Comentário a “A Lógica e os Fatos em Wittgenstein”

 

Antonio Ianni Segatto[1]

 

Referência do artigo comentado: OLIVEIRA, Wagner Teles de. A lógica e os fatos em Wittgenstein. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400218, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15664.

 

O artigo de Oliveira (2024) propõe, entre outras coisas, enfrentar uma dificuldade explicitamente enunciada pelo autor: compreender como a necessidade lógica só pode ser instituída ao longo do tempo e em meio aos fatos que deve determinar ou, em outros termos, de que modo fatos podem exercer a função, se é que exercem, de determinantes lógicos. Negativamente, trata-se de recusar tanto que a necessidade lógica remonta ao domínio mental quanto que ela consiste na generalização de situações empíricas. Positivamente, consiste em mostrar que a maneira como Wittgenstein entende a necessidade lógica reflete “[...] tanto que as regras são justificadas pela própria forma como ordinariamente pensamos e agimos quanto a ideia de que nossos juízos e ações são determinados pelo exercício de uma estrutura de fatos, à qual se submetem o pensamento e a ação” (Oliveira, 2024, p. 7). Pode-se, aliás, ter uma ideia da dimensão da dificuldade enfrentada por Oliveira, notando-se a frequência com que o próprio autor a enuncia ao longo do artigo.

Nesse sentido, destacam-se, a meu ver, duas passagens: “[...] trata-se de compreender que fatos gerais da natureza pertencem à estrutura, que tem a força de condicionar a maneira como agimos e julgamos. De tão gerais, esses fatos não são objeto de pensamento nem de juízos” (Oliveira, 2024, p. 8). Um pouco adiante, Oliveira (2024, p. 10) acrescenta:

A dificuldade é compreender como elementos empíricos poderiam interferir na delimitação do sentido de ações e conceitos, mesmo porque é exatamente na medida em que os limites do sentido não se estabelecem à revelia da experiência que o aprendizado de determinadas técnicas, de cujo domínio depende a elaboração simbólica e a ação envolvidas no uso da linguagem, não seria possível caso a normalidade não tivesse um forte acento normativo. Além disso, é difícil compreender como essa estrutura factual pode manter-se autônoma em relação a elementos exteriores à linguagem dos quais ela própria se constitui. Esse gênero de dificuldade resulta do que nos parece ser um dos principais desafios da filosofia tardia de Wittgenstein: sustentar a autonomia da lógica em relação aos fatos em um contexto no qual não tem lugar a ideia de que a necessidade das regras do sentido seja determinada pela forma essencial que o mundo e o pensamento partilham; aos invés disso, a necessidade passa a ser concebida como relativa ao exercício de regras arbitrariamente instituídas e que refletem os compromissos, intenções e propósitos orientadores dos jogos de linguagem.

 

No presente comentário, não vou discutir diretamente a posição de Oliveira em relação à dificuldade apresentada. Gostaria de comentar brevemente um tema correlato que, surpreendentemente, não faz nenhuma aparição no artigo, a saber: a natureza da lógica segundo Wittgenstein. Com isso, acredito que seja possível repensar a dificuldade enunciada e enfrentada por Oliveira, a saber: a ideia de que a lógica pressupõe algo. Gostaria também de comentar um aspecto, a meu ver, insuficientemente explorado por Oliveira: a natureza dos fatos gerais pressupostos pela lógica.

Antes de tudo, a fim de compreender, embora a traços largos, a concepção wittgensteiniana da natureza da lógica, é preciso dar um passo atrás e compreendê-la sobre o pano de fundo das concepções de Frege e Russell. Em que pese as diferenças entre esses dois filósofos, ambos concebiam a lógica como a ciência maximamente geral. Thomas Ricketts caracteriza a concepção fregiana nos seguintes termos: “Frege tem uma concepção universalista da lógica. Nessa visão, as leis lógicas são verdades maximamente gerais, generalizações substantivas que são ‘sobre a realidade’ da mesma forma que as leis da geometria, física e química” (Ricketts, 1996, p. 123). Dessa concepção universalista da lógica decorre que “[...] os quantificadores que ligam variáveis individuais abrangem todos os objetos” (Heijenoort, 1967, p. 325). Nas leis lógicas, os quantificadores são irrestritos quanto aos tipos lógicos, sejam eles indivíduos, sejam conceitos. Mais importante para a minha caracterização, neste comentário, é o fato de que as leis lógicas são maximamente gerais:

[...] leis puramente lógicas então estabelecem generalizações que, não mencionando quaisquer objetos ou conceitos investigados pelas ciências especiais, não fazem distinções entre eles. É nesse sentido que a lógica, na concepção universalista, é a ciência maximamente geral (Ricketts, 1996, p. 123).

 

Wittgenstein, por seu turno, não concebe a lógica como ciência, nem como ciência que trata de verdades maximamente gerais. Lembre-se de que, no Tractatus logico-philosophicus, as leis lógicas são tautologias, isto é, proposições sem-sentido. As proposições da lógica não representam nada. Apesar disso, mostram propriedades e relações internas: a proposição “p ou não-p” indica que “não p” seleciona no espaço lógico exatamente o que “p” exclui; a proposição “se p e p então q, então q” demonstra que a conclusão está contida nas premissas da inferência. Assim, os princípios do terceiro excluído e o modus ponens não devem ser senão o reconhecimento da existência de determinadas relações formais entre proposições factuais, as quais não configuram supostas verdades lógicas, mas são apenas elementos do cálculo lógico. Sua relevância está justamente no fato de mostrarem, por meio do simbolismo, aquilo que não se pode dizer, pois faz parte das condições que facultam a representação proposicional. Além disso, desde aquele livro, Wittgenstein concebe a lógica como transcendental; e isso, podemos acrescentar, em sentido kantiano. Ele afirma explicitamente, em 6.13, que “[...] a lógica não é uma teoria, mas uma imagem especular do mundo. A lógica é transcendental”.

A esse respeito, recordemos que Kant distingue a lógica transcendental da lógica geral. Esta última “[...] faz abstração de todo o conteúdo do conhecimento, i. e., de toda referência do mesmo ao objeto, e considera apenas a forma lógica nas relações dos conhecimentos entre si, i. e., a forma do pensamento em geral” (Kant, 2015, p. 99 [B79]). A lógica transcendental, por sua vez, contém “[...] as regras do pensamento puro de um objeto”. Ele não se restringe, portanto, aos critérios que definem a lógica geral, a saber: formalidade e generalidade. Na proposição 6.124 do Tractatus, Wittgenstein escreve que “[...] as proposições lógicas descrevem a armação do mundo, ou melhor, representam-na. Não ‘tratam’ de nada. Pressupõem que nomes tenham significado e proposições elementares tenham sentido: e essa e sua ligação com o mundo”. Mas é preciso entender isso como uma pressuposição transcendental, isto é, não como a pressuposição de que algo está assim ou assim, mas de que algo é. Não se trata, portanto, de uma pressuposição factual, algo que uma proposição com sentido possa descrever.

Como se sabe, o retorno de Wittgenstein à atividade filosófica depois de quase uma década, coincide com o abandono do postulado da independência do sentido em relação à verdade, de que o artigo “Algumas observações sobre a forma lógica” é o registro mais conhecido. Não poderia me deter nesse ponto aqui. Cabe apenas salientar que isso parece, como Wittgenstein escreverá na seção 242 das Investigações filosóficas, “abolir a lógica” e, de fato, abole uma certa lógica, precisamente aquela lógica concebida em sua “pureza cristalina” no Tractatus. Como escreve Warren Goldfarb: “Isso certamente abole a lógica no sentido de Frege, de Russell ou do jovem Wittgenstein; pois a lógica no sentido deles requer a ausência de pressuposições que o ‘acordo nos juízos’ nega” (Goldfarb, 1997, p. 88). Tais pressuposições incluem não apenas o acordo nos juízos, mencionado no final das chamadas considerações sobre seguir regras, mas também certos fatos gerais. Em uma passagem das Investigações, Wittgenstein menciona esse ponto explicitamente: “Aquilo que precisamos dizer para explicar o significado (quero dizer, a importância) de um conceito frequentemente são fatos naturais extraordinariamente gerais. Aqueles que, devido a sua grande generalidade, quase nunca são mencionados” (Wittgenstein, 2022, §142).

            Cabe perguntar, pois, qual a natureza dos fatos gerais pressupostos pela lógica. Jean-Philippe Narboux assinala o seguinte:

Que tais fatos sejam pressupostos significa, portanto, que o mundo contribui na sua própria factualidade [...] para a possibilidade de um acordo entre o pensamento e o mundo (para o que Wittgenstein às vezes chama de ‘harmonia’): a verdade de certas afirmações gerais relativas ao mundo condiciona a possibilidade de outras afirmações terem um valor de verdade, condicionando o próprio significado dos conceitos que são predicados por essas afirmações (Narboux, 2006, p. 406).

 

            Além disso, o autor nota que os fatos pressupostos não são apenas gerais, mas também negativos. É apenas por meio de considerações contrafactuais que tais fatos aparecem em sua forma negativa. Pressupomos aquilo cuja não ocorrência se mostra, de maneira contrafactual, enquanto parte daquilo sem o qual o uso de uma norma seria destituída de sentido: “[...] o fato pressuposto consiste, portanto, precisamente na negação do que é previsto no antecedente do contrafactual” (Narboux, 2006, p. 409). A esse respeito, leiamos uma observação reunida em Sobre a certeza:

É absolutamente certo que automóveis não brotam da terra. – Sentimos que, se alguém pudesse acreditar no contrário, então essa pessoa poderia crer em tudo o que nós consideramos impossível, e poderia contestar tudo aquilo de que temos certeza.

Como, porém, essa crença específica se conecta a todas as outras? Gostaríamos de dizer que quem é capaz de acreditar naquilo rejeita todo o nosso sistema de verificação (Wittgenstein, 2023, §279).

 

A certeza desses fatos negativos parece ser a contrapartida da impossibilidade de considerar a ocorrência do que é negado nesses enunciados (Narboux, 2008). Essa impossibilidade, por sua vez, parece ser consequência da circunstância de tais fatos negativos óbvios estarem tão integrados em um conjunto de “fatos” do mesmo tipo que não podem ser admitidos. Tudo se passa como se não se pudesse duvidar de sua “verdade”, sem abrir mão da própria possibilidade de afirmar algo com sentido, como se um certo fato negativo (por exemplo, “automóveis não brotam da terra”) contribuísse, na medida em que está ligado a todo um conjunto de outros fatos da mesma espécie, à delimitação daquilo que pode ter sentido. Desde o Tractatus, Wittgenstein sustentava que “[...] nunca pode haver surpresas na lógica” (Wittgenstein, 1994, 6.1251). Justamente por isso, se fôssemos confrontados com o que tais fatos negam, nós nos depararíamos com surpresas lógicas. A meu ver, essa é a contribuição de tais fatos gerais negativos à lógica.

 

REFERÊNCIAS

GOLDFARB, Warren. Wittgenstein on fixity of meaning. In: TAIT, W. W. (ed.). Early Analytic Philosophy: Frege, Russell, Wittgenstein. Chicago/La Salle, IL: Open Court, 1997. p. 75-89.

Heijenoort, J. v. Logic as calculus and logic as language. Synthese, v. 17, n. 3, p. 324-330, 1967.

Kant, I. Crítica da razão pura. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015.

Narboux, J.-P. L’obvie en négatif. Critique, n. 708, p. 400-415, 2006.

Narboux, J.-P. Y a-t-il jamais de surprise en logique? Logique et téléologie: Kant et Wittgenstein. In: BOUTON, C. ; BRUGÈRE, F. ; LAVAUD, C. (org.). L’année 1790: Critique de la faculté de juger – Beauté, vie, liberté. Paris: Vrin, 2008. p. 283-296.

OLIVEIRA, W. T. de. A lógica e os fatos em Wittgenstein. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400218, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15664.

Ricketts, T. Logic and truth in Frege. Proceedings of the Aristotelian Society, v. 70, p.121-175, 1996.

Wittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: Edusp, 1994.

Wittgenstein, L. Investigações filosóficas. São Paulo: Fósforo, 2022.

Wittgenstein, L. Sobre a certeza. São Paulo: Fósforo, 2023.

 

Submissão: 29/09/2024 – Decisão: 03/10/2024

Revisão: 10/10/2024 - Publicação: 07/11/2024



[1] Professor de Filosofia no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Araraquara, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7463-221X. E-mail: antonio.ianni@unesp.br.