Comentário a “G. E. M. Anscombe: uma alternativa à filosofia da ação padrão”

 

Marciano Adilio Spica[1]

 

Referência do artigo comentado: MARQUES, B. S. G. E. M. Anscombe: uma alternativa à filosofia da ação padrão. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 2, “Perspectivas femininas no pensamento filosófico”, e02400275, 2024.

 

Uma das injustiças que os estudos filosóficos precisam tentar evitar, ao máximo, é aquela que relega certos pensamentos, pensadores e pensadoras ao esquecimento por indiferença. Todas as vezes que leio algo escrito por G. E. M. Anscombe, sinto que ela sofreu desse tipo de injustiça, principalmente nos estudos filosóficos em língua portuguesa. Isso fica mais claro, quando vemos a demora que tivemos para termos algumas traduções da obra de Anscombe – o que dificultou e ainda dificulta o acesso a seu pensamento, principalmente por estudantes de graduação –, ou da quase inexistente literatura sobre ela, em língua portuguesa. Mas essa injustiça também aparece nas respostas prontas e claramente sem leitura ou curiosidade, quando Anscombe é citada, alegando que seu pensamento foi superado ou que outro pensador é mais relevante. Marques (2024) não comete esse tipo de injustiça e mostra a relevância do pensamento de Anscombe e como uma leitura atenta de sua obra pode mudar o modo como vemos a própria filosofia moral.

O texto que ora comento é justo, em, no mínimo, dois sentidos. Primeiro, traz uma discussão detalhada sobre os fatos que influenciam a escrita de Intenção, uma das principais obras de Anscombe. O artigo retrata as críticas dirigidas por Anscombe à filosofia moral de sua época (e, por que não dizer, de nossa época), as quais foram muito bem sintetizadas pela filósofa, em seu famoso e denso artigo “Modern Moral Philosophy” (1958), um clássico da ética contemporânea que influencia toda uma geração de filósofos e filósofas morais. Apresenta também como importantes discussões da época, entre elas a distinção fato/valor e a teoria do duplo efeito, são vistas pela filósofa.

Mas, para além disso, aponta como, para Anscombe, tais críticas não se restringiam apenas às questões puramente filosóficas, mas também ao modo como se interpretavam importantes questões do dia a dia, fazendo uso dessas mesmas criticadas teorias morais, como na famosa e, para Anscombe, inadmissível, homenagem da universidade de Oxford a Harry Truman. Mais do que uma introdução, nesse sentido, tal recuperação dos fatos e ideias que levam Anscombe a escrever Intenção são uma espécie de chave de leitura, a qual nos indica que a obra foi escrita dentro de um contexto de intenso debate sobre os problemas da filosofia moral, fazendo, assim, justiça ao papel da filósofa nesses debates, tanto em termos teóricos quanto em questões práticas de julgamento e de tomadas de decisões morais.

O segundo sentido no qual o texto aqui comentado faz justiça a Anscombe é ao mostrar a complexidade do tratamento que a filósofa dá ao conceito de intenção. Nesse sentido, Marques (2024) evidencia, através de uma excelente revisão bibliográfica, que Anscombe não entendia intenção como um estado mental, mas que tinha uma perspectiva anticartesiana. O tratamento dado pela filósofa a esse conceito, em Intenção, é o de uma investigação gramatical que faz com que percebamos que, para entender corretamente ações intencionais, devemos estar preocupados com o contexto no qual tal ação é realizada, antes do que com o estado mental do agente. Essa é uma ideia que, sem dúvida, tem influência de Wittgenstein, entretanto, certamente não se restringe ao que ele abordou, como tratarei mais adiante.

Antes, porém, é preciso ressaltar que o modo como a autora conduz a discussão sobre a abordagem de Anscombe abre espaço e faz justiça a respeito da importância de tal filósofa para a filosofia moral. É por causa desse entendimento correto do aparato conceitual de Anscombe que a autora pode defender tal filósofa, diante de ideias segundo as quais a teoria dela poderia ser subsumida à teoria de Davidson, outro filósofo que trabalha com a questão da intenção, ou a de que ele possui uma teoria melhor que a de Anscombe. Marques (2024) demonstra com maestria, ao final do texto, as diferenças entre Davidson e Anscombe e como a teoria do primeiro não se constitui em um problema para as ideias da autora. Todavia, mais do que isso, mostra como as ideias dela são uma alternativa frutífera às filosofias da ação padrão.

Antes de finalizar, gostaria de tocar num ponto que, mesmo sabendo não ser o objetivo do artigo, a meu ver, deve ser apresentado para que se faça ainda mais justiça a Anscombe, a saber, a influência de Wittgenstein sobre a obra da filósofa. Apesar de tal influência ser tratada de forma bastante rápida, no texto, e este não ser claramente o objeto do artigo, a bibliografia utilizada e a ênfase na investigação gramatical dada pela autora pode levar um leitor desavisado a entender que Anscombe não foi tão original em relação à obra de Wittgenstein. Tal mau entendimento pode ser justificado ainda pela amplamente conhecida proximidade de Anscombe com Wittgenstein e sua obra.

Para que tal mau entendimento não ocorra, gostaria de ressaltar o excelente artigo de Marie McGinn (2023), intitulado “Wittgenstein and Anscombe’s Intention”. Nesse artigo, McGinn chama a atenção para a originalidade da filósofa em relação a Wittgenstein. Ela defende que, mesmo quando as ideias de Anscombe têm uma clara origem wittgensteiniana, ela as trabalha de modo distinto, mais sistemático e analítico. Além disso, a leitura que a filósofa faz da obra de Wittgenstein é fortemente influenciada por seu conhecimento das obras de Aristóteles e Aquino e significa um progresso significativo em relação às ideias de Wittgenstein sobre intenção. Em acréscimo, McGinn destaca que Anscombe não compartilhava das mesmas preocupações de Wittgenstein, ao tratar da questão da intenção.

Ela sustenta, por exemplo, que há pelo menos duas ideias desenvolvidas por Anscombe, em Intenção, as quais não estão disponíveis em Wittgenstein. A primeira é que a filósofa trabalha uma distinção entre voluntário e intencional, enquanto Wittgenstein estava preocupado apenas com a distinção entre voluntário e involuntário. Mas, mais do que isso, o último não pensou que essa distinção carregava qualquer conotação ética. A proposta de Anscombe e sua ênfase na importância moral de tal distinção faz com que ela desenvolva uma filosofia da psicologia que serve como base para uma ética de virtudes. Isso, segundo McGinn, não pode ser encontrado em Wittgenstein e é, dentre outras coisas, uma evidência, com a qual tendo a concordar, da originalidade de Anscombe em relação a Wittgenstein.

Como ressaltei acima, não é o objetivo do texto que ora comento examinar as semelhanças e diferenças entre Anscombe e Wittgenstein, e minhas observações sobre esse ponto não devem em nenhum sentido diminuir a importância do texto de Beatriz Sorrentino Marques. Minhas observações são de alguém que é estudioso da obra de Wittgenstein e admirador da obra de Anscombe, com o intuito apenas de evitar possíveis mal-entendidos na leitura do artigo aqui comentado, já que tal artigo deixa, ele mesmo, muito clara a importância, originalidade e força das ideias de Anscombe.

 

REFERÊNCIAS

ANSCOMBE, G. E. M. Modern moral philosophy. Philosophy, v. 33, n. 124, p. 1-19, 1958. https://doi.org/10.1017/s0031819100037943.

ANSCOMBE, G. E. M. Intenção. Trad. Anderson Luiz Nakano. São Paulo: Associação Filosófica Scientiæ Studia, 2023.

MARQUES, B. S. G. E. M. Anscombe: uma alternativa à filosofia da ação padrão. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 2, “Perspectivas femininas no pensamento filosófico”, e02400275, 2024.

MCGINN, M. Wittgenstein and Anscombe’s Intention. Nordic Wittgenstein Review, v. 12, p. 7-33, 2023. DOI 10.15845/nwr.v12.3683.

 

Submissão: 18/10/2024 – Decisão: 22/10/2024

Revisão: 27/10/2024 - Publicação: 25/11/2024



[1] Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO), Guarapuava, PR – Brasil, e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Toledo, PR – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8977-8841. Email: marciano.spica@gmail.com.