Comentário a “Schopenhauer socially engaged in India?: on Vivekananda's possible interpretation of Schopenhauerian tat tvam asi”
M. R. Engler[1]
Referência do artigo comentado: Decock, Diana Chao; Debona, Vilmar. Schopenhauer socially engaged in India?: on Vivekananda's possible interpretation of Schopenhauerian tat tvam asi”. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 2, “Feminine perspectives in philosophical thought”, e02400287, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/16198.
Pois o mundo constitui o inferno, e os homens formam em parte os atormentados, e noutra, os demônios (Schopenhauer, 1997, §156).
Estudando o modo como Swami Vivekananda (1863-1902) adotou a compreensão schopenhaueriana da famosa sentença védica, Tat twan asi (tu és isto), o artigo dos professores Decock e Debona (2024) argumenta que, através do mistério das ações compassivas (Schopenhauer, 1997b, §115), capazes de suplantar, como que por milagre, os motivos majoritariamente egoístas da ação humana, seria possível fundamentar uma ética mais ativa do que aquela que aparece n’O mundo como vontade e representação. Ao invés da negação da Vontade, a qual sugere postura quietista ou de viés negativo, poder-se-ia basear a ética na unidade metafísica dos indivíduos e resgatar a compaixão como mais alto princípio e móbile da ação humana. Vivekananda ter-se-ia inspirado na interpretação sui generis que Schopenhauer deu a essa fórmula, para propor engajamento reformista em seu país: a partir do reconhecimento da comunhão metafísica dos seres humanos e do consequente sentimento de compaixão ante o sofrimento alheio, ele pretendia encetar ações concretas para erradicar a miséria de seus concidadãos. Essas ações partiriam da crença de que as desgraças alheias atingem toda a humanidade, pois é apenas no mundo dos fenômenos que estamos apartados de nossos semelhantes.
Schopenhauer poderia ter buscado essa intuição em outras religiões do mundo, já que ela é compartilhada por aquelas tradições que, de uma forma ou de outra, perfilham uma teologia algo monista, na qual os indivíduos e as coisas do mundo são emanações de Deus (Plotino) ou modos da substância divina (Spinoza). Por exemplo, versões místicas do cristianismo sustentam que haveria identificação entre o Eu eterno e o Fundamento divino: “O meu Eu é Deus”, dizia Santa Catarina de Gênova (1447-1510), “[...] nem eu reconheço outro Eu que não seja meu Próprio Deus”. Ou, na peculiar linguagem de Meister Eckhart (1260-1328): “Quanto mais Deus está em todas as coisas, tanto mais está fora delas. Quanto mais está fora, tanto mais está dentro” (apud Huxley, s/d, p. 16, 25; Wehr, 2005).
Schopenhauer julgava que sua concepção da compaixão, em certo sentido, era a realização perfeita da mensagem cristã, apesar da negação de um Deus pessoal e de uma ética deontológica (Schopenhauer, 1997, §163). Entretanto, ele via parentesco mais íntimo entre sua doutrina e demais intuições da Índia, o berço da humanidade, sobretudo no que se refere à dicotomia entre Erscheinung e Ding-an-sich. Tal como o véu de Maia esconde a unidade de todas as coisas, o mundo dos fenômenos, restrito a entidades condicionadas pelo principium rationis sufficientis, oculta a incondicionada unidade da Vontade. Assim, ambas as teorias estão predicadas na ideia de que a individualidade é ilusória e pertence ao mundo fenomênico, uma vez que, no nível metafísico profundo, impera certo monismo do Absoluto (das Unbedingte).
Esse é outro dos problemas fundamentais discutidos no artigo, o qual até agora não parece ter sido resolvido a contento. E por que isso seria um problema? Pois a postura ética derivada da descrição metafísica do mundo, como Schopenhauer insiste, deveria ser a negação da Vontade. Afirmar a Vontade significa afirmar a vida e, por conseguinte, todo o sofrimento que acarreta para os seres individualizados. Do ponto de vista concreto, a satisfação de nossas necessidades físicas, a procriação, as melhores condições para o exercício de nossa potência de viver devem ser evitadas. Nenhuma razão metafísica há para que desejemos prolongar ou melhorar a vida a fim de que atenda a nossos propósitos. Em verdade, Schopenhauer é bastante claro e duro a esse respeito. Com uma riqueza de imagens e a eloquência de um reformador religioso, ele amiúde descreve a vida como dolorida, enganadora e inútil, como um pasto onde obedientes carneiros esperam o abate, enquanto oscilam entre o tédio e a necessidade (Schopenhauer, 1997a, §150).
O sentido imediato de nossa existência é a positividade da dor infindável (der endlose Schmerz) e a negatividade da felicidade e do prazer (Schopenhauer, 1997a, §148), sendo que a inelutabilidade de nosso perecimento sugere que nosso existir é como que uma culpa ou perturbação da paz bem-aventurada do nada (Schopenhauer, 1997a, §156). O querer-viver é obrigado a devorar a própria carne (Schopenhauer, 1997, §173). Mais do que isso, Schopenhauer chega a propor que ações injustas e perversas, as quais são fisicamente um mal, metafisicamente constituem um bem, pois contribuem para a redenção do mundo através da negação da Vontade. Os que sofrem tais ações beneficiam-se com seu sofrimento, porque aprendem a não querer viver, ao passo que os perversos são punidos por afirmar sua Vontade.
Ações injustas ou perversas são, com respeito àquele que as realiza, indícios da força de sua afirmação do querer-viver, e portanto da distância à sua frente em que ainda se situa a verdadeira salvação, a negação da mesma, e portanto a redenção do mundo, e assim também do longo aprendizado do conhecimento e do sofrimento, que ainda há de suportar, até atingir o fim. Com respeito àquele que sofre por causa destas ações, estas, embora constituam fisicamente um mal, são metafisicamente um bem e no fundo uma bem-aventurança, já que contribuem para conduzi-lo em direção à verdadeira salvação (Schopenhauer, 1997, §171).
Não há tergiversar sobre o significado inequívoco dessa passagem; ela desdenha de qualquer pretensão individual na esfera fenomênica e, levada ao extremo, contém a mesma sabedoria do Sileno: “[...] melhor é não ter nascido, ou então morrer o quanto antes” (Schopenhauer, 1997, §172a). Isso é o que os autores, inspirados em artigo prévio de Debona (2015), chamam de a grande ética de Schopenhauer, ou seja, suas considerações sobre a moralidade a partir da perspectiva metafísica de negação da Vontade. Todavia, o problema se instala quando se tenta pensar o que seria sua pequena ética, isto é, o fato de que Schopenhauer abdica de sua metafísica, em alguns momentos, para propor pensamentos intrigantemente eudemonológicos, os quais visam a prolongar nossa vida ou nos ensinar a desfrutá-la de modo o mais agradável possível (möglichst angenehm und glücklich).
Derivaria esse paradoxo da natureza ambígua de Schopenhauer, que era um metafísico profundo, da mais pura gema alemã e, ao mesmo tempo, um burguês desconfiado e com tino de comerciante (der Sinn des Kaufmanns), como outrora afirmou Horkheimer (1972, p. 72)? Seria isso uma pura contradição de seu sistema, ou seja, uma prova de que o filósofo é sempre a maior falácia de sua própria filosofia? Porque é inegável que suas considerações variam entre as mais sublimes reflexões metafísicas, por um lado, e as observações e juízos de valor mais rasos, por outro, alguns dos quais são justos e perspicazes, outros, rabugentos e preconceituosos. Conforme Horkheimer (1972, p. 71) observou, por possuir visão atomizada do indivíduo em sociedade, derivada do Iluminismo, sequer faz sentido para Schopenhauer alguma forma de ação histórica (Sinnlosigkeit geschichtlichter Anstrengungen). A história apenas modifica o cenário e os atores, porém, encena sempre o mesmo drama da Vontade. De resto, a mesma ambiguidade aparece em sua biografia: ao mesmo tempo que não deveria preocupar-se com a morte, algo tão absurdo quanto preocupar-se com o tempo em que ainda não existia, ele guarda uma pistola embaixo do travesseiro e exibe postura prazenteira e otimista: toca flauta depois do almoço e passeia com seu amado poodle. E, não obstante menoscabe mudanças sociais profundas, advoga o bem-estar dos animais, denuncia veementemente a escravidão nos EUA e ajuda a financiar os conservadores contra a revolução de 1848.
Como sabido, essa ambiguidade não passou despercebida a Schopenhauer, o qual a menciona no início de seu tratado de eudemonologia. Ele admite ali que lhe foi necessário fazer uma acomodação (Akommodation) para que pudesse tratar da vida de tal forma que ela fosse afirmada, abdicando (abgehen müssen) da perspectiva superior, ético-metafísica, de sua doutrina (von dem höheren, metaphysisch-ethischen Standpunkt):
Não obstante, para poder abordar o tema [da eudemonologia, que supõe a afirmação da Vontade], tive de desviar-me completamente do ponto de vista superior, ético-metafísico, ao qual conduz minha filosofia propriamente dita. Por conseguinte, toda a discussão aqui conduzida baseia-se, de certo modo, numa acomodação, já que permanece presa ao ponto de vista comum, empírico, cujo erro conserva (Schopenhauer, 2002, p. 1-2).
Ora, essa acomodação resolve um problema prático e permite que Schopenhauer discorra sobre a vida com sua habitual inteligência. Contudo, ele não toca no problema teórico, que continua a assombrar seu sistema. Porque, nota bene, a maioria das ações que nossa perspectiva mortal considera eticamente desejáveis não tem sentido sub specie metaphysicae. Schopenhauer poderia dizer com Heráclito, trocando a palavra Deus por Vontade: τῶι μὲν θεῶι καλὰ πάντα καὶ ἀγαθὰ καὶ δίκαια, ἄνθρωποι δὲ ἃ μὲν ἄδικα ὑπειλήφασιν ἃ δὲ δίκαια.[2] Onde estaria, por exemplo, a altruística nobreza em sacrificar-se para ajudar uma pessoa na iminência da morte, se a morte nada mais é do que o retorno para o absoluto donde essa mesma pessoa saiu? Por dolorida e significativa que seja para o ser humano fenomênico, ela é o simples esvanecer de uma aparência gerada pela exuberante e livre criação da Vontade, sem nenhuma providência ou teleologia (Schopenhauer, 1997, §166). Em suma, vida e morte são moralmente indiferentes do ponto de vista da Vontade, tal como alegria, sofrimento e tristeza; é só no acanhado âmbito fenomênico que esses conceitos têm sentido.
Embora esse seja o problema fundamental a que os professores Decock e Debona aludem no final de seu artigo, ainda seria possível contestar a própria noção de negação da Vontade como lição ética de Schopenhauer (1997, §161). Por que deveríamos negá-la, se o sofrimento produzido por sua afirmação é, ao fim e ao cabo, indiferente no âmbito numênico? De novo, é só como Erscheinung que a negação da Vontade pode trazer alguma paz para os indivíduos ou fundamentar sua ação ética. Como sabido, uma possível resposta para isso estaria no fato de que o caráter individual ultrapassa a aparência e enraíza-se na própria Vontade. Todavia, ao discutir a questão, o próprio Schopenhauer recusa-se a discutir a profundidade desse enraizamento (1997b, §116). Ele insiste no fato de que nossas ações empíricas são condicionadas, não obstante sua origem em uma decisão livre, no âmbito metafísico.
O iluminador artigo dos professores Decock e Debona tem o mérito de enfrentar várias dessas questões e propor um caminho a ser explorado. Ele há de interessar a todo o leitor de Schopenhauer que alguma vez já se deparou com essa incontornável ambiguidade do filósofo e seu sistema.
REFERÊNCIAS
Abendroth, W. Schopenhauer. Hamburg: Rowohlt Taschenbuch, 1982.
Debona, V. A grande e a pequena ética de Schopenhauer. Ethic@, v. 14, n. 1, p. 36-56, 2015.
Decock, Diana Chao; Debona, Vilmar. Schopenhauer socially engaged in India?: on Vivekananda's possible interpretation of schopenhauerian tat tvam asi”. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 2, “Feminine perspectives in philosophical thought”, e02400287, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/16198. Acesso em: 10 set. 2024.
Diels-Kranz. Die Fragmente der Vorsokratiker. Zürich: Weidmann, 1989.
Horkheimer, M. Schopenhauer und die Gesellschaft. In: HORKHEIMER, M. Sozialphilosophische Studien. Frankfurt am Main: Fischer Athenäum, 1972. p. 68-77.
Huxley, A. A filosofia perene. Trad. Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Círculo do Livro, [s/d].
Schopenhauer, A Contribuições à doutrina do sofrimento do mundo. In: SCHOPENHAUER, A. Arthur Schopenhauer. Trad. de Leo Maar e Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. São Paulo: Nova Cultural, 1997a. p. 277-288 (Coleção Os Pensadores).
Schopenhauer, A Parerga und Paralipomena I. In: SCHOPENHAUER, A. Sämtliche Werke. Fünfter Band. Manheim: Brockhaus, 1988a.
Schopenhauer, A Parerga und Paralipomena II. In: SCHOPENHAUER, A. Sämtliche Werke. Sechster Band. Manheim: Brockhaus, 1988b.
Schopenhauer, A. Contribuições à doutrina da afirmação e da negação do querer-viver. In: SCHOPENHAUER, A. Arthur Schopenhauer. Trad. de Leo Maar e Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. São Paulo: Nova Cultural, 1997a. p. 291-300 (Coleção Os Pensadores).
Schopenhauer, A Acerca da ética. In: SCHOPENHAUER, A. Arthur Schopenhauer. Trad. de Leo Maar e Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. São Paulo: Nova Cultural, 1997b. p. 243-273, 1997b (Coleção Os Pensadores).
Schopenhauer, A Aforismos para a sabedoria de vida. Trad. De Jair Barboza. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
Wehr, G. Europäische Mystik. Eine Einführung. Wiesbaden: Panorama, 2005.
Submissão: 27/09/2024 – Decisão: 30/09/2024
Revisão: 05/10/2024 - Publicação: 28/10/2024
[1] Professor Adjunto do Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6752-259X. E-mail: reusengler@gmail.com.
[2] “Para o Deus tudo é belo e bom e justo, os homens, porém, tomaram algumas coisas por injustas, outras por justas” (102-DK, trad. minha).