Comentário a “Crítica à ideia de causalidade de Marx: o Prefácio de 1859

 

Ricardo Pereira de Melo[1]

 

Referência do artigo comentado: Moura, Gedeão Mendonça de. Crítica à ideia de causalidade de Marx: o Prefácio de 1859. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 3, e02400194, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15626.

 

§1

O artigo “Crítica à ideia de causalidade de Marx: o prefácio de 1859” de Gedeão Mendonça de Moura, traz um importante aporte para o entendimento da obra de Marx, procurando discutir a concepção de história, levando em consideração algumas argumentações presentes no prefácio do livro Contribuição à crítica da economia política. Apoiando-se na ideia de “causalidade no sentido forte”, presente na tradição inglesa do marxismo analítico, como Gerald Cohen, Moura pretende apresentar uma crítica a Marx, a partir das categorias forças produtivas e relações de produção.

Apesar de concordar com Moura sobre os problemas teóricos envolvendo o Prefácio de 1859[2], penso que Marx se afasta dessas “noções de causalidade” nos Grundrisse 1857/1858 e n’O capital. Segundo Moura (2024, p. 02), Marx “[...] oito anos depois, abre sua obra magna, O Capital, endossando a sua Crítica de 1859, tomando aquela como uma retomada ou continuação (Fortsetzung) dessa”. Embora Moura admita que “[...] a noção de progresso histórico tenha passado por significativas transformações”, para ele, existe uma certa continuidade entre o Prefácio e O capital.

Neste comentário, vou procurar mostrar a trajetória editorial da Contribuição e o “descolamento” do famigerado Prefácio, diante do projeto de crítica da economia política. A nosso ver, a noção de continuidade entre a Contribuição e O capital, citada no artigo de Moura, está mais presente na discussão de Marx sobre a mercadoria e o dinheiro e a crítica às concepções monetárias do socialismo proudhoniano[3].

 

§2

 

Para entender o lugar da Contribuição à crítica da economia política, de Karl Marx, publicada em 1859, em Berlim, no contexto das obras completas do autor, é interessante revisar alguns detalhes históricos de sua publicação e, também procurar compreender criticamente o destaque alcançado pelo Prefácio dessa obra, nos meios marxistas, principalmente no decorrer do século XX.

“A presente crise comercial me estimulou a dedicar-me seriamente à formulação dos traços fundamentais da Economia Política e, ao mesmo tempo, a preparar alguma coisa sobre a atual crise” (Marx; Engels, 2020, p. 113), comenta Marx a Ferdinand Lassalle sobre a possibilidade da publicação de sua Economia diante da crise econômica que rondava novamente a Europa a partir de 1857. Entre fevereiro e março de 1858, Marx se deparava com mais de 800 páginas de apontamentos, que ainda não tinha um formato acabado para publicação.

Ele evidenciava um novo ciclo de revoluções pela Europa, em decorrência do agravamento da crise econômica e, por isso, sentia a urgência para publicar os primeiros resultados de sua pesquisa sobre Economia. “E, finalmente, foi a perspectiva do ressurgimento do movimento revolucionário da classe trabalhadora que o fez grudar em sua escrivaninha e colocar às limpas, por escrito, as coisas que vinham ocupando incessantemente sua cabeça por muitos anos” (Mehring, 2014, p. 285).

É nesse momento que Marx busca a ajuda de Lassalle, a fim de mediar um editor em Berlim, devido à influência que esse tinha na Alemanha: “[...] ficaria muito grato a ti se pudesses ver se, em Berlim, há algum empresário disposto a isto” (Marx; Engels, 2020, p. 117). A proposta inicial de Marx era publicar os seus resultados de pesquisa “[...] em fascículos, sem estabelecer uma periodicidade entre eles” (Marx; Engels, 2020, p. 117). Marx pensava que, dessa forma, seria mais fácil achar um editor para investir no livro, pois, caso os primeiros fascículos não tivessem alguma venda, não publicaria o restante.

No final de março de 1858, Lassalle conseguiu um editor, o berlinense Franz Duncker, que aceitou publicar a obra em fascículos, conforme desejado por Marx. Originalmente, o plano era a publicação em 6 livros, divididos da seguinte forma: “1. do capital, 2. propriedade fundiária, 3. trabalho assalariado, 4. Estado, 5. comércio internacional, 6. mercado mundial” (Marx; Engels, 2020, p. 118, 125-126, 136), sendo o primeiro intitulado “Capital em geral”, dividido em três partes: “1) valor; 2) dinheiro e; 3) capital em geral (processo de produção do capital, processo de circulação do capital, unidade de ambos ou capital e lucro, juro) – o fascículo constituirá um folheto independente” (Marx; Engels, 2020, p. 125).

Com alguns meses de atraso, o livro finalmente aparece com uma edição de mil exemplares, no dia 11 de junho de 1859. Além do Prefácio, o “primeiro fascículo” apareceu com o dobro de páginas em relação ao combinado entre Marx e Duncker e com apenas dois capítulos: 1) A mercadoria, que “[...] não estava previsto no projeto inicial” Marx; Engels, 2020, p. 133); 2) O dinheiro ou a circulação simples, deixando de fora a parte 3) o capital em geral. O próprio Marx justifica a exclusão da 3ª parte, em carta a Lassalle:

 

Tu te darás conta de que a primeira seção não compreende ainda o capítulo principal, isto é, o terceiro, no qual se trata do capital. Considerei que era melhor assim, por razões políticas, porque a batalha propriamente dita começa com este capítulo três e me pareceu prudente não amedrontar já de entrada. (Marx; Engels, 2020, p. 143).

 

§3

 

Pode-se dizer, sem exageros, que a maior lembrança que a história do marxismo tem da Contribuição de 1859 é o Prefácio. Não resta dúvida de que as poucas páginas desse texto, fizeram um grande sucesso nos meios marxistas após a morte de Marx.

Destarte, o Prefácio não foi encaminhado para a edição junto com o conteúdo do livro. Enquanto o texto em si foi conduzido ao editor em Berlim, por volta de 26 de janeiro de 1859, por sua vez, o prefácio foi postado em 23 de fevereiro de 1859. Essas poucas páginas ainda tiveram uma nova edição, na revista Das Volk, mas sem muito alarde, no século XIX. Nesse sentido, alerta um biógrafo de Marx:

Quando o manuscrito foi finalmente publicado no começo de junho, a parte mais importante era de longe o prefácio que continha uma descrição da concepção materialista da história como Marx jamais tinha feito (McLellan, 1990, p. 329).

 

Talvez como ironia da história, o Prefácio teve “vida própria” diante do conjunto da Contribuição. A obra de 1859 nunca teve a publicação prometida no formato de fascículos, sendo que o capítulo sobre o “capital” nunca foi publicado como continuidade do livro.

As famosas passagens do Prefácio tornaram-se, no século XX, uma verdadeira declaração dos princípios fundamentais do “materialismo histórico” e, não à toa, importantes dirigentes da social-democracia e dos partidos dogmáticos ligados à União Soviética se utilizaram dos trechos para divulgar a pretensa teoria geral da história, uma teoria determinista e dogmática. Realmente, conforme afirma Moura, Marx: 

[...] jamais rejeitou ou mesmo se propôs a qualquer autocrítica do seu prefácio à Zur Kritik der Politischen Ökonomie (1859), o que nos autoriza a pensar que o que foi declarado por Marx nesse texto corresponde, em grande medida, à sua concepção filosófica de base (Moura, 2024).

 

Contudo, também é verdade que Marx raramente fazia uma revisão dos seus trabalhos anteriores a O capital. Para listar um exemplo, no caso do Manifesto comunista, Marx admitiu em cartas que seriam necessárias algumas alterações empíricas das transformações políticas e partidárias contidas no livro e, mesmo assim, ele rejeitou fazer mudanças no livro, citando-as livremente no capítulo XXIV de O capital.

Franz Mehring, primeiro biógrafo de Marx e membro da social-democracia, não economizou em sua obra para destacar e repetir os argumentos contidos no Prefácio ressaltando a importância científica para o desenvolvimento da teoria do materialismo histórico (Mehring, 2014, p. 286-287). Em outra biografia de Marx publicada em Moscou pelo Instituto de Marxismo-Leninismo, P. Fedosseiev destacou, acerca do Prefácio: “Esta formulação clássica das conclusões e das teses essenciais do materialismo aplicados às relações sociais faz do prefácio um documento com um valor científico próprio” (Fedosseiev, 1983, p. 367)

No entanto, quando o Prefácio é lido em conjunto com a obra madura de Marx, tanto comparando com as partes sobre a história contidas no Grundrisse de 1857-1858 quanto com O capital, pode-se notar mudanças significativas ao trato das formas de produção e as relações sociais por elas engendradas[4]. Longe de qualquer teoria esquemática da história ou de sucessões lineares de modos de produção tão caros ao stalinismo, o Prefácio foi, em certo sentido, desvirtuado da sua real significância da história das obras completas de Marx. Enfatiza Jones, em sua biografia sobre Marx:

O problema do prefácio de 1859 era que, na ausência do capítulo sobre o capital, Karl tentou apresentar o livro sem mencionar a forma-valor. Com isso, a complexa relação dialética entre matéria e forma foi substituída por uma relação grosseira e mecânica de determinação entre base e superestrutura (Jones, 2017, p. 436).

 

Em outra biografia recente sobre Marx, Paulo Netto afirma:

[...] se considerado em si mesmo e isoladamente, o prefácio, pelo modo metafórico como põe a relação entre base e superestrutura, abre a via para simplificações redutoras, seja na apresentação da obra marxiana, seja na análise da sociedade burguesa – e, é preciso dizê-lo enfaticamente, tais simplificações são estranhas ao pensamento de Marx, como se pode documentar amplamente. Entretanto, esse reducionismo (que o velho Engels não deixou passar em branco) comprometeu não poucas produções que se pretendiam inspiradas em Marx (Paulo Netto, 2020, p. 344).

 

Para encerrar a argumentação, seguindo na mesma direção de Jones e Paulo Netto, na apresentação da tradução mais recente da Contribuição, Grespan indica acertadamente:

Aqui, os conceitos de base e superestrutura, forças produtivas e relações de produção são expostos de modo breve, um tanto esquemático, mas com uma clareza talvez inédita em outros textos de Marx sobre o tema, o que contribuiu, sem dúvida alguma, para o sucesso na recepção do prefácio (Grespan, 2024, p. 18 – grifo nosso).

 

As críticas de Moura a Marx a partir do Prefácio de 1859, são bem relevantes, conforme os vários autores de escolas marxistas diferentes citados acima também defendem. Entretanto, é necessário entender a trajetória editorial dos textos de Marx e a sua relação com o projeto de crítica da economia política.

 

REFERÊNCIAS

FEDOSSEIEV, P. N. Karl Marx: biografia. Lisboa: Avante, 1983.

GRESPAN, Jorge. Apresentação. In: MARX, Karl. Para a crítica da economia política. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2024.

JONES, Gareth Stedman. Karl Marx: grandeza e ilusão. Trad. Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

MARX, Karl. Para a crítica da economia política. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2024.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Cartas sobre O capital. Trad. Leila Escorsim. São Paulo: Expressão Popular, 2020.

MCLELLAN, David. Karl Marx: vida e pensamento. Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1990.

MEHRING, Franz. Karl Marx: a história de sua vida. 2ª ed. Trad. Paula Maffei. São Paulo: Sundermann, 2014.

MOURA, Gedeão Mendonça de. Crítica à ideia de causalidade de Marx: o Prefácio de 1859. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da UNESP, v. 47, n. 3, e02400194, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15626. Acesso em: 10 mar. 2024.

PAULO NETTO, José. Karl Marx: uma biografia. São Paulo: Boitempo, 2020.

 

Recebido: 09/08/2024 – Aprovado: 16/08/2024 – Publicado: 23/09/2024



[1] Professor do Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO/UFMS), Mato Grosso do Sul, MS – Brasil. ORCID https://orcid.org/0000-0002-4234-0471. E-mail: ricardo.melo@ufms.br.

[2] Nossa crítica ao prefácio vai por outro caminho filosófico que se distancia tanto das posições da tradição inglesa do marxismo analítico quanto das posições de Moura.

[3] São recorrentes as citações da Contribuição utilizadas por Marx, principalmente no capítulo 3 do Livro I de O capital. Ver (Marx, 1983, p. 83, 92, 100, 106, 107).

[4] Deixamos para uma outra oportunidade, examinar a provável relação entre o Prefácio e as teses engelsianas sobre a “dialética da natureza”, já presentes, em algum sentido, no comentário crítico que ele escreve sobre a Contribuição, publicado, sem autoria, na revista Das Volk nos números 6 e 20, de agosto de 1859.