Comentário a “On the Possibility and Impossibility of a Theoretical Dialogue between Nietzsche and Lacan”
Bruno Santana[1]
Referência do artigo comentado: Rivas, Rodrigo Faría. On the Possibility and Impossibility of a Theoretical Dialogue between Nietzsche and Lacan. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 3, e02400216, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14974.
Rivas (2024) tem o mérito de dar a ver que a relação entre psicanálise e Nietzsche não é uma relação simples. Os autores que Rivas percorre, em seu artigo, acrescentados de sua pesquisa e interpretação, são um bom modo de focalizar as divergências que vigoram nessa interface. De minha parte, procurarei apresentar alguns breves comentários, motivado por alguns temas abordados por Rivas em seu artigo.
Quanto à influência de Nietzsche sobre Freud, é o próprio Freud quem confirma. Em entrevista concedida, em 1926, ao entrevistador inglês George Sylvester Viereck, publicada sob o título “O valor da vida”, afirmou:
Nietzsche foi um dos primeiros psicanalistas, é incrível até que ponto a sua intuição prenuncia as nossas descobertas. Ninguém reconheceu mais profundamente a motivação dual da conduta humana, e a insistência do princípio do prazer em predominar interminavelmente (Freud, 2020, p. 09).
Lacan, quanto a isso, tem um outro estilo, pois situa um dos primeiros psicanalistas, não em Nietzsche, mas em Sócrates, seu Sócrates intempestivo, como ele mesmo diz:
Isso [...] não quer dizer que o analista deva ser um Sócrates, nem um puro, nem um santo. Sem dúvida, esses exploradores que são Sócrates [...] podem nos dar algumas indicações relativas ao campo que está em questão, [...] a este campo que referimos toda a nossa ciência, entendo, experimental. Mas é justamente devido ao fato de que é por meio deles que a exploração é feita que possamos talvez definir [...] as coordenadas que o analista deve ser capaz de atingir para [...] ocupar o lugar que é seu, o qual se define como aquele que ele deve oferecer vago ao desejo do paciente para que se realize como desejo do Outro (Lacan, 2010, p. 137).
Creio que essas referências são suficientes para nos mostrar que um diálogo entre psicanálise e Nietzsche, ou mesmo entre psicanálise e filosofia, é, sim, possível, o que entretanto não faz da psicanálise uma filosofia, nem tampouco uma ontologia, ou uma metafísica. Em “Resistências à psicanálise”, Freud (1925) situou a psicanálise entre a medicina e a filosofia: a relação com a medicina advém dos sintomas corporais, os quais também se apresentam na histeria; porém, a medicina resistiu à psicanálise, por ver com desprezo a esfera psíquica e ocupar-se exclusivamente de fatores anatômicos, físicos e químicos (Freud, 2012, p. 229); a relação com a filosofia advém devido à familiaridade desta com a esfera do sentido, com o trabalho por meio de conceitos mais abstratos, em contraponto à medicina. Todavia, a filosofia tende a rejeitar o inconsciente, por ver nele um disparate, uma contradição, e a igualar assim os fenômenos psíquicos à consciência. Um exemplo instrutivo disso pode ser Sartre, que enunciou isso muito claramente, ao propor a sua psicanálise existencial: “A psicanálise existencial rejeita o postulado do inconsciente: o fato psíquico, para ela, é co-extensivo à consciência” (Sartre, 1997, p. 698).
A psicanálise não é uma ontologia, pois não está ocupada com o ser; a psicanálise não está ocupada com a ordem das “coisas”, mas antes com o desejo – esse é o seu ponto de partida da psicanálise. Portanto, poderíamos falar em “desejo de ser”, mas também em desejo de não ser – seja como for, de um modo ou de outro, o ser aparece assim, para a psicanálise, em falta (Lacan, 2008, p. 66). E não se tentará melhor fundamentar o Ser, o Um, mas antes trabalhar com isso mesmo que o sujeito traz: o desejo de ser que lhe está em falta, ou seja, trabalhar-se-á com a sua própria “falta a ser”. Se o Ser se coloca para o sujeito, existindo ou “não existindo”, se avizinha do Não ser, está então na conta do Ser, é o que a contrapelo já se deixa vislumbrar em Parmênides.
Estamos aí na ordem do sentido (e de sua falta). O Um, o Ser (unívoco ou não), quem o introduz é a linguagem, o significante (Lacan, 2008, p. 66). E ao “ser” do Ente (do on grego, pensado como ente ou Ser) se repercute um ser doente – por efeito da materialidade do significante: daí Lacan contrapor, ao Ser sustentado na tradição filosófica, um sujeito que é antes jogado e gozado pelo gozo (Lacan, 2008, p. 76) do significante Ser.
Se importa para Lacan o ser da significância, não se trata de fazer uma metafísica da linguagem, pois o significante não é tomado como vetor em direção ao ideal, mas em direção e relação com o que retorna no sintoma, ou mesmo no real, no caso da psicose. No significante não há metafísica, contudo, uma materialidade virtual que se inscreve no corpo. Freud nos fez ver, como dito por Lacan, que há doenças que falam: na neurose, o que é recalcado no simbólico retorna no sintoma, enquanto, na psicose, o que é foracluído do simbólico retorna no real (Lacan, 1981, p .21).
Quanto a Nietzsche, no que tange à relação com a psicanálise, aparece como um filósofo muito particular, pois nele o inconsciente já se faz pressentir como atividade própria, e sua ética é também uma ética trágica. A maneira como Nietzsche trabalha o campo do “sentido” o coloca, a meu ver, numa região entre a filosofia e a psicanálise. Segundo ele, “[...] a grande principal atividade é inconsciente” (Nietzsche apud Santana, 2019, p. 68). Embora sem a precisão e a programaticidade com que esse conceito aparecerá na psicanálise, em Nietzsche, o inconsciente parece já apontar para uma dimensão positiva dentro da esfera psíquica, isto é, não restrita ao anatômico, não restrita ao campo da percepção, e não como sendo apenas uma não consciência.
Para um aprofundamento da relação com a psicanálise, parece crucial a distinção que Nietzsche faz, na Genealogia da moral, entre o “homem” e os outros entes, malgrado todos eles sejam atravessados pelo mundo como vontade de potência. No homem, algo parece “querer para trás” (Nietzsche, 1998, p. 76). Essa distinção me parece condicionante para a apreensão do campo do sentido, em sua filosofia, no qual seu pensamento se apresenta não como crítica da falta, mas, sim, como crítica da tentativa de eliminação da falta. Tentei mostrar isso em Variações do ver: uma articulação entre psicanálise e Nietzsche, em como o ideal ascético para Nietzsche se caracteriza, não pela presença da falta, todavia, pela tentativa de eliminar a falta: diante do problema da falta de sentido para o sofrer, “[...] o ideal ascético lhe ofereceu um sentido!” (Nietzsche apud Santana, 2019, p. 114).
Quanto à relação entre psicanálise e O Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, há alguns autores da psicanálise que se debruçaram sobre esse tema, como, por exemplo, Monique David-Ménard, em Deleuze e a psicanálise. No que concerne à não resposta de Lacan a essa obra, eu levantaria alguns pontos: 1) Lacan foi muito elogioso a Diferença e repetição, de Deleuze, e chegou a recomendar aos analistas que lessem esse texto (Lacan, 2008, p. 213, 214, 220); 2) Deleuze escreveu Lógica do sentido, propondo-o como “[...] um ensaio de romance lógico e psicanalítico”, tal como afirmara em sua introdução (Deleuze, 2006, p. XVI; 3) uma das principais teses de O Anti-Édipo – o inconsciente como usina – é, na verdade, uma tese de Lacan defendida por ele, em 1956: “Há já uma usina feita, e que funciona. [...] Essa usina, é a linguagem, [...] o Isso [...]” (Lacan, 1994, p. 50). Creio que esses breves pontos podem servir de algum modo como indicativos para pensarmos o porquê de Lacan não ter respondido a O Anti-Édipo. De todo modo, ao fim, Deleuze fez uma filosofia do devir; Lacan fez psicanálise.
Referências
DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2006.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. L’Anti-Oedipe: capitalisme et schizoprénie. Paris: Minuit, 2005.
FREUD, S. Las resistencias contra el psicoanálisis. Obras Completas: El yo y el ello y otras obras, v. XIX. Buenos Aires: Amorrortu, 2012.
FREUD, S. O valor da vida. 2020. Disponível em: https://corpofreudiano.com.br/w/wp-content/uploads/2020/10/entrevista_Freud__ING.pdf . Acesso em: 25 jul. 2024.
LACAN, J. Le Séminaire. Livre III: les psychoses. Paris: Seuil, 1981.
LACAN, J. Le Séminaire. Livre IV: la rélation d’objet. Paris: Seuil, 1994.
LACAN, J. O Seminário. Livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN, J. O Seminário. Livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
MÉNARD, M. Deleuze et la psychanalyse. Paris: PUF, 2005.
NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Rivas, R. F. On the Possibility and Impossibility of a Theoretical Dialogue between Nietzsche and Lacan. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 3, e02400216, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14974. Acesso em: 25 jul. 2024.
SANTANA, B. Variações do ver: uma articulação entre Psicanálise e Nietzsche. Curitiba: CRV, 2019.
SARTRE, J. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 1997.
Recebido: 28/07/2024 – Aprovado: 31/07/2024 – Publicado: 23/08/2024
[1] Analista membro da Escola de Psicanálise Corpo Freudiano, RJ – Brasil. Pós-Doutor em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida (UVA), RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7232-5523. Email: brunowagnersou@yahoo.com.br.