Comentário a “Sobre o estatuto da pobreza em Rousseau”
Renato Moscateli[1]
Referência do artigo comentado: Viana Leite, Rafael de Araújo e. Sobre o estatuto da pobreza em Rousseau. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 6, e02400330, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/16474.
Abordar o tema da pobreza, do ponto de vista da Filosofia Política, é uma tarefa que remete a uma série de questões difíceis, tais como as levantadas pelo artigo “Sobre o estatuto da pobreza em Rousseau”, de Rafael de Araújo e Viana Leite, no qual se oferece uma interpretação que mostra a complexidade com a qual o filósofo genebrino investigou a questão da pobreza, desdobrando-a em múltiplos sentidos e, especialmente, mediante uma perspectiva relacional que a problematiza, seja no interior das sociedades divididas por desigualdades de riqueza, seja na comparação entre povos distintos. Para tanto, os recortes escolhidos pelo autor do artigo foram muito pertinentes, mas não puderam abarcar, mais detidamente, dadas as delimitações próprias da publicação, certas possibilidades de discussão da pobreza com uma mobilização maior do Contrato Social como fonte para esse estudo. Algumas indicações pontuais nesse sentido são feitas no texto, destacando-se a relação entre a pobreza e o problema da desigualdade civil, inclusive com a promessa de um novo artigo, no qual elas serão mais bem desenvolvidas. Diante disso, desejo apenas contribuir aqui com breves apontamentos sobre as reflexões que o tema pode instigar, quando se empreende a leitura do Contrato considerando Rousseau como representante de uma linhagem republicana de pensamento político, da qual também participa Nicolau Maquiavel, cujo nome é elogiado por Rousseau como o de um bom cidadão, o qual havia dado grandes lições ao povo (Rousseau, 1964, p. 409).
Nas obras de Maquiavel, sobretudo nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, delineia-se uma concepção na qual há um valor fundamental para a participação do povo nos assuntos políticos, sendo o povo aí entendido como aquelas pessoas que se distinguem da elite formada pelos grandes do estado. De acordo com o autor, é um fato normal, em todas as cidades, sejam elas principados ou repúblicas, que seus membros estejam divididos em função de seus humores ou desejos opostos, pois os grandes querem comandar e oprimir o povo, ao passo que o povo não quer ser comandado nem oprimido pelos grandes (Maquiavel, 2001, p. 43), conforme ele já havia expressado em O Príncipe. Embora não se trate de uma definição essencialmente econômica, esses dois grupos acabam abarcando, em boa parte dos casos, os mais ricos e os mais pobres, respectivamente, segundo os exemplos dados por Maquiavel mostram, entre eles os extraídos da república romana. Em sua análise acerca das razões pelas quais os romanos foram politicamente livres, ele diverge das opiniões negativas sobre as manifestações políticas do povo e afirma “[...] que quem condena os tumultos entre os nobres e a plebe parece censurar as coisas que foram a causa primeira da liberdade de Roma”, pois “[...] todas as leis que se fazem em favor da liberdade nascem da desunião deles”, isto é, dos humores dos grandes e do povo, “[...] como facilmente se pode ver que ocorreu em Roma” (Maquiavel, 2007, p. 21-22).
Maquiavel pensava que as dissensões entre os patrícios e os plebeus ajudaram essa república a chegar à perfeição, algo que se podia ver pela estabilidade de que ela desfrutou, ao longo de vários séculos. É perceptível, então, que a possibilidade de as classes mais pobres terem espaço para defender publicamente suas demandas frente aos detentores do poder, como um exercício de cidadania, não é apenas necessário para elas atingirem seus próprios objetivos, segundo Maquiavel. Muito mais do que isso, é algo essencial ao bem comum, na medida em que coloca freios aos abusos que os grandes tenderiam a cometer, se lhes fosse permitido dar vazão, de maneira ilimitada, ao seu desejo de dominação. Por isso, Maquiavel defende que, em Roma, a plebe era a guardiã da liberdade, sobretudo por meio da figura de seus tribunos, e não os grandes, como ocorria em outros lugares (Maquiavel, 2007, p. 33).
Os ensinamentos retirados da história de Roma pelo autor, ele pretendia que pudessem servir de instrução para todas as repúblicas, nas quais os membros do povo deveriam ter espaço para atuar politicamente, incluindo os cidadãos mais pobres. Isso nos leva à questão da igualdade política, sem a qual a liberdade não pode prosperar. Maquiavel explica esse ponto pelo contraste, ao dizer que onde há pessoas poderosas o bastante para se colocar acima das leis e das instituições públicas, exercendo um verdadeiro domínio senhorial, elas são inimigas da vida cívica (Maquiavel, 2007, p. 161). Mas essa não é única forma de desigualdade nociva a ser evitada. Segundo Maurizio Viroli (2002), Maquiavel legou uma consideração fundamental para aqueles que pensam sobre a igualdade republicana e têm em vista “[...] a necessidade de assegurar a todos os cidadãos condições sociais, econômicas e culturais que lhes permitam viver com dignidade e autorrespeito”; trata-se da ideia de que “[...] a pobreza não deveria se traduzir em exclusão das honras públicas ou em uma perda de reputação”, e isso exige, na visão de Viroli (2002, p. 66-67),
[...] que nosso governo não permita que a pobreza feche as portas para as carreiras públicas e privadas ou para a educação. Ele deveria fazer isto por razões de justiça, porque a república não pode tolerar uma situação na qual os cidadãos tenham que passar pela experiência humilhante da exclusão, e porque a república deve desejar que as melhores pessoas, e não as mais ricas ou mais privilegiadas, vençam na competição por honras e distinções; na verdade, exatamente porque ela precisa que os melhores vençam, deve exigir que a competição seja justa.
Em complemento a essa lição maquiaveliana, Viroli recorda também a que nos foi deixada por Rousseau. No Contrato Social, a liberdade e a igualdade são erigidas por ele como os principais objetivos da legislação dos Estados legítimos, ou seja, daqueles nos quais o povo é soberano. A liberdade civil significa, para o povo, “[...] a obediência à lei que prescreveu para si” (Rousseau, 1964, p. 365), e demanda que não haja relações de dependência particular, entre os cidadãos, sobrepostas à autoridade que somente as leis emanadas da vontade geral deveriam ter sobre todos, sem distinção. A igualdade produzida pelo pacto social, por sua vez, significa que, “[...] em relação ao poder, ele esteja acima de qualquer violência e jamais seja exercido a não ser em virtude do cargo e das leis; e em relação à riqueza, que nenhum cidadão seja opulento o bastante para poder comprar o outro, e que nenhum seja tão pobre que seja obrigado a se vender” (Rousseau, 1964, p. 391-392).
Mais do que somente uma defesa da igualdade civil, esse princípio de Rousseau reflete a preocupação que o filósofo sempre demonstrou com os males provocados pelas profundas desigualdades sociais construídas no decorrer da história, uma vez que elas condenaram a maior parte das pessoas a uma vida de pobreza e de sujeição, para que uma minoria pudesse usufruir das benesses do trabalho alheio. Sendo o resultado de ações humanas, e não de uma ordem natural inexorável – tal como o filósofo evidenciou na narrativa hipotética contida no Segundo Discurso –, tais desigualdades podiam ser combatidas no interior de um ambiente republicano, no qual os interesses econômicos não dominassem a agenda política, e onde a economia servisse ao objetivo político de dar boas condições de existência para todos os cidadãos. Como Rousseau comenta no Contrato, em sua discussão sobre a legitimação do direito de propriedade, “[...] as leis são sempre úteis aos que possuem e nocivas aos que nada têm. De onde se segue que o estado social só é vantajoso aos homens na medida em que todos têm alguma coisa e nenhum deles tem demais” (Rousseau, 1964, p. 367).
E é exatamente pela consciência de que existe uma propensão, corroborada pela história, de acumulação de bens nas mãos de poucos, levando à miséria de muitos, que o autor alerta para a tarefa política crucial de enfrentar essa “força das coisas” que “[...] tende sempre a destruir a igualdade”, por meio da “força da legislação” que “[...] deve sempre propender a mantê-la” (Rousseau, 1964, p. 392). Tendo isso em mente, Viroli entende que, em nossa época, uma república digna desse nome precisa assegurar “[...] que cada um tenha direito ao trabalho e aos direitos sociais que o(a) impedirão de atingir o fundo do poço quando um infortúnio ocorrer”; isso não implica o uso de políticas voltadas a “[...] criar clientes vitalícios do Estado”, ou “[...] sancionar certos privilégios e falhar em encorajar os indivíduos a ajudar a si mesmos. Nem deveriam ser confundidos com a caridade pública (ou pior, privada)”. Enfatiza Viroli: “Estar doente ou velho não é crime”, e poderia ser acrescentado, ser pobre também não. “Uma república não é uma corporação com fins lucrativos, e sim um modo de vida em comum que busca assegurar a dignidade de seus cidadãos, de modo que ela tem o dever de oferecer assistência não como um ato de compaixão, mas pelo reconhecimento de um direito de cidadania” (Viroli, 2002, p. 67).
Nada mais coerente com o que o próprio Rousseau havia definido como o cerne do contrato social (Rousseau, 1964, p. 360), a saber, formar uma associação civil na qual a força da coletividade é direcionada para proteger a vida e os bens de cada um de seus membros, garantindo-lhes ainda a liberdade, a igualdade e o bem-estar dos quais somente os cidadãos de uma república podem desfrutar.
REFERÊNCIAS
MAQUIAVEL, N. O príncipe. 2. ed. Trad. Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
MAQUIAVEL, N. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
ROUSSEAU, J-J. Œuvres Complètes. Paris: Gallimard, 1964. V. 3.
Viana Leite, R. de A. e. Sobre o estatuto da pobreza em Rousseau. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 6, e02400330, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/16474. Acesso em: 09 set. 2024.
VIROLI, M. Republicanism. Trad. Anthony Shugaar. Nova York: Hill & Wang, 2002.
Submissão: 04/11/2024 – Decisão: 06/11/2024 – Revisão: 10/11/2024 – Publicação: 25/11/2024
[1] Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, GO – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6015-3752. Email: rmoscateli@hotmail.com.