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Resumo: O presente artigo apresenta, na tentativa de produzir uma interpretação filosófica do pensamento de Freud, uma problematização acerca de uma gama de noções como subjetividade, realidade, princípio de prazer, princípio de realidade, pulsão de morte, fonte e sustentação da vida individual e grupal, entre outras. Investigando as condições de constituição da subjetividade humana, privilegiamos, entre outras vias possíveis, pelo apoio em diversos textos do psicanalista sobre hipnose. Pretendemos esclarecer, a partir dela e das relações que comporta, as condições em que os laços sociais, vale dizer libidinais, são estabelecidos, além do que proporcionam, a saber, a própria sustentação da vida pela oposição que oferecem à agressividade e autodestrutividade primária postulada por Freud. Com esse recurso, pretendemos sustentar nossa tese de que toda constituição da subjetividade como a sustentação da vida se dão por uma articulação entre interior e exterior que se opõe, por um período determinado de tempo, à conservadora pulsão de morte que subsiste em todo organismo.
PALAVRAS-CHAVE: Freud. Psicanálise. Realidade. Hipnose. Agressividade. Vida. Morte.
É certo que há um sem número de possibilidades de abordagens na tentativa de responder ao questionamento de nosso título. Por conta disso, optamos por iniciar fazendo referência, para depois recorrer a outros, a um dos temas mais intrigantes e também obscuros da psicanálise que é, sem dúvida, o relativo ao que Freud chamou de “teste de realidade”. Sua importância se revela na medida em que reconhecemos que está diretamente associado e dependente da constituição da subjetividade e ao próprio estatuto do eu e do exercício de uma de suas funções, que é a de reconhecer e distinguir a realidade exterior da interior pela sua aplicação bem sucedida. Julgamos importante destacar que ele se relaciona ao atendimento de necessidades vitais. Aplicando-o eficazmente, o eu adquire condições de percorrer de maneira igualmente eficaz, por exemplo, o circuito providencial que vai da pulsão interna que chamamos, para diante nos corrigirmos, da fome, à busca ou encontro de uma fonte de alimento no mundo externo, o seio da mãe, por exemplo, dando ensejo à conservação da vida, de início, do bebê. Para todos os fins, distinguir entre alucinação de percepção é da ordem da promoção da sobrevivência do próprio organismo além de condição da saúde psíquica quanto às tarefas futuras que o aguardam.
Registremos que o reconhecimento da realidade exterior, atingido pela aplicação de um critério eficaz de distinção entre representação e objeto representado, que se presentifica na capacidade de distinguir entre fonte interna e externa das sensações ou representações tão caro à psicanálise, particularmente por suas implicações no que diz respeito às psicopatologias, não se apresentou de menor importância na história da filosofia. Antes o contrário. Para efeito desse esclarecimento, lembremos um exemplo eloquente extraído da iniciativa de Descartes, na III de suas Meditações metafísicas, na qual conduziu ao extremo a dúvida acerca da autenticidade de um mundo objetivo e exterior correspondente às nossas representações. Muito embora sua intenção geral fosse a de conferir autenticação à realidade, superando a dúvida, não se pode negar que forneceu um poderoso argumento em favor das teses solipsistas.
Sem nos alongarmos em ilustrações, reconhecemos que a equação desse problema depende particularmente do estatuto que o eu recebeu de cada pensador, em cada momento. Num outro extremo, por exemplo, embora nesse aspecto em harmonia com Descartes, o eu igualmente concebido como substancial por Berkeley[2] produziu, como consequência, a sustentação do solipsismo e do imaterialismo. Por isso, vale aqui a confrontação com o estatuto que lhe deu Freud. Vejamos. Dele o eu, por sua vez, recebeu um estatuto que aqui chamaremos intrasubjetivo[3], sendo constituído empiricamente a partir das duas direções, do interior do organismo bem como do seu exterior. Com isso esquivou-se, evitando a substancialização do eu, até certo ponto do problema central do solipsismo, uma vez que a cooperação e articulação entre interior e exterior foi por ele concebida como a condição de sua constituição dada com base em um conjunto de representações, além de ser a própria condição de toda experiência possível.
Como sugerimos, uma adequada constituição do eu, associada a uma eficiente aplicação do teste de realidade a seu encargo, deve proporcionar ao bebê sua sobrevivência, a sustentação de sua vida, seja do ponto de vista da nutrição[4], seja do ponto de vista de sua sanidade psíquica que o habilita ou capacita para o convívio social. Contudo, há aqui um obstáculo facilmente reconhecido no pensamento de Freud, que nos arriscamos apontar e que por isso deve ser enfrentado e explicitado para que nossa expectativa seja bem sucedida. Vejamos. Freud notabilizou-se também por denunciar e revelar, com toda a controvérsia que despertou, uma natureza mortífera no homem (que nos autorizamos a reconhecer como extensiva aos demais organismos vivos), reconhecendo inicialmente nele a orientação de um princípio fundamental que é o de prazer, bem como suas articulações com o que fundamentou posteriormente, os instintos de morte.
Reconheceu, como sabemos, a presença de objetivos autodestrutivos em todo organismo vivo. O retorno de um organismo a um estado inicial, postulado sob a condição de uma volta ao inorgânico que o precedeu, além de uma anulação ou escoamento de toda tensão a que é submetido, faz do objetivo da vida a morte. Mais do que isso, uma morte “[...] por razões internas” (1920, p. 49). Nessa perspectiva, postulou um instinto de morte e concluiu, ao final da obra de 1920, que o princípio de prazer parece estar, na realidade, a serviço dele. Ora, nossa intuição é de que, se morremos por razões internas, podemos concluir que, por outro lado, vivemos por fortes razões externas, o que evidencia e solicita a consideração e o apelo, ou ainda, a intervenção salvífica proveniente da uma realidade exterior. Esperamos dela, sem dúvida, uma atuação provedora da vida e de sua conservação. Pensemos em exemplos elementares como o seio materno provedor de nutrientes ou, num outro extremo, o papel do líder provedor de ideais para o eu, na formação e sustentação dos laços sociais. Por conta disso, podemos reconhecer que toda destrutividade que açoda a vida pode ser entendida como uma exteriorização efetiva da pulsão de morte, um seu efeito inevitável, a despeito da resistência que opera o jogo pulsional.
Ainda sobre isso, lembremos que Freud conduziu essa noção a um termo tal postulando, já em 1920, que “[...] pode haver um masoquismo primário” (1920, p. 65). Disse isso para, quatro anos mais tarde, em O problema econômico do masoquismo, reapresentá-lo com todas as letras em sua conclusão: “[...] a própria destruição de si mesmo pelo indivíduo não pode se realizar sem uma satisfação libidinal” (1924, p. 188). Evidentemente que essa tendência não se realiza senão pela admissão e apelo a uma destrutividade primária que, além de dirigida contra outros (sadismo) também deve residir fundamentalmente em cada organismo (masoquismo).
Esse aspecto da condição humana foi também retomado e descrito por ele em O mal-estar na civilização, de 1929, sob o destaque da agressividade. É verdade que reconheceu sua contribuição positiva em relação às conquistas da natureza hostil (esta, uma das três fontes de sofrimento para o homem) e especialmente sua importância quanto à produção de conhecimento em geral. No entanto, e talvez resida aí o maior desconforto de sua revelação, considerou a inclinação para a agressão instauradora de uma “[...] mútua hostilidade primária dos seres humanos” (1929, p. 68), ou seja, como algo da ordem de uma natureza original do homem que o inabilita para a vida social. É verdade que o emprego do conceito de natureza humana em Freud é, no mínimo, delicado e problemático, mas continuemos para avaliar até que ponto pode ser levado.
No aprofundamento do reconhecimento dessa característica humana, Freud sustentou a afirmação de que “[...] não é fácil aos homens abandonar a satisfação dessa inclinação para a agressão. Sem ela, eles não se sentem confortáveis” (1929, p. 71). É verdade que isso se apoia na radicalidade que acompanha o reconhecimento de “[...] um instinto agressivo, especial e independente” (1929, p. 75), na verdade um impulso primitivo de morte. Ora, esse fundamento pulsional que se manifesta sob a forma de uma inclinação para a agressão constitui para ele, e aqui não deixou dúvidas quanto ao seu estatuto, “[...] uma disposição instintiva original e auto-subsistente [...] ela é o maior impedimento à civilização” (1929, p. 81). Sendo que, em função dessa hostilidade primária dos seres humanos, de cada indivíduo contra si mesmo e contra o outro, cada um deles e o seu conjunto se veem permanentemente ameaçados de desintegração e extinção.
Para dar contorno a essa questão, acrescentemos agora, Freud introduziu o conceito de narcisismo das pequenas diferenças, formalizado em O mal-estar e em Psicologia de grupo e análise do ego, investigando, assim, as possibilidades de conciliação saudável, o mais possível, entre uma agressividade tolerada e uma integração ou tolerância desejável. A hipótese de que esse aspecto narcísico do nosso psiquismo possa ter atuação na formação dos grupos permite entender como, ao mesmo tempo em que um grupo dirige sua agressão para um terceiro, também projeta sua libido ao segundo. Parece que Freud viu nele a possibilidade de uma gestão da agressividade e da destrutividade a termos toleráveis. Mas, a que custo e por que meios? Resta investigar, até porque, em dadas condições, a conservação da vida, seja do indivíduo seja da civilização, esperamos estar certos, só pode ser explicada como resultando, é verdade, de uma circunstância inicialmente disparada no próprio organismo sob a forma de pulsão endógena, por exemplo, mas levada adiante a partir de um lugar externo a ele, de cuja cooperação depende.
Lembremos que a postulação da tal condição original de todo organismo vivo deu-se em 1920, reiteremos, pela consideração de um caráter conservador atribuído aos instintos no sentido de restaurar estados anteriores de coisas, ou seja, uma tendência de todo organismo vivo, portanto tensionado, a retornar ao estado inerte e inorgânico que o precedeu, ao repouso. Nesse sentido, como compreender uma providência do eu no sentido de um reconhecimento e ajuste à realidade, tendo como consequência a conservação da vida? Perguntamos, ainda, em que circunstância se pode pensar em uma providência ou um dispositivo que, se não viabiliza, pelo menos atenue a inclinação original para a dissolução, para a supressão da vida e da civilização que Freud apontou? Isso porque, como dissemos, implícito aos organismos vivos, incluindo o homem, não podemos esperar absolutamente nada dado a priori, pois não encontramos nos argumentos de Freud nenhum vitalismo, nenhuma indicação de que, como podemos dizer, “a vida queira em si mesmo viver”[5]. Resta-nos, como vimos fazendo, investigar a partir da contribuição do exterior, por exemplo, com base no que podemos considerar como um evento dos mais eloquentes e contundentes das vicissitudes pulsionais, a saber, a introdução de um Princípio de realidade; conceito geral que indica, entre tantas coisas, a possibilidade de promover pela renúncia pulsional que promove a articulação e a sustentação de seres humanos que, segundo entendeu Freud, não são original ou espontaneamente predispostos a isso. É verdade também que, por outro lado, dessa intervenção resultará uma produção crescente de mal-estar prontamente apontada por Freud.
No adiantado de nossa argumentação e dado, como destacamos acima, ao número de possibilidades de abordagens na tentativa de responder ao questionamento de nosso título, acrescentaremos aqui o tema da hipnose, esperando dele extrair maiores consequências para nosso propósito. Dele enfatizaremos uma articulação conceitual entre sugestão, libido, identificação com o líder e formação de grupo. Esperamos desse recurso obter uma compreensão acerca das condições de instauração da comunidade, de laços que proporcionem sustentação da vida e que por esse meio atenue e postergue a cota de autodestrutividade que nos acomete, impedindo que atinjamos o objetivo de autossupressão. Para isso, percorreremos, à custa de exaustivas páginas adicionais, esperamos que para o enriquecimento da argumentação, Isso feito, auxilia adicionalmente na montagem de uma função secundária, a de conservação e uso deles. Doravante, o mesmo grito permitirá à criança atrair deliberadamente a atenção do adulto. Com isso, fica acrescida uma fonte externa na constituição da subjetividade do bebê, abrindo por essa via a possibilidade de superação do seu isolamento inicial. Assim, da chamada vivência de satisfação Freud deriva a constituição de uma representação do objeto externo, o seio da mãe, que acompanhou, na verdade produziu, a experiência de escoamento da tensão endógena. Também é verdade que o que se segue é uma sofisticação, o estabelecimento por parte do bebê de uma associação, possivelmente por contiguidade e ou simultaneidade, entre o choro e os movimentos produzidos com o resultado obtido. Vai além, estabelece ainda uma relação de causalidade, o que faz da representação algo disponível para futuras situações semelhantes. Em verdade, ao “adivinhar” a necessidade de nutrição do bebê e por nutrilo o adulto aplaca a tensão produzida pela fome. Desse modo, mais uma vez a conservação e sustentação da vida ocorreu do exterior, uma vez que da parte do bebê não podemos, sem dificuldades, dizer que “pretendia” algo mais do que livrar-se da estimulação, não se pode dizer que o estímulo pretendia obter provisão visando sua conservação, por conta do que a nutrição não pode ser vista para além de um efeito secundário e mesmo colateral em relação às “intenções” do bebê que, quando orientado estritamente pelo Princípio de prazer, outra coisa não “queria” do que voltar ao repouso, o que nos impede de identificar o que habitualmente chamamos de fome com um desejo de vida. Fato que mais uma vez, se estivermos certos, atesta a exterioridade da conservação e da sustentação da vida. Sentimo-nos autorizados a especular dessa forma em função de Freud sempre ter apontado para a falta de uma síntese positiva na dialética pulsional que reconheceu a atribuiu ao homem. um pouco da história da hipnose, bem como uma referência aos principais textos de Freud sobre ela[6].
Para dar conta das contribuições teóricas e usos práticos que Freud fez da técnica da hipnose, julgamos adequado recuperar, ao custo do acréscimo de alguns parágrafos, um pouco de sua história. Buscaremos essas informações retrocedendo, no campo da medicina, aos anos iniciais do século XVIII. Nessa época ela estava, diz Paschoal, “[...] associada a um tipo de filosofia da qual resulta um entorpecimento do homem e a produção de um tipo fisiologicamente fraco, ao ponto de colocar em risco as possibilidades de grandeza presentes no homem” (2008, p. 70).
A força dessa afirmação, especialmente da primeira parte, nos é de grande valia. Isso porque pretendemos demonstrar adiante que a hipnose, absorvida de seu nascedouro e transformada progressivamente em técnica terapêutica de remoção de sintomas e mesmo de investigação deles, recebeu, particularmente de Freud, uma reconceituação que fez dela um instrumento de emancipação do sintoma e até mesmo de seu esclarecimento, portanto, algo diametralmente oposto à alienação acima sugerida. Instituiu-a como recurso de compreensão de fenômenos sociais. Antes, para entendermos a dimensão da contribuição de Freud, apresentaremos algumas breves considerações acerca das circunstâncias que lhe deram nascimento.
Recordemos que o que passou a ser nomeado hipnose esteve historicamente associado ao nome do médico alemão Franz Anton Mesmer (1734-1815), por conta de quem foi cunhada a expressão “mesmerismo”. Justificado numa teoria que postulava uma espécie de “magnetismo animal”, sugestionava seus pacientes por meio de uma técnica de indução até que atingissem um estado de transe, um equivalente do encantamento, com objetivos que lhe renderam a certa altura a pecha de charlatão. Na mesma obra, Paschoal nos informa sobre a recepção e a repercussão dessa técnica que foi introduzida, não sem muita polêmica, em 1828, na Inglaterra pelo também médico John Elliotson (1791-1868) visando, já numa outra perspectiva, pelo efeito narcótico ou anestésico que a técnica proporcionava, a um abrandamento do sofrimento de pacientes em situação pós-operatória.
Na trilha dessa expansão, podemos assim dizer, o médico inglês James Braid (1795-1860) concebeu e designou em 1843, pelo termo hipnotismo, uma técnica que, igualmente pelo recurso da indução, produzia no paciente um estado semelhante ao do sono (como indica a etimologia do próprio termo grego hipnos) ou de anestesia. Dessa forma, já indicando tanto uma ausência de consciência ou de vigília, quanto de sofrimento ou dor, revelava uma desaceleração do ânimo ou da excitação. Quando se trata de promover a esquiva da dor, Braid propôs o alcance de um estado para além da sonolência, algo que se aproxima da catalepsia ou da própria hibernação, algo próximo do estado alcançado pelas plantas e animais. Algo da ordem de um refreamento do metabolismo do corpo.
Por conta disso, o estatuto dessa técnica não foi até aqui muito mais do que um paliativo em relação à patologia tratada, pois proporcionava em todo caso apenas um enfoque no sintoma, em último caso uma desensibilização em relação ao desprazer. Desse modo, não se pode postular ainda um efeito terapêutico, por exemplo, de remoção de sintoma ou da compreensão de sua causa, posto que não oferecia uma investigação ou abordagem desta.
Finalmente, sabemos que foi pretendendo preencher essa lacuna que Joseph Breuer (1842-1925), inclusive como tradutor[7] de uma obra de Braid, participou da promoção de um novo enfoque, expectativa e operação da técnica hipnótica. Também foi nessa esteira que se moveram, inclusive em outros solos, J. M. Charcot (1825-1893) e H. Bernheim (1837-1919). Destes, além de Freud, nós nos ocuparemos a seguir.
Sabemos que a relação de Freud com a hipnose, já inteiramente numa perspectiva médica, teve início em sua juventude, por ocasião de seu encontro com Charcot, na França, em 1886. Manteve contato também com Bernheim, em Nancy, além de Breuer, na própria Viena. De Bernheim recebeu a noção de sugestão que a partir de então fazia da hipnose uma técnica de ordem ortopédica, isto é, de cura pela remoção de sintomas, enquanto de Breuer assimilou a noção de investigação visando à determinação e recordação do evento causa do sintoma, o que permitiria eliminá-lo finalmente de modo catártico. Podemos, em função disso reconhecer, a despeito das anteriores, os avanços das perspectivas científicas que animavam o uso da hipnose no campo da medicina desse período.
Também chamou a atenção o fato de que Freud nunca deixou de reconhecer os limites do método hipnótico, admitindo em mais de uma ocasião nunca ter sido um excelente hipnotizador, reconhecendo sucesso restrito apenas com uma pequena parte de seus pacientes. Utilizou-a como técnica, parece, até 1896. De suas variantes, aplicou-a de início como sugestão, embora conciliada com o método catártico, adicionando procedimentos como concentração e pressão com o polegar na testa do paciente.
A técnica da hipnose, sabem seus leitores, foi para Freud também objeto e oportunidade de produção teórica, tendo inclusive escrito alguns textos sobre o assunto, como Prefácio à tradução de De la Suggestion, de Bernheim, de 1888; Resenha de Hipnotismo, de August Forel, de 1889; Tratamento psíquico (ou anímico), de 1890 (1905)[8]; Hipnotismo, de 1891 e finalmente Um caso de cura pelo hipnotismo, de 1892. Devido a sua importância para nossos propósitos, propomo-nos apresentá-los em ordem cronológica, objetivando acompanhar as nuances de sua relação com ela para, em seguida, visitarmos com devida atenção a obra Psicologia de grupo e a análise do ego, de 1921. Antecipemos que nessa última obra Freud dedicou-se à análise das condições de possibilidade de constituição e sustentação da vida grupal a partir do instrumental teórico obtido de suas experiências com o fenômeno psíquico da hipnose (ainda que seja uma relação a dois), o que justifica nosso interesse por ela.
Das obras que trataram do assunto, a primeira foi publicada em 1888, como referimos, com o título Prefácio à tradução de De La Suggestion, de Bernheim. Nela, Freud apresenta a tese de Bernheim acerca da sugestão como núcleo do hipnotismo e como chave de sua compreensão. Lembra que ela está ainda presente em muitas outras áreas e atividades humanas. Contudo, sua contribuição pessoal avança quando expõe e confronta duas correntes de concepção da hipnose, a de Bernheim, para quem todos os fenômenos do hipnotismo têm origem e são introduzidos por influência externa e por isso seriam efeitos da sugestão oferecida pelo médico e acolhida pelo paciente. A segunda apresentada, a de Charcot, sustenta que algumas manifestações do hipnotismo estariam baseadas em alterações fisiológicas, como deslocamentos da excitabilidade no sistema nervoso, portanto, independentes de sua relação com a consciência, de forma que seriam ocorrências do sistema nervoso.
No interior dessa querela, Freud se posicionou propondo uma conciliação entre a posição eminentemente psíquica de Berheim e a fisiológica de Charcot, argumentando que, em suma, seria a sugestão a desencadeadora das alterações fisiológicas. Ofereceu como exemplo o sono que apresenta igualmente os aspectos fisiológico e psicológico, pois ele pode vir por sugestão, por conseguinte, por uma expectativa de dormir, ou ainda, por uma condição fisiológica como a fadiga do corpo. Desse modo, sua posição já se sustentava na cooperação entre os dois aspectos, uma vez que se recusava pensá-los isoladamente.
Um ano mais tarde, em 1889, publicou Resenha de Hipnotismo, de August Forel. Resenhando a obra desse professor de psiquiatria de Zurique, lembrou que foram James Braid e Liébeaut que, em 1843, como já mencionado acima, criaram a palavra e deram ao fenômeno um tratamento do ponto de vista médico e científico, contribuindo para que fosse deixado para trás o obscurantismo que o rondava. Solidarizando-se com essa iniciativa, nessa obra como em outras, comprometeu-se em defender a hipnose de seus detratores, que, segundo ele, questionavam sua eficácia e a qualificavam como loucura ou histeria artificial. Relativamente à sugestão, Freud lembrou mais uma vez ser algo de ocorrência cotidiana na relação médico-paciente. Quanto a essa insistência, gostaríamos de apontar nossa intuição de que nela já temos o embrião do destaque progressivo que deu à influência e autoridade do médico, ao poder de sua personalidade, fundamentais para a concepção posterior da noção, fundamental para a psicanálise, de transferência.
A respeito desse aspecto, apresentou a definição de Forel (1848 - 1931) sobre o hipnotismo, para quem consistia em “[...] colocar uma pessoa num estado especial da mente que se assemelha ao sono” (1889, p. 134), sendo que esse estado é produzido “[...] pela influência psíquica que uma pessoa exerce sobre outra (sugestão)” (1889, p. 134). Trata-se, portanto, de um efeito psíquico de ideias provocado por sugestão na pessoa hipnotizada, podendo, segundo Forel, ser aplicada a toda e qualquer pessoa. A despeito da adesão inicial, adiante veremos a discordância de Freud relativa à segunda parte dessa tese.
Nesse caso, o hipnotismo foi por ele pensado como completamente equivalente à sugestão, pela qual é possível influenciar, estimular, criar fenômenos subjetivos na mente do paciente, produzindo alterações em sua memória e vontade, o que pressupõe uma dependência da atividade mental do hipnotizado em relação ao hipnotizador, expressa na forma de obediência e execução de atividades sugeridas, inclusive, após o término da aplicação da técnica. Foi ainda nessa resenha que Freud, reconhecendo suas características terapêuticas (que seguramente inclui o alívio do sofrimento), fez ainda referência à possibilidade de que a prática da hipnose seja a oportunidade de se obter, numa perspectiva investigativa, “[...] as mais valiosas conclusões acerca dos processos psíquicos normais dos seres humanos” (1889, p. 137).
Adiante, uma abordagem mais consistente sobre o tema foi apresentada por ele na obra Tratamento psíquico (ou anímico), de 1890[9]. Inicialmente concebida como capítulo para uma obra de divulgação médica, nela discute as relações pendulares que a medicina apresentara até então entre o que é da ordem do físico e do anímico. Tomou o partido do anímico, argumentando com apoio nos casos clínicos em que “[...] os sinais da doença não provenham de outra coisa senão de uma influência modificada da vida anímica sobre o corpo, devendo-se, portanto, buscar no anímico a causa imediata da perturbação” (1890, p. 274), de modo que a tese da ideogenia como etiologia da histeria já estava relativamente encaminhada.
Manteve o ponto de vista de determinação do anímico sobre o físico com uma série de argumentos e exemplos, sendo que dentre eles nos interessa os relativos à intervenção terapêutica do médico. Para ele, o resultado da intervenção depende da conduta anímica do paciente, de sua expectativa de cura acrescida da confiança acerca da recomendação médica, do respeito e da simpatia que sente por ele, que é reforçada por meio da personalidade do médico. Na ordem desses argumentos Freud apontou o que chamou de “magia das palavras” (1890, p. 279), definindo-a como o elemento de mediação da influência do médico sobre o paciente visando proporcionar alívio ao seu sofrimento ao eliminar seus sintomas psíquicos. Desde já se pode reconhecer a consideração precoce que Freud dedicou à cura pela palavra, ou seja, à palavra como veículo tanto de construção de sintoma quanto de sua eliminação. No entanto, ainda faltava do ponto de vista da técnica o recurso à fala, ao discurso do paciente, como meio de investigação.
Sustentando esse argumento, propôs, pela primeira vez, uma distinção, ainda não levada em conta por seus contemporâneos, entre o estado hipnótico e o do sono, afirmando que de modo geral, no primeiro, “[...] ocorrem mudanças e se conservam funções anímicas que faltam ao sono normal” (1890, p. 282). Isso porque sua marca distintiva seria a “[...] atitude do hipnotizado perante seu hipnotizador” (1890, p. 282), uma vez que, observou, embora adormecido para o mundo, o hipnotizado permanece desperto e dirigido para o hipnotizador. O hipnotizado só vê, ouve, compreende e responde a ele, é ainda dócil, obediente e crédulo. Assim, é por meio dessa influência que o médico produz efeitos até sobre seu físico, o que é alcançado por meio da palavra e do reconhecimento do que ela pode representar, um órgão do corpo, por exemplo. Dessa forma, resguarda a conciliação que propusera anteriormente, em 1888, enquanto acentua a importância da sugestão, mas pela via da influência do médico.
Freud destacou e fez referência à submissão e credulidade do hipnotizado em termos afetivos, com desdobramentos teóricos importantes. Seguiu comparando o grau de sua submissão ao encontrado na relação “[...] dos filhos perante os pais amados” (1890, p. 283) e também “em algumas relações amorosas plenas de dedicação” (1890, p. 283). Desse modo, a própria eficácia terapêutica da técnica da hipnose ficou, tanto quanto dependente da influência do médico, associada ao grau de docilidade que o paciente apresenta, o que evidencia a dependência da técnica em relação à particularidade e arbitrariedade da vida anímica do paciente.
Um ano mais tarde, em 1891, com o título Hipnose, publicou mais uma obra em defesa do método com indicações de como aplicá-lo. Apresentou finalmente com todas as letras a tese de que nem todas as pessoas são hipnotizáveis, justificado nas já apontadas particularidades anímicas de cada paciente. Em decorrência, reuniu as possibilidades de reação individual do paciente (segundo a natureza de sua vida anímica e de sua doença) com as de intervenção do hipnotizador, a fim de poder reconhecer a propriedade, adequação e eficácia do uso do método. A essa altura, a importância da influência do médico já estava prontamente apresentada, a ponto de recomendar ao paciente que não se deixe “[...] hipnotizar por um médico que não pareça merecer a mais completa confiança” (1891, p. 147).
O nível de confiança exigido ganhou destaque, quando reconheceu que “[...] o grau alcançável de hipnose não depende do método do médico, mas da reação casual do paciente” (1891, p. 151). Isso ficou igualmente evidente ao recomendar que as tentativas de aplicação do método não devem ser inferiores a três e nem superiores a seis vezes, ao fim das quais se deve desistir. De fato, a relação de confiança requerida para o sucesso da hipnose ganhou contornos mais definidos um ano mais tarde, em 1892, na obra Um caso de cura pelo hipnotismo. Contudo, pela reiteração dos argumentos, pouparemos o leitor de sua reapresentação.
Apoiados nas teses construídas até aqui, julgamos oportuno dar prosseguimento às especulações relativas às condições de possibilidade de construção de grupos sociais que Freud formulou a partir do instrumental teórico obtido do método hipnótico. Como consequência disso, na obra Psicologia de grupo e a análise do ego, de 1921, ele concebeu o grupo social como possível, entre outras coisas, com base em alterações da mente individual. Para justificar isso, retornou a seu interesse pretérito pelo hipnotismo, recurso que lhe permitiu acrescentar que um indivíduo só (ou também) se associa a outro por meio de um modelo, um terceiro aliado ou oponente. Passemos às considerações desses dois argumentos.
Em Psicologia de grupo e análise do ego, apresentou uma perspectiva de constituição da subjetividade que representou, segundo nosso entendimento, uma continuidade e ao mesmo tempo um deslocamento de perspectiva e, por isso mesmo, uma alternativa para os temas do solipsismo, do teste de realidade e da fonte e sustentação da vida que anunciamos acima como norteadores dessa pesquisa. Nela, reelaborou as próprias condições de possibilidade de constituição da subjetividade e de toda experiência possível. Trata-se de uma obra que apresenta uma investigação e hipóteses sobre a estrutura e o funcionamento da mente relativamente próximo de 1923, isto é, às vésperas da publicação de O ego e o id, e por isso antecipa em muitos pontos a segunda tópica.
Nela, Freud declarou que a psicologia de grupo interessa-se pelo “indivíduo” na verdade enquanto membro de uma raça, de uma nação, enfim, de um agrupamento. Seus leitores sabem que, depois de apresentar e analisar as teses relativas ao que se pode chamar de mente coletiva de Le Bon e Mc. Dougall, passou a apresentar as suas próprias. Acreditamos que essa obra nos auxiliará na investigação do problema que nos interessa, porque o coloca sobre novas bases. Suspeitamos que talvez a recusa de que as noções de indivíduo e grupo constituam polos antagônicos, antes em cooperação, nos coloque em melhores condições de enfrentar, como indicamos, o problema do solipsismo, do teste de realidade e, por fim, da própria fonte de sustentação da vida individual e coletiva.
Tratou inicialmente de explicar as alterações mentais que o indivíduo sofre, ao participar ou ao ser introduzido em um grupo. Para isso, postulou mais uma vez uma característica fundamental da vida psíquica das pessoas ou, ainda, um fenômeno que seria irredutível e primitivo, a saber, a sugestão ou a sugestionabilidade. Nessa obra, sua tarefa consistiu em, trinta anos depois de ter-se dedicado a esse tema, formular corretamente, ou atualizadamente, o conceito de sugestão, sublinhando sua natureza. Para isso, recorreu ao conceito de libido, explicando, ao mesmo tempo, a sugestão e a psicologia de grupo que nela se sustenta.
Definiu-a como “[...] uma magnitude quantitativa daqueles instintos que tem a ver com tudo o que pode ser abrangido sob a palavra amor” (1921, p. 101), implicando o amor sexual, o amor próprio, o amor aos filhos, aos amigos e até mesmo à humanidade, não deixando de fora a devoção a ideias e objetos, todas reunidas como expressão dos mesmos impulsos instintuais. Por conta disso, admitiu que de um modo geral as relações amorosas devem constituir a essência da mente grupal. Mas há muito ainda por ser dito.
Encaminhou essa questão, discutindo a formação de diferentes grupos, especialmente os que possuem um líder e que, além disso – ou por isso mesmo –, são altamente organizados, permanentes e, sobretudo artificiais, como as igrejas e os exércitos. Estes foram considerados artificiais, e com isso quis dizer estáveis, pela atuação de uma força externa que promove sua montagem e impede sua desagregação. A presença de uma liderança ou de um chefe que ama a todos igualmente foi considerada necessária. Esse líder amante é o que sustenta o amor de uns pelos outros, no grupo. Há, portanto, aqui duas direções libidinais, uma vertical de cada membro com seu líder e uma horizontal entre os próprios membros. Apontada sua mútua dependência, resta explicar seus lugares estruturantes. Sobre isso, Freud destacou que “[...] os laços mútuos entre os membros do grupo via de regra desaparecem ao mesmo tempo que o laço com seu líder” (1921, p. 109), posto ser este estruturante.
A busca pela prova de que os laços libidinais sustentam um grupo, a partir da identificação com um líder, leva-nos à crença de que não deve haver laço libidinal anterior ou espontâneo entre os homens. De fato, mais uma vez, posto que já o fizera em 1920, mas também de maneira antecipada, pois o fará ainda mais enfaticamente em 1929, sustentou que “[...] os homens dão prova de uma presteza a odiar, de uma agressividade cuja fonte é desconhecida, e à qual se fica tentado a atribuir um caráter elementar” (1921, p. 113). De nosso ponto de vista, somente a formação de um grupo, temporária ou permanente, pode desvanecer tal intolerância, já que nela ocorre uma limitação do narcisismo pela construção de laços libidinais entre seus membros, o impulso para a construção do amor objetal e quem sabe para a modificação do egoísmo em altruísmo. Em consequência, um grupo se erige e se sustenta por “[...] novos tipos de laços libidinais entre os membros do grupo” (1921, p. 114). Mas qual sua natureza? Apoiamos o argumento de Freud de que provavelmente derivam de laços amorosos que foram desviados de seus objetivos originais, diretamente sexuais, portanto, um desvio do instinto.
No entanto, ele ainda segue investigando, para além, ou aquém dessa forma de catexias de objeto, se há outro mecanismo que produziria esse efeito. Experimenta, por exemplo, as chamadas “identificações”, justamente porque as reconhece como as mais remotas e primitivas formas de laço emocional entre pessoas, relacionando-as dessa vez ao complexo de Édipo, na medida em que cada indivíduo nessa relação toma o pai como seu ideal. Esse complexo comporta também uma catexia objetal sexual para com a mãe, de modo que ambos os afetos compõem a vida emocional inicial da criança. Na verdade, a hostilidade pelo pai surge quando começa a ocorrer um cruzamento desses afetos. Em certas situações, a identificação se torna hostilidade para com o pai, noutras, é a precursora de uma vinculação objetal com ele, numa atitude feminina.
Formalizando essas circunstâncias, Freud declarou que no primeiro caso a criança deseja ser como o pai, no segundo, tê-lo. Nesse sentido, diz, “[...] a identificação esforça-se por moldar o próprio ego de uma pessoa segundo o aspecto daquele que foi tomado como modelo” (1921, p. 116). Essa operação permite, pela introjeção do objeto desde o exterior, a instituição da consciência como instância crítica. Freud chamou-a de “ideal do eu”. Por suas características, pode-se ver nela, já naquele momento, a precursora do super-eu e suas implicações. Parte-se assim de um caminho que tem início na imitação e que, pela identificação dela decorrente, produz tanto empatia quanto intolerância.
Por esse meio, Freud reconheceu na identificação um processo de cópia do outro. Contudo, sua postulação nos faz crer que pela sua anterioridade ainda não se pode pressupor, por exemplo, o desejo de ocupar o lugar do outro. Queremos dizer que, na ordem da construção do laço emocional, a identificação como sua forma ou condição primitiva e original permite ou possibilita uma vinculação libidinal com um objeto, ou seja, a constituição e a posterior introjeção de um objeto no eu. Perguntamos: em que proporção o eu é resultado dessa identificação e ao mesmo tempo seu promotor? Admitimos pouca esperança e competência para dirimir essa questão.
Para efeitos da obra e de seu propósito, Freud concluiu que os membros de um grupo sustentam um laço a partir de identificações apoiadas em algo comum, a saber, o laço com o líder, por cada um o ter colocado enquanto objeto no lugar de seu ideal do eu, que deve ser anterior aos laços horizontais, pois é por essa operação que cada eu pode identificar-se com os demais. Só depois dela todos estão aptos para se identificarem entre si e se tomarem como objetos de amor, até mesmo sexual. Por conta disso, sem a identificação com o líder, tudo o mais seria estranho entre os indivíduos. Em consequência, amar ou estar apaixonado corresponde, nessa perspectiva, a uma idealização do objeto amado, isto é, a uma projeção de seus próprios ideais, de seu próprio eu em direção a ele. Sobre isso, Freud ressalta que, “[...] quando estamos amando, uma quantidade considerável de libido narcisista transborda para o objeto” (1921, p. 122), ele substitui no exterior nosso eu ou parte dele, habita-o. Portanto, o que faz um grupo ou seus membros se tomarem como objeto é a projeção mútua de ideais comuns fundados na identificação primitiva com um líder.
Dito tudo isso, a relação entre hipnose e estar amando está pronta para ser formulada. Dá-se por uma sujeição do hipnotizado que coloca o hipnotizador no lugar do ideal do seu eu. Este passa a ser o objeto exclusivo de sua atenção. Sobre isso, Freud atribuiu, para depois recusar em 1923, em O ego e o id, que a submissão se dá plenamente em especial porque entre as funções do ideal do eu estaria, nesse caso prejudicada, a de verificar a realidade das coisas, porque o amado é sempre introjetado por seu amante de modo inadvertido. Por isso, a inoperância de uma instância crítica faz com que o eu se equivoque em seu julgamento, que tome uma fantasia por uma percepção real. A partir daí, Freud tomou a liberdade de postular que a relação hipnótica pode ser compreendida, mesmo que levando em conta a limitação numérica, como uma formação de grupo de pelo menos dois membros, já que ela ilustra o comportamento do indivíduo em relação ao líder, inclusive por apresentar ausência de inclinações diretamente sexuais, sendo este o fator que torna duradouros os laços entre eles.
Depois disso, passou a discutir a influência da sugestão, agora tanto por parte do líder como dos membros entre si, o que caracteriza em definitivo a perspectiva intersubjetiva (até que ponto podemos também chamá-la intrassubjetiva?) que atribui à constituição do psiquismo humano. Bem, a explicação acerca de como o líder conseguiu ou foi erigido a tal condição recebeu de Freud um recurso à hipótese de Darwin sobre o pai da horda. Esse pai primevo, enfatiza Freud, “[...] impedira os filhos de satisfazer seus impulsos diretamente sexuais, forçara-os à abstinência e, consequentemente, aos laços emocionais com ele e uns com os outros, que poderiam surgir daqueles de seus impulsos inibidos em seu objetivo sexual” (1921, p. 135). Dessa forma, desde lá até a família, passando pelo clã totêmico, é a possibilidade e a força do amor equivalente do pai pelos filhos que sustenta cada fase da formação e sustentação do grupo.
Valendo-se disso tudo que foi elaborado, a figura do hipnotizador pode ser assimilada à do pai para quem toda atenção (desviada) do mundo convergiu um dia. Portanto, ocorre nessa oportunidade um redespertar de uma condição pretérita de submissão, uma suspensão da vontade individual, condições para a vida grupal, ou seja, para a única possibilidade de vida para o homem. Em decorrência disso, devemos admitir com Freud que mesmo hoje “[...] o líder do grupo ainda é o temido pai primevo; o grupo[10] ainda deseja ser governado pela força irrestrita e possui uma paixão irrestrita pela autoridade” (1921, p. 138). Dessa maneira, pode afirmar que “[...] o pai primevo é o ideal do grupo, que dirige o ego no lugar do ideal do ego” (1921, p. 138).
Logo, por todo viés aqui apresentado, podemos dizer que a constituição da subjetividade se dá justamente no entrecruzamento entre uma demanda interior e seu reconhecimento e atendimento a partir do exterior. Como afirma Freud, “[...] com o nascimento, demos o primeiro passo de um narcisismo absolutamente auto-suficiente para a percepção de um mundo externo cambiante e para os primórdios da descoberta dos objetos” (1921, p. 140), dentre todos, os provedores da vida individual e social. Com base nisso, podemos concluir que a subjetividade foi por ele pensada numa polaridade cooperativa do dentro e do fora, uma cooperação que cria novas bases para pensarmos, em particular, o problema do solipsismo e, em geral, o da própria criação de condições de possibilidade de sobrevivência individual e grupal para o homem.
Por conta disso, a sustentação da vida é certamente decorrência de uma interferência de um agente exterior de início bem próximo e depois distante, que insiste unilateralmente em injetar vida num organismo que terá que pagála, sempre uma dívida contraída involuntariamente, à custa de ser seu plágio.
ABSTRACT: In an attempt to produce a philosophical interpretation of Freud’s thought, this essay presents a problematization of a range of notions such as subjectivity, reality, the pleasure principle, the reality principle, the death instinct and the source and sustenance of individual and group life. In investigating the conditions for the constitution of human subjectivity, we have chosen to examine several texts on hypnosis by the psychoanalyst. Based on these texts and on the relationship that holds among them, we intend to clarify the conditions under which social – that is, libidinal – bonds are established, beyond merely the sustenance of life, the opposition to aggressiveness and primary selfdestructiveness, as postulated by Freud. In this way, we intend to support our thesis that the whole constitution of subjectivity, as well as life sustenance, takes place through an interaction between the inner and outer which is opposed, for a determined period of time, to the conservative death drive that exists in every organism.
KEY-WORDS: Freud; Psychoanalysis. Reality. Hypnosis. Aggressiveness. Life. Death.
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______ Hipnose. Rio de Janeiro: Imago, v. I, 1891.
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______ Além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, v. XVIII, 1920.
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PASCHOAL, A. E. Artes de hipnose e de entorpecimento na terceira dissertação de Para a genealogia da moral. In: 120 anos de Para a Genealogia da Moral. Unijuí: Ed. Unijuí, 2008.
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Recebido em: 02.01.2012
Aceito em: 14.03.2012
[1] Professor Titular do Programa de Mestrado e Doutorado em Filosofia da PUCPR. - E.mail: francisco.
bocca@pucpr.br
[2] Teses apresentadas nas obras Tratado sobre os princípios do entendimento humano e Três diálogos entre Hylas e Philonous.
[3] Optamos pelo termo intrassubjetivo, em lugar de intersubjetivo, para demarcar a especificidade de uma subjetividade que é constituída da cooperação entre uma interioridade orgânica, habitualmente atribuída à ordem da fome, por exemplo, com uma exterioridade que se apresenta na figura de um agente provedor.
[4] Freud declarou, em nota de 1911, justificado num argumento de bom senso, que “[...] correntemente objetar-se-á que uma organização que fosse escrava do Princípio de prazer e negligenciasse a realidade do mundo externo não se poderia manter viva, nem mesmo pelo tempo mais breve, de maneira que não poderia ter existido de modo algum” (Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico, p. 238, v. XII).
[5] Poderíamos também argumentar sobre a influência externa na sustentação da vida e na constituição do eu a partir da consideração deste como constituído empiricamente na relação do bebê com o mundo exterior. Isso pode ser reconstruído da seguinte forma. Até o nascimento, por ser continuamente nutrido umbilicalmente, parece que o bebê não sofre carência ou demanda, portanto, não procede nem estímulo nem sua representação e, por isso, nem consideração nem distinção entre interior e exterior. Após o nascimento, a ocorrência da fome e de outras necessidades vitais demanda o sistema nervoso, incita-o a acionar sua habilidade de escoamento de estímulos produtores de sensações de desprazer. Ora, nessa fase inicial os estímulos endógenos provocam no sistema nervoso excitações que só podem ser tratadas inicialmente com reflexos como gritos e movimentos desconexos dos membros. Não é preciso esforço para reconhecer que sua consequência é o fracasso, pois não descarrega nem elimina a fonte de estímulo, embora, do ponto de vista quantitativo, deve proporcionar em algum grau e por curto período seu abrandamento, mas de modo algum impede seu retorno. É dessa forma que o grito proporciona a montagem da vivência de satisfação, eliminando tensões por enervação até que uma ação específica se realize. Desnecessário lembrar que o bebê não dispõe de um eu organizado suficientemente para tomar deliberadamente tal providência. No entanto, diz Freud, “[...] esta trilha ganha uma função secundária, na medida em que chama a atenção do indivíduo prestativo para o estado apetitivo e necessitado da criança, e serve daí em diante à compreensão, estando, portanto, incluída na ação específica” (1895, p. 240). Em síntese, o grito executa parcialmente a função primária de promover eliminação de tensão e com isso demarca tais caminhos enquanto circuito desiderativo.
[6] Informamos que algumas das páginas seguintes correspondem a uma retomada, devidamente revisada e adequada para os fins da temática aqui refletida, bem de como de suas conclusões, de informações históricas e da ordem cronológica das obras e argumentos de Freud sobre a técnica da hipnose, desenvolvidas em artigo de nossa autoria publicado na Revista AdVerbum, v. 06, n. 2, 2011, com o título “Grupo social como hipnose exaltada”.
[7] Breuer traduziu para o alemão, em 1882, a obra Der Hypnotismus, de J. Braid.
[8] Inicialmente publicado como se fosse de 1905, teve sua data posteriormente corrigida.
[9] Inicialmente publicado como se fosse de 1905, teve sua data posteriormente corrigida.
[10] Em verdade, há algo a ser advertido aqui. Pois cada indivíduo é membro efetivamente de vários grupos ou subgrupos ao mesmo tempo e, por isso, teve seu ideal do eu construído a partir de modelos muito diversos. Portanto, em sua constituição subjetiva, ocorrem variadas identificações e colocações de objetos no lugar do seu ideal do eu.