Comentário a “Ontologia social e teoria crítica: em torno do diagnóstico de experiências sociais negativas”: a fragilidade do social e a teoria crítica
Felipe Maia[1]
Referência do artigo comentado: HORA, Leonardo da. Ontologia social e teoria crítica: em torno do diagnóstico de experiências sociais negativas. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 6, e02400282, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15940.
O artigo de Leonardo da Hora (2024) parte da percepção de que a observação de que uma sociedade produz experiências negativas contém, explícita ou implicitamente, uma ontologia social ou ao menos de uma imagem de sociedade. Haveria, assim, uma conexão forte entre a crítica social e a ontologia social, talvez até uma determinação mútua entre proposições de um tipo e de outro. Essa abordagem é bastante interessante e pode ser vista como parte do amplo esforço de tornar explícitos os critérios e os pressupostos das teorias críticas, o que deveria favorecer o seu desenvolvimento e as possibilidades de sua comunicação e de sua efetividade em processos de mudança social. A ênfase na conexão entre a conceitualização do social e a crítica é bem-vinda, pois boa parte da discussão fica, por vezes, restrita aos critérios normativos da crítica ou às estratégias metodológicas, negligenciando que o que se entende por “social” não é isento de problemas e de controvérsias que mantidas num pano de fundo, tenderiam a criar uma espécie de ponto cego para as teorias críticas.
Com toda a sua diversidade interna, é característico dessas teorias o argumento de que as experiências negativas relevantes para a crítica, sejam elas relacionadas a crises, sofrimento, anomia etc., não são o resultado de acidentes ou desvios ocasionais de uma sociedade bem formada, mas encontram sua causa em problemas e contradições intrínsecos ao seu modo de organização ou podem mesmo ser o resultado necessário e esperado do processo de sua reprodução. Como mostra Leonardo da Hora, desvendar o “social” pressuposto nos modelos de crítica torna-se, assim, decisivo para a inteligibilidade da crítica e para o seu desenvolvimento em temas contemporâneos.
Axel Honneth (2007: Cap. 1) argumentou, em artigo bastante influente, que a produção desse tipo de diagnósticos é o ponto forte da moderna “filosofia social”, cuja origem ele remete à obra de Rousseau e acompanha em uma série bastante ampla de autores, de Hegel, Marx e Nietzsche a Weber, Durkheim, Adorno, Arendt, Habermas ou Foucault. Com consciência da origem de seus termos no vocabulário da medicina, ele sustenta que o objeto desses diagnósticos são “patologias” sociais, termo também recuperado por Leonardo da Hora, em seu artigo. Na teoria médica, elas se referem a um estado anormal no organismo e a transferência desse conceito para outros campos, algo que aparece já na psicologia e na psiquiatria, enfrenta o problema da dificuldade de definição do que seria o estado “normal” da mente ou, como em nosso caso, da sociedade. Colocam-se aqui dificuldades que remetem não só aos problemas da ontologia social, mas também aos da epistemologia, pois, como já notava Honneth, a constituição de um ponto de vista externo para delimitar critérios de um desempenho saudável do social revela-se sempre mais difícil, enquanto a redução da avaliação aos critérios dos próprios participantes poderia constituir uma indesejável limitação da filosofia social a procedimentos descritivos, solapando a intenção crítica.
Para relativizar essa dificuldade, da Hora (2024) recorre a um argumento de Freud, sugerindo que é o próprio exame das patologias que pode indicar a normalidade pressuposta, que as disrupturas que produzem o sofrimento permitem a observação das linhas de articulação desfeitas ou virtuais, as quais, presumivelmente, seriam o pressuposto estrutural de uma certa eticidade social. A patologia teria então um valor metodológico, argumento que pode ser aproximado de outros que viram ou veem crises e experiências sociais negativas como uma espécie de equivalente do laboratório científico (ou do consultório psicanalítico) na análise social e conferem a elas um status cognitivo privilegiado. A crise seria uma espécie de hora da verdade, que torna evidente uma realidade contraditória antes velada, argumento que cai bem em abordagens mais estruturais, porém, não resolve por completo a dificuldade de lidar com as diferentes perspectivas do observador externo e dos participantes, nem com os diferentes modos de conceber o social e os processos de sua transformação.
Períodos ou momentos de crise são certamente metodologicamente instigantes, todavia, apenas em uma certa perspectiva teórica, eles teriam o condão de desfazer ilusões e desvelar uma verdade mais profunda; em outras, a crise pode ser pensada como um momento particularmente difícil, no qual os atores trabalham e competem pela redefinição de aspectos significativos de suas práticas, relações e identidades, numa dinâmica de solução de problemas mais aberta. É nessa segunda abordagem que a conceitualização de fragilidade do social ganha relevância e os momentos de crise podem ser dissociados de uma noção mais forte de normalidade[2]. Crises e momentos críticos fazem referência a uma descontinuidade que se contrapõe a rotinas e práticas não inteiramente problematizadas. Como vou sugerir, creio que aqui o vocabulário das patologias do social não é muito desejável, pois se revela bastante dependente de noções robustas do social e não se relaciona bem com a ideia de fragilidade adotada nas formulações do pragmatismo, na teorização de Luc Boltanski, bem exposta e recomendada por Leonardo.
No texto de Leonardo, é bastante oportuna a referência às posições de Marx e Durkheim e não apenas por seu valor de “clássicos” da teoria social, mas, penso eu, sobretudo porque a ideia de uma esfera “social” independente do plano das ações humanas guarda as marcas do tempo histórico. Ela pode ser vista como uma descoberta ou uma invenção do século dezenove, o que não só consolidaria a sociologia como disciplina universitária, na França, mas também marca uma distinção entre a moderna teoria social e a filosofia prática e moral, pontos que têm na obra de Durkheim uma referência decisiva. Nela, o social é concebido como uma “realidade sui generis”, a qual se impõe pelas costas dos agentes e pode ser percebida por seus efeitos, mensurados sob a forma de regularidades estatísticas, numa ontologia social bastante robusta[3]. Também em Marx, o aparato conceitual se orienta para um mundo de coisas e de relações que se autonomizam em relação à vontade humana, variando a leitura do peso que teriam a atividade prática consciente e a dinâmica sistêmica e impessoal das posições estruturadas e da evolução histórica.
Ambas as formulações, de Marx e de Durkheim, podem ser percebidas como uma tentativa de responder a um problema então novo, que se apresentava com a dificuldade de dar inteligibilidade e até previsibilidade a um conjunto de práticas e de relações que resultam de um ordenamento, ao menos formalmente, comprometido com princípios de liberdade e autonomia individuais, decorrente das revoluções do século dezoito[4]. Elas configuram o quadro emergente dos regimes políticos liberais constitucionalizados que combinaram elementos de uma democracia restrita, mas em expansão, com a economia capitalista. A precariedade da resposta do liberalismo a essa questão está no pano de fundo das crises sociais, as quais levariam a transformações importantes no pensamento social, seja pela profunda rearticulação dos pressupostos individualistas na economia neoclássica, seja com as formulações da teoria social hoje “clássica”.
Nesta última, a descoberta de um social profundo, persistente e influente, que poderia ser cientificamente conhecido, seria um recurso para oferecer caminhos explicativos para os problemas do tempo, em especial, o assim chamado “pauperismo” do século dezenove, as crises de integração das classes populares no processo de modernização capitalista e os problemas do ordenamento político. Essa compreensão e a imagem de sociedade a ela associada ganhariam grande relevo público com a mobilização das ciências sociais, para justificar e orientar políticas regulatórias e de oferta de serviços públicos nos estados de bem-estar social do pós-guerra, bem como políticas de “modernização” e state building na periferia do sistema.
É essa articulação que entra em crise nas últimas décadas do século passado. Há muitas formas de perceber a fragilidade do social escondida no fundo do que já se chamou de um capitalismo “organizado”. A crítica de Hannah Arendt à destruição do espaço público e do mundo em comum pelos totalitarismos do século valeu-se de um conceito mais fenomenológico de mundo, o qual apontava nesse sentido. São também importantes as críticas de Canguilhem e de Foucault ao trabalho de normalização do corpo humano pela medicina e pela psiquiatria, assim como a crítica às epistemologias tradicionais em Dewey e também na teoria frankfurtiana. Politicamente, as guerras coloniais e as rebeliões juvenis (simbolizadas no maio de 1968) dão visibilidade às funções repressivas necessárias à produção e à manutenção de uma ordem social, cujos fundamentos se revelam não só contingentes, como também arbitrários. A sociologia problematiza as teorias da modernização e o estrutural-funcionalismo e incorpora a linguagem da crítica e da reflexividade, em obras influentes, tais como a de Alvin Gouldner ou de Pierre Bourdieu, que viam a disciplina como uma espécie de “caçadora de mitos”, crítica da “construção social” da realidade e da violência simbólica que subsiste nela – vide Bourdieu e sua tentativa de visibilizar o trabalho institucional necessário à produção e reprodução das continuidades da vida social e o paralelismo que estabelece com as categorias linguísticas de classificação social protegidas ideologicamente por procedimentos de “naturalização”.
A crítica, no entanto, oscila entre a afirmação de um plano do social aberto à agência autônoma de sujeitos livres e a postura mais circunspecta (e negativa) da observação de regularidades que podem ser remetidas ao modo como se dão acoplamentos e contradições estruturais resistentes, inacessíveis à ação transformadora. Como notou Honneth, é um problema para as teorias críticas abrir mão da perspectiva estrutural, pelo risco de desarticular a relação entre problemas locais e um regime de causalidade que antecede os fenômenos e as experiências de sofrimento e injustiça. O social talvez não seja tão frágil quanto parece e desconhecê-lo levaria no limite à futilidade da crítica e da ação transformadora local, mais ou menos nos mesmos termos da crítica de Marx e Engels aos socialismos “utópicos”, em nome de uma perspectiva científica que transcende os fenômenos e os contextos.
Por outro lado, a vulnerabilidade das estratégias de ancorar a crítica na definição de fundamentos estruturais mais sólidos torna-se mais visível diante da observação das contingências e das variações estruturais históricas, das quais a própria crítica se alimenta, para denunciar a arbitrariedade das justificações institucionais. A opção de Boltanski em torno de uma ontologia da fragilidade do social procura lidar justamente com isso. A objeção de Honneth (2010) de que ele levaria a uma dissolução do social foi, em alguma medida, contornada pela tentativa, explicada por Leonardo, de trabalhar uma distinção entre realidade e mundo, a qual remete a uma dinâmica de críticas e justificações, que fosse capaz de incluir os momentos de continuidade e descontinuidade, de resistência e de abertura à transformação, presentes nos conflitos e nos processos sociais modernos.
Nas duas formulações, de Honneth e de Boltanski, os momentos de conflito, crise e ruptura possuem um status metodológico privilegiado para a teorização. Boltanski, entretanto, evita o vocabulário medicinal e a qualificação de patologias. O movimento de despir o social de sua transcendência em relação à agência sugere uma modéstia na formulação de argumentos estruturais e a tentativa de acompanhar os movimentos dos próprios agentes de produzir as montées en generalité, isto é, de produzir as relações entre situações locais e um vocabulário de motivos e justificações gerais para lidar com as crises e os momentos críticos. O próprio conceito de “contradição” não se refere aqui a relações de poder estruturadas, mas às dinâmicas específicas que opõem sujeitos e instituições. Esse modelo, conforme o artigo, não impede a identificação de momentos de crítica radical, os quais transcendem os quadros normativos e institucionais atuais e põem em xeque os contornos da realidade, tais como existentes. Ao contrário, ele busca dar conta das dificuldades de sua afirmação, diante das assimetrias de poder e de credibilidade (Boltanski, 2011).
São boas razões, como evidencia Leonardo, para continuar a desenvolver uma ontologia da “fragilidade” do social. Acredito, no entanto, que esse movimento seria mais frutífero, se não estivesse ancorado na linguagem das patologias, ao menos não do modo como feito por Honneth, que parece dependente de um conceito de normalidade com conotações excessivamente funcionalistas ou idealistas. Melhor seria confrontar as situações de crise com critérios normativos e expectativas já presentes na experiência histórica e suscetíveis de autoesclarecimento em práticas comunicativas, de livre associação e de solução de problemas abertas às contingências históricas, ao pluralismo e à incerteza presente nos processos de construção de um mundo em comum carece de um fundamento transcendental. Para tanto, a atitude pragmatista de sentido democrático e experimental oferece um bom caminho. Ela sugere uma relação entre teoria e prática em que, diferentemente do que sugeriu Honneth, o deslocamento da posição de autoridade, ainda que epistêmica, não diminui o lugar da teoria na crítica social, mas dá a ele um encaminhamento mais compatível com a autocompreensão dos processos discursivos democráticos de que, nessas situações, prevalece a condição igualitária de participantes.
Não quero com esse argumento descartar, de modo sumário, a noção de “patologias” sociais, muito menos a de que há processos e estruturas sociais que causam sistematicamente experiências e até formas de vida tão negativas que podem ser qualificadas como patológicas. Minha sugestão é que a percepção da fragilidade do social amplia as exigências na qualificação desses estados, o que poderia nos levar a ganhos tanto na explicitação dos pressupostos normativos quanto na descrição ou na narração das situações examinadas. Ademais, a discussão acumulada em campos de pesquisa importantes para a teoria crítica, em especial a sociologia histórica e a história social[5], sugerem que o afastamento em relação a concepções mais rígidas do “social” favorece uma compreensão das “lógicas da história” mais sensível às contingências e à indeterminação do resultado dos conflitos entre agentes que competem pela interpretação e pela organização dos arranjos e necessidades sociais. Aqui, processos de mudança social dificilmente encontram pontos de equilíbrio aos quais pudéssemos associar uma noção mais forte de saúde ou normalidade, mas, ao contrário, procedem por deslocamentos e soluções de problemas temporárias, que engendram novos problemas, conflitos e contradições, e assim por diante. Para tanto, a concepção de “fragilidade” seria necessária para evitar a reificação das estruturas ou os pressupostos fortes de uma filosofia da história, que impediriam a observação de mudanças inesperadas nos processos sociais decorrentes do conhecimento e da agência de atores localmente situados, assim como para destacar o trabalho de estabilização feito pelas instituições que conquistam autoridade para tanto, que se torna mais visível nos momentos de disputa ou de crise, mas que não elimina a “incerteza radical”, nas palavras de Boltanski, sempre presente.
Creio que há algo disso no modo como Honneth lidou com as lutas por reconhecimento e como Boltanski e Chiapello pensaram o “novo espírito do capitalismo”. Mas há aqui uma campo aberto, em especial no que diz respeito às dinâmicas políticas pelas quais as sociedades processam os processos de crise, aos quais estão ligadas as dinâmicas de mudança social. Contemporaneamente, o agravamento de processos de maior ou menor duração, que estão na origem de problemas do porte da crise climática, das guerras e da desarticulação do sistema internacional, da deterioração das condições de vida e de participação política em boa parte do planeta, levanta a necessidade de novas interpretações e diagnósticos que sejam capazes de capturar um ângulo histórico e macrossociológico apenas incipientemente desenvolvido até aqui. Se, no passado, o entendimento da fragilidade do social levou a um afastamento das “grandes narrativas” e das “grandes questões”, talvez seja a hora de reatar o fio e constituir programas de pesquisa que permitam à crítica renovar sua relevância, no presente.
REFERÊNCIAS
BOLTANSKI, L. On critique: a sociology of emancipation. Cambridge: Polity, 2011.
CORDERO, R. Crise e crítica: sobre as frágeis fundações da vida social. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades, 2022.
HONNETH, A. Disrespect: the normative foundations of critical theory. Cambridge: Polity, 2007.
HONNETH, A. Dissolutions of the Social: On the Social Theory of Luc Boltanski and Laurent Thévenot. Constellations, v. 17, n. 3, p. 376-389, 24 ago. 2010.
HORA, Leonardo da. Ontologia social e teoria crítica: em torno do diagnóstico de experiências sociais negativas. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 6, e02400282, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15940.
Acesso em: 20/09/2024.
SEWELL JR., W. Logics of History: Social Theory and Social Transformation. Chicago: London: University of Chicago Press, 2005.
WAGNER, P. A sociology of modernity: liberty and discipline. London: New York: Routledge, 1994.
Submissão: 20/09/2024 – Decisão: 23/09/2024
Revisão: 30/10/2024 - Publicação: 07/11/2024
[1] Professor Adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, MG – Brasil e Pesquisador do CNPq. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8184-7040. Email: ffmaia@yahoo.com.
[2] Vale destacar, pela qualidade com a qual abordou a relação entre crise, crítica e a fragilidade do social, o trabalho de Rodrigo Cordero (2022), cujas fontes não são as do pragmatismo francês nem americano, mas uma reinterpretação de argumentos de Benjamin, Adorno, Arendt e Foucault.
[3] É importante lembrar que o argumento de Durkheim se modifica bastante, ao longo do tempo, afastando-se de uma noção muito estrita da exterioridade do social e iluminando os aspectos mais ativos de sua produção, a partir do estudo das “formas elementares de vida religiosa”, dos rituais, práticas e performances, dos elementos de efervescência coletiva que favorecem a imaginação do social, em uma linha de argumentação que não me parece de todo incompatível com a ideia de “fragilidade”.
[4] Para tanto, ver Wagner (1994).
[5] Ver Sewell Jr. (2005).