AS difiCuldAdeS do teíSmo do Ponto de  viStA trAnSCendentAl

Jacinto Rivera de Rosales[1]

RESUMO: Neste texto, são expostos os pontos de vista do Kant crítico e do primeiro Fichte acerca de Deus, e as dificuldades tanto teóricas como prácticas que envolvem a concepção de um Deus teísta, quando se filosofa a partir de um método transcendental, de maneira que, mais do que de um Deus, se deveria falar antes do divino.

PALAVRAS-CHAVE: Teismo. Kant. Filosofia Transcendenal. Fichte.

APreSentAção

Proponho-me abordar o tema de Deus e do divino (Gott und das Göttliche) a partir do ponto de vista transcendental, ou seja, do modo de pensar de Kant e de Fichte em Iena. Em concreto, pretendo examinar as razões que apoiariam a posição que Fichte defende, no seu artigo “Sobre a crença no governo divino do mundo”, frente ao teísmo moral de Kant, mas também as suas limitações. A minha tese é a de que com o método transcendental de filosofar não poderíamos afirmar um Deus pessoal, como o exige o teísmo, por exemplo, o teísmo cristão a partir da fé, e o kantiano com base nas premissas morais (a exigência racional do bem supremo), mas tão somente a realidade originária do divino, que Fichte cedo denominará ordo ordinans moral, ainda que Fichte, quando utiliza essa expressão, se encaminhe já para a segunda etapa do seu pensamento. Aqui, por conseguinte, a disputa torna-se inevitável, e as duas posições estão definidas, pelo que não é de estranhar que da parte da igreja cristã se tenha acusado Fichte de ateu.

Essa acusação, juntamente com a de nihilismo, lançada por Jacobi na carta aberta dirigida a ele, conduziram Fichte a um novo horizonte filosófico, a segunda etapa do seu pensamento, que vai desde 1801 até 1814. Aí, o seu pensar situa-se no ponto de vista do Absoluto, do hen kai pan. E podemos dizer que compete, nesse mesmo horizonte, com as versões do Absoluto oferecidas por Schelling e, um pouco mais tarde, por Hegel. Na perspectiva desse segundo Fichte, há um Ser absoluto (Deus) em si e por si, que não sofre qualquer alteração nem inclui multiplicidade, cuja afirmação asseguraria a Fichte um realismo tal que o resgataria daquela acusação de nihilista e de ateu. Fora desse Ser há um saber desse ser, uma manifestação (Erscheinung), que não é Ser, mas uma mera imagen (Bild) do Absoluto, e aqui, no âmbito do saber como manifestação, domina um idealismo absoluto. Essa manifestação de Deus deve conhecer-se, deve realizar-se como saber ou luz externa, a fim de que o Ser-Deus se manifeste nela; esse dever (Sollen) percorre todo o processo como força divina criadora. Tal manifestação, para alcançar o saber de si e do Ser, terá de desenvolver-se em diversos níveis, pelos quais Fichte reelabora o seu idealismo de Iena, pois esse desenvolvimento apresenta semelhanças com o que realiza o Eu transcendental do primeiro Fichte. Mas, no seu devir, todo o mundo é produzido, também nós mesmos, mostrando-se, desse modo, como um verdadeiro e infinito hen kai pan. Assim, ao nos entregarmos (uns hingeben) a essa vida externa e manifestação de Deus, encontramos a bemaventurança. Ora, compreendido nessa segunda etapa da filosofía de Fichte, a qual se inspira na experiência religiosa, Deus não é uma pessoa, que é o que advoga o teísmo, pois o conceito de pessoa implica finitude, atributo de que carece o Ser absoluto. Nem tão-pouco é criador, pois isso seria introduzir uma variação no Ser absoluto, e uma realidade num mundo que é mera imagem. O mesmo é dizer que tão- pouco o conceito que o segundo Fichte tem de Deus é propriamente cristão, por mais que ele se esforce em apresentá-lo como idêntico ao Evangelho de São João.[2]

Contudo, não vou tratar o tema por meio dessa segunda perspectiva ou modo de filosofar, já que não foi nesse horizonte que se desencadeou a polémica sobre o ateísmo, mas abordá-lo-ei somente a partir do ponto de vista transcendental. Por método transcendental entendo[3], 1º o modo de filosofar que busca as condições de possibilidade da experiência, das experiências (a objectiva, a moral, a estética), em princípios ou acções subjectivas universais, pelo facto de que o sujeito tem de elaborará-las por si mesmo, a fim de que se apliquem a ele. Enquanto acções, estas acções são individuais, quanto à forma e ao âmbito em que são possíveis e a que abrem, porém, são intersubjectivas e universais.

2º Para que essas experiências sejam para o sujeito, é preciso que este seja finito, que conte com limites reais e ideais, isto é, limites tanto da actividade real do eu como da actividade ideal sobre si mesma, pois a consciência exige distinção, diferença, alteridade. Tal finitude afecta não só as experiências concretas, como também o eu puro, que não é absoluto no sentido de ser o todo realiter (hen kai pan), mas apenas no sentido de ser uma acção responsável de si, livre de uma determinação causal, uma acção que, portanto, parte de si, que é originária (ursprünglich), ainda que finita. Com efeito, o sujeito transcendental de Kant tem diante de si uma coisa em si, a sua liberdade não origina o mundo, mas apenas é capaz de o transformar. O eu puro de Fichte em Iena encontra o seu limite num não-eu em parte incondicionado[4]. O Eu não é produto mas acção originária real e ideal, porém, a sua acção real encontra-se limitada por um não-eu que ele não cria. Por isso, o eu não é uma causalidade infinita, mas esforço (Streben), tensão ou tendência (Tendenz)[5], impulso (Trieb)[6]: o seu ser manifesta-se-lhe como um dever ser, como uma tarefa. É uma tarefa teórica: a de converter o não-eu em representação, ou seja, a tarefa de conhecer o mundo. E uma tarefa prática: a de transformar o não-eu de acordo com as exigências racionais do eu. Mas, dada a nossa finitude radical, que chega até à raiz do eu puro, estamos sempre a caminho, em perpétua aproximação ao ideal[7]. A experiência moral é considerada como a abertura ao modo originário de ser e a partir da qual se filosofa, pois esse modo é a liberdade. “Age, age, para isso estamos aqui.”8

3º - Essa dualidade básica entre a posição incondicionada do eu e a sua realidade efectiva limitada, entre a sua Realität (qualidade) e sua Wirklichkeit (modalidade), entre o seu ser originário e o seu ser empírico, entre o seu desejo racional e o seu mundo alcançado, essa contradição básica que o constitui faz com que o método transcendental fichteano seja, fundamentalmente, sintético, que esteja sempre na demanda de uma síntese necessária de elementos diferentes, unidos mas não confundidos, pois só assim há contraposição e consciência. Isso terá também como consequência que o originário se apresenta sob diversas formas, se bem que, como se disse, tanto Kant como Fichte privilegiam a sua manifestação moral. Vejamos algumas dessas formas, nomeadamente aquelas que estiveram implicadas na disputa.

2. deuS Como SubStânCiA ou objeCto AbSoluto

Na Crítica da razão pura, Deus aparece como a omnitudo realitatis, o ens realissimus e incondicionado, a partir do qual se podem determinar todos os outros seres finitos, “[...] assim como todas as figuras só são possíveis enquanto modos de limitar o espaço infinito”[8].

Digamo-lo de outra forma. O conhecimento objectivante destina-se a controlar a realidade do mundo, da qual dependemos, e, portanto, tece e elabora a sua trama a partir do ponto de vista da heteronomia, o mesmo é dizer, introduz o espaço do objecto num outro que o engloba e delimita, liga cada tempo objectivo com outro que o precede e o determina, explica todos os fenómenos através de uma causa que lhe dá o ser. Devido à finitude da subjectividade, já anteriormente assinalada, esta depende de outra realidade (o mundo) que ela não protagoniza, realidade que, partindo da sua própria acção originária, ela tende a dominar, justamente para satisfazer as suas necessidades, a fim de que essa dependência lhe seja positiva. Por isso, o conhecimento objectivo se estrutura de tal modo que traz à luz as condições objectivas dos fenómenos, isto é, procura averiguar de que outras realidades estes dependem e segundo que leis, com o propósito de os poder controlar e, em consequência disso, tudo o que estiver dentro do conhecimento objectivo terá de estar condicionado (bedingt) por outros fenómenos e, por conseguinte, será compreendido no modo de ser da coisa (Ding). Se pudéssemos ter uma visão completa de toda essa trama do mundo, e todos os seres se esgotassem nessa possibilidade de manipulação dos mesmos, então saberíamos perfeitamente que carta jogar, e toda a nossa dependência e finitude seriam plenamente superadas. Esse conhecimento total ou essa visão divina é, precisamente, o ideal da razão teórica, a que se questiona pela totalidade dos objectos.

Esse ideal da razão teórica tem, contudo, um grave problema: se todo o ser coubesse e se esgotasse nessa perspectiva coisificante, qualquer pretensão de liberdade ficaria também destruída e convertida em mera ilusão, incluindo a nossa acção originária, pois teríamos ficado presos nessa totalidade. Seríamos como o caçador caçado, seríamos apanhados nas mesmas redes que queríamos lançar para capturar o mundo. Mas não há perigo que tal aconteça. É impossível que esse ideal da razão se realize, porque contém em si mesmo uma contradição (uma contradição dialéctica em sentido kantiano), que reside no facto de procurar a totalidade num âmbito metodologicamente sempre aberto ao outro (outro espaço, outro tempo, outra causa) ou, dito de outro modo, tenta encontrar o incondicionado (das Unbedingte) entre os objectos, ou seja, numa pespectiva que só aceita como real o condicionado. Por conseguinte, querer encontrar Deus, o absoluto ou o transcendente por essa via resulta, em si mesmo, transcendentalmente contraditório, pois o método utilizado para essa busca torna impossível encontrar aquilo que se pretende. O que é conhecido objectivamente depende das formas a priori que o tornam possível, e essas formas objectivantes estudadas na Crítica da razão pura (espaço, tempo, esquemas, categorias, princípios), transformam-no numa realidade dependente, condicionada. A reflexão transcendental nega que seja possível demonstrar a existência de Deus, de algo real incondicionado, seguindo as linhas que tecem a objectividade, quer dizer, partindo do carácter condicionado dos objectos, como pretendeu grande parte da metafísica anterior, a metafísica não-fideísta. Deus ou o divino não é para Kant, e menos ainda para Fichte, um conceito da natureza nem surge dela, mas surge da experiência moral.

Já a pergunta mesma pelo incondicionado, isto é, pela existência e exigência da razão ou subjectividade, mostra que nem todo o ser pode ser condicionado, pois como então teria sequer surgido a pergunta? Esta terá de receber outra resposta e, em concreto, noutro âmbito, noutro modo de ser. É unicamente a partir da perspectiva objectivante que nos deparamos com a exigência do incondicionado como mera ideia da razão, à qual não pode corresponder nenhum objecto. Em consequência, nem o sujeito real incondicionado, nem o mundo como totalidade, nem a liberdade como capacidade incondicionada de desencadear uma série de fenómenos, nem Deus podem ser afirmados ou negados a partir dessas formas transcendentais objectivantes de conhecimento.

Deus não pode ser um objecto. Dessa forma, convertê-lo-íamos num fetiche. Tão-pouco poderíamos pensar que essa totalidade mecânica e objectivamente determinada poderia ocupar esse lugar, uma espécie de “Deusmáquina” ou relojoeiro cego, para o qual tende o determinismo filosófico que se quer fazer passar por científico, uma pretensão infundada. Na realidade, este não é um determinismo científico, pois nenhuma ciência ou método científico pode abordar a totalidade do real. Toda a pergunta pela totalidade é filosófica. Não há nenhuma experiência objectiva da totalidade, toda a experiência real é parcial. A totalidade é uma ideia da razão que não pode ser reificada, diznos Kant na Dialéctica transcendental da sua Crítica da razão pura. O nosso conhecimento objectivo está sempre em processo, in fieri, devido ao carácter contínuo do espaço e do tempo, e à busca incansável pela causa de qualquer fenómeno dado; defender a total determinação de todo o real significa ir além dos limites do nosso conhecimento objectivo, afirmar mais do que de facto e objectivamente se sabe, e cair no dogmatismo que toma por coisa real o que não é senão uma ideia da razão. A determinação total é apenas a ideia regulativa do projecto objectivante e científico, que orienta a busca e aponta o que ainda se desconhece, mas que permanecerá sempre um ideal irrealizável. De facto, a ciência actual tem vindo a abrir-se cada vez mais ao estatístico e ao que, em parte, é caótico. Nesse sentido, tão pouco se poderia aceitar, a partir daqui, o Deus- substância de Espinosa como totalidade determinada. “Toda a filosofia objetiva”, ensinava Fichte, em 1796,

[...] deseja um Deus objectivo no seu mundo objectivo, o mesmo é dizer, fora do eu, o ateísmo nega, correctamente, esse Deus objectivo, e o mesmo faz [a filosofia crítica]. A filosofia crítica sabe que isso não é possível, e procura-o em nós mesmos. Portanto, ela é ateísmo na opinião dessa gente que nada sabe que não tenham provado [teórica e objectivamente], e acreditam garantir a convicção humana somente por meio de provas[9].

A ideia da total determinação esquece, por último, a raiz práticopragmática do próprio projecto do saber teórico, “[...] porque todo o interesse é, ao fim e ao cabo, prático, e o interesse mesmo da razão especulativa é apenas condicionado e só fica completo no uso prático” (KpV 05: 121). Conhecemos objectivamente para não sermos dominados, mas para sermos livres, para superarmos as nossas necessidades e dependências. Mesmo o interesse que conduziu a metafísica pré-crítica à demonstração objectivo-racional de Deus, foi também a liberdade[10]. O modo de ser do objecto ou da objectividade, do condicionado, não tem de ser o único modo de ser possível, e com isso se abre caminho ao incondicionado, originário ou divino, isto é, deixa-se espaço ontológico para que outra perspectiva, outra experiência, desta vez a experiencia moral, mostre uma capacidade de ir mais além do que o conhecimento teórico no tema do real.

Nem o objecto individual, nem o objecto no seu conjunto nos proporcionam algo real incondicionado. E, no entanto, no plano teórico sobressaem dois elementos que parecem pretendê-lo: 1º O material dado, e 2º o “eu penso”. Comecemos pelo primeiro.

O sujeito é realiter finito e não é capaz de produzir o mundo ex nihilo. O conhecimento teórico é, justamente, conhecimento da realidade que não protagonizamos com o objectivo de, na medida do possível, transformar em positiva essa dependência. Por conseguinte, essa outra realidade exibe uma originariedade que nos impõe uma certa passividade. Essa passividade é assinalada por Kant através do termo “sensibilidade”, enquanto a correspondente originariedade do mundo é por ele compreendida com o termo “em si”, na expressão “a coisa em si”. Sem isto não existiria a subjectividade, pois esta não é uma substância, uma res cogitans, que pudesse existir sem mundo, mas uma acção de conhecer e transformar o mundo; ela não se conheceria a si mesma, isto é, não chegaria a ser sujeito, se não houvesse uma outra realidade da qual se distinguisse (consciência requer distinção). Que essa outra realidade deve ser sempre dada, isso é o que é expresso na categoria da “substância” e mediante o seu esquema de “permanência” na Crítica da razão pura[11]. Isto é o que significa uma “categoria” em Kant, a saber, uma exigência de compreensão do mundo e de realização da subjectividade. Poder-se-iam não ver cumpridas tais exigências, mas então não haveria consciência nem tão-pouco, sujeito. O mundo mostra, em consequência, uma originariedade ou realidade em si que não pode ser inventada pelo sujeito, mas somente interpretada e transformada através da sua força e liberdade finitas. Se Kant pensou essa originariedade do mundo a partir do ponto de vista teórico, Fichte coloca-a antes na experiência da acção real, quando o eu encontra uma limitação real no não-eu, uma limitação que ele não gera realiter, mas sim, idealiter, porque tem de pô-la no seu saber, elaborá-la e interpretá-la a partir de si, com base em sua própria espontaneidade para que ele se conheça (como acontecia também com o espaço e o tempo em Kant, enquanto formas a priori com as quais o sujeito se prepara para a recepção do outro, e com a imaginação produtiva). Esse não-eu é incondicionado quanto à forma, isto é, quanto ao facto de que se dá[12], embora não incondicionado no que respeita ao seu conteúdo, pois ele tem de ser interpretado e transformado segundo as exigências racionais da subjectividade.

O que podemos pensar dessa materialidade, do que é dado[13]? A partir da reflexão transcendental, ao ter em conta a finitude da subjectividade racional, ela apresenta-se nos, certamente, como algo originário, mas não será o único modo originário de ser, como veremos, e contra o que pode pensar o materialismo. Tão-pouco nos vem dela a orientação última no pensar e no agir[14] e, por isso, não é considerada nem por Kant nem por Fichte como algo que devamos ter em conta, ao pensar o divino. Para Fichte, ela não desempenharia outro papel, senão o de ser apenas um limite necessário para a consciência e a sensibilização do eu, pois a essência última das coisas é o seu destino moral. “O nosso mundo é o material do nosso dever tornado sensível; isto é o propriamente real nas coisas, a matéria fundamental de todos os fenómenos”, afirma Fichte no seu artigo “Sobre o Fundamento da nossa Crença num Governo Divino do Mundo” (GA I/5, 353). Da perspectiva da consciência comum, na qual se engloba também a ciência, o ser do mundo é algo absoluto, mas, do ponto de vista transcendental, todo o seu conteúdo é reflexo da nossa própria actividade (GA I/5, 349), e dado que não é em si nada, “[...] não se pode perguntar pelo seu fundamento; não se pode admitir nada fora dele para o explicar” (GA I/5, 349-350). Assim, essas limitações são incompreensíveis (unbegreiflich) quanto ao seu surgimento (a hipótese do não-eu), porém, isso não nos deve inquietar, pois o seu conteúdo moral é claro, a saber, o de indicar a cada um o seu lugar determinado na ordem moral das coisas[15].

Schelling, nessa época, e a partir da sua Filosofia da Natureza, ensaia a compreensão desses limites e de toda a natureza como produtos esquecidos do eu, como seu passado transcendental, mas de um eu que deixa de ser finito para se transformar num hen kai pan. Não obstante, ainda que permaneçamos no ponto de vista transcendental, teríamos de reconhecer um certo ser originário à materialidade dada, e não afastar o problema, considerando-o, sem mais, como algo “incomprensível”. Kant poderia pensar que o mundo do em si seria uma criação divina, tal como exige o seu teísmo moral e, por isso, noúmenos para Deus. Todavia, veremos as dificuldades a que nos conduz esse conceito de Deus. Sem chegar à posição do materialismo, que comprime na matéria a pluralidade de facetas do originário, temos de aceitar aqui, pelo menos, um modo de ser do divino, uma espécie, se se quiser, de deus menor. Mas temos de referir que a faceta do divino que aqui se manifesta é aquela que a reflexão transcendental não soube reconhecer historicamente em toda a sua dimensão. A polémica sobre o ateísmo não teve, portanto, lugar nesse âmbito concreto, pois também para os teístas cristãos o mundo é simples produto, sem consistência própria frente à omnipotência de Deus.

3. deuS Como Sujeito. PenSAmento e deSejo

Apresentar Deus como pensamento tem uma larga tradição na filosofia. Poderíamos fazer remontar essa história ao nous de Anaxágoras, infinito, cognoscente, ordenador, puro, autónomo17, e ao Deus de Aristóteles, que é pensamento que se pensa a si mesmo, onde coincidem o acto da inteligência e o seu objecto, já que nisso consiste a sua perfeição e o seu prazer18. Esta seria também, a natureza da intuição intelectual na qual, segundo Fichte, o eu se constitui com a diferença decisiva da sua finitude pois, enquanto o Deus de Aristóteles só se ocupa de si e se basta a si mesmo, o eu de Fichte careceria de intuição intelectual, se esta não fosse acompanhada de uma intuição empírica conhecida através do sentimento de limitação e do desejo] que só pode ser explicado totalmente por algo exterior a nós” (FICHTE, Fundamento de toda a doutrina da ciência, § 6, GA I/2, 416).

17    “O intelecto (nous) é infinito, autónomo e não está misturado com coisa alguma, mas está somente em si mesmo. […] Pois é a mais subtil e mais pura de todas as coisas, e conta com pleno conhecimento e tem a maior força. E quantas coisas possuem alma, as maiores e as mais pequenas, a todas domina o intelecto. E quantas coisas estavam a ponto de ser e quantas eram, que agora não são, e quantas agora não são e quantas serão, a todas o intelecto ordenou cosmicamente” (DK 59 B 12).

18    ARISTÓTELES, Metafísica, XII 7, 1072 b 18-24, e 9, 1074 b 34-35.

do mundo frente à qual se distinguisse[16], compreendendo-se, desse modo, que não se trata de uma acção ou realidade transcendente ao mundo, mas sim, transcendental.

Entretanto, essa acção de pensar ou de tomar consciência de si, isto é, de ser sujeito ou acção originária subjectiva, conta com diversos níveis ou manifestações, que abrem horizontes de experiências próprios, e que poderíamos talvez agrupar em cinco áreas: 1º o “eu penso” objectivante ou teórico, 2º o desejo ou o “eu ajo” pragmático e técnico, 3º a razão prática ou o “eu ajo” moral e livre, 4º a natura naturans ou natureza protagonizada e autogeradora, 5º a imaginação criativa, que se manifesta, por exemplo, na arte. Todos esses âmbitos podem ser considerados como momentos da subjectividade que se configura a si mesma ou, pelo menos, eu proporia que assim fosse, mas cada um deles apresenta uma face do originário, que se conjuga, em consequência, de diversas maneiras, como estamos comprovando. É claro que, nessa interpretação do divino a partir do ponto de vista transcendental, não me estou a limitar nem à letra nem aos sistemas de Kant ou de Fichte, mas me refiro antes ao espaço do pensar que eles abrem, o qual, como toda a obra criativa, pode abarcar mais implicações do que aquelas que os seus criadores puderam desenvolver. Esse foi também o propósito de Kant, quando retomou a ideia platónica na Dialéctica da Crítica da Razão Pura, ou o de Fichte, quando desenvolveu à sua maneira a proposta kantiana, o propósito de compreender a obra de um autor melhor do que ele mesmo. Desse modo, pretendo apresentar o tema na sua maior amplitude e mostrar, assim, os limites de Kant e de Fichte[17]. Por falta de espaço terei, contudo, de deixar os dois últimos aspectos (o 4º e o 5º) para outra ocasião, o que não representa aqui, aliás, qualquer perda, uma vez que estes não exerceram qualquer influência na polémica sobre o ateísmo[18].

Comecemos com o “eu penso” teórico ou objectivante, o que Kant denomina de Apercepção transcendental, que é o polo subjectivo, contraposto à materialiadde originária, tratada no parágrafo anterior. Sigamos, também aqui, o fio condutor da pergunta pelo originário. Para Kant, essa autoconsciência transcendental é, sem dúvida alguma, “[...] um acto de espontaneidade” (KrV B 132), não algo passivo pertencente à sensibilidade, mas uma apercepção pura e originária, graças à qual o conhecer sabe primarimariamente de si e, em virtude desse saber-se, constitui-se como sujeito e consciência. Esse imediato saber de si é o que Fichte denomina também (haverá outro lado moral) de “intuição intelectual”. A “intuição” relaciona-se com a imediatez desse saber de si, e o termo “intelectual” contrapõe-se ao sensível ou ao passivo, e indica que esse saber é activo, pois é a acção na qual o eu se constitui como tal, como eu. Observe- se que nem essa imediatez nem essa constituição é monadológica, fechada, sem mundo, como se o eu fosse uma substância, uma res transcendente, mas é antes uma acção transcendental que só sabe de si na medida em que se abre ao outro e se distingue dele, isto é, uma acção que só é consciente de si no acto mesmo de conhecer e determinar objectivamente o mundo (KrV B 158-159).

Ora, essa espontaneidade do “eu penso” é puramente ideal ou idealizante, não real, pois todo o conteúdo real tem que lhe chegar como dado. Que isso é assim é o que a consciência reflexiva vem a compreender como uma diferença modal, ou seja, é o que se plasma na diferença entre possibilidade e realidade efectiva (Wirklichkeit) enquanto categorias modais: esse simples eu ideal, as suas acções ideais ou meras formas a priori identificam-se com a categoria da possibilidade e a implementação dessa possibilidade mediante a outra realidade, é o que está contido na categoria da existência ou da realidade efectiva. A ação ideal do eu tem como objectivo conhecer a outra realidade, aquela que ele não protagoniza. Por isso, querer partir dele para construir uma psicologia racional que tenha como objecto um eu real, como substância ou alma simples e imortal, implica, necessariamente, incorrer em paralogismos, em falsas argumentações, como nos mostra Kant[19]. “Na unidade sintética da apercepção originária tenho consciência, não de como me manifesto [eu real empírico] nem de como sou em mim mesmo [eu real nouménico], mas simplesmente de que sou” (KrV B157).

O eu real aparecerá, propriamente, na acção moral, e Fichte diz-nos, no § 6 do seu Fundamento de toda a doutrina da ciência, que a realidade é uma questão da filosofia prática. Este eu real é, ao mesmo tempo, acção real e acção ideal, ou seja, uma realidade protagonizada, que sabe de si, e esse saber de si é também a intuição intelectual. Esse eu real é, no entanto, finito, e encontra uma limitação real à sua acção; mas a sua actividade ideal é, enquanto tal, ilimitada e não limitável por nenhuma outra realidade, mas apenas por si mesma, por meio da autolimitação reflexiva. O eu real também terá de de se autolimitar e, aí, não só em virtude da dor ou da própria reflexão prudente, mas também por imperativo da lei moral, que impõe ao eu o limite, já assinalado por Kant, de não tratar os outros como simples meios[20]. Mas, ainda que a acção real do eu esteja limitada, a acção ideal do mesmo pode ir sempre além do limite, devido ao seu carácter ideal[21], e reflectir sobre ele, objectivá-lo, conhecer a outra realidade, abrir um campo de espontaneidade própria para elaborar o conhecimento do mundo, um âmbito que denominamos conhecimento teórico. Não só pode, como deve fazê-lo, a fim de que a realidade do eu racional encontre os caminhos necessários para ir vencendo essas limitações e realizando o seu próprio ser; essa é a raiz moral do projecto

teórico, da qual já falámos anteriormente.

O “eu penso” é, portanto, uma acção ideal espontânea, que está apoiada ontologicamente no eu real, um eu real que é, simultaneamente, acção real e ideal; o “eu penso” é a mesma acção ideal do eu real, porém, indo mais além da limitação real em virtude da autonomia da reflexão e por suas próprias leis. Por conseguinte, no “eu penso” manifesta-se-nos, certamente, um modo de acção originária, porém meramente ideal ou idealizante, que não pode bastar-se a si mesma, ou seja, que não oferece a si mesma um apoio ontológico real, mas que necessita da sua identificação com o eu real-ideal. É, pois, uma acção espontânea, porém, é ontologicamente dependente, e mostra, portanto, na melhor das hipóteses, apenas um lado, no caso de não se deixar seduzir pretendendo alcançar a realidade em si por si mesma (metafísica dogmática, na terminologia kantiana, ou o Deus de Aristóteles). Esta é uma espada de dois gumes e, no entanto, essa cisão do eu consigo mesmo, do eu meramente ideal em relação ao eu real-ideal, é necessária para que surja a consciência reflexiva (pela diferença expressamente tematizada entre possibilidade e realidade) e necessária, até mesmo para a acção moral propriamente dita, isto é, para a consciência da liberdade e para lhe abrir a possibilidade de se acolher na máxima ou, por medo e por preguiça, de se negar a si mesma. Na realidade, na acção moral real, essa acção ideal separada é, propriamente, a consciência racional do dever (imperativo categórico) e a acção que configura os fins a realizar, enquanto o eu real é, ao mesmo tempo, ideal-real, real também no duplo sentido de transcendental e empírico, assim como o executante desses fins. Só em virtude desse desdobramento, porque primeiro pensamos o que queremos e depois o levamos a cabo, é que tomamos consciência de que somos nós que realizamos aquela acção real, o mesmo é dizer, que tomamos consciência de que somos reais, activos e livres[22]. Todos os elementos são necessários na síntese que constitui a subjectividade: não haveria conhecimento do mundo sem a acção prática que lhe confere interesse e objectivos, mas tão-pouco o inverso: não seria possível uma acção prática na pura cegueira. Logo, a actividade ideal cindida é também necessária, aponta para uma espontaneidade, para o originário, que veremos aparecer de forma mais completa no prático ou moral. Aqui teríamos que colocar todas as formas de compreensão, as quais são acompanhadas pelo prazer no pensar e no compreender, como as marcas do divino, presentes igualmente na disciplina que essa mesma acção se impõe muitas vezes para alcançar esses frutos. Tal trabalho criativo de interpretação do mundo é uma criação de sentido e de orientação, que proporciona em si mesmo um vasto campo de satisfação, ganhos, possibilidades de compartilhar, sentimento das próprias forças etc.

Ora, se esse “eu penso”, ou saber, pretende fazer-se passar pela única realidade, então sim, chegámos ao nihilismo, afirma Fichte, em A Destinação do homem, de 1800 (Segundo Livro), contestando com isso a acusação que Jacobi lhe lançava, na sua Carta aberta, porque o saber puramente teórico e objectivante transforma todo o ser em imagem, em representação, em sonho sem vida, em sombras de realidade, em nada (GA I/6, 247-252).

Isso é tudo quanto pode produzir essa idealidade ou acção ideal. O que surge pelo saber e a partir do saber, é apenas um saber. Mas todo o saber é unicamente cópia (Abbildung), e sempre se exigirá nele algo que corresponda à imagem. Esta exigência não poderá ser satisfeita por nenhum saber [por nenhuma acção meramente ideal]; e um sistema do saber é, necessariamente, um sistema de meras imagens, sem nenhuma realidade, significado ou finalidade. (Zweck). (GA I/6, 252).

Não será aqui, portanto, que Fichte e Kant procurarão o divino ou Deus, onde, quando muito, só poderíamos encontrar a sua ideia.

O segundo âmbito da acção subjectiva, denominámo-lo desejo ou eu pragmático e técnico. Passámos de um eu meramente ideal a um eu que age na realidade, guiando-se através de um conceito, o qual expressa o seu fim, aquilo que quer alcançar e é, por conseguinte, um eu que se sabe acção real. De acordo com Kant, “[...] a faculdade de desejar é a faculdade de […um] ser para se converter, por meio das suas representações, na causa da realidade dos objectos dessas representações”[23]. Nessa capacidade do eu reflexivo e actuante, Kant distingue dois níveis: a faculdade de desejar inferior e a superior (KpV 05: 22, 24-25). Nesse ponto fixar-nos-emos na primeira, a inferior, que Kant denomina também “inclinações” (Neigungen). Aqui a faculdade está determinada pelo objecto que deve satisfazer as suas necessidades. Ela expressa a nossa dependência do mundo e, portanto, a nossa finitude, não a nossa originariedade. Isto é assim, quer se trate de um objecto do mundo, quer se trate de Deus[24].

Em Fichte, essa faculdade toma a designação de “desejo”. O impulso natural do eu objectivo, o impulso para a conservação de todo o corpo orgânico, chega à consciência do eu sob a forma de um sentimento ou sensação indeterminada de uma necessidade, que Fichte denomina desejo[25]. Quando (ess)a ânsia é determinada pelo seu objecto, então surge o desejo29, que tem como objecto coisas da natureza. Assim que se tenha alcançado a consciência, é-se livre de ceder ou não ao impulso natural, mas tal capacidade é ainda uma liberdade meramente formal, pois não compreendeu ainda que ela é o seu fim último ou objecto e, assim, o eu continua preso ao impulso natural como o único conteúdo que conhece. Assim, o eu apenas procura a felicidade, como acontece no espírito subjectivo, segundo Hegel. Mas, aqui, Fichte concede mais iniciativa ao desejo do que Kant às inclinações. É o desejo que determina o objecto e não o contrário[26]. Também Kant, em A Religião nos limites da simples razão I, 1,tratou de disposições naturais no homem que o impelem à conservação de si e da espécie, assim como à conservação da comunidade etc. Se partirmos do seu conceito de ser orgânico, desenvolvido nos §§ 64-66 da sua terceira Crítica, não poderíamos tirar outra conclusão, porque aí é a ideia de totalidade como indivíduo e espécie que guia todo o processo.

Contudo, se do lado da natureza isso nos pode conduzir ao conceito de natura naturans, do lado do eu consciente e reflexivo, onde agora estamos, podemos afirmar que no desejo se expressa não tanto a originariedade do sujeito, quanto propriamente a sua finitude e dependência. Ele não é o elemento pelo qual ingressamos no âmbito moral; com ele, unido à razão prática, acedemos, na melhor das hipóteses, ao campo da prudência, dos imperativos hipotéticos. É certo que a prudência implica grande reflexão e criatividade, mas não se deixa guiar pelo conceito de liberdade, senão pelos conceitos do mundo[27], atende somente ao cálculo do que está em seu poder e não excede as suas forças físicas, psíquicas ou intelectuais.

Não obstante, poderíamos descobrir uma certa originariedade no desejo. Nele se mostra já a consciência de que todos os outros podem ser utilizados para satisfazer o sujeito, de que o ser vivo se põe como fim enquanto reduz o outro, ontologicamente, a simples meio para as suas necessidades. Isso acontece também se se trata de Deus, se se tem como meta alcançar um Objecto infinito e imutável[28] que satisfaria todos os nossos desejos, que nos salvaria de toda a necessidade e finitude; essa é, por exemplo, a ideia cristã do “céu”. Essa petição de (um) objecto absoluto, incondicionado, só ocorre quando o desejo se formula no âmbito universal da razão, o mesmo é dizer, nos seres racionais, e procura-se, então, a solução total. Mas, aqui, o desejo encontra a sua dialéctica particular: o Objecto perseguido deve ser absoluto mas, ao mesmo tempo, é posto para satisfazer o desejo, é posto como útil, isto é, como relativo. Assim, ou o

Objecto-Deus não é absoluto, mas algo ao nosso serviço, condicionado ao nosso desejo, ou somos meros instrumentos dele, e isso anularia a nossa originariedade e a nossa liberdade. Um objecto absoluto solucionaria plenamente a finitude da subjectividade mas, em consequência, eliminaria a própria subjectividade, pois diante dele só restaria (a esta) dissolver-se, como o atman no brahman. Uma vez mais, vemos que o divino não pode aparecer na forma de ser do objecto, nem do saber teórico, nem do desejo, intimamente conectados entre si. Nenhum objecto é absoluto, senão necessariamente condicionado, como vimos anteriormente. Porém, se, por hipótese, existisse um objecto absoluto que satisfizesse inteiramente o desejo, ele nos anularia e deixaríamos de agir, já que ele nos proporcionaria tudo, seríamos meramente passivos, transformar-nos-ia em marionetas, como afirma o próprio Kant[29]. Essa dialéctica do desejo em busca do seu Objecto total toma a forma de paixão (Leidenschaft), da que só se pode sair, 1º mediante a reflexão racional da prudência, que tem em conta a finitude, 2º descobrindo a idealidade transcendental do desejo que anula todo o objecto incondicionado e, 3º aceitando o verdadeiro modo de ser da liberdade que se manifesta na lei moral e na reflexão transcendental[30].

Por conseguinte, há uma certa consciência de originariedade no desejo, mas é uma consciência que não sabe ainda distinguir o que pode e o que deve ser usado como puro meio do que não pode; ele não é, portanto, uma consciência plena do originário. Só chega a ser uma sugestão, pois o mesmo esforço, prazer, trabalho e criatividade que ele introduz são, sem dúvida, vestígio do divino. O sujeito põe-se como o originário no desejo, mas ainda não compreendeu essa originariedade e busca o seu ser entre os objectos. Isso é o que engendra a dialéctica do desejo, que pode vir a manifestar-se na paixão destruidora. Não é uma consciência clara e, no entanto, não deixa de ser um momento igualmente necessário; não existiria vida nem consciência sem desejo e sem as suas acções, tão-pouco sem a dor e sem o prazer que ele produz. Querer anular as inclinações representaria para Kant uma loucura, pois seria ir contra uma lei natural, e “[...] seria prejudicial e censurável”[31]; “[...] primeiramente tenho que estar certo de que não ajo contra o meu dever, só depois me será permitido olhar pela felicidade, tanto quanto seja conciliável com o meu estado moralmente (e não fisicamente) bom”[32]. Essa felicidade faz parte do bem supremo, embora esteja subordinada à virtude ou à liberdade. Fichte vai ainda mais longe: o impulso natural ou o desejo faz parte integrante do impulso moral e, sem ele, este não conseguiria concretizar a sua tarefa, pois o impulso moral é a união sintética do natural e do puro:

O impulso moral é um impulso misto, como vimos. Ele recebe do impulso natural o material para o qual se dirige, isto é, o impulso natural, unido sinteticamente com ele e fundido com ele num só, dirige-se à mesma acção que ele vai, pelo menos em parte. Mas a forma recebe-a, exclusivamente, do impulso puro. Ele é absoluto como o impulso puro, e exige algo absolutamente sem nenhum fim exterior a ele mesmo. (FICHTE, Ética § 12; GA I/5, 143).

Isto conduz-nos à etapa seguinte.

4.- o teíSmo morAl de KAnt

O “eu penso” carecia de realidade, porém, o “eu desejo” expressava melhor o lado finito da sua realidade, ou melhor, prestava atenção sobretudo à sua finitude, de maneira que entendia a sua liberdade ou originalidade como a maior posse possível de objectos, físicos e sociais, de honras e de dinheiro, sexuais e de poder etc[33]. A consciência da originalidade do sujeito encontra-se, propriamente, na consciência da sua liberdade, que para Kant e para Fichte em Iena, reside na consciência moral: idealismo ético.

A razão prática ou “eu ajo” moral e livre é o terceiro e o último âmbito da subjectividade que temos de levar em conta aqui. Nele aparecerá tanto o teísmo moral de Kant como o conceito fichteano do divino e de ordo ordinans, ou seja, é precisamente nesse terreno onde se desenvolve a Querela do ateísmo. Para Fichte, este é o único terreno onde ela deve ter lugar, o único que nos poderia levar à pergunta pelo originário e, portanto, também à questão de como pensar Deus. Ao assinalar outros aspectos do divino, quis justamente mostrar que não é assim, nem mesmo a partir da reflexão transcendental, ainda que, certamente, este seja o momento mais importante, aquele que fornece o primeiro análogo do ser, como diriam os escolásticos e, portanto, o que decide, em grande parte, do destino de todos os outros.

Na acção livre moral, encontramos um sujeito real-ideal originário e consciente de si, por conseguinte, responsável, agente, uma acção real que representa, para Kant e para Fichte em Iena, o ser originário, o primeiro domínio da realidade, a porta de entrada para o metafísico. “Só o conceito de liberdade permite que não tenhamos de sair fora de nós mesmos a fim de encontrar, para o condicionado e para o sensível, o incondicionado e o inteligível” (KpV 05: 105), pois o encontramos na nossa realidade originária ou em si[34]. Aqui encontramos “[...] a grande abertura, que em nós ocorre, através da razão pura prática, graças à lei moral, a saber, a abertura a um mundo inteligível mediante a realização do conceito, de outra forma transcendente [para a razão teórica], da liberdade” (KpV 05: 94). Para alcançar essa afirmação ontológica, Kant procedeu a um duplo movimento: na primeira Crítica limitou ontologicamente o determinismo objectivo, enquanto, na segunda Crítica, parte da experiência moral, que postula a liberdade como sua ratio essendi.

É importante notar que esse eu puro real não é meramente individual, mas é ao mesmo tempo comunitário, e só é possível nessa intersubjectividade. “O meu eu absoluto, escreve Fichte a Jacobi, não é claramente o indivíduo […] mas o indivíduo deve ser deduzido do eu absoluto”[35], assim como a comunidade. A razão, tanto teórica como prática, é, enquanto acto e forma, essencialmente e simultaneamente individual e comunitária. Não seria possível se os indivíduos não pensassem por si mesmos, mas tão-puco seria possível em sujeitos isolados, sem comunicação, sem conceitos nem linguagem. Na Crítica da razão pura, Kant propõe-se construir a estrutura a priori de um mundo objectivo compartilhado entre todos, do qual se pode fazer ciência, contra o apenas acessível mundo privado dos iluminados e videntes, como o de Schwedenborg, aos eleitos.[36] E o mesmo sucede no âmbito da razão prática, que abre a todos os seres racionais o reino dos fins. Assim o vemos nas três formulações do imperativo categórico que aparecem na Fundamentação da metafísica dos costumes. A primeira assinala a universalidade e visa não apenas a todos os actos de um sujeito, mas também que a sua validade se estenda a todos os sujeitos racionais, incluindo Deus ou outros que possam vir a ser conhecidos no futuro. A segunda formulação estabelece o respeito pelos outros como momento constitutivo da própria liberdade, da realização do meu ser originário, o que seria impossível sem a presença activa dos outros seres racionais. A terceira institui uma legislação universal procedente do acordo de todos os sujeitos racionais enquanto tais. Para esse âmbito do reino dos espíritos ou dos seres racionais aponta o divino e o ordo ordinans de Fichte. Também a terceira Crítica mostra que a subjectividade não pode prescindir nem da espontaneidade criativa do indivíduo, nem do âmbito da intersubjectividade em que aquela é possível. Na realidade, o juízo estético marca um sensus communis astheticus que o torna possível (KU 05: §§ 20, 40) e uma actividade criativa do génio artístico que o forma, amplia e modifica, e o juízo teleológico encarrega-se da comunidade dos seres vivos na espécie natural, e das acções livres na história da humanidade como espécie racional.

A polémica não rebentou, porém, nesse ponto, mas no outro extremo do arco. A liberdade é a porta de entrada, o alfa do mundo inteligível mas, para Kant, o outro polo que configura o âmbito moral é o bem supremo, e para este não bastaria a liberdade descoberta, mas Deus deve ser postulado, entendido ao modo do teísmo, assim como a imortalidade. Tão-pouco aqui houve polémica, mas o detonador é accionado quando Fichte faz chocar ambos os extremos, porque entende de outro modo a felicidade e o bem supremo e, em consequência, igualmente o modo de ser do divino. A minha tese é a de que Fichte argumenta aqui de uma maneira mais consequente do que Kant com o modo transcendental de filosofar. Comecemos com o teísmo moral kantiano.

A razão prática, como consciência de liberdade, não só fornece a consciência que deve guiar, em última instância, as nossas acções, como também nos indica o fim último que estas devem perseguir, o bem supremo para o qual devem tender. Mas, o que posso eu esperar das forças de uma subjectividade racional finita como a nossa, nessa tarefa de realizar o bem supremo no mundo? Para abordar tal questão, temos de distinguir dois elementos no fim último da razão moral: a virtude ou liberdade, e a felicidade. O primeiro momento corresponde ao ser incondicionado, ou seja, à acção livre; ela é o alfa e a condição suprema do sentido último da nossa realidade: a finalidade do ser livre é realizar a sua liberdade, pois o seu ser é o seu dever ser, uma acção originária que tem de ser realizada progressivamente por causa da sua finitude e que, portanto, se apresenta como fim moral (Endzweck) de si mesma, isto é, não pode ser tratada como um simples meio para outra coisa sem cometer um erro ontológico. Mas isso não bastaria para um sujeito racional que é, ao mesmo tempo, finito e dependente do mundo, porque não abrangeria as expectativas da sua faculdade de desejar inferior, a sua necessidade de felicidade e, na ausência deste último, o homem seria livre, mas desgraçado. Pode ser esse o nosso destino, o que podemos esperar? Não, diz Kant, isso iria contra o desejo de um ser racional moral. Temos, portanto, dois elementos, a liberdade e a felicidade, mas a primeira se divide, por seu lado, em outros dois aspectos: o interno ou a moralidade e o externo ou a legalidade[37]. Percorramos brevemente esses três caminhos (A, B e C) para saber se, no final destes, encontramos Deus.

A/ A realização externa do reino da liberdade não é uma tarefa menor, pois está totalmente fora do alcance de um indivíduo, e cai sobre os ombros de toda a humanidade, não só da presente, como também sobre a humanidade passada e a futura, num processo possivelmente interminável. “Este problema é, ao mesmo tempo, o mais difícil e o que mais tarde será resolvido pelo género humano”, uma vez que é necessária uma autoridade constituída por homens que sejam, incontestavelmente, justos por si mesmos, mas “[...] o homem é feito de uma madeira tão torcida, que nada de verdadeiramente direito poderá fazer-se dele”; por isso, “a solução perfeita é impossível. [...] A natureza apenas nos impõe a aproximação a essa ideia”[38]. Esta consiste na objectivação de um estado legal entre os homens, de uma constituição racional jurídica entre eles, tanto em cada um dos Estados, como na relação de todos eles entre si, constituição que torne possível a liberdade externa de cada um num mundo justo e pacífico. Essa objectivação da liberdade em leis e instituições reais requer um longo processo temporal colectivo que denominamos história.

Mostra-se aí a mão de Deus, conduzindo a história humana? Kant fala de uma natureza que, para desenvolver no homem todas as suas capacidades, introduziu-o num mundo mais hostil, que lhe exige esforço e trabalho contínuo, e a isto acrescentou ainda um carácter pouco sociável nos homens, ao mesmo tempo em que precisam uns dos outros, ou seja, dotou-o de uma “insociável sociabilidade”, o que provoca uma luta perpétua e um antagonismo inevitável entre eles. Daí nasce todo o tipo de males naturais e sociais. Porém, com isso obriga o homem a dar o melhor de si. Desse esforço sairam resultados tão importantes como as ciências e as técnicas de domínio da natureza para resolver a escassez natural, assim como a necessidade prudente de se organizar em leis e instituições, que deverão ser racionais e justas se o homem quiser evitar, finalmente, a dor e os desastres produzidos pelos conflitos humanos e pelas guerras. No § 83 da Crítica do juízo, acabamos por compreender que, por “natureza”, a que guiaria a história da humanidade através de um plano oculto, devemos entender aqui, na realidade, um princípio regulativo do juízo teleológico, um princípio de interpretação necessário para pôr ordem e sentido no caos das acções humanas, não um princípio real nem um Deus providente, ou um Espírito objectivo que se revelasse finalmente como o Espírito absoluto hegeliano. Além disso, diz-nos: “[...] a natureza quis que o homem arranque inteiramente de si mesmo tudo o que ultrapassa a ordenação mecânica, e que não participe de outra felicidade ou perfeição senão daquela que ele cria para si, livre de instinto, através da razão”[39]. A história é feita por homens racionais que, conduzidos também pelas suas paixões e antagonismos, se veem obrigados a tirar de si mais sabedoria do que aquela que, ao princípio, acreditavam ser capazes, por meio do esforço, da criatividade e da prudência, mas também graças à reflexão moral. Por conseguinte, aqui se manifestaria um ordo ordinans activo e transcendental, mas não transcendente ao homem porque, nessa questão, em definitivo, os homens têm de lidar unicamente consigo mesmos[40].

B/ O aspecto interno da liberdade é a moralidade. Esta exige não só que a acção externa seja conforme à lei moral (legalidade), como implica também a intenção do agente de realizar essa acção com vista à liberdade mesma, por respeito a ela, e não por mero cálculo prudente, ou seja, a boa vontade[41]. Pois bem, aqui em princípio a liberdade do indivíduo depende somente de si mesma, a ela deve a sua própria realidade, ainda que fracasse o propósito da sua acção exterior. A boa vontade é suficiente para julgar a sua acção moral, e isso está nas mãos de todos os seres racionais; por isso, a boa vontade é uma responsabilidade insubstituível de cada um. Não obstante, é um acto bem difícil, não só porque é necessário vencer todo o medo e toda a preguiça frente às inclinações, mas também porque o primeiro acto da liberdade tende, geralmente, para a escravidão (de si mesmo ou, sobretudo, do outro), a não compreender nem respeitar o seu verdadeiro modo de ser. Esse mal moral primeiro engendra então os seus interesses, e alimenta a sua força em nós mesmos, no nosso acto de identificação com ele. Para o vencer, é necessária uma revolução interior do indivíduo, que ele tem de realizar a partir de si como acto supremo da sua liberdade que consiste no reconhecimento e aceitação plena do seu modo de ser no pensar e no agir[42]. Nesse sentido, não há progresso da humanidade, mas a empresa moral começa a partir do zero em cada uma das pessoas humanas.

Não há progresso da humanidade, mas sim no indivíduo. Poucos alcançam nesta vida essa revolução interior, pensa Kant[43], e ainda que a alcancem, terão que lidar com os interesses e inércia engendrados pelo mal. O processo de realização plena da virtude na vontade e nas acções é, de si, interminável, pois nenhum ser finito pode chegar à santidade divina, mas permanece sempre no estado de virtude e esforço; só nos resta aproximarmonos continuamente ao ideal até ao infinito[44]. Kant postula aqui, na Dialéctica (ponto IV) da Crítica da razão prática, a imortalidade do indivíduo, a fim de lhe conceder o tempo indefinido necessário para cumprir com essa exigência iniludível da razão moral, de chegar à plena adequação da sua vontade ou intenção (Gesinnung) com a lei moral (KpV 05: 122-124). Os problemas nos quais se vê envolvida, no entanto, essa solução kantiana, retirada da sua cultura cristã, mas não suficientemente elaborada a partir do método transcendental são, no meu entender, insolúveis, e poderíamos agrupá- los em três, que passo apenas a enumerar: 1º a temporalização do numénico, do que se pensava como sendo não temporal, pois, segundo a primeira Crítica, o tempo e o espaço valeriam somente para o fenoménico, e agora estende-se, pelo menos o tempo, também ao que se situa fora do mundo[45]; 2º coisificação do eu, que deixa de ser acção transcendental para se tornar numa substância transcendente ao mundo, ao não aceitar a radical finitude necessária para a liberdade[46]; 3º apresentar uma solução que não resolve o problema, mas que o adia eternamente. Todavia, independentemente do que possamos pensar sobre a possibilidade da dita imortalidade individual da alma, não há no texto kantiano nenhuma indicação de que seja necessária a existência de Deus (o nosso tema) para garantir essa imortalidade. Embora alguns pensassem que o milagre de conferir imortalidade é exclusivo de Deus, Kant apresenta a imortalidade como mero postulado da razão prática. O que poderia ser afirmado, embora Kant não o faça, é que o postulado de Deus precisa do da imortalidade. Deus necessita dela para poder fazer justiça, porque salta à vista que neste mundo nem sequer a sua omnipotência omnisciente e bondosa a alcança; Ele parece igualmente necessitar de ter mais tempo do que aquele que lhe oferece a nossa curta vida, tanto individual como comunitária, e outras condições. Fichte, pelo contrário, pensa antes que a necessidade de imortalidade se encontra no homem mesmo, pois sem ela este não chegaria a ser em plenitude, a realidade da mesma depende de Deus[47].

Ora, não é possível qualquer acto racional sem uma comunidade de seres racionais. Tão-pouco é possível esse acto sintéctico de autoidentificação real consigo mesmo, com a própria realidade radical, um acto que se chama virtude. A subjectividade é sempre, simultaneamente, uma tarefa individual e intersubjectiva, e a moral kantiana, partindo do acto responsável do indivíduo livre, adquire o seu verdadeiro sentido no âmbito de um reino de fins ou comunidade de seres racionais. Aqui, no acto moral, podemos encontrar essa intersubjectividade num duplo processo. O primeiro consistiria na busca do melhor modo de educação, um tema que Rousseau colocou, de forma poderosa, em cena[48]. No final da segunda Crítica, Kant esboça “[...] as máximas mais gerais da doutrina do método de uma educação e de uma prática morais” (KpV 05: 161), onde sobressai a demonstração de exemplos de conduta moral pura53. Mas esse é também um assunto dos homens, da sua razão prática, onde não não é necessária a acção pessoal de um Deus.

O segundo processo assinala a necessária e progressiva transformação das igrejas históricas, cuja máxima realização se encontra, segundo Kant, em Cristo e no cristianismo[49][50], na religião racional universal, ou igreja invisível ou corpus mysticum, fundada numa mera fé racional, cujo conteúdo viria a coincidir propriamente com as exigências morais, mas tomados em comunidade, para o estabelecimento gradual do reino de Deus ou da virtude sobre a terra, porque tudo o que Deus pede ao homem é uma conduta moralmente boa (Religion 06: 103-105). Se o mal moral cria entre os homens as más relações geradas pela “[...] inveja, a ânsia de domínio, a cobiça e as inclinações hostis” (Religion 06: 93-94), é necessário combater essa fonte de desordem estabelecendo uma união entre os homens, inteiramente livre e sem hierarquia, apenas sob as leis morais, uma comunidade ética, onde todos se ajudem mutuamente no tema da virtude. Nessa comunidade, os deveres éticos aparecerão não só como tais, mas também como mandamentos de Deus, sendo essa segunda consideração a que nos conduz da ética à religião[51]. Mas, essa segunda consideração acrescentaria alguma coisa à moralidade? E se acrescenta algo, não será, justamente, a negação da autonomia da consciência moral, para voltar de novo a uma moral heterónoma, fazendo surgir a moral noutra consciência situada para além da mesma consciência que a liberdade tem do seu próprio modo de ser? Portanto, eu diria que, na realidade, do ponto de vista transcendental, não poderiamos entender esse Deus da religião racional pura de outro modo, senão como uma personificação simbólica da vontade santa, uma ideia-ideal que surge da mesma consciência moral como compreensão do seu próprio modo de ser e da sua aspiração, com o propósito de fornecer às leis morais o maior efeito possível (Religion 06: 104). Numa carta a Jacobi de 30 de agosto de 1795, Fichte dizia-lhe que Deus não era senão o eu puro, visto da perspectiva da reflexão moral do indivíduo[52]. Ele é a personificação da nossa realidade originária, que certamente não se esgota no indivíduo, nem sequer em cada comunidade concreta, porém, que se expressa inesgotavelmente em todos os seres racionais.

Kant pensa que instituir uma tal comunidade, uma sociedade moralreligiosa, supera as capacidades do homem e só pode esperar-se do próprio Deus. “Contudo, não é permitido ao homem ficar inactivo em relação a este assunto e deixar que actue a Providência […]. Em vez disso, deve proceder como se tudo dependesse dele, e só sob esta condição pode esperar que uma sabedoria superior conceda aos seus bem- intencionados esforços, a realização” (Religion 06: 100-101). Mais ainda, dado que toda a religião estatutária tende a converter os homens em seres passivos, conduzidos pelo temor a castigos e pela esperança de prémios, carregando-os com prescrições inúteis, ou até nocivas, em nome do serviço a um Deus, na realidade antropomórfico e que, além disso, fá-los cair sob o jugo das castas sacerdotais, “[...] mais facilmente se pode aceitar com fundamento que a vontade de Deus é que nós mesmos realizemos a ideia racional de uma tal comunidade” (Religion 06: 105), embora a debilidade humana pareça tornar inevitável, pelo menos por um tempo, que uma fé eclesial estatutária se junte à meramente racional; mas esta deve valer sempre como critério supremo para a primeira, e a fé religiosa histórica deve servir como meio para chegar à racional. No plano moral, não devemos partir do que Deus possa fazer por nós, mas do que devemos fazer (Religion 06: 118, 132-133); a autonomia moral assim o indica, de modo que “[...] esta ideia de um soberano moral do mundo é uma tarefa para a nossa razão prática” (Religion 06: 139).

Não obstante, Kant defende a necessidade religiosa de uma fé num Deus teísta:

De acordo com esta necessidade da razão prática [de cumprir a vontade santa de Deus], a universal fé religiosa verdadeira é: 1) a crença em Deus como criador todo-poderoso do céu e da terra, isto é: moralmente como legislador santo; 2) a crença nele, o conservador do género humano, como governante bondoso e suporte moral do mesmo; 3) a crença nele, o administrador das suas próprias leis santas, isto é: como juiz recto. (Religion 06: 139).

Penso que essa necessidade de um deus teísta resulta, em Kant, sobretudo do problema da justa felicidade e, com isso, passamos ao segundo termo do bem supremo.

C/ O Deus teísta, transcendente, aparece em Kant como realidade necessária sobretudo enquanto peça chave para garantir a exigência moral de que triunfe o bem no mundo, e outorgue à pessoa boa a felicidade que moralmente merece; isso é o que sempre exigiram os homens: que o justo seja feliz, e o injusto castigado[53]. A razão humana, ao ser finita, descobre-se a si mesma como incapaz de levar a cabo essa tarefa, e postula então um Deus pessoal, omnipotente, inteligente e de vontade santa, causa transcendente e moral do mundo, apto portanto para ordenar a natureza (aquilo de que dependemos) segundo o nosso carácter ético. Deus terá que remediar a nossa incapacidade, é a resposta de Kant, “[...] já que necessitar da felicidade, ser digno dela e, no entanto, não participar dela, não concorda em absoluto com o querer perfeito de um ser racional [tanto o de um homem perfeito e justo como o de Deus] que [além disso] fosse, ao mesmo tempo, omnipotente [como é o caso de Deus no teísmo], e ainda que nos refiramos ao dito ser apenas no plano de ensaio” (KpV 05: 110).

Portanto, a razão prática reclama a partir de si a realidade desse Deus como condição necessária para a realização do bem supremo no mundo, exigido pela razão prática, e “a razão não pode ordenar a persecução de um fim que foi reconhecido como nada, como uma fantasia criada pelo cérebro” (KU 05: § 91, 472), a razão não pode ser contraditória, irracional, nem nos pode pedir o impossível. Deus é uma ideia certamente transcendente à razão teórica mas, em primeiro lugar, não é algo de contraditório para ela e, em segundo lugar, o interesse prático da razão tem primazia sobre o teórico, que lhe está subordinado (queremos saber para ser livres). Por isso, neste caso, a razão teórica deve admitir esse Deus “[...] como uma propriedade alheia que lhe é transmitida” de maneira suficientemente segura, porque pertence “[...] inseparavelmente ao interesse prático da razão pura”[54]. O homem que é justo adquire o direito a dizer: quero que Deus exista (KpV 05: 143). A razão prática tem um alcance maior que a teórica no desvelamento da realidade, visto que, enquanto esta só chega ao fenoménico, aquela mostra-nos uma realidade em si ou supra- sensível na mesma liberdade, e agora em concreto, a partir dela, a realidade de um Deus transcendente (KU 05: § 91, 474). A razão prática ocupa-se da ralização, necessita de realidades e é consciência da realidade em si e não da mera idealidade como a razão teórica.

Ora, a esta afirmação de um Deus pessoal, o próprio Kant coloca já uma série de limitações. Primeiro, mesmo no caso de não se crer em Deus, a validade da lei moral continua intacta, e só a fé na consecução plena do fim último é afectada e se mostra, em si, inatingível[55]. Entretanto, poderíamos perguntar-nos se o sentido desta exigência não será sempre ser uma exigência que nos conduz necessariamente não só à acção, mas também à aceitação da nossa finitude radical como condição indispensável da mesma liberdade. Segundo, a crença na existência de Deus não é, em si mesma, um dever, “[...] posto que não pode ser um dever admitir a existência de uma coisa (porque isto se refere só ao uso teórico da razão) […] Ao dever corresponde aqui, unicamente, o empenho para produzir e fomentar o bem supremo no mundo” (KpV 05: 125-126), “[...] trazer até nós o reino de Deus” (KpV 05: 130).

Terceiro, a aceitação da existênca de Deus é uma fé racional pura prática, uma vez que a exigência procede dessa razão prática, e a bem-aventurança que promete é somente um objecto de esperança alcançável na eternidade, tal como o pensa o cristianismo (KpV 05: 127-129), mas nem a Deus nem a essa esperança podemos atribuir realidade objectiva teórica (KU 05: 469-470). Portanto, com isso, não ampliamos o nosso conhecimento teórico, isto é, o nosso conhecimento sobre a constituição objectiva do mundo; não podemos utilizálo para a explicação científica das leis da natureza. Tão-pouco esses postulados práticos podem ser usados para construir uma metafísica teórica, pois com eles não conseguimos saber teoricamente como age a liberdade na sua causalidade, como é possivel objectivamente a imortalidade, ou como Deus causa o mundo, do qual não encontramos nenhuma intuição objectiva correspondente. Além disso, só podemos pensar Deus com determinações retiradas da nossa natureza, a saber, como dotado de entendimento e de vontade, mas, se abstrairmos todo o elemento antropomórfico nessa atribuição, a saber, o nosso entendimento discursivo e a nossa vontade finita, não nos resta nada, na realidade, senão simples palavras, com as quais não sabemos propriamente o que estamos a pensar. Unicamente contamos com a necessidade moral de que exista uma realidade que assegure o bem supremo devido (KpV 05: 137-138), e esta, segundo Kant, só poderia ser um autor do mundo segundo leis morais e que possuísse a perfeição suprema: um ser omnisciente, omnipotente, omnipresente, eterno, criador único etc[56]. Porém, saber o que significam todos esses atributos, bem como saber o que pode ser um entendimento intuitivo, totalmente heterogéneo ao nosso entendimento discursivo[57], ou a sua causalidade infinita em analogia com a nossa, reflexiva e finita e, portanto, completamente díspar[58] (“[...] e assim ocorre também com todas as categorias” – KU 05: 484), fica fora do nosso alcance, de tal modo que, de Deus, como da imortalidade “[...] não conhecemos nem compreendemos, não digo apenas a realidade, como também, sequer a possibilidade destas ideias” – KpV 05: 04). Ora, apesar de todas essas advertências, na realidade e inevitavelmente, se continuam a entender, também em Kant, todos esses termos e conceitos da mesma forma como são tradicionalmente entendidos no cristianismo. Para evitar essa contradição, deveria ter sido pensado a partir do ponto de vista transcendental o diferente modo de ser para o qual cegamente apontam.

Além disso, ainda que Kant afirme, na sua segunda Crítica, que esse Deus teísta, transcendente para a razão teórica, é imanente para a razão prática (KpV 05: 133, 135), eu diria que, na verdade, é transcendente também para a razão prática. Com efeito, a terceira Crítica distingue entre a imortalidade e Deus como coisas de fé (KU 05: 469, 471), e a liberdade como a única ideia da razão que é uma res facti (KU 05: 468) porque esta mostra a sua realidade objectiva mediante as suas acções, mediante o seu efeito possível na natureza (KU 05: 474-475); ela é a realidade do suprassensível em nós, enquanto os outros dois postulados representam a ideia do suprassensível “fora de nós” (KU 05: 474 – grifos meus). Os postulados da imortalidade e de Deus representam propriamente “uma confiança na promessa da lei moral, […] ainda que o faça de maneira incerta (ungewiβ)”[59]. Imanente é a exigência na acção moral de trazer o reino de Deus à terra, e a fé em que essa acção moral, justamente pela sua realidade intersubjectiva, comporta mais do que aquilo que o indivíduo pode perceber, pois cria a sua própria realidade, a sua comunidade e o seu futuro. Entretanto, o Deus teísta e a imortalidade são, por sua vez, transcendentes a essa mesma acção, a qual só pode ser real transformando o mundo.

Por último, poderíamos afirmar que esses dois postulados são, além disso, transcendentalmente contraditórios. Em si mesmos, deveriam ser vistos como não contraditórios, como defende Kant[60], de tal sorte que desse ponto de vista não conseguimos ver nem a sua possibilidade nem a sua impossibilidade real (KU 05: 471-472). Mas não contece o mesmo, se os examinarmos desde o ponto de vista das condições que tornam possível a subjectividade. Sobre o postulado da imortalidade já formulei anteriormente três objecções. Em relação ao postulado de um Deus teísta, são duas as contradições transcendentais que poderiam ser apresentadas. A primeira retoma a dificuldade, já clássica, de harmonizar a liberdade com um Deus omnipotente: como pode a criatura ser livre frente a um Deus do qual procede toda a realidade? Aqui não nos interessa a vertente teológica do tema, a que se refere à Graça e à salvação, com as disputas entre Agostinho de Hipona e Pelágio, ou as que surgiram depois com Lutero, Erasmo de Roterdão, Calvino e o Concílio de Trento. Não basta o lado filosófico da tensão entre o Deus criador e a liberdade, já referido por Lorenzo Valla, no seu livro De libero arbitrio (1436), ou por Pietro Pomponazzi, em De fato, libero arbitrio et praedestinatione (1520). Como vimos, Kant necessita de um Deus todo-poderoso, criador do mundo, mas dado que, nesse caso, todo o ser finito, também nós mesmos, existimos inteiramente graças à criação e conservação divinas, a nossa liberdade deixaria então de ser uma acção originária para se transformar em algo inteiramente produzido. A categoria da causa, mediante a qual é pensada a criação, é uma categoria coisal [“cósica”] que transforma o efeito em heterónomo, como foi exposto na primeira Crítica. Kant tenta, num primeiro momento, resolver esta contradição distinguindo o fenoménico do nouménico, e colocando a causalidade divina, a criação e a liberdade fora do tempo e do espaço, sem a precedência temporal da causa sobre o efeito (MS-RL 06: 280-281n.), de modo que Deus seria o criador da existência nouménica dos seres livres, mas não das suas acções no mundo sensível (KpV 05: 100-102). No entanto, se percorrermos a ordem ao contrário, veremos claramente que não se resolveu nada, pois as acções sensíveis estão determinadas pela liberdade nouménica, a qual é causada totalmente (isto deve ser pensado até ao fim e sem qualquer dúvida) por um Deus transcendente, que em consequência teria fixado toda a ordem, quer esteja no tempo quer não. Mesmo Kant se dá conta de que a solução contém muita obscuridade e muitas dificuldades, mas desculpa-se dizendo que acontece o mesmo com todas as outras que foram propostas, ainda que tentem dissimulá-lo (KpV 05: 103). No entanto, no final, ele tem que admitir a impossibilidade transcendental de conciliar a liberdade com a criação divina, pois

[...] para a nossa razão é completamente incompreensível como devem ser criados seres com vista ao uso livre das suas forças, porque segundo o princípio de causalidade não podemos atribuir a um ser que aceitamos como produzido nenhum outro fundamento interno das suas acções senão o que pôs nele a causa produtora, por meio do qual (logo, por meio de uma causa externa) estaria então determinada cada acção do mesmo e, por conseguinte, esse ser não seria, ele mesmo, livre. Deste modo, a legislação divina, santa, que concerne, portanto, somente aos seres livres, não se deixa conciliar pelo nosso conhecimento racional com o conceito de uma criação de tais seres. (Religion AA 06: 142).

Continuar a perguntar por um fundamento do eu puro, diz Fichte no seu artigo “Sobre o fundamento da nossa crença”, coisa que poderíamos levar a cabo graças à idealidade ilimitada da razão teórica, o que significaria convertêlo em algo dependente de outro fundamento, destruí-lo como originário e livre; mas aqui entra em jogo o interesse prático superior da razão que impede de ir mais além e impõe, de forma imperativa, a liberdade como primeiro princípio (GA I/5, 350-352).

A segunda contradição transcendental reside no próprio conceito de um Deus pessoal e perfeitíssimo, como o concebe o teísmo. Com efeito, um ser infinito careceria de consciência e não poderia, por isso, ser sujeito nem pessoa, como ocorre com a substância de Espinosa[61]; seria um ser meramente objectivo. Para se tornar consciente, é necessária uma limitação real, pois a consciência actua distinguindo; para saber de mim, necessito saber do outro, que não sou eu, como distinto de mim e, portanto, de mim como não sendo todas as coisas, da mesma forma que ser consciente desta mesa implica ser consciente de outras coisas que não são esta mesa. No [domínio] teórico, a limitação procede para Kant da coisa em si, ou seja, do em si da realidade do mundo que o sujeito não cria ex nihilo, mas que lhe tem de ser dada. É uma ilusão pensar platonicamente que se pode voar sem a resistência do vento, explica-nos Kant com o exemplo da pomba (KrV A 5/B 8-9). Não existiria um sujeito sem mundo. E o mesmo ocorre com a consciência da liberdade: se a sua realidade e força, sua obrigatoriedade e imperativo não encontrassem resistência, nem na determinação do sujeito mediante as inclinações e o mal moral, nem no mundo no momento de se realizar nele, não teríamos tomado consciência da liberdade, da nossa realidade, nem da do próprio mundo. E que essa oposição real não pode ser meramente lógica, compreendeu-o Kant a partir do seu escrito Ensaio de introdução das grandezas negativas na Filosofia (02: 171 ss.).

Contudo, Kant não consegue captar plenamente na sua universalidade essa condição de possibilidade da consciência, e pensa que não é transcendentalmente contraditório falar de um entendimento intuitivo, para o qual não existiria a mera possibilidade, mas que todo o seu pensar fosse já realidade (KU 05: §§ 76-77). Mas eu diria que sem essa distinção modal tal acção não atingirá a consciencia de si nem do outro como criado e sendo outro, pois careceria da distância e da distinção necessárias para a consciência, e não seria, portanto, um entendimento. Fichte, pelo contrário, soube vê-lo mais claramente. Não há consciência de si sem consciência do mundo, ou seja, “[...] a intuição intelectual está também sempre ligada com uma empírica”[62]; e nos §§ 4-8 da sua Ética de 1798, Fichte deduz o mundo e a necessidade de que este tenha leis próprias e distintas da liberdade como elemento necessário para que esta tome consciência de si e venha a ser. A esta condição de possibilidade da consciência, Fichte chama “princípio da determinibilidade”[63], ou “princípio da determinação por oposição”68; essa é “[...] a lei da reflexão de todo o nosso conhecimento, a saber: nada é conhecido, seja o que for, sem que pensemos, por seu turno, o que não é […] E justamente esse modo do nosso conhecimento, a saber, conhecer algo através da contraposição, chama-se determinar algo.”[64] Essa lei desempenha, na realidade, o papel do segundo princípio na Doutrina da Ciência nova método: “[...] sobre a necessidade do contrapor repousa todo o mecanismo do espírito humano”[65]. Sem ela não haveria sujeito, e como não é aplicável a um Deus omnipotente, tão-pouco ele poderia constituir-se como consciência e pessoa, segundo o ponto de vista transcendental. Na realidade, a raiz última da contradição desses dois postulados, o da imortalidade e o de Deus, tanto a contradição interna como a externa, reside no facto de que com eles se quer anular toda a finitude, mas esta é um elemento constitutivo da subjectividade transcendentalmente considerada e, portanto, pretender resolvê-la na totalidade significa anulá-la. Certamente um Deus omnipotente e moral asseguraria plenamente o triunfo do bem, mas é uma segurança ou uma garantia tão excessiva que, como um boomerang, põe em perigo a própria base da qual se parte e se postula. Além disso, essa solução é tão sem limites (tão mágica, diria eu) que, no final, não compreendemos como é que pode existir o mal e a liberdade (a liberdade do mal e do bem autónomo). A aceitação da finitude implicaria ainda a renúncia a tal pretexto, sem por isso menosprezar a exigência da nossa realidade originária, a que nos sustém no nosso ser.

5.- o divino e A ordo odinans

O artigo de Fichte sobre o Governo divino do mundo, o que desencadeou a polémica, é um brilhante resumo da sua posição acerca do tema de Deus e da religião, o qual se vinha desenvolvendo desde há alguns anos, já no primeiro escrito que o projectou para a fama: Ensaio de uma crítica de toda a revelação (1792). Voltou a esse assunto quando deu aulas na Universidade de Iena, sobre lógica e metafísica, usando como texto o livro de Ernst Platner Aforismos filosóficos, com algumas indicações sobre a História da Filosofia[66] desde o semestre de Inverno de 1794/95 até ao semestre de Inverno de 1798/99. Dessas lições conservamos as notas do próprio Fichte e alguns apontamentos dos seus alunos. No livro de Platner, aparecem os temas de Deus e da imortalidade, e é por isso que Fichte, sobretudo entre os anos 1786 e 1799, expõe algumas ideias que depois recuperará no seu artigo. Vejamo-las.

Em primeiro lugar, é preciso dizer que Deus não é um conceito que emane da natureza.

“Todas as provas teóricas não ajudam em nada, só prejudicam”[67] moralmente, pois se inclinam para os actos próprios da superstição, visando a conseguir beneficios do todo- poderoso. Não se deve partir, pois, de um ser teoricamente conhecido, mas de uma necessidade prática de agir, de um fim moralmente necessário, cuja consecução deverá ser possível; trata-se de “[...] pensar de modo puramente idealista e transcendental, cujo sistema, em último caso, se funda na moralidade”[68], da qual partem todas as outras certezas. O divino não é alcançado através de provas ou por via do raciocínio, mas por um saber imediato de si na acção originária do eu, que Fichte designa como intuição intelectual ou como crença, ou seja, como saber imediato da realidade, não fundado nem mediado[69], o que na Apelação ao público, designa como um saber do coração (GA I/5, 444).

Mas Deus tão-pouco é um conceito que nos ajude a explicar o mecanismo do mundo, como parece ter feito Kant, ao colocar a ideia de Deus na sua Crítica da razão pura enquanto princípio regulativo do conhecimento do mundo. Não, “[...] a divindade não procede do mundo, mas de nós”[70]. O mundo terá de ser compreendido e explicado com base nas suas próprias leis, que não são só as mecânicas, mas também as químico- orgânicas, das quais talvez Kant não tenha tido conhecimento suficiente, e por isso recorreu a Deus nesse ponto a partir da finalidade, também na sua Crítica do Juízo teleológico; recorrer a Deus na ciência é passar para outro âmbito[71], é cometer uma metábasis eis allo genos). “Não há nenhuma necessidade teórica de aceitar Deus, aí não se necessita de Deus, nem isso se quadra com a explicação do mundo. O mundo já está concluído com a sua própria força”[72], deve ser explicado pelas suas próprias leis, regidas pelas formas transcendentais do conhecer. A sua realidade está também transcendentalmente fundada, na medida em que é um elemento necessário para a realização da subjectividade, tanto no seu impulso natural como, principalmente, ao ser um âmbito necessário para a realização da acção e do fim moral[73].

Não podemos, por consequência, conceber Deus como uma substância, pois a substância é uma categoria do fenoménico, um ser que existe no espaço e no tempo[74]; não há algo divino como coisa em si, mas unicamente em relação com um ser moral, com uma ordem moral do mundo[75]. O conceito de substância ou de substracto das acções só é aplicável ao modo de ser dos fenómenos, e no entanto, é atribuido ao divino quando é designado como Deus-causa, o que acontece, em parte, no prório Kant (GA IV/1, 417). “Com tudo isso se rompe, enquanto não se continua a pensar Deus como sendo ou como ente (als seiend), mas apenas, como o divino, racional, como o que fomenta o fim da razão em toda a natureza” (GA IV/1, 417). Contudo, dado que para os que o acusam de ateísmo Deus só existe se for pensado como substância, Fichte continua dizendo no seu Apelo ao Público, que o divino que ele afirma nada é para os acusadores[76].

Deve-se pensar Deus a partir da exigência moral. Com efeito, quem quer algo e age, fá- lo por causa desse fim, para alcançar o que quer. Portanto, quem se eleva à moralidade quer o fim último da lei moral, quer que este se torne real nele e fora dele. Não é que então se decida agir segundo esse fim, mas que esse fim surge necessariamente da mesma vontade moral racional; ou, dito de outro modo: não sou livre porque persigo esse fim, mas persigo esse fim no mundo ou esse estado do mundo porque afirmo o ser livre e a razão como fim em si mesmos. Esse fim é 1º a configuração e domínio racional da natureza até a tornar segura e habitável por meio da ciência e da técnica, que fazem com que o trabalho deixe de ser uma carga pesada, e 2º a configuração de uma sociedade culta e justa num Estado livre, e de uma paz entre os povos[77]

[...] por exemplo, os homens devem aprender a conviver, deve dominar uma paz universal, todos devem conhecer a verdade, o género humano deve progredir sempre na cultura, a natureza deve tornar-se cada vez mais adequada aos fins da mesma, etc. Isso devo defendê-lo com todas as minhas forças. Mas a realização deste fim não está no meu poder, nem no poder de nenhum homem […] Cada um só se tem a si mesmo no seu poder, mas não aos outros. Estes são livres; e os seus planos contam com a sua liberdade, e devem ser realizados por meio dela. Não há moralidade sem liberdade.[78]

Esse fim tão-pouco está no poder da natureza, nem sequer poderia ser alcançado mediante um conhecimento exaustivo das suas leis, mas apenas através da liberdade. Esse fim é-me imposto pela razão prática, a aceitação da moralidade é já a fé na possibilidade da sua realização; “[...] quem não é moral não pode crer”[79] esse só tem um ídolo[80] do mesmo modo que aquele que faz depender a sua moralidade da fé em Deus. “Aquilo que pertence à possibilidade da realização do fim último ético, estou obrigado, pela razão prática, a aceitá-lo”[81]. A lei moral

 [...] não ordena directamente a fé, mas ordena [ter] o ânimo (Gesinnung) que conduz à fé. Assim como não podes caminhar sem levantar o pé, não podes ter um espírito moral sem crer. […] Esta fé acompanha o espítito moral. Não é necessário reflectir acerca disto e aperceber-se dela. Quem pensa e age honradamente, tem essa fé com segurança, ainda que disso não saiba nem uma palavra, ou até, o negue […] Agir bem é a única e verdadeira profissão de fé […] A verdadeira fé é a fé na possibilidade de que se realize a lei moral, o domínio universal da razão, o reino de Deus, o bem supremo, ou como se lhe queira chamar[82].

É a fé em que se realizará o fim da razão tanto no mundo da liberdade como no mundo sensível[83]. E como essa realização não depende (inteiramente) de mim nem da natureza, então aceito uma força capaz de levar adiante esse progresso aí onde o ser finito não pode (embora pondo nele todo o seu interesse e esforço, como deve), admito uma força moral e racional, não como pessoa (as personificações são restos de superstições), mas apenas como o divino; não posso ir mais adiante sem cair em contradições, nem preciso[84]. “Firme convicção de um governo moral do mundo, essa é a fé”[85].

A religião consiste numa vida moralmente boa, sem deixar para Deus o que um outro deve fazer em prol da realização da razão no mundo. Devese trabalhar, não orar; fazer o que é devido e deixar o resto para Deus[86]. Não obstante, quando as nossas forças ou coragem morais falham, a religião pode servir de consolo, como meio de fortalecimento na doença, mas não para permanecer aí, como fazem os religiosos, e convertê-la em superstição, mas para voltar à acção moral[87]. “Fazer o seu dever de coração é o verdadeiro serviço a Deus e a única verdadeira religião”[88]. O resto, duvidar do progresso moral, defender a mentira, ou não cumprir o dever senão quando se sabe que se vai ter êxito, isso é o verdadeiro ateísmo[89]. “A máxima de toda a religião é esta: torna-te um homem justo, então conhecerás Deus. Para lá disso não te proporciona nenhuma revelação e nenhuma filosofia.”[90]

É claro que essa redução do religioso à acção moral não poderia ser suficiente para um espírito religioso, ainda que guarde um aspecto muito importante; a isso se deveria acrescentar uma relação directa com o divino, pensado como algo transcendente. Essa transcendência redu-la Fichte, mais ainda do que Kant, ao eliminar aqui o elemento da felicidade como dependência e ao colocá-la na mera acção e entrega ao dever, aproximando-se dessa maneira a uma posição mais estoica. Na acção moral tendente à realização do fim último não se trata, pois, de procurar ou assegurar a felicidade, nisso Kant não tem razão, mas apenas de fazer o que é devido, pois unicamente a moralidade é fim último, e tudo o resto, simples meio[91]. O justo esquece-se de si mesmo e da sua felicidade, pois a sua felicidade e o seu único desejo residem em que o fim da razão seja realizado no mundo, e ambas as coisas são nele o mesmo[92]. O homem religioso apenas procura “[...] a beatitude de todos os seres racionais. Venha a nós o teu reino, é a sua súplica […] e assim se difunda uma alegria inabalável sobre toda a existência”[93]. “Ele quer apenas o racional para o bem da razão. Isto é o que Kant, com alguma acomodação, chamou felicidade e digno de felicidade[94]. O indivíduo é um simples meio para a realização da razão no mundo. Quem procura directamente a felicidade é um homem sensível (sinnlicher) e não moral, e como pensa influenciar o seu Deus para que ele cumpra os seus desejos, este é um Deus que não é moral, que não é compreensível”[95]. Muitas das práticas religiosas, que pretendem justamente mover a seu favor a vontade divina, são apenas obra supersticiosa, intolerante (porque o conteúdo da sua fé é o essencial e não a moralidade) e imoral para Deus, na realidade não significam um serviço a Deus mas a um ídolo; é submissão escrava, também em relação à classe sacerdotal para obter, por meio de práticas inverossímeis, a graça do todo- poderso e com isso, a felicidade101.

O sentido religioso comum, assim como o homem sensível, isto é, o que é movido na sua acção por motivos sensíveis e não estritamente morais, personifica o seu ídolo e pensa o divino como um ser que toma decisões no tempo, tal como nós fazemos; comete, portanto, o erro do antropomorfismo, toma-o por uma inteligência pessoal. Mas a filosofia transcendental não considera essa ordem moral sob a perspectiva de uma decisão concreta, mas eleva-se ao geral, e não precisa dessa personificação[96]. Além disso, geralmente, pensa-se que a ordem moral do mundo deve ter uma causa, e que esta deve ser encontrada em Deus, mas a filosofia transcendental sabe que “[...] só se procura um fundamento para o contingente, para o deduzido, […] não para o absolutamente necessário. (Esta ordem [moral] é certamente o fundamento supremo e último de tudo; o verdadeiro ser absoluto)”[97]. Não posso ir mais além sem destruir, precisamente, essa ordem moral, sem a tornar dependente, sem anular a liberdade e a responsabilidade, ou seja, o carácter originário do eu como acção. A única forma possível de resolver essa contradição é pensar que a ordem activa ou ordenadora (ordnende) moral do mundo e Deus são o mesmo (GA IV/1, 413), e que não há entre eles uma relação de causa e efeito como Kant deu a entender (GA IV/1, 415-417, 431), pois este último ponto nos levaria às contradições próprias de um Deus teórico, personificado, pensado como indivíduo, para o qual transferimos conceitos que só nos convêm a nós (GA IV/1, 431-432).

Aqueles que o acusam de ateísmo são, na verdade, eudemonistas, continua dizendo Fichte no seu Apelo ao público (GA IV/1, 435), os quais só procuram o prazer sensível, não o procedente da acção, e para isso dependem do destino que eles personificam em Deus, aquele que reparte a felicidade e a infelicidade[98]. Isto é o que buscam com o coração, independentemente de todas as demonstrações; são homens simplesmente carnais e sensíveis, sem religião, são os verdadeiros ateus, cegos para as coisas espirituais (GA IV/5, 437). Essa plenitude de felicidade que esperam de Deus noutra vida, é algo contraditório com a natureza humana e com a sua tarefa infinita; porém, o que é mais grave, rebaixam Deus a ser um servidor do seu desejo, transformam-no num ser imoral, porque serviria para que os homens não agissem moralmente, isto é, pelo dever, mas sim pela persecução do prazer que Deus lhes concederia em virtude dos louvores que estes lhe oferecem com ritos mágicos[99].

Em consequência, o divino não deve ser pensado como pessoa, pois a pessoa exige limitações não só frente ao não-eu ou mundo, mas também diante dos outros indivíduos conforme leis de mútuo reconhecimento como seres livres, isto é, segundo relações próprias do direito e da moralidade[100]. Uma inteligência exige limitações reais e ideais frente ao mundo e aos outros seres inteligentes[101]. Mas o divino não tem esse modo de ser. A sua personificação é um resquício de superstições[102], em cujo processo projectamos fora de nós mesmos, mediante um conceito, o que em si reside na intuição intelectual[103]. O divino não é algo transcendente, mas transcendental; o divino identificase com o originário sem mais, que torna possível tanto o indivíduo como a comunidade. “A razão tem que se bastar a si mesma”[104]. Moralidade e religião são o mesmo. Religião sem moralidade é superstição e moralidade sem religião, sem a fé na acção a partir do interior de si mesma, só alcança o mundo sensível, é uma mera legalidade sem um fim suprassensível[105]. “Cria em ti a intenção de cumprir com o teu dever e conhecerás Deus, e enquanto nos apareces ainda, aos outros, no mundo sensivel, para ti mesmo já aqui em baixo estás na vida eterna”[106]. Esse Deus é, na realidade, a raiz intersubjectiva da mesma moralidade, a que abre o reino dos seres racionais; o divino é propriamente a comunidade dos espíritos livres, o Espírito Santo como comunidade éticoespiritual dos justos, como já havia assinalado de forma muito enfática o Príncipe Augusto da Saxónia[107]. Fichte já havia anunciado, em 1794: “Todos os indivíduos estão compreendidos na única grande unidade do espírito puro. […] A unidade do espírito puro é para mim um ideal inalcançável; um fim último que, no entanto, nunca será uma realidade efectiva”[108]; a fé não é fé num triunfo final, mas antes em que toda a acção moral contribuirá, por sua parte, para a sua progressiva implantação. Isso é, portanto, o divino, “[...] uma relação dos seres morais entre si”[109], que não deve ser pensada como meramente externa, mas como uma relação constitutiva da subjectividade, como temos vindo a assistir aqui repetidas vezes[110].

Eu diria que, ao longo da polémica, designadamente depois da carta aberta de Jacobi, essa unidade moral dos seres racionais vai tomando corpo e começa mesmo a deslocar- se mais além do eu responsável por si, para lá da comunidade ética dos seres racionais, em dois escritos publicados em 1800: A destinação do homem, no seu Terceiro livro[111], e em De um escrito privado. O divino é a ordem moral do mundo, mas não se deve pensar essa ordem como algo já feito e fixo (ordo ordinatus), pois algo estático e morto nunca é, na filosofia transcendental, o originário, mas sim, o derivado ou realizado. O originário é somente ação, vida, actividade ordenadora, ordo ordinan[112], como assinalava já Kant através da liberdade moral ou razão prática. Porém, toda a acção racional finita conta com algo mais do que a sua própria força para a realização dos seus fins; conta também com as forças da natureza nas suas acções sensíveis, e com o divino nas inteligíveis ou morais, e todo conceito de Deus que ultrapasse essa exigência moral é ficção e superstição e o que for contra isto, é imoral[113]. Por conseguinte, essa força ordenadora que levará a cabo o fim último moral, para além das forças dos seres racionais finitos, é mais do que a soma de todos esses seres finitos[114].

Pela vontade livre sou e ajo já no mundo suprassensível, estou já na vida supraterrena e eterna, certo do êxito, pois aí, no inteligível, não há poder estranho que se lhe oponha[115]; no mundo inteligível, que começa a exigir uma independência real do mundo, Fichte coloca apenas a luz, e o divino será isso, unicamente luz e razão. Sou, portanto, membro de dois mundos, de duas ordens de coisas: o sensível e o inteligível ou espiritual. Cada mundo ou ordem tem a sua lei, uma é a lei da natureza, sob a qual entram em relação recíproca os objectos, e a outra é a lei espiritual, pela qual interagem as vontades e cujos actos têm consequências que vão para além das decisões de cada uma. Essa lei espiritual repousa apenas em si mesma como razão autónoma e é, portanto, em si mesma uma vontade[116]. Aqui se começa a dar a passagem do transcendental para a progressiva transcendência, própria do segundo Fichte. Antes, o divino era a comunidade dos seres racionais morais, o carácter intersubjectivo da identidade e da sua ordem ou lei, o eu puro, que não era nem um, nem múltiplos seres. Agora, a unidade espiritual dos seres racionais é em si mesma uma vontade, uma vontade finita, sob a qual estão todas as vontades finitas, às quais somente lhes cabe a obediência, e isso é o que significa a nova expressão de ordo ordinans[117]. Na Ética de 1798, afirmava-se que “[...] uma vontade pura não é uma vontade real, mas uma mera ideia” (GA I/5, 140), ou melhor, um elemento dinâmico da síntese que somos, de modo que o impulso puro do eu puro, um impulso para a liberdade pela liberdade, só aparece na consciência como um elemento do impulso moral em síntese com o impulso natural, o qual confere concretude ao dever[118]. Portanto, antes, o eu puro não se tornava vontade, senão frente ao limite. Agora, converte-se em si mesmo em vontade infinita, sob a qual estão todas as vontades finitas. Em certa analogia com a volonté général de Rosseau, na sua diferença com a volonté de tous[119], o eu puro é “[...] o laço espiritual do mundo racional”[120], do mundo dos espíritos, mas este agora não é senão o seu produto. Antes, até ao escrito Advertências, Respostas, Questões (maio de 1799), a religião surgia da consciência de algo que contemplava a acção moral, uma fé no triunfo final das suas ações[121]; agora, a fé religiosa alcança uma unidade que vem a constituir a própria acção dos seres morais. Conhecemo-nos e entramos em relação recíproca como seres livres graças a essa vontade infinita, que tudo suporta nessa esfera[122]. É ela que determina as leis ou formas a priori pelas quais compartilhamos um mundo sensível, e apenas nesse sentido pode ser criadora do mundo, através da razão finita[123]. Fichte pensa então que a acusação de ateísmo se produziu porque não tinha exposto de forma suficiente “[...] o meu sistema do mundo inteligível”[124], “[...] a síntese do mundo dos espíritos”[125]. A essa nova terra conquistada chega, certamente, a fé moral, mas “[...] só o olho religioso penetra no reino da verdadeira beleza”[126]. Essa nova visão religiosa irá, pouco a pouco, assumindo relevo em face da proeminência da razão moral própria da filosofia transcendental.

(Tradução de Margarida Dias)

ABSTRACT: This article explains the points of view expressed by Kant’s critical philosophy and Fichte’s first principle in relation to God and to the theoretical and practical difficulties that the theist conception of a personal God entails, when one philosophizes from the transcendental method in such a way that one is required refer to the divine rather than to one God.

KEYWORDS: Theism. Kant. Transcendental philosophy. Fichte.

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Recebido em: 19.03.2012

Aceito em: 25.05.2012



[1] Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED) - Madrid

[2] Veja-se: FICHTE, Iniciação à vida feliz, Lição sexta (GA I/9, 115-128).

[3] Veja-se o meu capítulo, em: RIVERA DE ROSALES, 2007a, p.79-100.

[4] FICHTE, Fundamento de toda a doutrina da ciência, §2 (GA I/2, 264-267).

[5]  Idem, ibid, §5.

[6]  Idem, ibid, §§ 7-10

[7] FICHTE, Lições sobre a vocação do sábio, Lição primeira (GA I/3, 32-33). 8  Idem, ibid, p. 67.

[8] KANT KrV A 578/B 606. Todas as referências à Crítica da razão pura indicam, com a letra A, a primeira edição (1781) e, com a letra B, a segunda edição (1786). As obras de Kant são citadas pela edição da Akademie e segundo o padrão definido pela Kant-Forschungsstelle (http://www.kant. uni.mainz.de).

[9]  FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen (GA II/4, 280).

[10] KANT, Os progressos da metafísica desde Leibniz e Wolf, AA 20: 345.

[11] A 144/B 183; A 182-189/B 224-232.

[12] FICHTE, Fundamento de toda a doutrina da ciência, § 2 (GA I/2, 264-267).

[13] Na realidade, o dado não pode ser pensado como sendo realmente uma matéria amorfa que encontra uma configuração real mediante as formas a priori de conhecer. Essas formas são acções ideais e não configuram realiter o mundo, mas idealiter, isto é, convertem-no em objecto (da consciência). Ao conhecer a pradaria, não a configuro realmente, mas interpreto-a, configuro as minhas sensações, mas não construo realiter a pradaria. Seguindo o exemplo que dá Kant da ciência moderna, formulamos a pergunta ou a perspectiva, mas é a natureza, a partir de si, que deve dar a resposta (KrV B XXII-XXIV). Não obstante, visto que cada objecto se nos apresenta como determinado por outros e pelas leis da natureza, poderíamos pensar que o realmente originário seria, ali, a energia-matéria da qual o mundo procede, e em direcção ao que Kant aponta com o conceito de “matéria transcendental” (KrV A 143/B 182).

[14] Veja-se, por exemplo, o artigo de Kant “Que significa orientar-se no pensamento?” (AA 08: 131-148).

[15] GA I/ 5, 353. Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 326, 328-329. “Sobre o fundamento da nossa crença”, GA I/5, 353. “Se se perguntasse à Doutrina da Ciência: como são constituídas as coisas em si? Então, ela não poderia responder outra coisa senão isto: tal como devemos fazê -las. Com isto, a Doutrina da Ciência não se converte, de modo algum, em algo transcendente, pois tudo o que aqui também [na parte prática da filosofia] demonstraremos, encontrá-lo-emos em nós mesmos, extraímo-lo de nós mesmos, porque em nós se encontra algo [uma limitação real

[16]  “A intuição intelectual está também sempre ligada a uma empírica” (Segunda introdução, GA I/4, 217). Veja-se sobre este ponto da intuição intelectual a Segunda introdução §§ 5 e 6 (GA I/4, 216 ss.).

[17]  Por exemplo, segundo Fichte, todos os elementos que configuram a nossa realidade sintética devem ser tratados exclusivamente como simples meios (Werkzeuge) da razão moral, sem valorizar a sua contribuição originária ao nosso modo de ser. Poder-se-ia até pensar se reduzir o amor e a amizade a meros instrumentos da acção moral seria uma perversão mas, em todo o caso, não seriam valorizados nem vividos em toda a sua plenitude. E o mesmo poderíamos dizer do próprio corpo ou da beleza.

[18] Enquanto natura naturans, o divino aparece-nos, por exemplo, na autonomia organizadora do nosso corpo e como experiência do amor sexual. Enquanto arte, o divino mostra-se-nos como inspiração, beleza e sublimação. Conviria iniciar a reflexão sobre ambos os momentos respectivamente, a partir das duas partes da KU (Crítica do juízo).

[19] KrV A 341 ss, e B 399 e ss. Veja-se também FICHTE, Escritos de justificação jurídica, GA I/6, 49-50.

[20]  “A partir da limitação do nosso ser é inferido, em geral, um objecto; mas o impulso vai talvez até à modificação do mesmo. Aqui, sem dúvida, não há uma mera limitação do nosso ser, mas também do nosso devir; sentimos que o nosso agir é repelido interiormente; trata-se mesmo de uma limitação do nosso impulso de agir; e por isso, inferimos uma liberdade fora de nós. (Acertadamente o expressa o Sr. Schelling [Phil. Journ, vol IV, p. 281, § 13]: onde a minha força moral encontra resistência, isso não pode  ser natureza. Com um estremecimento, fico quieto. ‘Aqui há humanidade!’ exclama-se diante de mim; não me é permitido ir mais adiante” (FICHTE, Ética § 18 III, GA I/5, 204).

[21]  Nessa contraposição entre a realidade limitada do eu e a limitação da sua acção ideal, se baseia, em último caso, a distinção modal entre possibilidade e realidade efectiva, de que antes falávamos.

[22]  Veja-se, por exemplo, os §§ 1-3 da Ética de 1798 de Fichte.

[23] KpV AA 05: 9 nota. “Desejo (appetitio) é a autodeterminação da força de um sujeito mediante a representação de algo futuro como efeito da mesma. O desejo sensível habitual chama-se opinião” (Anthropologie § 73; 07: 251). Veja-se também Metafísica dos Costumes, MS-RL AA 06: 211.

[24]  Isso é o que tenta mostrar Kant, nos primeiros 6 parágrafos da KpV.

[25] FICHTE, Ética, § 8 III; GA I/5, 106. 29  FICHTE, Ética, § 9 IV; GA I/5, 122.

[26]  Façamos “[...] já aqui uma observação importante, que tem grandes consequências e cuja negligência engendrou prejuízos consideráveis, tanto para a filosofia em geral, como para a ética em particular. [Suponhamos que] o meu impulso se dirige ao objecto X. É de X que parte a excitação, a que atrai, que se apodera da minha natureza e determina desse modo o meu impulso? De modo algum. O impulso provém exclusivamente da minha natureza. Esta determina previamente o que deve existir para mim, e a minha aspiração e o meu desejo englobam-no, ainda antes de que exista realmente para mim, e antes de que tenha agido sobre mim; englobá-lo-iam ainda que não pudesse ser em absoluto, e não se satisfariam sem ele. Mas ele é, e deve ser em virtude da completude da natureza, em si mesma, e porque esta é, ela mesma, um todo real organizado. Eu não tenho fome porque há comida para mim, mas algo se transforma em comida para mim porque tenho fome. Não sucede de modo diferente com todos os produtos organizados da natureza. Não é a existência dos materiais que pertencem à sua substância que excita o vegetal a absorvê-los; a sua disposição interna exige precisamente esses materiais, independentemente de que existam realmente; e se eles não existissem na natureza, tãopouco o vegetal poderia existir na natureza. Há aqui, em toda a parte, harmonia, acção recíproca, não mero mecanismo; pois o mecanismo não produz nenhum impulso. Tão certo como eu sou um eu, a minha aspiração e o meu desejo não procedem do objecto, mas de mim mesmo, até mesmo nas necessidades animais. Se não se atender aqui a esta observação, não se poderá compreendê-la num lugar mais importante, na exposição da lei moral” (FICHTE, Ética § 9 I; GA I/5, 119-120).

[27] Essa distinção fica clara nos pontos I a III da Introdução à KU de Kant.

[28]  “O que é, portanto, que nos grita essa avidez e essa impotência, senão que houve já no homem, noutro tempo, uma verdadeira felicidade, da qual agora não lhe resta senão a marca e a forma completamente vazia, que ele tenta, em vão, preencher com tudo o que o rodeia, procurando nas coisas ausentes a ajuda que não obtém das presentes, sendo que todas são incapazes disso, porque o abismo infinito só pode ser preenchido por um objecto infinito e imutável, ou seja, por Deus mesmo?” (PASCAL, Pensées, p. 148 e 425; grifo meu).

[29] KpV 05: 147. Veja-se também KU, Nota geral à teleologia, 05: 481.

[30]  Desenvolvi de forma mais detalhada essa dialéctica do desejo no capítulo VII do meu livro El punto de partida de la metafísica transcendental (RIVERA DE ROSALES, 2011, p.193-208).

[31]  “As inclinações, consideradas em si mesmas, são boas, isto é, não reprováveis, diz-nos Kant, e querer destrui-las não só é inútil, como seria também prejudicial e censurável; pelo contrário, devemos domálas  para que não se consumam umas nas outras, mas para que possam ser conduzidas à harmonia num todo chamado felicidade” (KANT, Religion AA 06: 58). Veja-se também MS-TL, AA 06: 452.

[32] KANT, Gemeinspruch, AA 08: 283. Veja-se também KpV AA 05: 88-89 e 93.

[33] Sobre as paixões, veja-se KANT, Anthropologie (AA 07:§§ 80-86).

[34] “O conhecimento de si mesmo segundo a constituição do que ele [o homem] é em si, não pode ser adquirido por nenhuma experiência interna, e não surge da ciência natural sobre o homem, mas é única e exclusivamente a consciência da sua liberdade, que só se lhe dá a conhecer mediante o imperativo categórico, ou seja, pela razão prática suprema” (KANT, Anthropologie, Ergänzungen aus H, AA 07: 399; veja-se também p. 397).

[35]  Carta de Fichte a Jacobi, de 30 de agosto de 1795 (GA III/2, 392). “A razão em geral não é indivíduo mas comunidade” (FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 329).

[36]  Veja-se os escritos de Kant, Sonhos de um visionário (1766) e “Sobre um tom elevado que se tem elevado recentemente na filosofia” (1796).

[37]  KANT, KpV AA. 05: 71, 81, 118, 151-152; Religion AA 06: 14, 99; Metafísica dos costumes, MS-RL AA 06: 214, 219, 392-393, 398; O Conflito das faculdades, Streit AA: 07: 91.

[38]  KANT, Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Sexta Proposição, Idee AA 08:23. Veja-se também Religion AA 06: 100.

[39] KANT, Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Terceira Proposição, Idee AA 08:19.

[40] Fichte não presta atenção à história até às suas lições sobre Traços fundamentais da época contemporânea (1804), que pertencem já à sua segunda fase, se bem que também o seu ordo ordinans esteja relacionado com a história.

[41] Sobre esse aspecto da lei moral kantiana, estendi-me mais no capítulo “Kant: la buena voluntad” no livro Como se comenta un texto filosófico (RIVERA DE ROSALES, 2007b, p.121-147).

[42]  Veja-se, a esse respeito, KANT, A religião nos limites da simples razão, Religion AA 06: 24-25 nota, 25, 44, 47-48, 74; Anthropologie AA 07: 294.

[43]  Poucos, diz Kant, o tentam antes dos trinta anos, e menos ainda são os que o conseguem antes dos quarenta (Anthropologie, AA 07: 294), e talvez o consigam aos sessenta anos (Anthropologie, § 43, AA 07: 201).

[44] Metafísica dos costumes, MS-TL AA 06: 383, 409, 433 nota 446 447.

[45]  Fichte di-lo claramente: a imortalidade só pode ser pensada como uma ilimitada duração no tempo, pois “[...] finitude e razão só são conciliáveis no conceito de uma eterna duração no tempo (einer ewigen Fortdauer in der Zeit)” (FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 324; veja-se também, 325, 332-350). Kant só é capaz de dizer que não nos é possível compreender essa passagem do tempo à eternidade ou uma duratio noumenon (O Fim de todas as coisas, AA 08: 327ss.).

[46]  O Fichte de Iena dá-se conta da necessidade de um mundo para um eu que é finito, e como o eu morto carece de mundo, a anterior exigência transcendental só a poderá realizar Deus através de um milagre (como é que se poderá entender isso, a partir de uma reflexão transcendental, sem a transformar num saco roto onde tudo cabe?), pelo que, não há fé na imortalidade sem fé em Deus (Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 332-336, 344-348; GA IV/1, 445-446). Temos de deixar esta terra, mas algo que nos liga a todo o universo deverá servir para unir a identidade daquele que morre com a do que continua vivendo (GA IV/1, 448), de modo a que talvez possamos habitar outros corpos celestes (GA II/4, 337 - 338). Ou seja, haverá “[...] dissolução, e depois vida numa esfera nova e superior […] e assim, de nível em nível” (GA II/4, 350). E um aluno dessas lições de Fichte anota “[...] num corpo permanecemos sempre, tão certo como sermos seres finitos; mas toda a matéria é dissolúvel e, por conseguinte, em outra vida não nos cabe esperar um destino melhor do que aqui. Entretanto obtemos a continuação da nossa existência numa esfera superior, e é de supor que a nossa próxima residência futura será o Sol” (GA IV/1, 167). Entramos já na metafísica-ficção. Não obstante, enfatiza Fichte, essas hipóteses não pertencem propriamente à filosofia (GA IV/1, 448), e saber como será essa vida futura tão-pouco é algo que importe ao homem moral (GA IV/1, 446).

[47]  Veja-se a nota anterior.

[48] Kant esteve interessado, nos anos setenta, no experimento educativo da escola de Basedow. 53  Esses modelos, ressalta Kant, na Metafísica dos costumes, não devem “[...] servir como modelo, mas apenas, como prova de que o prescrito pelo dever é possível” (MS-TL AA 06: 480). Vejase também, na Pedagogia de Kant, o parágrafo consagrado à educação prática (Pädagogie AA 09: 486-499). Fichte expõe de forma breve a sua pedagogia a respeito da religião, no § 41 do seu escrito Advertências, respostas, questões.

[49]  É assim porque o cristianismo “[...] desde o seu primeiro começo transportava consigo o gérmen e os princípios em ordem à unidade objectiva da fé religiosa verdadeira e universal” (Religion, III, 2, 06:

[50] ; veja-se também 127-128), isto é, a sua transformação em fé racional pura.

[51] KpV Dialéctica V, AA 05: 129; Religion III, 1, 3, AA 06: 99.

[52]  GA III/2, 392. “Por meio do Eu transcendental se faz Deus. […] Em analogia connosco, com as nossas leis do pensar, atribui-se-lhe substancialidade, vontade, força” (FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 303).

[53] KU § 89, Ak. V, 458. Veja-se o diálogo Górgias, de Platão.

[54]  KANT, KpV, Dialéctica III, AA 05: 120-121; veja-se também 134-136.

[55] KU AA 05: § 87, 450-452; § 91, 471 nota.

[56] KpV AA 05: 140; KU §§ 86, 88, Nota geral, AA 05: 444, 457, 481.

[57]  O referido princípio [a unidade sintética da Apercepção transcendental] “[...] é inevitavelmente o primeiro para o entendimento humano, a ponto de que ele mesmo é incapaz de ter a menor ideia de outro entendimento possível, quer se trate de um que intua directamente [como o de Deus], quer se trate de um que, embora possuindo intuição sensível, a possuísse de forma diferente daquela que se baseia no espaço e no tempo” (KrV B 139). Veja-se também Prolegomenos § 57.

[58]  Essa causalidade de Deus como criador do mundo podemos pensá-la em analogia à nossa causalidade inteligente, mas não podemos conhecê-la (KU § 90, 05: 464-465; Nota geral à teleologia, 485); pois cairíamos no antropomorfismo (Religion, II, 1 b, AA 06: 65 nota). Nesse caso, a analogia resulta numa vaga metáfora, pois o elemento aludido permanece totalmente desconhecido. Não é o mesmo que se estabelecêssemos uma analogia entre um moinho de vento e uma ditadura ou, quando dizemos “[...] este homem é como um irmão para mim”, pois ambos os membros ou termos de comparação são conhecidos. Portanto, aqui continuamos sem saber, de modo algum, o que estamos a dizer.

[59]  KU § 91, 05: 471 nota; veja-se também 472.

[60] KU §§ 86, 90, 91, AA 05: 446, 461, 471 nota.

[61] “Nem o entendimento nem a vontade pertencem à natureza de Deus” (ESPINOSA, Ética I, pro. XVII, p. 70), pois pertencem à natura naturata e não à natura naturans (Ética I, pro. XXXI-XXXII, p. 84-88).

[62] Segunda introdução, GA I/4, 217. Veja-se também WLnm (= Doutrina da Ciência, nova methodo), 1982, p. 137 e 142. Ética (GA I/5 94 e 102). “O eu das filosofias anteriores é um espelho, mas o espelho não vê […]. O eu da Doutrina da Ciência não é um espelho, é um olho […] um espelho que se espelha a si mesmo […] uma imagem (Bild) para si […] é a essência da inteligência […]. Sobre o espelho está a imagem, mas ele não a vê. […] A inteligência faz-se imagem; o que está na inteligência é imagem e não outra coisa. Mas uma imagem refere-se a um objecto; onde há uma imagem terá de haver algo que seja copiado (abgebildet). Assim foi descrita também a actividade ideal, como um imitar (Nachmachen), como um copiar (Nachbilden). Se se admite uma consciência, então admite-se também um objecto da mesma” (FICHTE, Doutrina da ciência, nova methodo § 4, 1982, p. 54; veja-se também p. 38-41, 48, e ainda GA IV/2, 49). FICHTE, Lições sobre a destinação do sábio, GA I/3, 28.

[63]  FICHTE, Doutrina da ciência, nova methodo, 1982, p. 51. 68  Vorlesung über Logik und Metaohysik, GA IV/1, 334-335.

[64] Doutrina da ciência, nova methodo, GA IV/2, 41; veja-se também 32, 46. Vorlesung über Logik und Metaohysik, GA IV/1, 329, 340). Segunda introdução § 7, GA I/4, 249.

[65] FICHTE, Doutrina da ciência, nova methodo, 1982, p. 42. Veja-se também Escritos de justificação jurídica, GA I/6, 50.

[66]  Leipzig, 1793. O livro está reproduzido em GA II/4S.

[67]  FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 301. Veja-se também GA IV/1, 430.

[68] FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 320.

[69]  Sobre esse assunto me detive mais no texto “Creencia y realidade en el Fichte de Jena” (RIVERA DE ROSALES, 2003, p. 67-87).

[70]  FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 288.

[71]  GA IV/1, 405; veja-se 405-409, 416, e também GA II/4, 288. “Porque a natureza deve ser explicada por si mesma. Deus deve, pois, convergir na natureza, para promover a lei moral, mas como isso acontece, como é possível, responder a isso seria não filosófico. Este influxo é postulado; não pode ser compreendido nem explicado” (GA IV/1, 162).

[72] GA IV/1, 414-415. Veja-se também GA II/4, 285-287.

[73]  Essa ideia aparece categoricamente expressa no artigo “Sobre o fundamento da nossa crença(GA I/5, 353, mas também nos §§ 4-9 da Ética de 1798, e em A destinação do homem, Livro III I, GA I/6, 261-265, no final do qual lemos: “[...] conhecemos porque estamos determinados a agir; a razão prática é a raiz de toda a razão”.

[74]  FICHTE, Escritos de justificação jurídica, GA I/6, 45-47.

[75]  FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 282. “Não a partir do mundo”, nem da sua contingência nem da sua finalidade, “[...] mas de nós mesmos procede a divindade” (op. cit., 288).

Pretender explicar a natureza a partir de Deus é imoral, indigno e não filosófico (op. cit., 308).

[76]  GA I/5, 434-435. “Aquilo que para mim é o único verdadeiro e absoluto, para eles simplesmente não existe, não são senão quimeras, fantasmagorias, e o que eles têm por verdadeiro e absoluto, para mim não é mais do que simples fenómeno, sem nenhuma realidade verdadeira” (GA I/5, 444).

[77] FICHTE, A Destinação do homem, Livro Terceiro II (GA I/6, 265-276).

[78] FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 297. “Por exemplo, deve dominar entre os homens uma justiça universal, benevolência e paz, todos devem conhecer a verdade, a natureza deve tornar-se cada vez mais adequada aos fins racionais do homem”, esses são os fins necessários (FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 3189. “O fim último da lei moral é a liberdade e a autonomia absoluta, domínio da razão, bem-aventurança” (GA IV/1, 426), “é que o ser racional se torne absoluta e totalmente livre, autônomo e independente de tudo o que não seja a razão. A razão tem que bastar-se a si mesma”. (Apelo ao público, GA I/5, 426).

[79] FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 301.

[80] FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 304.

[81]  FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 324.

[82] Fichte, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 298-300; veja-se também 303-304; GA IV/1, 427-429, 431. Querer demonstrar o divino é como pretender demonstrar a mim mesmo que eu existo (GA IV/1, 418).

[83]  FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 321.

[84] FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 302-304, 308, 321-322.

[85] FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 302. Kant também falou de um governo moral do mundo, por exemplo: “Uma comunidade ética sob a legislação moral divina é uma igreja que, na medida em que não é um objecto de uma experiencia possível, se chama a igreja invisivel (uma mera ideia da união de todos os homens justos sob o governo divino imediato mas moral do mundo, que serve de arquétipo a todas aquelas que hão-de ser fundadas pelos homens)” (Religion, I, 2, 4, AA 06: 101).

[86] GA IV/1, 434. “Para agir estás tu aqui [neste mundo]; o teu agir e unicamente o teu agir determina o teu valor” (FICHTE, A destinação do homem, GA I/6, 253).

[87] FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 305-308; veja-se também GA IV/1, 436437. A superstição é algo inato em nós, próprio do homem natural (Natur Mensch) (op. cit., 311). Veja-se também GA IV/1, 159 e 163.

[88] FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 306.

[89]  GA IV/1, 438. “Cria a intenção de cumprir com o teu dever e conhecerás Deus, e ainda que apareças aos demais no mundo sensível, para ti mesmo, aqui em baixo, estás já na vida eterna” (FICHTE, Apelo ao público, GA I/5, 429).

[90]  FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 308.

[91] FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 300, 323. Veja-se também GA IV/1, 161 e 413-414.

[92]  GA IV/1, 417. “[…] aquele contentamento e felicidade moral que consiste na consciência do progresso no bem” havia dito Kant, na sua Religião nos limites da simples razão (AA 06: 75 nota).

[93] FICHTE, Apelo ao público, GA I/5, 431.

[94] “Kant acomodou-se frequentemente” (FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 308. Isso destaca Fichte nos seus apontamentos, mas em aula parece ter declarado, sem mais, que Kant se tinha equivocado nesse ponto (GA IV/1, 413-414). Entre ambas as posições, ver GA IV/1, 429.

[95] FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 305. Veja-se também GA IV/1, 436. 101  FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 313-317. Veja-se também GA IV/1, 159-160, 419-426, 437.

[96] FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 321-322.

[97] FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 322. Veja-se também Escritos de justificação jurídica, GA I/6, 53.

[98] GA I/5, 436. Nesta crítica podemos incluir também o Deus postulado de Kant.

[99]  GA I/5, 437-438. Facilmente pode compreender-se o efeito negativo que produzia no público o quadro tão negativo que Fichte desenhava dos seus opositores, e geralmente chocava o tom abrupto e de certa superioridade pessoal que perceberam nos escritos de defesa de Fichte.

[100]  Assim é como fica apresentada por Fichte a constituição da pessoa tanto no Fundamento do direito Natural (1796) como na sua Ética de 1798. Veja-se também A Destinação do homem III, GA I/6, 296.

[101] Um aluno das aulas de Fichte sobre os Aforismos de Platner escreve, nos seus apontamentos: “Pensar Deus seria uma contradição manifesta [convertê-lo-íamos em objecto ou sujeito finito]. Deus há-de ser uma inteligência e ter uma consciência, ou não? Se não tem consciência, então não é Deus, excepto o espinosista, onde o mundo e Deus são o mesmo. Um Deus com consciência pode, certamente, demonstrar-se que só pode ser pensado contendo limitações (Beschränkungen). Eu tenho consciência, isto significa, reflicto sobre mim, mas isso só pode acontecer mediante limitações. Toda a inteligência contrapõe a si mesma algo fora dela e isto, necessariamente, limita-a. E Deus não seria de outro modo, senão como um ser racional igual a nós. A exigência [dos teístas] é, por conseguinte, que se deve pensar uma inteligência que seja infinita, que não pense que existe um mundo fora dela, que encontre tudo em si mesma. Mas não é possível pensar isso, é uma clara contradição” (GA IV/1, 412-413).

[102]  FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 302-304, 308.

[103]  Idem, Apelo ao público, GA I/5, 432.

[104] Idem, Apelo ao público, GA I/5, 426.

[105]  Idem, Apelo ao público, GA I/5, 428-429. A religião não é outra coisa senão a interioridade do ânimo ou Gesinnung, exigida pela moralidade.

[106] Idem, Apelo ao público, GA I/5, 429.

[107]  “Conforme este [Apelo ao público] eu não o tomo [a Fichte] por um negador de Deus, e absolvo-o dessa acusação do Principado da Saxónia. Ele nega Deus-Pai, pois exige uma demonstração da criação. Ele nega Deus-Filho, pois não quer vê-lo representado como um homem jovem, tal como o encontrou nos antigos livros de canto de Dresden. Ele crê apenas em Deus-Espírito Santo, pois a conexão espiritual e ética com o mundo supra-sensível, o dever, a obrigação, o cumprimento de ambos, a justiça, a santificação, ou como se lhe queira chamar, tudo isso junto é para ele Deus, numa palavra, um conceito deduzido (abstracto), ao qual ele inclusivamente nega a existência como algo demasiado sensível” (carta a Herder, de 24 de janeiro de 1799, em Fichte im Gespräch (FUCHS, 1980, v. 2, p. 43).

[108]  FICHTE, Sobre a dignidade do homem (1794), GA I/2, 89.

[109]  FICHTE, Vorlesungen über Platners Aphorismen, GA II/4, 282.

[110] Poderíamos ir mais além do que aqui é referido por Fichte e estender o divino ao não humano, à vida e ao mundo em geral, unificando, na sua pluralidade, a diversidade das suas manifestações aqui assinaladas. Desse modo, o divino não ficaria encerrado no humano, nem sequer no moral-racional, ainda que se dissesse que este último é a sua mais elevada manifestação. Para esse ponto de vista se encaminhará o segundo Fichte, embora com características próprias. Mas este não é o lugar para o explicar.

[111]  A primeira edição surgiu nos finais de 1799 ou nos princípios de 1800.

[112] FICHTE, De um escrito privado, GA I/6, 373-374.

[113]  Idem, ibid, GA I/6, 388.

[114]  Idem, ibid, GA I/6, 381-383.

[115]  Idem, ibid, GA I/6, 290-293.

[116] Idem, A destinação do homem, Livro terceiro III, GA I/6, 280, 285.

[117]  É uma noção que poderíamos retirar do Logos de Heráclito e dos estóicos, ou da ideia de Bem em Platão. Na carta a Schelling de maio-agosto de 1801, Fichte dizia-lhe que ela era o fundamento real (Real-Grund) dos indivíduos (GA III/5, 46).

[118] § 10 e 12; GA I/5, 134, 140-143.

[119]  Veja-se O Contrato Social, livro II, capítulo III.

[120] FICHTE, A destinação do homem, Livro terceiro III; GA I/6, 292.

[121]  Veja-se § 32, GA II/5, 161-163. Quando, no § 33, se diz que o mundo inteligível é resultado desse princípio (o filho de Fichte acrescentou ao texto “princípio absoluto”: GA II/5, 168), indica-se a lei moral em geral (§ 31), a qual determina a cada um o seu dever concreto; sabemos, pela Ética de 1798, que é o impulso natural o encarregado dessa realização dentro da lei moral, que é mista: união de impulso puro e impulso natural. E o mesmo sucede no § 34, onde a expressão “pelo seu poder de reger o mundo” é um acréscimo do filho (GA II/5, 169). Esse princípio é somente sujeito lógico, de modo algum real ou substância” - “a constatar na percepção” é uma alteração de texto feito pelo filho de Fichte, assim como o último ponto do § 37- (GA II/5, 174).

[122]  Idem, ibid, GA I/6, 294.

[123]  Idem, ibid, GA I/6, 295-296. Deus não pode criar directamente o mundo sensível, pois este é criação da nossa representação, fenómeno e não coisa em si (Apelação ao público, GA I/5 433).

[124] Carta de Fichte a Schelling de 27 de Dezembro de 1800, GA III/4, 405.

[125]  Carta de Fichte a Schelling de 31 de Maio de 1801, GA III/5, 45.

[126] A destinação do sábio, GA I/6, 306.