Entrevista

Entre Educação, Filosofia e Educação Matemática, Filosofia da Educação Matemática

 

Entrevistada: Maria Aparecida Viggiani Bicudo[1]

Entrevistador: Antonio Vicente Marafioti Garnica[2]

 

Resumo: O texto apresenta a entrevista, realizada com Maria Aparecida Viggiani Bicudo, sobre Filosofia da Educação Matemática. A esse tema central vinculam-se outros assuntos, como a experiência da entrevistada no domínio da gestão universitária, o movimento que a levou da formação inicial em Educação aos estudos filosóficos, a criação do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Unesp de Rio Claro e a perspectiva de, envolvida no mundo acadêmico, ser mulher e mãe.

 

Palavras-chave: Filosofia da Educação Matemática. Entrevista. Maria Aparecida Viggiani Bicudo. Gênero.

 

Maria Aparecida Viggiani Bicudo nasceu em Londrina, no ano de 1940.  Graduada em Pedagogia pela Universidade de São Paulo, no ano de 1963, iniciou sua carreira como docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, em 1966. À época da contratação de Maria, a FFCL de Rio Claro, criada ao final dos anos de 1950, se transformava em um dos Institutos Isolados do Estado de São Paulo, que, no ano de 1976, passariam a compor a Universidade Estadual Paulista (Unesp). Maria realizou seus estudos pós-graduados iniciais na mesma USP onde havia cursado a Graduação, sob a orientação de Maria José Garcia Werebe, solidificando a forte aproximação com os domínios da Educação e da Filosofia, consolidados em seu doutorado, defendido na FFCL de Rio Claro, em 1973, sob a orientação de Joel Martins.

Em sua vida acadêmica, ocupou posições de destaque, vinculadas à política e à administração universitárias, tendo sido presidente da Associação dos Docentes de Rio Claro e Pró-Reitora de Graduação da Unesp, por duas gestões consecutivas, além de ter criado (e coordenado, por duas vezes), em 1984, o curso de Pós-Graduação em Educação Matemática da Unesp de Rio Claro, primeiro programa da área de Educação da Unesp e também o primeiro em sua especialidade, em toda a América do Sul[3]. Atuando na formação de mestres e doutores, orientou inúmeros pesquisadores, muitos dos quais, hoje, são referência nesse campo do conhecimento.

Seu sólido vínculo com os estudos filosóficos resultou, por exemplo, na elaboração dos primeiros estudos em Filosofia da Educação Matemática, podendo-se ressaltar, ainda, sua contribuição decisiva para a consolidação desse campo, no cenário internacional, quando, ao final da década de 1980, eram quase inexistentes abordagens que, do ponto de vista filosófico, operassem para fundamentar e tratar conceitos essenciais a uma área do conhecimento – a Educação Matemática – também ela relativamente recente do ponto de vista formal, acadêmico, sistematizado. O trânsito de Maria Bicudo pela comunidade de investigação em Educação e em Educação Matemática, sua atuação – representando essas áreas – na Comissão de Assessoramento do CNPq, a condução segura de seu grupo de pesquisa, de suas orientações, bem como o gerenciamento de revistas especializadas e de Sociedades e eventos científicos, mas também a intenção de registrar e tornar ainda mais visível a Filosofia da Educação Matemática, nos motivaram a compor esta entrevista e submetê-la à Revista Trans/Form/Ação.

O entrevistador conheceu a professora Maria Bicudo no ano de 1982, quando ele era aluno do Bacharelado em Matemática, no câmpus de Rio Claro, e ela retornava para assumir suas funções nessa Unidade. Desde os primeiros momentos, em Rio Claro, a professora Maria começou a oferecer estágios de Iniciação Científica aos alunos do Departamento de Matemática e muitos cursos de extensão universitária para estudantes de todo o câmpus. O entrevistador foi seu orientando de Iniciação Científica  (1983-1984) – estudando alguns textos de Edmund Husserl, mais diretamente relacionados à Matemática – e posteriormente (de 1989 a 1992), seu orientando de Mestrado – estudando as potencialidades do exame hermenêutico a textos didáticos voltados ao ensino de Matemática, em cursos superiores – e de doutorado (de 1993 a 1995), analisando o papel das chamadas “provas formais” ou “demonstrações rigorosas”, para a formação de professores de Matemática, em cursos de Licenciatura. Todos esses estudos foram desenvolvidos sob a perspectiva fenomenológica, tendo como autores centrais, em diferentes momentos, Husserl, Heidegger e Ricoeur.

A entrevista foi realizada seguindo as diretrizes do que temos desenvolvido e chamado de História Oral em Educação Matemática, e todos os movimentos para alcançarmos o resultado que se lerá em seguida, desde os contatos iniciais com Maria, passando pelas edições, correções textuais, até mesmo pela composição e complementação do roteiro, foram acompanhados pela entrevistada, a qual autorizou sua divulgação. Esse procedimento de idas e vindas trata de assegurar ao entrevistado tanto o pleno direito às suas memórias quanto sua participação efetiva na composição e no registro do relato de suas experiências.

 

Vicente: Maria, para iniciarmos, eu peço que você se apresente. Eu poderia fazer isso, mas penso que é preferível que você mesma se descreva, em linhas gerais: minha intenção, aqui, é a de permitir um autorretrato a seu gosto...

 

Maria: Meu nome é Maria Aparecida Viggiani Bicudo. No momento, estou aposentada pela Universidade Estadual Paulista, Unesp, onde minha posição era Professora Titular em Filosofia da Educação, do Instituto de Geociências e Ciências Exatas – IGCE, câmpus de Rio Claro. Hoje, estou como professora colaboradora do programa de Pós-Graduação em Educação Matemática, da Unesp, IGCE, câmpus de Rio Claro. Fiz o curso de Graduação em Pedagogia, Bacharelado e Licenciatura na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade de São Paulo, entre os anos de 1960 e 1963. O currículo desse curso era diferente do atual. Cursei as disciplinas de Introdução à Filosofia, Filosofia da Educação, História da Educação, além de optativas, onze semestres, estudando uma pesada bibliografia de autores dedicados à Filosofia Antiga e Moderna.

Sou uma das fundadoras do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática, do IGCE, Unesp, câmpus de Rio Claro. Coordenei duas vezes esse Programa. Fui Presidente da Associação de Docentes do câmpus de Rio Claro, na segunda metade da década de 1980. Fui Pró-Reitora de Graduação da Unesp, de 1993 a 2001, e uma das fundadoras da Sociedade de Estudos e Pesquisa Qualitativa. Sou Editora da Revista Pesquisa Qualitativa, da Sociedade de Estudos e Pesquisa Qualitativos, avaliada pela Capes como 1-A e indexada no Scopus.  Sou Pesquisadora Pq 1A do CNPq. Coordeno o Grupo de Pesquisa Fenomenologia em Educação Matemática – FEM, constituído no início de 1990. Colaborei com a constituição e o fortalecimento da área da Filosofia da Educação Matemática, em nível nacional e internacional.

 

Vicente: Sua formação inicial, em curso de Graduação, não foi em Filosofia. Daí podemos pensar que, em sua trajetória, houve um movimento que aproximou você da Filosofia da Educação e, posteriormente, da Filosofia da Educação Matemática. Você poderia caracterizar esse movimento?

 

Maria: Ao terminar o curso de Graduação, comecei a lecionar Filosofia para o Curso Clássico, equivalente ao atual Ensino Médio, cujo currículo abrangia três anos de Filosofia. Concomitantemente, dois anos após ter começado a trabalhar como professora, em 1966, fui contratada pela antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, embrião do câmpus da Unesp de Rio Claro, para lecionar Introdução à Filosofia e, posteriormente, assumi a Filosofia da Educação do curso de Pedagogia, permanecendo em tempo integral e dedicação exclusiva, nessa Faculdade. Desde o início, compreendi que a Filosofia da Educação tinha como cerne um pensar filosófico sobre a Educação, donde ser preciso compreender a Filosofia, seu modo de proceder e compreender a Educação, seu cerne e suas práticas vinculadas a um fim. Pus-me, assim, a trilhar um caminho diverso daquele percorrido quando da minha formação, durante o curso de Graduação, uma vez que lá os professores eram formados em Filosofia e estudiosos de temas nucleares a essa área do conhecimento, trazendo sistemas filosóficos como modelos para nortearem os Fins da Educação e as práticas pedagógicas.  

Essa busca me acompanhou pelo curso de Pós-Graduação, realizado entre 1964 e 1965, na USP, na mesma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras onde havia terminado a Graduação. Andei por estudos inovadores no campo da Orientação Educacional, com os recém-publicados livros de Carl Rogers, com foco na ideia do Client Centered Therapy, cujas discussões nos conduziram a expandir essa ideia para a educação centrada no aluno. Ao mesmo tempo, adentrei por estudos de filósofos contemporâneos, com destaque para Martin Buber, visando a embasar a questão do diálogo presente na obra rogeriana. Esses estudos foram bem sucedidos, graças a uma convergência de ocorrências que entrecruzaram pessoas relevantes à minha formação, como o professor Joel Martins, com olhar para a Educação, modos de o conhecimento ser compreendido na dimensão filosófica, com leituras de Ernst Cassirer, da aprendizagem e da psicologia da cognição, com Jerome Bruner, e da aprendizagem significativa de Robert Gagné; da formação da pessoa na dimensão da psicologia social, com pesquisas de George Herbert Mead, indo em direção à  Role Theory e focando a aprendizagem de papéis e respectivos desempenhos; e o professor Rubem Alves, com o olhar voltado para o diálogo buberiano. Essas investigações constituíram a base da minha tese de doutoramento, defendida na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, em 1973[4]. Em 1974, fui para os Estados Unidos, Universidade da California, câmpus de Berkeley, como Research Fellow, e lá permaneci por dois anos, realizando uma pesquisa sobre Ética e Educação. O embasamento filosófico se deu com estudos de obras de Max Scheler, a respeito de valores e de ética; de John Rawls, sobre Justiça (Justice as Fairness), e em Educação, com estudos sobre a aprendizagem de valores, principalmente dedicados à obra de L. Kohlberg e seguidores. Essa pesquisa embasou a tese para obter o título de Livre Docente, em 1979, defendida no câmpus de Araraquara.

Quando voltei dos Estados Unidos, em julho de 1976, a Unesp tinha sido criada, reunindo os antigos Institutos Isolados do Ensino Superior do Estado de São Paulo. A F. F. C. L. de Rio Claro havia sido englobada a esses Institutos Isolados, para a criação da Unesp. Com essa criação, o curso de Pedagogia, sediado em Rio Claro, no qual eu trabalhava, foi descredenciado. Isso acarretou minha transferência para a Unesp, câmpus de Araraquara. Assim, acabei defendendo a minha Livre Docência naquele câmpus, na área da Educação.

Por vicissitudes da vida, não consegui permanecer naquele câmpus e, em 1982, fui reconduzida para Rio Claro, alocada no Departamento de Matemática. Eu já portava os títulos de Mestre, de Doutor e de Livre Docente, com estágio de dois anos no exterior. Estava preparada para avançar com a pesquisa na área da Filosofia da Educação, aprofundando investigações pelas questões do diálogo, da postura do professor, da formação de pessoas, da Educação Ética. O que fazer em um Departamento de Matemática? Precisei focar o curso, a formação de bacharéis e de licenciados em Matemática e em Física. Comecei a lecionar disciplinas optativas de Filosofia da Matemática, Filosofia da Física, buscando compreender do que tratavam essas áreas do conhecimento. Investi em estudos de Werner Heisenberg e de Edmund Husserl.

Os professores e alunos desses cursos me ajudavam a compreender essas ciências. Adentrei pela Filosofia da Ciência e pelo pensar específico da ciência europeia. Buscava me situar naquela nova realidade, onde eu precisava me reinventar profissionalmente. À medida que fui entendendo as forças do Departamento de Matemática, as tendências, as expectativas dos seus professores e as pesquisas que realizavam, juntei-me a eles nos estudos necessários para a criação e implantação de um Programa de Pós-Graduação stricto sensu. Nasce, assim, a Pós-Graduação em Educação Matemática, a primeira no Brasil e, conforme interpretações da filosofia e proposta desse programa, o primeiro da América do Sul, hoje com avaliação 7 da Capes, conhecido e reconhecido nacional e internacionalmente.

Ao mesmo tempo, entre 1984 e 2001, adentrei pela política universitária, inicialmente como presidente da Adunesp, regional de Rio Claro. Participei ativamente, então, pela luta democrática da Unesp, que visava à composição mais abrangente e diversificada dos órgãos colegiados. Posteriormente, participei da administração central da Universidade, sendo nomeada Pró-Reitora de Graduação, em 1993, e reconduzida em 1996. Fui a primeira mulher das três Universidades Estaduais Paulistas – USP, Unesp e Unicamp – a ocupar posição de semelhante estatura, no núcleo político-administrativo dessas universidades.

Avancei com o pensar da Filosofia da Educação para a Filosofia da Educação Matemática. Orientei mais de quarenta dissertações de Mestrado e teses de Doutorado. Com pensadores de outros países, como da Inglaterra, na pessoa de Paul Ernest, e da Alemanha, citando Michael Otte, contribuí com a formação e implantação da área da Filosofia da Educação Matemática. Sou fenomenóloga, trabalho com Martin Heidegger, Maurice Merleau-Ponty, Edmund Husserl e Edith Stein. Meu grupo de pesquisa, constituído no início da década de 1990, Fenomenologia em Educação Matemática FEM –, tem pesquisadores de muitos estados brasileiros e alguns contatos internacionais, sendo composto, hoje, por mais de 40 membros.

 

Vicente: Sobre um ponto específico que você mencionou: ser mulher e ocupar posições até então sempre ocupadas por homens. Ter visibilidade no meio acadêmico, como pesquisadora e gestora, já desde o início da carreira, tendo se aproximado de instituições e pesquisadores de referência, reconhecidamente importantes no cenário nacional da pesquisa e da política educacional, trabalhando com eles, abrindo espaços, muitas vezes de modo inaugural. Tudo isso, hoje, pode ser algo lido como um privilégio, e penso que esse é mesmo um histórico privilegiado. No entanto, os privilégios têm seu preço e muitas vezes não nos são dados, mas conquistados. No desenvolvimento de sua carreira, com esse histórico de atuação, você enfrentou resistências ou mesmo preconceito por, por exemplo, ser mulher?

 

Maria: Eu nunca me senti discriminada nos estudos que realizei e nas posições acadêmicas que fui galgando, por meio de concursos públicos. Sempre entrei focada no conhecimento e na qualidade a ser expressa.

Como professora, sempre fui muito respeitada por todos os alunos, fossem jovens, fossem adultos e, muitas vezes, profissionais já bem-posicionados. No transcorrer da minha vida, principalmente das décadas de 1970-1980 para cá, ao conhecer a luta das mulheres pelos seus direitos, ao tomar ciência do discurso proferido, dava-me conta de que não era aquela a minha luta. Eu me via e me assumia como profissional, não me colocava a questão de ser mulher. Mais do que me assumir como profissional ou como mulher, percebo que sempre vivi e me assumi como pessoa, com fraquezas e forças, gostando e nem tanto de pessoas, de situações e coisas. Durante o tempo em que cursei a Graduação, trabalhei no The First National City Bank of New York, no setor de Revisores, dominado por homens. Portanto, um ambiente não acadêmico. Não me sentia tratada com diferença no concernente às solicitações no trabalho, ao salário e, também, nunca me neguei a uma discussão, colocando meu modo de pensar e minhas requisições. Era uma, com eles.

Mas não posso deixar de destacar o peso da responsabilidade que assumi, por ser mulher e não permitir que as incumbências dessa posição, na família e na sociedade, interferissem, no sentido de bloquear, no meu desempenho profissional. Casei-me ainda no final da Graduação, em 1963. Meu companheiro comungava comigo os valores dos estudos, da pesquisa e da responsabilidade da vida acadêmica, bem como aqueles tidos por nós como norteadores da educação de nossas filhas, que nasceram, respectivamente, em 1965 e 1967. Assim como eu destacava e tinha como importante a qualidade do meu trabalho profissional, o mesmo ocorria no âmbito de minha casa, onde a manutenção de limpeza, organização, administração da economia e cuidado com as filhas imperavam. Com esforço, deixando de concretizar muitas atividades que gostaria de ter realizado, como fazer mais viagens turísticas, frequentar mais festas e me dedicar a mais atividades de lazer, por exemplo, consegui realizar o movimento de conduzir tudo concomitantemente, ora dando preferência a um aspecto, ora a outro, das muitas demandas que me chegavam, no meu cotidiano. À medida que a carreira profissional avançava, podia contar com a presença do meu companheiro de vida, pai de minhas filhas, o qual, quando eu precisava me ausentar por viagens, se incumbia da dinâmica doméstica e do cuidado com as meninas. Entendia e entendo que esse esforço não se deveu apenas e tão somente por ser eu mulher, porém, foi decorrente da escolha feita: ser profissional, casar-me e ser mãe. Tanto que vejo que esse esforço também foi exigido do meu marido, durante os trinta e sete anos em que fomos casados. Cada um o fazia à sua maneira, dadas suas características pessoais. Seria esse sentimento, de não sentir preconceito por ser mulher, devido à clareza do que eu almejava e valorizava?

Porém, resistência percebi haver em algumas situações. Olhando retroativamente, tendo a compreender que as possibilidades de fatos ou aspectos desencadeadores dessa resistência se misturavam por ser eu mulher e por ser eu da área da Educação. Por exemplo, à época da criação da Pós-Graduação em Educação Matemática, em Rio Claro, eu conduzi toda a articulação e redação do projeto e diálogos com o poder constituído da Universidade, tanto por meio de encontros presenciais quanto por documentos respondendo a críticas e encaminhando solicitações. Porém, quando o Conselho do Departamento teve de escolher a pessoa que coordenaria esse programa, indicou um homem. Por ser homem ou por ser ele da Matemática? Outra resistência percebi haver no âmbito da cúpula do poder administrativo da Universidade, quando assumi a posição de Pró-Reitora de Graduação. Nessa época e nesse ambiente, senti alguma diferenciação no tratamento que me era dispensado, por eu ser mulher e por ser eu da área da Educação. Inicialmente, percebia que havia desconfiança quanto a eu dar conta dos encargos daquela posição, muito trabalhosa e com dimensões políticas importantes intra e extra muros da universidade. Essas desconfianças se dissiparam com o passar do tempo, pelo trabalho que desenvolvi. Tanto foi assim, que me mantive por duas gestões nessa posição. Apesar disso, tenho clareza de que o péssimo desempenho na votação para a posição de Reitor, em 2000, quando concorri com mais quatro candidatos homens e das áreas biológica e da saúde, sendo eu da Educação, se deveu, também, a eu ser mulher. Não decorreu do projeto que apresentei, nem do meu conhecimento sobre a universidade, seus problemas e possibilidades que eu visualizava e expunha em debates, nem da minha performance em debates. É notório, também, que a baixa votação não veio apenas dos homens, mas também das próprias mulheres e de todas as áreas.

Porém, na esfera da política universitária junto aos docentes, quando da minha participação na Associação de Docentes – Adunesp – e da luta pela democratização da Unesp, sempre me senti igual a todos, colocando-me de igual para igual, com facilidades em algumas coisas e dificuldades em outras. Foram dois anos de muito trabalho e com muitas viagens, necessárias ao deslocamento entre os muitos câmpus da Unesp e a Reitoria.

 

Vicente: Em linhas gerais, o que constitui uma Filosofia da Educação Matemática? Esse campo é relativamente recente e dialoga, obviamente, com a Filosofia, mas também com a Filosofia da Educação e com a Filosofia da Matemática, todas elas com uma certa anterioridade histórica, no domínio dos estudos filosóficos: como a Filosofia da Educação Matemática se aproxima e se afasta desses campos, de modo a constituir um campo próprio (e novo)?

 

Maria: A Filosofia da Educação Matemática é um pensar sistemático, analítico e reflexivo sobre a Educação Matemática, que sempre, por ser filosófico, olha para o seu foco de estudo de forma abrangente, universal, ou seja, não restrito a uma particularidade desse objeto de estudo. A estrutura da Educação Matemática se evidencia como uma Ontologia Regional complexa, uma vez que se caracteriza como uma região do entre Educação e Matemática, pois não é a soma dessas duas regiões, mas a articulação entre elas. Demanda conhecimento da Matemática e respectivas maneiras de proceder, e da Educação, que abrange a compreensão da pessoa, dos seus modos de aprender e outros aspectos, bem como fins e práticas pedagógicas. 

Pensar filosoficamente a Educação Matemática é característica da Filosofia da Educação Matemática. Ela se evidencia como uma região mais complexa do que aquela da Educação Matemática, por trazer consigo as Ontologias Regionais da Filosofia, da Educação e da Matemática. Do mesmo modo como procedi em relação à Filosofia da Educação, conforme já abordei anteriormente, também com a Filosofia da Educação Matemática entendo que devamos deixar a prática da Educação Matemática falar e ouvi-la com atenção, para que a diversidade e complexidade dos momentos da ação educadora, realizada junto a alunos e com a Matemática, venham à tona e se tornem o material de sustentação, concebido como a realidade analisada, compreendida e refletida filosoficamente, sem renunciar ao rigor da Filosofia e ao da Matemática. 

 

Vicente: Há uma ou há várias Filosofias da Educação Matemática? Como você caracterizaria o que você, particularmente, faz, quando faz Filosofia da Educação Matemática? Há outras abordagens? Como essas abordagens interagem?

 

Maria: Entendo que há uma Filosofia da Educação Matemática, pois vai se caracterizando como uma Ontologia Regional, cujo núcleo é um pensar filosófico sobre a Educação Matemática. Como já mencionei, meu olhar é alimentado pela fenomenologia. Essa linha filosófica evidencia um pensar orientado por uma visão específica de mundo e de conhecimento, levando à compreensão de que não há uma verdade e uma forma de conhecer que se imponha como a correta. Assume-se, porém, que o pensar sobre o dito e o exposto por diferentes modos de conhecer contribui com uma visão mais ampla e, talvez, mais profunda, do tema focado. Dentre as concepções que embasam um pensar filosófico sobre a Educação Matemática, que não a fenomenológica, com a qual trabalho, menciono as da chamada Filosofia Crítica, a qual incide sobre a sociedade; da filosofia de Wittgenstein, que enfoca a questão da linguagem; as pesquisas da linha dos Campos Semânticos, que também recai sobre a linguagem e as maneiras de atribuir significado. Essas, dentre outras linhas filosóficas que pensam a Educação Matemática, possibilitam compreender filosoficamente questões da Educação Matemática. Entendo, portanto, que há um modo filosófico de pensar a Educação Matemática que pode ser realizado, evidenciando diferentes concepções, abordagens e procedimentos de investigação, e que mostra o fenômeno Educação Matemática de diferentes perspectivas. Dada a diversificação de olhares, o ambíguo e obscuro vai se iluminando, criando clareiras e possibilitando mais compreensões sob o olhar indagador daquele que pergunta e que reflete sobre os dados que chegam.

 

Vicente: A dimensão da prática é extremamente significativa para os estudos em Educação Matemática. Ensino e aprendizagem de Matemática ocorrem não apenas nos espaços formalizados, aqueles em que se pode falar em escola, em sala de aula, em professores e alunos. São múltiplas as instâncias e circunstâncias nas quais a Matemática aparece sendo trabalhada, ensinada, aprendida, mobilizada, e são múltiplos os agentes que fazem parte desse movimento. Como a Filosofia da Educação Matemática dá conta dessa diversidade? Como, por outro lado, a Filosofia da Educação Matemática responde à pesquisa em Educação Matemática? Essas duas faces – as práticas de ensinar e aprender Matemática, e as práticas de pesquisar Educação Matemática – estão obviamente interligadas: como a Filosofia da Educação Matemática tem cuidado dessa interligação?

 

Maria: Minha visão sobre a realidade e o conhecimento da realidade, conforme já afirmei, é fenomenológica. Ao assumi-la, não separo a prática e o pensar teórico sobre o que está sob investigação. O trabalho do pensar teórico-filosófico é um trabalho em que teoria e prática estão articuladas de forma intrínseca, uma vez que qualquer desses aspectos que seja colocado em epochè, ou seja, em destaque, enlaça os demais em ação no evento sob estudo, segundo o olhar fenomenológico. Tomemos como foco, por exemplo, o ensino de Matemática/matemáticas. Em uma sala-de-aula-aumentada, em que o professor se dispõe a ensinar Matemática/matemáticas, ele está junto aos seus alunos, pessoas em formação, e também junto à ciência Matemática e às ações matemáticas. É preciso compreender essa complexidade. Não é possível separar esses aspectos. É necessário focá-los e estudá-los concomitantemente. Procedendo fenomenologicamente, descrevem-se as ações efetivadas na dimensão da prática relativas ao fenômeno investigado. Considere, por exemplo, a questão do pensar numérico. Realizam-se atividades específicas com contagem e com números (Anzahl e Zahl) e junto a pessoas que se encontram em situação de poder efetuar esse pensar com ações de contar e de destacar o número no ato de contar. Descrevem-se evidências desse pensar, as quais se manifestam nas ações desencadeadas e pela linguagem que expressa compreensões. Essas descrições são tomadas como os dados de análise, reflexão e interpretação e, em um movimento dialético de dialogar com os dados, concomitantemente com as “teorias” – entendidas como os estudos sobre o tema em questão que dizem da interrogação, e não como postulantes de verdades –, caminha-se em direção às compreensões do indagado.  Essas compreensões podem iluminar outras ações práticas e teorizantes para aqueles que tomem intencionalmente a questão do pensar numérico, no caso desse exemplo.

Enfatizo a sala-de-aula em um sentido muito amplo, denominando-a então sala-de-aula-aumentada, trazendo a ideia de que há alguém que ensina e alguém em situação de aprender.  O “alguém” que ensina pode ser tomado como a pessoa do professor, olhado ao modo tradicional, mas pode ser compreendido como o(s) que pensa(m) a proposta e os meios de realizá-la.

Não gosto da diferença (e não a menciono) comumente apontada entre espaço formalizado, como sendo o espaço da escola tradicional, e não formalizado, como podendo ser o do ensino promovido com recursos midiáticos ou em outros espaços, como o dos museus, praças etc. Isso porque o ensino é pensado, programado, proposto para ocorrer também nesses espaços, quer sejam suas metas colocadas explicitamente ou não. Porém, sua proposta, a respectiva materialidade que a suporta e permite que ela aconteça, é embasada em uma lógica; o formato de sua visualização é decorrente de estudos, tendo em vista a facilidade da apreensão da ideia, tida como relevante para quem efetiva a proposta, transportada pela mensagem. Disso decorre seu aspecto e maneira de acontecer, que sempre traz consigo o formal.

Na realidade em que hoje somos e existimos são realizados modos diversificados de atividades de ensino. Destaco, por exemplo, aquelas que se dão junto às Tecnologias Digitais – TD – e que se lançam em possibilidades de desdobrarem-se no ciberespaço. Estudos que têm sido feitos no FEM evidenciaram que, no ensino promovido junto às TD, as pessoas se fazem presentes. Nesse ensino com TD, estão enlaçados os recursos dessas tecnologias; a região de inquérito, o objeto do ensino; a preocupação com a aprendizagem do aluno, entendido como aquele que está intencionalmente visando à aprendizagem e ao conhecimento de algo; a percepção do outro; os atos cognitivos que ocorrem no diálogo com a lógica do programa que sustenta as atividades na plataforma na qual a sala-de-aula-aumentada se instala e pode ser ativada; e o diálogo com os outros envolvidos nas atividades. Filosoficamente, é preciso indagar: que realidade é essa que se abre com o espaço cibernético? Como as pessoas se fazem presentes, nesse ambiente, ao estar com as tecnologias?  Elas se formam intersubjetivamente, nesse espaço? Como vivenciam a temporalidade singular ao seu movimento de aprender? Como se projetam em horizontes de possibilidades de vir-a-ser?

Para compreender o indagado – e é assim que procedo –, é preciso que a “prática” traga (mostre) o que está se dando, permitindo que o que se mostra seja analisado e interpretado. Por outro lado, a prática é sempre intencional, pois é objeto da visada de quem a ela se dedica, podendo se dar mediante desdobramentos de propósitos claros, quando embasada em reflexões já teorizadas. Entretanto, nunca, eu entendo, isso ocorre segundo o modelo exato da teoria. A teoria é tomada para ajudar a esclarecer o que se pergunta, a compreensão do que se faz etc.

 

Vicente: No âmbito da pesquisa em Educação Matemática, há diversos campos de ação que têm sido chamados genericamente de “tendências”. Cada um desses campos – ou tendências ou subáreas – segue delineando cenários próprios, com conceitos, fundamentações e metodologias próprias, mantendo, certamente, o compromisso de interferir, de um modo ou outro, em situações nas quais a Matemática (ou algo a que podemos chamar Matemática) aparece em situações de ensino e aprendizagem. A Etnomatemática, por exemplo, em linhas gerais, cuida de defender a ideia de que há matemáticas culturais além daquela Matemática produzida acadêmica e profissionalmente pelos matemáticos, e que essas (etno)matemáticas podem e devem participar da formação matemática escolar. A História da Educação Matemática e a História da Matemática, um outro exemplo, buscam entender o que se altera e o que se mantém, na cultura matemática (escolar ou não), considerando o passar do tempo e os diferentes espaços. A mobilização de recursos digitais cria conceitos como “seres-humanos-com-mídias” e “zonas de conforto”, para compreender e projetar possibilidades para o ensino de Matemática apoiadas nos mais diversos recursos midiáticos. São muitos campos a considerar, mas todos eles acabam por buscar apoio em áreas do saber que não apenas a Educação e a Matemática. Como a Filosofia da Educação Matemática tem servido a essas inúmeras abordagens e como essas abordagens são “lidas” pela Filosofia da Educação Matemática? Em outros termos, como a Filosofia da Educação Matemática tem dado poder-de-ação a essas várias formas de compreender e praticar o ensino e a aprendizagem de Matemática?

 

Maria: Entendo que isso é feito, sempre, tomando as pesquisas desenvolvidas e realizando uma metacompreensão a respeito dos seus procedimentos e achados, indagando pela sua força, mediante a constatação da sua presença nas reflexões e práticas pedagógicas em movimento na comunidade de educadores matemáticos. A Filosofia da Educação Matemática levanta perguntas. As pesquisas efetuadas, por exemplo, em História da Educação Matemática e em História da Matemática sobre tal tema, abrangendo tal período, o que dizem sobre Educação Matemática, em termos de fins e de práticas? Qual a concepção de ensino, de educação, de aprendizagem que revelam? Qual concepção de professor explicitam? Com qual concepção de Matemática trabalham?  Essas pesquisas têm sido incorporadas em propostas de políticas públicas concernentes a essa área? Elas têm se tornado um ponto de inflexão para o pensar meditativo sobre as atividades propostas e realizadas em Educação Matemática? Como poderiam, os achados dessas pesquisas, ser interpretados à luz de ações concernentes à formação de professores da Matemática? Quais as lacunas que se mostram, evidenciando questões ainda não focadas ou focadas de forma que se entende como incompletos ou não suficientemente abrangentes?

Para as pesquisas que vêm sendo realizadas no âmbito das etnomatemáticas, por exemplo, poderiam ser endereçadas perguntas a respeito da concepção de conhecimento científico que elas revelam, concebido esse conhecimento como aquele que circula entre a comunidade e que permite explicar acontecimentos, passados, presentes, futuros; a maneira pela qual, nas diferentes culturas, seus conhecimentos são preservados/inovados/modificados; como o rigor do fazer matemático presente nas ações dessas comunidades é assegurado e como é compreendido; qual a concepção de realidade assumida, passível de ser compreendida pela linguagem e pelas respectivas ações das pessoas dessas comunidades; como e o que o conhecimento da Matemática diz dessa realidade. A fim de explicitar ao que aqui estou me referindo, ao mencionar rigor, trago a geometria estudada por Paulus Gerdes, quando ele analisou o trabalho dos moradores de uma comunidade africana produzindo cestos. Seus estudos expunham que a forma e a tecelagem dos cestos eram perfeitas. A Filosofia da Educação Matemática precisa tomar esse material, conhecê-lo, analisá-lo e ir além do visto, podendo formular perguntas que conduzirão estudos, como, por exemplo: no trabalho de produzir cestos, nessa comunidade, como o rigor se mostra? Poderia buscar por essa compreensão mediante diferentes procedimentos. Como o trabalho de produção de cestos era ensinado e como eram exigidas a manutenção da forma e da perfeição do tecer, no realizado pelas pessoas? O autor que aqui mencionei, Paulus Gerdes, enviava seus achados ao grupo de matemáticos do centro de sua formação, na Europa, para analisarem, com o ferramental da Matemática, quais as ideias matemáticas que ali estavam presentes. Eu entendo que a etnomatemática deve focar os fazeres da própria comunidade estudada e buscar entender nela e com ela as perguntas que endereça à Matemática que realizam.

A Filosofia da Educação Matemática é sempre um (re)fletir, voltar-se sobre o realizado ou sobre propostas a serem executadas ou antevistas como importantes pela comunidade. Nesse sentido, ela não efetua um serviço, porém, coloca-se no movimento da metacompreensão, apontando possíveis tendências. Compreender as investigações sobre o fazer matemático presente em outras culturas, do ponto de vista de Filosofia da Educação Matemática, conduziria ao conhecimento do diferente e às reflexões sobre atitudes de aceitação e de percepção do igual e do diferente, levando à busca pela compreensão das lógicas desses conhecimentos, bem como da Matemática, entendida tanto como ciência da civilização ocidental quanto numa perspectiva plural, ampliada, sempre em uma postura analítico-reflexiva, evitando supervalorizar uma concepção em detrimento de outra, procurando trazer ambas para a Educação Matemática e revelando sua importância. Falo da Matemática como ciência da civilização ocidental, pois acredito que ela trabalha com duas questões que lhe são nucleares: a do rigor e a da exatidão. Estas, como entendo, embasada nos estudos da Filosofia da Matemática que tenho feito, estão no cerne disso que é denominado ciência do mundo ocidental, construindo as objetualidades matemáticas que têm se mostrado relevantes e estruturadoras para pesquisas importantes em diferentes áreas e culturas, ocidentais e orientais, como, por exemplo, aquelas da saúde e da tecnologia. O exato advém das propriedades que sustentam sua construção com rigor. Ambos, exatidão e rigor, são expressos na linguagem que embasa a formalização das idealidades matemáticas assim constituídas e produzidas. Daí ser importante compreender a formalização da linguagem, buscando saber o que diz da realidade mundana, como dela se valer em situações específicas e realizar o exercício do pensar analítico e crítico sobre o por ela dito, em termos de verdade, tomada como Matemática, na dimensão em que essa ciência trabalha, que sempre é aquela aberta pela compreensão do possível. Não diz do todo, não é exata para toda e qualquer situação e nem é a medida de todas as coisas, como ideologicamente tem sido imposto, no âmbito da civilização ocidental.  Entendo que, acima de tudo, é preciso evitar cair em ciladas de assumi-la como a única e a melhor ciência, como o parâmetro do certo e do errado de ações que acontecem em todas as esferas da realidade humana. Procedimentos matemáticos que se revelam no fazer de outras culturas evidenciam aspectos diferentes do fazer matemático desse conhecimento denominado Ciência Matemática. Quais? Constitui e produz idealidades tidas como matemáticas e que se mantêm, nessas culturas? Como? Na dimensão sacrorreligiosa? Dos usos e costumes? O que esse fazer matemático revela para além do que se tem entre nós, em nossa cultura, ampliando a compreensão disso que se faz?  Acima de tudo, é preciso manter-se atento, para não se cair refém de modismos, seguindo teorias ou procedimentos sem analisá-los e refletir sobre eles.  Creio que esse pensar realizado pela Filosofia da Educação Matemática põe à luz da compreensão os estudos e respectivos procedimentos das diferentes tendências em Educação Matemática, contribuindo com uma possível Educação Matemática que privilegie os valores da aceitação do igual e do diferente, sem que sejam trabalhados na lógica do sim e não, isto é, do certo e do errado, do bom e do ruim, da separação que sempre acaba por excluir.

 

Vicente: Você tem investigado e orientado inúmeras pesquisas em Filosofia da Educação Matemática. Quais seus temas atuais de pesquisa? Você poderia dar alguns exemplos do que já foi ou tem sido feito por você e seus orientandos? Eu acho que os exemplos podem complementar alguns pontos de vista que você já abordou, ao responder às outras perguntas...

 

Maria: Tenho como meta ficar atenta a respeito do que estamos realizando, sempre olhando para o que tem sido revelado e como temos, no âmbito do FEM, trabalhado com os avanços de nossas investigações. Esse é um trabalho de retomar as considerações anteriores, colocá-las sob foco de indagação. Cito uma investigação em curso, neste momento, a qual está fazendo um movimento de metacompreensão de pesquisas já produzidas no âmbito do FEM sobre Geometria. Esse estudo vai em direção à interpretação do que aquelas pesquisas têm demonstrado a respeito da concepção dessa disciplina e do seu ensino e entendimento da aprendizagem, ao longo das quase três décadas de investigação, analisando as perguntas postas, as concepções assumidas e as práticas pedagógicas indicadas, e indagando, também,  se se mantiveram, modificaram e avançaram: como? Em termos do quê? Essa investigação nos abriu o olhar para a pesquisa fenomenológica efetuada no âmbito do FEM, interrogando se indica haver algum impacto para além desse grupo e como, se for o caso, a Fenomenologia e os achados das pesquisas têm se presentificado.

Focando agora o Como vejo e me dou conta das pesquisas realizadas com meus alunos e membros do FEM, posso afirmar que, ao longo da minha vida como pesquisadora e como formadora de pesquisadores, junto à Educação Matemática, vejo pesquisas já realizadas e com grande potencial para incidir positivamente nas práticas pedagógicas, ao se tomar o ensino de Matemática como objeto, mas que não avançaram. Um exemplo é o trabalho hermenêutico que o professor de Matemática poderia realizar. Outras pesquisas têm-se desdobrado e nos conduzido a compreensões da realidade pelas quais estamos possibilitando que avancemos com mais perguntas e investigações. É o caso dos estudos sobre a realidade em que vivemos hoje. Como compreendê-la, se olharmos para o horizonte aberto pelo ciberespaço?  Essa é uma questão de fundo nas investigações que realizamos, há quase duas décadas, no FEM, em que interrogamos o Lebenswelt (mundo-da-vida), como ele se mostra hoje, com as Tecnologias Digitais – TD – e, em específico, com a Inteligência Artificial – IA.  Em termos das TD, aponto as que incidem sobre o trabalho com o ensino e a aprendizagem da Geometria Dinâmica, em que fizemos estudos avançados a respeito do corpo-vivente, tomando a obra de Edmund Husserl e trazendo o sentido da kinestesia para a atividade com alunos de cursos de Graduação da Matemática. Evidenciamos e compreendemos a dinâmica dos objetos geométricos e a dinâmica do corpo-vivente se movendo e percebendo-se movendo com esses objetos, revelando compreensões. Outras investigações importantes têm sido efetuadas  com a realidade aumentada. No momento, estamos adentrando pelo campo da IA.

Três décadas de investigação é um período longo. Dei-me conta da necessidade de sistematizar o realizado. Essa clareza me conduziu, junto ao FEM e no FEM, a apresentar Uma Filosofia Fenomenológica da Educação Matemática. Esperamos que esse projeto traga seus achados até o final de 2025, em forma de um livro.  

 

Vicente: Finalmente (não por ter se esgotado o manancial de perguntas possíveis, mas por ser necessário encerrar, em algum momento), como você vê as dificuldades de constituir e manter com vigor esse campo de interesses – a Filosofia da Educação Matemática – no domínio da Educação Matemática? 

 

Maria: A grande dificuldade repousa no apagão do pensar reflexivo que se está abatendo sobre o mundo em geral e, em especial, sobre a comunidade da Educação Matemática. Dou-me conta de que vigora o pensamento técnico. O que tem sido denominado o pensamento  de [... ] (álgebra, tecnologia etc.) é uma descrição da lógica do fazer técnico e, em consequência, uma valorização dessa modalidade de pensar e uma exigência de sua presença nos currículos.

Esse apagão está presente, como vejo, também na supervalorização do conhecimento de ciência, em específico, no caso da Educação Matemática, da Matemática presente em outras culturas e a desvalorização da ciência e da Matemática presentes na civilização ocidental. Implantou-se a bandeira pela decolonização. Tem sido evidenciada uma tendência de que o professor de Matemática está sendo formado para não ensinar a ciência do mundo ocidental, pois, conforme repetidamente alardeado, ela é eurocentrada e, portanto, advém de europeus brancos dominadores. Não vejo uma reflexão explícita e assumida pela comunidade sobre o que essa ciência diz e faz, em termos de pesquisas da área da saúde, das tecnologias etc., concretizada no mundo todo, concomitante a um trabalho sistemático de focar críticas, tecidas em um nível filosófico, sobre a imposição dessa ciência ocidental como a verdade que diz do mundo e de sua realidade. Estudos e discussões sobre essas questões evidenciariam as diferenças e, talvez, pudessem agir em direção à complementaridade, entre essas abordagens.  Ao mesmo tempo, estudos e discussões sobre o conhecimento de ciência e, portanto, também de Matemática, realizados por outras culturas, as orientais, as africanas, as indígenas, por exemplo, mostrariam outras maneiras de proceder e de conhecer. Seria praticada a atitude de aceitação do igual e do diferente, tão desejada e proclamada. Mais do que isso, essa aceitação não seria embasada em uma ideologia tão somente, porém, seria refletida, efetivando o esperado do profissional que se preocupa com a pedagogia que sustenta o seu ensino, com a aprendizagem do seu aluno, com os rumos do seu país e com os rumos da humanidade. 

Esse movimento, conforme entendo, demanda o pensar filosófico, ou seja, um pensar que se baseie na análise e reflexão para além do que nos chega, no cotidiano. Não estou dizendo que demanda lições da Filosofia da Educação ou da Filosofia, ou de uma escola/verdade filosófica. Estou enfatizando que é preciso instaurar o pensar, com e junto, sobre nós mesmos, vivendo na realidade em que somos e existimos, bem como a respeito dos modos pelos quais a Matemática se faz presente nessa realidade. A pergunta  que, segundo entendo, deveria ser focada na e pela Educação Matemática, é: como compreender a ciência da civilização ocidental, em específico a Matemática, em termos do  que ela faz e diz da realidade mundana, sem tomá-la como a verdade de tudo o que existe, de tudo o que se conhece e do que se pode conhecer, mas tão somente como um modo de conhecer dentre outros e que é importante sob tais e tais perspectivas; como compreender a ciência de outras culturas, ampliando compreensões e entendimentos, não nos deixando aprisionar pela divisão e pela hierarquia do melhor em relação ao pior? Trata-se de uma postura na qual a ação de pensar se impõe para além de verdades ideológicas impostas, muitas vezes subliminarmente, dada a ação massificadora advinda dos diversos meios. Essa postura somente pode ser mantida com grande esforço e lucidez, no movimento do pensar refletido que se dá na singularidade da pessoa que se é-sendo em formação, vivendo na e com a comunidade.

Between Education, Philosophy and Mathematical Education, Philosophy of Mathematical Education

Abstract: This paper presents an interview carried out with Maria Aparecida Viggiani Bicudo. Its main topic is the Philosophy of Mathematics Education. Other issues are linked to this central theme, such the interviewed’s experience in university management, the movement from her initial formation in Education till her studies in Philosophy, the creation of a recognized and well regarded PostGraduate Programm in Mathematics Education in Brazil, and the perspective of being woman and mother working in the academic world.

 

Keywords: Philosophy of Mathematics Education. Interview. Maria Aparecida Viggiani Bicudo. Gender.

 

Submissão: 28/08/2024 – Decisão: 08/10/2024

Revisão: 15/10/2024 - Publicação: 25/11/2024



[1] Professora aposentada do Departamento de Matemática do Instituto de Geociências e Ciências Exatas – Unesp – Rio Claro. Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Unesp de Rio Claro. http://orcid.org/0000-0002-3533-169X . E-mail: mariabicudo@gmail.com.

[2] Professor aposentado do Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências – Unesp – Bauru. Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática – Unesp – Rio Claro. http://orcid.org/0000-0003-0750-8483. E-mail: vicente.garnica@unesp.br.

[3] Ainda que não haja estudos historiográficos de envergadura sobre essa questão, alguns pesquisadores, informalmente, afirmam ter havido, na Venezuela, um curso de Pós-Graduação, nesse campo do Ensino de Matemática, em data anterior à da criação do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da UNESP de Rio Claro (cujo Mestrado foi criado em 1983 e cujo Doutorado se iniciou em 1993).

[4] Lembrando que o primeiro curso de Pós-Graduação em Educação, no Brasil, foi criado em 1975, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), é importante registrar as circunstâncias nas quais ocorriam as defesas de doutorado em instituições, que, como era o caso da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, então Instituto Isolado do Ensino Superior do Estado de São Paulo, não mantinham Programa de Pós-Graduação. A legislação que regia as atividades dos Institutos Isolados seguia as orientações do Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo. A criação de cursos de Pós-Graduação, no Brasil, ainda em estágio muito inicial, não conseguia atender à demanda de profissionais que desenvolviam projetos de pesquisa. Isso levou à promulgação do Decreto 52.865, de 10 de janeiro de 1972, assinado pelo então governador Laudo Natel, o qual regulamentou o doutoramento nos Institutos Isolados de Ensino Superior do Estado de São Paulo. Em síntese, segundo o Diário Oficial do Estado (DOE) de 18/01/1972, nos termos do artigo 3º das Disposições Transitórias do Decreto n. 52.595, de 30 de dezembro de 1970 – Regimento Geral dos Estabelecimentos Isolados do Ensino Superior – ficava resguardado a todos quantos requereram sua inscrição ao doutoramento, nos Institutos Isolados, o direito de defesa de tese nos moldes da legislação anteriormente vigente, dentro de três anos, a contar de 31 de dezembro de 1970. “Considerando que o Egrégio Conselho Estadual de Educação vem, através de sucessivas decisões, firmando louvável jurisprudência a respeito do processamento dos concursos a doutoramento, jurisprudência essa que convém seja cristalizada num diploma legal específico; Considerando que a sistemática para a defesa de tese, prevista no Decreto 40.669, de 3 de setembro de 1962, o diploma que regulamenta o doutoramento deve coadunar-se com os atuais diplomas legais disciplinadores do ensino superior ministrado nos Institutos Isolados; e, Considerando o grande número de candidatos inscritos, a necessidade de disciplinar o doutoramento com precisão, Decreta: Artigo 1.º: - Os Institutos Isolados do Sistema Estadual do Ensino Superior conferirão o grau de Doutor nos termos do presente regulamento, Artigo 2.º - O grau de Doutor será conferido em uma das três modalidades seguintes: I - Doutor em Filosofia; II- Doutor em Letras; III- Doutor em Ciências. [...]”.