Comentário a "Perder a mãe: uma categoria colonial?"
Marilia Mello Pisani[1]
Referência do artigo comentado: OSMAN, Elzahrã Mohamed Radwan Omar. Perder a mãe: uma categoria colonial? Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 2, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15226/16831.
Mamãe, não sei por que me deixou tão sozinha. Sem seus beijos, sem seus abraços, sem aquele cheiro de margarina que sempre a acompanhava.
Nunca contei a ninguém quanta falta eu sinto de você. E não aguento mais tanto silêncio. Vou começar a lhe escrever.
(Teresa Cárdenas, Cartas para minha mãe)
Este comentário ao artigo “Perder a mãe: uma categoria colonial?”, de Elzahrã Mohamed Radwan Omar Osman (2024), não foi simples de escrever, e tal dificuldade de escrita é o ponto de partida para pensar o que faz esse texto. Este comentário é, ainda, um convite a perceber os movimentos sutis que o texto produz em nosso corpo, nas memórias e nos afetos que, sugiro, talvez sejam tão fundamentais quanto o cuidadoso trabalho conceitual, o levantamento bibliográfico, as reflexões apuradas tecidas na articulação entre filosofia, teoria social, literatura e psicanálise. Tal como o nosso próprio corpo, composto de camadas sobrepostas e intrincadas de músculos, tecidos, sulcos, vasos, fluídos e órgãos sensíveis, o texto também pode ser lido através das múltiplas camadas que colocam em relação a crítica da história da filosofia, o feminismo e o colonialismo, assim como as "mancadas" cotidianas de nossas vivências, nossos sonhos, amores e desesperos.
Tento, com esta escrita, furar o bloqueio, enfraquecer as resistências, para que o artigo possa ser lido com profundidade teórica e vivencial. Convido a lê-lo com uma "visão tateante", "graças à qual", sugerem Adorno e Horkheimer, em Sobre a gênese da burrice (1985), "[...] também [se] é capaz de cheirar" (1985, p. 239). Enquanto pensava sobre esta escrita, eu imaginava suas e seus possíveis leitores e leitoras e me perguntava o que um texto como esse produziria em cada pessoa. Que tipo de memórias essa leitura chamaria, que afetos e sonhos ela despertaria? O texto é costurado com perguntas e faz emergir ainda outras. Começo com a pergunta inicial: "O que está depois de perder a mãe?" Em torno dessa questão, posta pela historiadora estadunidense Saidiya Hartman, em seu livro Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão (2021), são derivadas "[...] algumas reflexões sobre a catástrofe da perda" (Osman, 2024, p. 1): perda da terra, do parentesco, da memória, do tempo não linear, das origens etc.. São perdas diversas aparecem ao longo da leitura, mas elas conduzem a uma perda fundamental: a perda da matéria, do corpo transformado em mercadoria.
Junto com Hartman e com tantas outras – Alice Gabriel, Angela Davis, bell hooks, Denise Ferreira da Silva, Edouard Glissant, Hortence Spillers, Patricia Hill Collins, Julia Jerusalinsky, Lélia Gonzáles, Rita Segato, Toni Morrison –, a autora costura as diversas perdas cuja "metáfora materna" da perda da mãe permite acessar certos modos de (des)fazer laços sociais, práticas de apagamento de pessoas generificadas e racializadas, formas de violência simbólicas e materiais e processos de opressão colonial e epistêmica. Partindo das críticas feministas, ela encontra no pensamento negro radical os rastros para (re)fazer as possibilidades de vínculo ou, em seus próprios termos, para mater-nar a opacidade. O que teria a ver a perda da mãe, perda simbólica e material, com a proposta de mater-nar a opacidade ao qual o artigo se refere? Recorro a uma nota de rodapé, logo do início do artigo (Osman, 2024):
Utilizo o neologismo “mater-nar”, inspirado na tese de Alice Gabriel (2022), de modo a pontuar, junto à autora, a relação existente na história da filosofia entre o feminino e a matéria. Trata-se, no caso presente, de uma desconfiança em relação ao gênero da materialidade, ao passo que o conceito procura operacionalizar os traços, rastros de inscrições ausentes, de algo que talvez pudesse ter sido do âmbito do material, mas não o é. Trata-se, portanto, de mater-nar a opacidade.
No encontro entre as filósofas Elzahrã e Alice, desenha-se, além de laços de amizade, um diálogo com implicações teórico-filosóficas profundas. Se a proposta de ginealogia desenhada por Alice Gabriel, em sua Tese de Doutorado Materialidade, maternidade e outras matrizes (2022), pensa investigar "[...] o esquecimento do nascimento enquanto origem material do sujeito" (Gabriel apud Osman, 2024, p. 4), querendo com isso sugerir que, no fundamento mesmo da subjetividade moderna, estaria o esquecimento da matéria, transformada em objeto, recurso, reserva, coisa, como também apontado pelas feministas da diferença Lucy Irigaray e Adriana Cavarero; e ainda, que anterior ao parricídio freudiano estaria o matricídio, ou seja, o apagamento da ontologia material da relacionalidade ao impensado e ao não dito; então, Elzahrã costura e enlaça, a partir daí, mais alguns pontos, como: a foraclusão do feminino na história da filosofia e, com isso, a foraclusão do corpo materno e negro nas críticas decolonais; a recuperação de uma metáfora matéria-materna que permita escapar ao essencialismo do feminino para abrir possibilidades de nos havermos, de outros modos, com a perda da mãe.
Perder a mãe seria, nesse contexto, perder a possibilidade de acesso ao próprio corpo, transformado em mercadoria (da reprodução social – gênero – e da escravidão – raça). Em outros termos, na constituição mesma do sujeito moderno-colonial estaria o apagamento de sua origem como sujeito, este que aparece como autocriado, o Robinson Crusoé que surge por geração espontânea e sobrevive sozinho em uma ilha deserta, não parido, não entramado com um corpo-matéria de mãe. Esse sujeito universal e neutro seria a própria a-topia do feminino que funda a história da filosofia, como sugere Osman. O enigma dessa geração espontânea da subjetividade, a qual apaga a sua origem (violenta, porque colonial), não pode ser plenamente resolvido e explicado, porque os referentes de verdade hegemônicos só permitem falar do que pode ser representado como realidade, cópia direta da experiência, portanto, o fato bruto, científico, a prova material final. Mas, como então falar/ressignificar daquilo que foi apagado e cujos rastros não são mais acessíveis, nem mesmo como afeto? Esse é o enigma que importa a Elzahrã Osman. É por meio do recurso a uma releitura crítica da psicanálise lacaniana e ao feminismo negro radical que ela complexifica o trabalho a ser feito.
Com Hortence Spillers, a perda da mãe aparece como perda das possibilidades mesmas de fazer parentesco e como perda da possibilidade de generificar-se como corpo materno, uma vez que cada criança se torna mercadoria para o dono de escravos. Com Rita Segato, a cena repetida e esquecida é a da mulher preta tornada mãe de leite (a mãe preta), na sociedade colonial brasileira, e o seu desaparecimento contínuo, como origem mesma da nação e da família. Em ambos os casos, perder a mãe é perder a possibilidade de inscrição no simbólico, numa leitura via psicanálise onde a "[...] maternidade [seria] o nome da transmissão repetitiva entre gerações de um saber inconsciente" (Osman, 2024, p. 13).
Desse apagamento permanecem apenas traços de um ausente, rastros e marcas de uma pegada cuja origem, na realidade representável, não pode ser acessada. Tais traços, enquanto inscrição psíquica e simbólica, aparecem como um sulco, uma passagem de algo que não está mais lá. Assim, conclui Osman, nem tudo o que está inscrito pode ser evocado, associado ou ligado. No entanto, a inscrição (de uma ausência) não significa perda completa, pois o sulco como passagem possibilitaria "[...] uma abertura ao real do gozo" (2024, p. 15).
Com Lélia Gonzales, rearticula-se uma astúcia, um jogo de cintura, uma possibilidade de acesso a essa memória como rastro do que foi perdido. "Gosto de pensar em um possível deslocamento de uma filosofia da consciência para uma filosofia da memória" (Osman, 2024, p. 15). Se a consciência é o lugar do desconhecido, do encobrimento, da alienação, do esquecimento, do saber, portanto, do discurso dominante e da ideologia; a memória seria "[...] o não saber que conhece" (Gonzáles apud Osman, 2024, p. 16), o lugar de uma inscrição que restitui a estória que não foi escrita, a emergência de uma verdade que se estrutura como ficção. Citando Lélia Gonzalez: "A consciência exclui o que a memória inclui" (Gonzáles apud Osman, 2024, p. 16).
O que fazer, então, com a permanência desse enigma, com a abertura a uma noção de história que se (re)faz, a partir de rastros e como possibilidade de fazer vida, com base nas experiências despedaçadas que nos constituem? E de ins(es)crever outras estórias mais interessantes e menos violentas, que não repitam os apagamentos? Cito Osman (2024, p. 19):
Maternar a opacidade é viver na certeza de que somos enigmas, de que qualquer narrativa de si e do outro será sempre fantástica e espectral - para nós mesmos e para nossa escrita - e que cada um de nós comporta algo de uma opaca difference, que se ins(es)creve e escreve o mundo.
Mater-nar a opacidade. A expressão mesma é um enigma. Mas ela ecoa em tantas literaturas feministas. Trata-se aqui de recuperar um modo de produção de conhecimento mais responsável com os apagamentos que ele produz. Trata-se ainda de deslocar o humano do topo da "cadeia alimentar", lugar arrogante onde ele mesmo se colocou, como superior aos demais seres da Terra, e todos os custos em vida que isso produziu. Em uma época de crises ecológicas, trata-se de entender o lugar da crise, não como desvio de um caminho de progresso, todavia, como resultado de certa postura científica e epistemológica na filosofia e nas ciências. Trata-se de mater-nar os limites do inexplicável e o inaudito. Trata-se de um trabalho dedicado, ativo e delicado com os fragmentos e os restos da materialidade vivida e com as memórias que se quer evitar; ainda, levar a sério os sonhos, o lixo, o descarte, aquilo que jogamos para fora da civilização. Trata-se de recuperar uma prática de cuidado feroz, como dizem os zapatistas (Callahan; Paradise, 2017).
Termino com o que seria o começo deste texto. Recupero as primeiras notas gravadas no arquivo intitulado "restos_Comentário_PerderaMãe_Zarah.doc", que não pareceram adequadas de início, mas que, ao final podem ajudar a encontrar rastros de algum outro começo. E mater-nar isso. Esse seria o início de uma outra ins(es)critura, porque o artigo de Zarah Osman põe movimento a um desejo de escrita, a uma vontade de mater-nar as perdas na e pela escrita. "Que memórias guardas de tua mãe? E da mãe de tua mãe? Lembras o sobrenome materno de tua bisavó? E o da mãe de tua bisavó? Remexo caixinhas, encontro terços, materiais de costura, pequenos pedaços de tecidos descosidos…" Desejo que esse desejo de ins(es)crituras contagie quem ler o seu artigo a mater-nar memórias mais abertas para criar vínculos, a ser menos solipsistas e habitar uma concepção filosófica de mundo e de conhecimento menos submetidas aos limites estreitos da consciência do sujeito, as quais marcam as geopolíticas mundiais e neocoloniais, desde o começo.
Referências
ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Sobre a gênese da burrice. In: ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 239-240.
CARDENAS, T. Cartas para minha mãe. Rio de Janeiro: Pallas, 2010.
OSMAN, E. M. R. O. Perder a mãe: uma categoria colonial?. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 2, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15226/16831. Acesso em: 20 jul. 2024.
CALLAHAN, M.; PARADISE, A. Fierce Care. Politics of Care in the Zapatista Conjuncture, 2017. Disponível em: https://transversal.at/blog/Fierce-Care. Acesso em: 25 jul. 2024.
Recebido: 02/09/2024 - Aprovado: 05/09/2024 – Publicado: 04/10/2024
[1] Universidade Federal do ABC (UFABC), Santo André, SP – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3194-6993. Email: marilia.pisani@ufabc.edu.br.