aos estímulos parciais e que os faz contar, valer ou existir para o organismo. (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 94).
Nesse contexto, novamente, a obra de Goldstein se reveste de expressivo valor filosófico. Ou melhor: a sua pesquisa clínica permite aprofundar uma concepção biológica mais crítica e abrangente acerca do homem e do mundo. Esse quadro parece se confirmar, definitivamente, na passagem do capítulo IX de La Structure de l’Organisme, momento em que Goldstein abate qualquer antagonismo entre natureza e espírito do qual, aliás, nem Klages nem Scheler[9] se abstiveram totalmente, ao definirem o homem como um ser puramente espiritual, sem instintos. Conforme examina Goldstein, há de se reconhecer no organismo a presença de um “ser específico”, um “ser” pelo qual os “atos vitais”, como diria Merleau-Ponty, “têm um sentido” (MERLEAUPONTY, 1942, p. 172). Esse ser já não se confunde com um ente, na acepção naturalista do termo, mas se configura num sentido bem mais vasto. Ele só pode reconhecer-se a partir de uma nova compreensão do fenômeno da vida, prévia, portanto, a qualquer cisão arbitrária, já que é um ser de coesão, de unidade, cuja estrutura é sempre prenhe de sentido. Por isso, toda a questão, a partir de agora, consiste em compreender que estatuto da noção de “sentido” aqui está em curso ou, ainda, em que medida o “fenômeno de estrutura” já é manifesto por um “sentido latente”.
4
As descrições antes discorridas atestam claramente o quanto Goldstein visa a construir um pensamento unitário acerca do comportamento orgânico e linguístico. Ao reconhecer no sintoma afásico antes uma deficiência na articulação entre figura e fundo do que um mero problema de contiguidade causal, Goldstein diagnostica na clínica clássica um regime de indigência a ser superado. Ele quer mostrar que o sentido habitado na linguagem é um sentido sempre contextual, quer para o afásico, quer para o normal. Há como que um quadro mais amplo de experiência, no qual se situam as relações entre o organismo e o meio, graças a uma concepção de estrutura mais dinâmica enquanto emblema da “[...] crítica radical do conceito de reflexo” (GOLDSTEIN, 1983, p. 318). O alcance dessa crítica já é mais que conhecido: ela põe por terra a tese de que o signo é um engrama, isto é, um átomo psicológico, puro índice do pensamento. Ela fenomenicamente desnuda o fato de que há uma configuração indissociável entre o sentido e o som. Ora, se a linguagem desencadeasse relações causais entre o som e a ideia, jamais adquiriria a fisionomia que lhe é própria, qual seja, a de que a significação conceitual é inseparável de uma práxis, desde sempre, situada ou encarnada. Como Goldstein clinicamente demonstrara, malgrado a perda da linguagem gratuita, há uma significação gestual no contexto de um maior interesse afetivo e vital. Do mesmo modo, na experiência normal, é preciso reconhecer, como também atesta Merleau-Ponty, que “[...] o elo entre a palavra e seu sentido vivo não é um elo exterior de associação já que o sentido ação comum do ‘espírito’ e da ‘esfera vital’, melhor dizendo, senão a partir desta totalidade, única e particularmente original que é o ser humano” (GOLDSTEIN, 1983, p. 383-384).habita a palavra” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 225); a própria “[...] palavra, longe de ser o simples signo dos objetos e das significações, habita as coisas e veicula significações” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 207). Esse princípio só é possível porque, a rigor, “[...] não pode haver, pois, paralelismo entre o pensamento e a fala” (GOLDSTEIN, 1969, p. 297). É essa consequência filosófica que Goldstein juntamente com Gelb extraem, quando relatam que “[...] o comportamento categorial e a posse da linguagem significativa exprimem um só comportamento fundamental; nenhum dos dois poderia ser causa ou efeito” (GELB; GOLDSTEIN, 1925, p. 158). O que importa compreender é como se dão
[...] as relações das formas verbais com a “inteligência”, o sentido, a significação [...]. Ora, as funções motoras que tem perdido seu sentido desaparecem, sem dúvida, porque sua existência está ligada a esse sentido [...]. Por isso, é indispensável ter em conta a relação das funções motoras da linguagem com o sentido, quer dizer, sua significação e sua importância para o organismo inteiro. (GOLDSTEIN, 1969, p. 275; 276).
Ao reavivar o caráter profundamente dialético entre o pensamento e a linguagem, Goldstein redescobre um sentido interior ao comportamento, a ponto de emancipar – segundo Merleau-Ponty – uma “[...] teoria existencial da afasia, quer dizer, uma teoria que trata o pensamento e a linguagem objetiva como duas manifestações da atividade fundamental pela qual o homem se projeta para um mundo” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 222).
Nessa direção, não há como ignorar, aqui, a importância desse contexto clínico; um contexto que irá subverter não só a psicologia clássica em seus princípios mais elementares, mas certa concepção filosófica de homem e de mundo. É o que Merleau-Ponty, na esteira de Goldstein, parece reavivar, ao explorar o vínculo entre as noções de “estrutura” e “sentido” como pano de fundo: se é verdade que “[...] o sintoma é uma resposta do organismo a uma questão do meio [...], fica, pois, claro que aqui a doença não diz respeito diretamente ao conteúdo do comportamento, mas à sua estrutura, e que, consequentemente, ela não é algo que se observa, mas, antes, algo que se compreende” (MERLEAUPONTY, 1942, p. 67)[10]. Há, na estrutura do comportamento afásico, um mundo linguístico a ser interpretado. Por isso, na experiência patológica, “[...] os doentes podem ler um texto ‘com ritmo’, sem, todavia, compreendê-lo. Isso ocorre, pois, porque a fala ou as palavras trazem uma primeira camada de significação que lhes é aderente e que oferece o pensamento enquanto estilo, enquanto valor afetivo, enquanto mímica existencial antes que como enunciado conceitual” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 212). Esse fato abre à compreensão também de que “[...] a fala é um verdadeiro gesto e contém seu sentido, assim como o gesto contém o seu” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 214). Da mesma maneira, jamais percebemos, por exemplo, a mímica da cólera como “[...] um fato psíquico escondido atrás do gesto. Leio a cólera no gesto, o gesto não me faz pensar na cólera, ele é a própria cólera” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 215). O que o gesto denuncia é uma conduta “que é”, ela mesma, uma significação e não apenas o que “possui” uma “significação” (MERLEAU-PONTY, 2001, p. 436): “[...] o comportamento não tem mais apenas um significado, é ele mesmo significado” (MERLEAU-PONTY, 1942, p. 133). Razão mais que suficiente para observar que o sentido dos gestos não é dado, mas compreendido: o sentido “[...] não está atrás dele, já que ele se confunde com a estrutura do mundo que o gesto desenha e que por minha conta eu retomo; ele apenas se expõe no próprio gesto” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 216-217). Esse fenômeno revela, portanto, o fato fundamental pelo qual “[...] um rosto é um centro de expressão humana” (MERLEAU-PONTY, 1942, p. 181). O outro deixa de ser uma aparência vã, manifestando-se, antes, como essa presença irrecusável, carnal, inteiramente viva e que se faz conhecer mais “[...] pelas suas condutas do que por seus pensamentos” (MERLEAU-PONTY, 1996b, p. 131).
Essa concepção singularmente estruturante da experiência gestual põe em curso uma “nova filosofia do sentido” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 319), tornando possível “[...] compreender qual é, em nós e no mundo, a relação entre o sentido e o não-sentido” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 490). Como prefigura Merleau-Ponty, trata-se, particularmente, de trazer à tona o “sentido primordial, não lexical” (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 19), “[...] um sentido que nenhuma análise verbal pode esgotar” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 373) enquanto desenvolvimento imanente do conhecimento objetivo, do corpo, da intersubjetividade. Esse sentido já é portador de um estatuto sui generis: é “[...] um sentido-devir, um autodevir enquanto verdadeiro devir do sentido” (MERLEAU-PONTY, 1969, p. 178). Ora, um movimento dessa natureza é a expressão de um emblema mais geral do ser, um “devir do todo” (MERLEAU-PONTY, 2001, p. 297) que, como se sabe, Merleau-Ponty, em seus últimos escritos, cunhará sob o nome de carne. Posto sob tal contexto, a estrutura é esse princípio carnal de uma experiência ontológica indivisível, coesão de princípio, que interliga o dito e o não-dito, o sentido e o nãosentido. Por isso, o sentido não pode ser um registro fixo, um signo ostensivo, uma figuração eidética. Ele, enquanto devir, se constrói no contato com a contingência, em meio aos fenômenos. Movimento de transcendência, ele se transfigura como um sentido encarnado, ou seja, se inscreve na estrutura do acontecimento, imanente em cada comportamento ou, ainda, “pregnante em cada sensação” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 343).
É assim que uma fenomenologia do comportamento se institui também como uma teoria do sentido. Ela deixa entrever que todo ato se manifesta numa só unidade total, graças a essa inteligibilidade nascente pela qual a noção de estrutura dá a conhecer. Se a estrutura nada mais é do que a forma integral e dialética do organismo com o meio, não há mais – observa Merleau-Ponty – como distinguir ou até mesmo determinar um elemento na paisagem sem reconhecer que cada parte anuncia mais que ele contém e, nessa direção, a estrutura aí manifesta já é então carregada de um sentido (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 9). Mais do que isso: não sendo unívoco, o sentido também se transcende graças àquilo que torna a Gestalt um princípio fundamental de distribuição, produção inesgotável de sentido. É o que Freud avistara, quando postulava que “[...] todo ato humano possui um ou mais sentidos” (FREUD, 1922, p. 45), uma vez, que, como frisa Merleau-Ponty, “[...] o próprio Freud, em suas análises concretas, abandona o pensamento causal, quando mostra que os sintomas têm sempre vários sentidos ou, como ele diz, são ‘sobredeterminados’” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 184). Ora, essa redefinição da ideia de sentido que remonta à vanguarda com os trabalhos de Goldstein, parece perfeitamente se coadunar também com certa intuição husserliana que, no dizer de Merleau-Ponty, implica “[...] reconstituir uma potência de significar, um nascimento do sentido ou um sentido selvagem” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 203).
O que está em curso, nesse programa, é a teoria de uma gênese do sentido imanente aos próprios fenômenos, isto é, à experiência gratuita da linguagem. Assim, se “a palavra tem um sentido” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 206), este jamais pode ser constituído por um ego, já que, conforme vimos, não há processo puramente motor, sem referir-se ao sentido da palavra ou ao seu valor num contexto radicalmente intersubjetivo. Se, ainda, o sentido se inscreve nessa estrutura carnal mais profunda da conduta é porque a linguagem constituída[11] só desempenha um papel na operação de expressão, como as cores na pintura. Vê-se, então, que linguagem e pensamento perfazem uma só estrutura de sentido, uma vez que
[...] a denominação dos objetos não vem depois do reconhecimento, ela é o próprio reconhecimento, pois quando fixo um objeto na penumbra e digo: “É uma escova”, não há em meu espírito um conceito de escova ao qual eu subsumiria o objeto e que, por outro lado, estaria ligado à palavra “escova” por uma associação frequente, mas a palavra traz o sentido e, impondo-o ao objeto, tenho consciência de atingi-lo. (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 207).
Mais do que isso: se a linguagem é uma práxis de sentido é porque, como demonstrara Goldstein, ela se estrutura numa dimensão bem mais profunda, sinérgica, intersubjetiva e, portanto, ontologicamente aberta:
A partir do momento em que o homem se serve da linguagem para estabelecer uma relação viva consigo mesmo ou com seus semelhantes, a linguagem não é mais um instrumento, não é mais um meio, ela é uma manifestação, uma revelação do ser íntimo e do elo psíquico que nos une ao mundo e aos nossos semelhantes. Por mais que a linguagem do doente revele muito saber, por mais que seja utilizável para determinadas atividades, ela carece totalmente dessa produtividade que forma a essência mais profunda do homem, e que talvez não se revele com tanta evidência em nenhuma criação da civilização quanto na criação da própria linguagem. (GOLDSTEIN, 1969, p. 330, grifo meu).
Ao reconhecer, no âmbito da experiência intersubjetiva, uma práxis mais viva da linguagem, aquém de sua acepção instrumental, Goldstein parece fornecer ao fenomenólogo muito mais que uma mera curiosidade psicológica. Aí a experiência clínica é indissociável de uma filosofia radicalmente autocrítica, consciente e encarnada. As noções de “estrutura” e “sentido” tomam, aqui, seu impulso e movimento próprios. Goldstein emancipa, sem dúvida, uma nova ideia de natureza e cultura. Esse é o seu alcance fenomenológico. Como comenta Merleau-Ponty, Goldstein passa a lição de que “[...] não se pode saber o que é o organismo antes de entrar em contato com ele [...]. Ele procura definir um ser fisiológico em função do fenômeno, tal qual este nos aparece” (MERLEAU-PONTY, 2001, p. 452). É que ele visa a apreender, em carne e osso, a estrutura mais profunda que anima o organismo, o comportamento, a vida em seu sentido linguajeiro. Nessa direção – acena Merleau-Ponty – “[...] estamos mais uma vez diante de um belo exemplo de convergência não deliberada entre uma pesquisa experimental e as exigências do método fenomenológico” (MERLEAU-PONTY, 2001, p. 451).
ABSTRACT: To reactivate a more profound alliance between psychology and philosophy, Merleau-Ponty revisits the clinical work of Kurt Goldstein (1878-1965), recalling, in particular, its phenomenological contributions. The notions of “structure” (Gestalt) and “sense” are here used the search for a more integral understanding of behavior, life and language. Goldstein achieves this by studying different language disturbances, in contrast to essentially causal intellectualist and empiricist theories. To reconstitute this critical inventory, Merleau-Ponty observes the original, dynamic and, above all, ontological character of Godstein’s proposals.
KEYWORDS: Kurt Goldstein. Merleau-Ponty. Structure. Sense. Behavior.
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Recebido em: 29.01.2012
Aceito em: 18.06.2012
[1] Doutor pela UFSCar (2007), Mestre pela UNICAMP (2000) com Pós-Doutorado pela Université Paris I - PANTHÉON-SORBONNE (2011-2012) mediante Bolsa da CAPES – Proc. nº 0716-11-1, na área de Filosofia. Graduado pelo IFA (1990) e pela UNIOESTE (1994), na mesma área, atuando como bolsista junto ao Programa PET/CAPES. Docente e Orientador nos Cursos de Graduação e PósGraduação (Mestrado) de Filosofia, bem como nos Programas de Iniciação Científica (PIBIC) e PET (MEC/SESu) da UNIOESTE. Autor de 2 livros (A carnalidade da reflexão: ipseidade e alteridade em Merleau-Ponty, Nova Harmonia, 2009 e A natureza primordial: Merleau-Ponty e o “logos do mundo estético”, Edunioeste, 2010), vários capítulos de livros, artigos e resenhas em revistas especializadas, entre outros trabalhos. É Membro da Association International ‘Présence de Gabriel Marcel’ - Paris - France, do CEMODECON/IFCH/UNICAMP, dos GTs de Fil. Francesa Contemporânea e de Fenomenologia (ANPOF) e de diversas redes de pesquisa a partir das seguintes correntes e autores: Tradição Fenomenológica (em especial, Merleau-Ponty) e suas interfaces com a psicologia contemporânea e com as obras de Bergson, Marcel, Buber e Clarice Lispector. Focos temáticos: subjetividade, alteridade, desejo, linguagem, natureza, obra de arte. E-mail: cafsilva@uol.com.br.
[2] Em Idéias I (HUSSERL, 2006; Cap. 2, Secção I), Husserl também já presume essa dupla tarefa. Por isso, Merleau-Ponty observa: “Husserl compara expressamente as relações da fenomenologia e da psicologia com as das matemáticas e da física e espera do desenvolvimento de sua filosofia uma renovação dos princípios da psicologia. As análises propriamente fenomenológicas têm consequência para a psicologia” (MERLEAU-PONTY, 1996a, p. 22). Nessa direção, “[...] nosso objetivo não é o de opor aos fatos que coordena a ciência objetiva, um grupo de fatos – sejam eles chamados ‘psiquismo’ ou ‘fatos subjetivos’, ou ‘fatos interiores’ – que ‘lhe escapam’, mas de mostrar que o ser-objeto e também o ser-sujeito, este concebido em oposição àquele e relativamente a ele, não constituem uma alternativa. Que, ainda, o mundo percebido está aquém ou além da antinomia, que o fracasso da psicologia ‘objetiva’ deve ser compreendido conjuntamente com o fracasso da física ‘objetivista’ – não como uma vitória do ‘interior’ sobre o ‘exterior’, do ‘mental’ sobre o ‘material’, mas como um apelo à revisão de nossa ontologia, ao reexame das noções de ‘sujeito’ e de ‘objeto’. As mesmas razões que impedem de tratar a percepção como um objeto são as que também impedem de tratá-la como a operação de um ‘sujeito’, seja qual for o sentido em que possa ser tomada” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 41).
[3] Conforme a proposição LXXIV da primeira parte dos Princípios da Filosofia, a linguagem se torna a “quarta causa do erro”, pois os homens, ao versarem mais acerca das palavras do que das coisas, terminam dando “[...] assentimento a expressões não entendidas, porque julgam tê-las outrora entendido, ou tê-las recebido de outras que as entendiam corretamente [...]. Assim, a dificuldade de distinguir os conceitos claros e distintos dos obscuros e confusos, decorre precisamente da perda do sentido da função de mediação entre as coisas e os conceitos, função essa que deveria ser operada pela linguagem enquanto expressão do pensamento” (DESCARTES, 1995, p. 98; 99).
[4] “Broca representava a memória verbal como demasiado isolada das demais atividades psíquicas ou, em termos anatômicos, demasiado dependente de uma localização cerebral precisa. [...]. Para ele,
[5] Essa é a razão pela qual “[...] o que há de profundo na ‘Gestalt’ da qual partimos, não é a ideia de significação, mas a de estrutura, a junção de uma ideia e de uma existência indiscerníveis, o arranjo contingente pelo qual os materiais passam, diante de nós, a ter um sentido, a inteligibilidade em estado nascente” (MERLEAU-PONTY, 1942, p. 223).
[6] “A reificação da estrutura e sua redução à realidade física partes extra partes, impede que a Gestalttheorie possa manter qualquer diferença de princípio entre a afirmação associacionista de que o psíquico é uma soma de sensações, e sua própria afirmação de que o psíquico é uma totalidade cujos elementos não possuem existência separada. Ao colocar a gestalt como forma derivada de formas físicas detentoras de realidade, a Escola de Berlim impediu aquilo que sua proposta anunciava: uma revisão radical das relações entre o objetivo e o subjetivo no nível da psicologia” (CHAUÍ, 2002, p. 228-229).
[7] Como Goldstein insiste, “[...] só o conhecimento do organismo total nos leva a compreender as diversas reações que observamos nas partes isoladas” (GOLDSTEIN, 1940, p. 123). É o que Wolman reforça, ao mostrar que “[...] o quadro do organismo total e sua Gestalt deveria ser interpretado em sua totalidade, de uma forma holística [...]. De fato, cada reflexo simples, inato ou condicionado é uma fração de uma totalidade de ação e uma expressão parcial do funcionamento do organismo como um todo. Prestar atenção a um movimento particular sem considerar a situação total pode conduzir a uma interpretação equivocada” (WOLMAN, 1972, p. 220; 221). Para um maior aprofundamento desse debate, ver:
GURWITSCH (2002); MÜLLER-GRANZOTTO (2007) e FALABRETTI (2008, p. 153-192).
[8] “Essa relação é ‘dialética’, ao menos, por duas razões: primeiramente, porque o ser vivo e seu meio agem um sobre o outro numa forma de interação que testemunha uma relação de reciprocidade ou de reversibilidade; secundariamente, porque a adaptação do animal em seu mundo circundante não é jamais adquirida de modo que a busca de uma relação harmoniosa e de um comportamento equilibrado está, a cada momento, por recomeçar” (BERNET, 2008, p. 40).
[9] Para Scheler, não há passagem entre o “espírito” e a “vida”, pois o novo princípio que faz o homem se tornar homem reside fora de tudo o que chamamos vida. Comparado com o animal, “[...] o homem é aquele ‘que pode dizer não’, ele é o ‘asceta da vida’, aquele que protesta eternamente contra toda mera realidade” (SCHELER, 2003, p. 53). Dessa forma, “[...] a compenetração recíproca entre o espírito originariamente impotente e o impulso originariamente demoníaco, isto é, o impulso cego ante todas as ideias e valores espirituais [...], é a meta e o fim do ser e do acontecimento finitos” (SCHELER, 2003, p. 68). Ora, embora reconheça a riqueza das análises fenomenológicas de Scheler, Goldstein não poupa, em face delas, sérias objeções. Nessa direção, se os impulsos são cegos, jamais se compreendem, por exemplo, a experiência dos animais, já que eles se estruturam e se diferenciam não “[...] sob a forma de uma simples satisfação dos instintos” (GOLDSTEIN, 1983, p. 376). Assim, se o mundo circundante do animal não é um dado absoluto, tampouco o é o do homem enquanto puro espírito que inibe o domínio dos instintos ou da vida. O fato é que “[...] a vida no ser animal não é outra coisa senão a vida no ser humano” (GOLDSTEIN, 1983, p. 381). Não se trata, aqui, de igualar a vida humana e a vida animal em geral, mas apenas compreender uma estruturação de base entre ambas, sem jamais, como faz Scheler, cindi-las analiticamente. Como mostra Goldstein, ambas são “potências particulares do ser” (GOLDSTEIN, 1983, p. 381-382) ou traços essenciais de uma tensão dialética oriunda do “debate entre o organismo humano e o mundo” (GOLDSTEIN, 1983, p. 382). Disso resulta que “[...] toda estruturação do mundo, tudo o que chamamos cultura, não é compreensível senão a partir dessa
[10] “A literatura americana do comportamento é uma literatura que renuncia em se interessar pela significação mais interior desse comportamento. O que me parece, ao contrário, é que haveria uma via de acesso ao interior a partir dos gestos, das condutas, sob a condição de que esses gestos, essas condutas não sejam observados simplesmente em seus detalhes” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 372).
[11] Há, aqui, um fenômeno posto em questão por uma “filosofia da estrutura” em sua significação radicalmente ontológica. Esse fenômeno é o “sentido”, ou seja, aquilo que extravasa, transcende nossas operações lógicas. Ora, observa Merleau-Ponty, a linguagem mais prosaica como a lógica, convencionalmente instituída é, sem dúvida, “[...] útil e indispensável, mas ela é tributária de outra linguagem, muito mais difícil, que consiste em dizer o que não tem sido jamais dito. Quando uma criança começa a falar, sua linguagem é muito mais interessante e significativa, que quando nós falamos com um sistema de palavras e um sistema de ideias desde já estabelecidas” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 338). Com isso: “O fato de que não podemos enumerar o que é dito e o que é ‘subentendido’ [...] mostra que a expressão está inteiramente presente em cada ato de expressão, que a linguagem duplica completamente cada palavra como uma SubPalavra – ou, antes, que cada palavra não é senão uma dobra na palavra, que ela é, em sua natureza, figura sobre um fundo (de silêncio ativo ou Gestalt) que ela é prévia a qualquer ‘proposição’ no sentido da lógica proposicional. Há, no sentido de Claudel, um Etwas, uma Gestalt que se vive interiormente de sua carne para deixar transparecer uma estrutura, uma massa trabalhada do interior por uma espécie de ebulição, um oco no Ser, um desvio em relação a não-diferença ou à in-diferença. De onde vem essa luz? Ela não virá certamente dos atos do ‘sujeito’, nem do seu ‘operar’” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 271-272).