Rafael Fernandes Mendes dos Santos[1]
Resumo: O artigo aborda a relação entre a filosofia da linguagem ordinária de Stanley Cavell – FLO – e a possibilidade de autoconhecimento, através dos usos da linguagem ordinária. Nesse sentido, discutem-se as ideias de normatividade e de responsabilidade pessoal envolvidas na possibilidade de comunicações intersubjetivas, em que usos significativos da linguagem ordinária possam ser compartilhados e das quais resulte autoconhecimento. Assim, analisa-se a concepção cavelliana de FLO, relacionando-a com as condições da expressão subjetiva, um tema central na filosofia de Cavell.
Palavras-chave: Linguagem. Normatividade. Responsabilidade. Autoconhecimento.
INTRODUÇÃO
Em uma de suas primeiras publicações, no ensaio de 1958, intitulado “Must We Mean What We Say?”, posteriormente editado em uma coletânea, em 1976, Cavell (1976, p. 1-2) sugere a presença de sentimentos opressivos em atitudes filosóficas que eliminam a voz subjetiva da filosofia, afirmando que “[...] tais sentimentos podem provir de uma verdade sobre nós próprios que estamos a reter”. Mas a que correspondem tais “verdades”? Entendendo a filosofia da linguagem ordinária como um método de autoconhecimento, essas “verdades que estamos a reter” devem possuir um potencial de comunicar aquilo mesmo que desejamos ocultar de nós e da comunidade, em atitudes de repúdio dos significados que identificam o sentido das ações e usos das palavras. Assim, a “descoberta” dessas verdades deve estar associada a atitudes de aceitação ou negação dos significados compartilhados por cada sujeito membro de uma comunidade de falantes nativos ou competentes[2]. Sobre o compromisso de trazê-las à consciência, Andrew Norris (2017, p. 37) comenta: “[...] o trabalho que isso implica, tanto em termos de autoconsciência como de assunção de responsabilidades, é um trabalho que enfrenta fortes resistências”.
Neste artigo, iremos abordar alguns aspectos da Filosofia da Linguagem Ordinária – FLO – de Cavell, sobretudo os seus propósitos e métodos. Como da linguagem comum podemos obter autoconhecimento? O que isso tem a ver com a possibilidade de identificar isso que Cavell está chamando de “verdade que estamos a reter”? Como, seguindo Cavell, se pode interpretar a querela entre Austin (1961) e Ryle (1984) sobre o significado dos termos “voluntário” e “involuntário”, na condição de um exercício de autoconhecimento para esclarecer de que forma as implicações do que dizemos devem ser ou não aceitas?
Cavell entende que a atitude de repúdio à dimensão pública da linguagem chega à filosofia como uma supressão da pessoalidade. Nesse sentido, a filosofia pode se tornar, ela mesma, uma atitude de repúdio à vida comum, a qual tem, como uma de suas causas, uma compreensão solipsista sobre a significação:
O filósofo, compreensivelmente, toma muitas vezes o homem isolado, silenciosamente debruçado sobre um livro, como modelo do que é usar a linguagem. Mas o principal fato da linguagem natural é que se trata de algo falado, falado em conjunto. Falar em conjunto é agir em conjunto, não é fazer movimentos e ruídos uns aos outros, nem transferir mensagens ou essências indizíveis do interior de uma câmara fechada para o interior de outra (Cavell, 1976, p. 33-34).
Divergindo desse ponto de vista, Cavell concebe a filosofia como um exercício de recuperação dos significados comuns e naturais de ações e palavras, pela recordação de responsabilidades pessoais envolvidas nos compromissos e implicações que assumimos na linguagem. Dessa maneira, a FLO deve ter o propósito de esclarecer as condições de entendimento mútuo, como forma de autoconhecimento, a qual é, ao mesmo tempo, uma forma de conhecimento dos outros e da comunidade da qual se é membro.
No que se segue, iremos ver alguns tópicos essenciais à FLO de Stanley Cavell: trataremos sobre autoconhecimento, normatividade e responsabilidade, sobretudo, a partir da coletânea Must We Mean What We Say? e da obra The Claim of Reason (1979).
A Filosofia da Linguagem Ordinária, sugerida por Cavell, ao longo de seus escritos, tem o propósito de recolocar a voz subjetiva no centro da filosofia. Seguindo as lições de Austin e, depois, as de Wittgenstein, nas Investigações Filosóficas — IF, Cavell associa esse propósito ao seu entendimento da FLO como uma atividade de esclarecimento da possibilidade de compartilhar uma linguagem (cf. Cavell, 1976, p. 240).
O aspecto da responsabilidade pessoal pelos usos da linguagem ordinária aparece na FLO de Cavell como uma condição de inteligibilidade mútua. Com efeito, o repúdio a essa responsabilidade resulta na eliminação das possibilidades de entendimento do mundo e de expressão inteligível de situações da mente humana (plight of mind). Para Cavell, ao deixarmos de assumir a responsabilidade pelo significado cotidiano de ações e palavras, nós nos eximimos de uma busca pelo reconhecimento do significado público de nossa própria identidade.
Os usos da linguagem na vida comum constituem buscas por comunidade, isto é, são tentativas de entendimentos que possam nos permitir compartilhar o mundo e nos fazer mutuamente conhecíveis. Assim, a atividade de recordar “o que devemos dizer quando” (what we should say when) deve ser um exercício filosófico circunstancialmente motivado, cujo propósito é o de trazer à consciência as condições de entendimento mútuo, para compartilhar uma linguagem ordinária, em circunstâncias efetivas de interação entre membros de uma comunidade de falantes competentes.
As atitudes de recordar os usos mais comuns e naturais das palavras constituem formas de aquisição de autoconhecimento. Cavell entende essa busca em oposição ao que foi assumido por Descartes, em suas Meditações Metafísicas (1641), a partir da ideia de conhecimento indubitável. Sua crítica à reação cartesiana ao ceticismo consiste em um ponto essencial de suas discussões sobre a possibilidade de autoconhecimento. A tentativa de satisfazer as reivindicações céticas por conhecimento indubitável, a fim de conhecer os fundamentos de todo conhecimento sobre o mundo e sobre as outras mentes, elimina o sujeito da linguagem ordinária, ao passo que retira sua responsabilidade pelo significado. Na base dessa crítica, como veremos mais à frente, está o argumento de que essa ideia de conhecimento indubitável oculta do próprio sujeito a situação pessoal que poderia ser falivelmente comunicada pelos usos de uma linguagem ordinária. Tal ocultação seria um resultado da tentativa de excluir o aspecto da falibilidade epistêmica pela reivindicação por objetividade absoluta como critério para identificar as situações da mente humana (plight of mind). Um dos argumentos mais significativos de Cavell é que tal reivindicação por objetividade plena mascara alguma verdade que poderia ser esclarecida à luz dos usos públicos (falíveis) de uma linguagem comum.
Em “The Availability of Wittgenstein’s Later Philosophy”, Cavell (1976, p. 66) descreve a relação entre a FLO e a aquisição de autoconhecimento da seguinte forma:
[...] se for aceito que “uma língua” (uma língua natural) é o que os falantes nativos de uma língua falam e que falar uma língua é uma questão de domínio prático, então perguntas como “O que devemos dizer se...?” ou “Em que circunstâncias chamaríamos...?” feitas a alguém que domina essa língua (por exemplo, a si mesmo) é um pedido para que a pessoa diga algo sobre si mesma, descreva o que faz. Assim, os diferentes métodos são métodos de aquisição de autoconhecimento.
Uma parte fundamental da filosofia da linguagem ordinária consiste em recordar “what should we say when”, lembrando a forma mais comum, ordinária ou natural pela qual se pode expressar uma situação humana (plight of mind) (cf. Cavell, 1976, p. 20, 42). Isso significa que a FLO deve capacitar (enabled) o entendimento dos usos mais comuns de uma linguagem, explicitando os compromissos e implicações assumidos pelo reconhecimento de sua natureza pública (cf. Cavell, 1976, p. 40).
No ensaio “Must We Mean What We Say?”, Cavell (1976, p. 20) expõe, de maneira exemplar, esse seu modo de conceber a FLO, especialmente quando ressalta:
[...] por vezes acontece que sabemos tudo o que há para saber sobre uma situação – o que significam todas as palavras em questão, quais são todos os fatos relevantes; e tudo está diante dos nossos olhos. E, no entanto, sentimos que não sabemos algo, que não compreendemos algo. Nesta situação, a pergunta “O que é X?” é muito intrigante, exatamente da mesma forma que a filosofia é muito intrigante. Sentimos que queremos fazer a pergunta e, no entanto, sentimos que já temos a resposta. (Poder-se-ia dizer que temos todos os elementos de uma resposta.) Sócrates diz que, numa situação destas, precisamos nos lembrar de algo. O mesmo faz o filósofo que parte da linguagem comum: precisamos nos lembrar what we should say when. Mas qual é o objetivo de nos lembrarmos disso? Quando o filósofo pergunta “O que devemos dizer aqui?”, o que se pretende dizer é “Qual seria a coisa normal a dizer aqui?”, ou talvez “Qual é a coisa mais natural que poderíamos dizer aqui?”. E o objetivo da pergunta é este: responder-lhe é, por vezes, a única maneira de dizer - dizer aos outros e dizer por nós próprios - qual é a situação.
Ao argumentar que a FLO capacita (enabled) dizer “what should we say when”, na ocasião em que se precisa alcançar uma visão clara daquilo que já se sabe, Cavell assume que essa filosofia é um tipo de anamnese. Nesse sentido, a FLO se torna uma recuperação da vida ordinária, através da rememoração dos significados compartilhados. A pergunta “o que é X?” não poderia implicar uma especulação intelectual sobre o significado da palavra “X” ou sobre o conhecimento do objeto genérico X, pois, nessa circunstância, tal pergunta não expressa uma ignorância. Assim como Sócrates, o filósofo[3] não deve buscar fatos novos, mas recordações do que já sabe, com o propósito de mudar a forma pela qual se relaciona com o mundo, com os outros e, sobretudo, consigo próprio. Tal mudança parte da aceitação de uma linguagem comum e do repúdio às atitudes de intelectualizar dificuldades pessoais que nos impedem de assumir uma responsabilidade pelo significado do que dizemos e fazemos, na vida comum.
Ao nos perguntarmos genericamente “o que é X”, podemos então nos enredar em questionamentos teóricos os quais são externos à vivência da dúvida sobre o que é a nossa atual situação e o que dela não compreendemos. Quando sabemos tudo que há, em uma situação, isto é, o que significam todas as palavras e quais são todos os fatos relevantes – mas, ainda assim, sentimos que há algo que nos escapa –, Cavell (1976, p. 20) nos exorta a recordar os usos mais comuns e naturais da linguagem, “[...] e o objetivo [...] é este: [...], por vezes, a única maneira de dizer – dizer aos outros e dizer por nós próprios – qual é a situação”. Por outro lado, em uma filosofia especulativa, tal questionamento pode despertar uma busca por fundamentos, na qual a imagem solitária de um filósofo se estabelece como um porto de chegada infenso a dúvidas sobre “o que é X?”, quando essa pergunta corresponde a uma dúvida sobre a situação da própria mente (plight of mind).
Por conseguinte, como Norris comenta (2017), a situação de aparente ignorância epistêmica sobre a significação, que parece justificar uma investigação teórica sobre os fundamentos, esconde uma distância entre o que fazemos, dizemos e o que pode ser significado. Ao contrário, a recuperação dos usos mais comuns de uma linguagem corresponde a uma tentativa de retorno à prática comum e que pode trazer consigo autoconhecimento. Nesse sentido, recordar significa trazer à consciência aquilo que já sabemos, o qual define a identidade dos fenômenos ou da situação que não conseguimos entender, embora todos os fatos estejam diante de nós. O filósofo qua pessoa, ao proceder da linguagem ordinária, busca se (re)colocar como membro de uma comunidade (cf. Cavell, 1976, p. 239).
O propósito da FLO de Cavell é trazer à consciência o que já sabemos, mas, por alguma razão, não desejamos reconhecer. Como fica claro em The Claim of Reason, em sua discussão sobre o argumento da linguagem privada de Wittgenstein, o uso dessas recordações depende, necessariamente, da atitude de assumir uma responsabilidade pela sustentação dos significados comuns (cf. Cavell, 1979, p. 351). Dessa forma, a fantasia de uma linguagem privada está associada ao mesmo desejo de ocultação que pode nos fazer repudiar a responsabilidade pessoal, por nos fazermos conhecidos uns aos outros. Essencialmente, a FLO nos exorta a assumir nossa condição humana, partindo da vida comum, da linguagem compartilhada, reconhecendo que essa condição não nos permite chegar a um conhecimento especulativo sobre nós mesmos e sobre a comunidade da qual somos parte que não seja uma maneira de rejeitar a própria linguagem.
É possível entender melhor os mecanismos da FLO, a partir das discussões entre Cavell e Benson Mates, sobre uma querela entre Austin e Ryle acerca dos usos comuns das palavras “voluntário” e “involuntário”. Nesse ponto, Mates levanta questões sobre o que permite à FLO ser capaz de (entitled) explicitar o significado mais comum e natural das palavras. Cavell (1976) defende seu ponto de vista, argumentando que os filósofos, como falantes nativos ou competentes de uma língua, figuram como fonte do significado comum de uma linguagem.[4] Segundo ele,
[...] para um falante nativo dizer o que, em circunstâncias normais, is said when, nenhuma informação especial é necessária ou reivindicada. Tudo o que é necessário é a verdade da proposição de que uma língua natural é o que os falantes nativos dessa língua falam (Cavell, 1976, p. 5, grifos nossos).
Contudo, como a FLO pode recuperar os significados mais comuns de uma linguagem? Isso acontece em conexão com a tentativa de recuperar a condição de membro de uma comunidade de falantes competentes, havendo muitas formas de fazer isso. Uma delas, que nos servirá de exemplo, é a explicitação das implicações do que dizemos. Com isso, pretendemos mostrar só uma pequena parte desse mecanismo de recuperação da vida comum pelas recordações dos usos de uma linguagem (cf. Cavell, 1976, p. 3, 12). Nesse sentido, as réplicas de Cavell às objeções de Benson Mates apresentam uma parte substancial de sua visão da FLO.
Em suas objeções, Mates lança mão do argumento verificacionista para contestar a FLO, segundo a ideia de que suas afirmações se baseariam em intuições pessoais. O centro de seu questionamento ao método da FLO consiste no tipo de evidência que as afirmações sobre a linguagem ordinária requerem. Assim, ele evoca um desacordo entre Austin e Ryle sobre os usos dos termos “voluntário” e “involuntário”, declarando que cada um deles entende sua maneira de falar como a correta e verdadeira. Como parte de seu argumento, defende o método da verificação empírica como modo de solucionar o desacordo entre Austin e Ryle (cf. Mates, 1958, p. 165-166; cf. Cavell, 1976, p. 4).
De início, ao replicar Mates, Cavell lança mão de dois argumentos que interessam sobremaneira à compreensão de sua filosofia. O primeiro corresponde à afirmação de que falantes competentes de uma língua são a fonte da evidência dos seus usos significativos, de sorte que tais falantes competentes devem conferir com outros falantes competentes da mesma comunidade como palavras são (devem ser) usadas (cf. Cavell, 1976, p. 4). O segundo argumento resulta especificamente de sua reação às objeções de Mates, para quem, fosse a filósofa, ela mesma, fonte desse tipo de correção dos usos de uma língua, teria de confiar numa intuição ou memória infalível (cf. Mates, 1958, p. 165). Cavell (cf. 1976, p. 5) contesta Mates, afirmando que o potencial significativo das palavras não se associa a um acesso individual a estados internos infalíveis. O que capacita (enabled) a FLO a explicitar o significado mais comum e natural das palavras deve ser a normatividade dos usos associados a uma linguagem ordinária. O que Cavell (1976) assume é que essa normatividade permite à FLO ser um exercício de autoconhecimento.
Segundo Constantine Sandis (2021, p. 7, grifos nossos), o conflito entre Ryle e Austin, evocado por Benson Mates, na condição de exemplo do fracasso da metodologia da FLO, ofereceu a Cavell um contexto para expor sua versão do seu trabalho, assim, “[...] a essência do seu argumento parece ser que a função da FLO é elucidar conceitos, descobrindo compromissos implícitos”. Assumindo essa perspectiva, apenas na medida em que se é membro de uma comunidade que compartilha uma mesma linguagem, pode-se recordar as implicações dos usos dessa linguagem.
O argumento de Cavell implica uma distinção essencial entre os pontos de vista da FLO e de outros que assumem uma atitude especulativa em relação ao fenômeno da significação. O empirismo semântico de Benson Mates parece ser exemplar dessa atitude. Tal distinção se torna ainda mais robusta, quando Cavell (cf. 1976, p. 14)[5] argumenta que, segundo os procedimentos da FLO, deveríamos apelar sobretudo a nós mesmos, nesses exercícios de recuperação dos significados e das implicações dos usos mais comuns de uma linguagem. À diferença de uma atitude teórica, a qual se caracteriza pelo exame do significado de uma perspectiva externa à prática, do ponto de vista da FLO, os usos cotidianos de uma língua/linguagem constituem as evidências de sua correção. E isso acarreta o seguinte argumento: como membro de uma comunidade, eu sou fonte de minha autoridade para usar a linguagem, tanto quanto você é. Logo, nós figuramos como fonte das correções dos usos ordinários das palavras, se cada um de nós assentir que somos fonte autoritativa do significado de nossas palavras e ações. O filósofo ou a filósofa é, portanto, quem busca reconhecer uma desconexão com a prática significativa, que lhes oblitera a possibilidade de reconhecer a própria situação vivida, apelando, ao mesmo tempo, a si e aos outros.
Influência decisiva no pensamento de Cavell, especialmente a partir de The Claim of Reason, Wittgenstein entende que a atenção aos usos ordinários de uma linguagem se justifica pela sua repercussão em questões relativas à inteligibilidade. Uma observação em sintonia com a FLO, presente em Remarks on the Philosophy of Psychology — RPP I, sugere que a atividade de recordar os usos mais comuns dos termos de uma linguagem é uma reação aos resultados maléficos do esquecimento do significado:
O que é que é repugnante na ideia de estudar o uso [Gebrauch] de uma palavra, apontar erros na descrição desse uso e assim por diante? Antes de mais, perguntamo-nos: como é que isso pode ser tão importante para nós? Depende se aquilo a que se chama uma “descrição incorreta” é uma descrição que não está de acordo com o uso estabelecido [Sanktioniertem Sprachgebrauch] – ou que não está de acordo com a prática (Wittgenstein, 1980, RPP I, §548).
Na esteira dessa consideração, adentremos de uma vez na querela entre Austin e Ryle, tendo em mente uma distinção metodológica, presente em “Must We Mean What We Say?” — MWM, entre afirmações de primeiro tipo, com as quais se diz quais palavras usamos (o que dizemos explicitamente), e afirmações de segundo tipo, com as quais se explicita o que devemos significar, ao dizê-las, isto é, o que nós significamos ou podemos inferir das afirmações de primeiro tipo (cf. Cavell, 1976, p. 3). Por meio dessa distinção, maus usos ou distorções do significado se relacionam ao esquecimento das implicações pragmáticas entre afirmações de primeiro e segundo tipos, sendo, também, uma forma de trazer a questão fundamental da exclusão da subjetividade relacionada à incapacidade de se aderir ao entendimento de que essas implicações constituem parte essencial do significado do que dizemos (cf. Cavell, 1976, p. 8):
(Supondo que é um fato) que só dizemos ou perguntamos A (“X é voluntário” ou “X é voluntário?”) quando B é o caso (algo é, ou parece, suspeito em relação a X). O problema filosófico sobre isto surge da seguinte forma: os filósofos que partem da linguagem ordinária são susceptíveis de insistir que, se dissermos A quando B não é o caso, estaremos a fazer mau uso de A, ou a distorcer o seu significado (Cavell, 1976, p. 8).
As conexões pragmáticas entre o que dizemos e o que é significado se manifestam em várias práticas, em inferências, expectativas etc., dependendo de um entendimento de implicações que subjazem ao que é dito e que falantes competentes já devem saber. Disso se segue que o domínio dessas implicações depende, essencialmente, de iniciações e aprendizados na vida de uma comunidade. Logo, se a possibilidade de nos tornarmos inteligíveis depende de aprendizados prévios sobre conexões entre o que dizemos e o que queremos significar, essa dependência aponta para a vigência de contextos normativos que se constituem por práticas e que definem as formas pelas quais podemos ou não nos comunicar. Entre as condições de inteligibilidade, encontra-se a capacidade individual de usar uma linguagem em sintonia com o seu uso mais comum, do que decorre uma ideia de normalidade ou naturalidade associada aos usos significativos de uma língua assentada no fluxo normativo das ações de falantes que ligam, competentemente, o que dizem e fazem ao que desejam significar, expressando um plight of mind específico.[6] Por outro lado, na FLO, esquecimentos dessa normatividade podem criar contextos de busca pelos usos mais comuns de uma linguagem, a fim de esclarecer a normatividade pragmática inerente a como nós agimos e o que deveríamos inferir ou esperar dessas ações.
Esclarecendo esse tema, a partir de uma análise do desacordo entre Austin e Ryle, o tipo de “conhecimento” que pode ser adquirido pelos usos das palavras “voluntário” e “involuntário” deriva de nosso entendimento cotidiano das implicações, quando cada um deles assume um ponto de vista. Ao defender Austin, Cavell (1976, p. 6) argumenta que ele nos faz perceber que, “[...] quando dizemos ‘a oferta foi feita voluntariamente’, estamos a sugerir que a ação de fazer a oferta foi uma ação que não devia ser feita, ou que foi culpa de alguém”, que essa afirmação (de segundo tipo) é falsa. Já no segundo exemplo, restar-nos-ia assentir sobre a seguinte implicação: se alguém lhe pergunta (A) “[...] você se veste assim voluntariamente?”, você entenderá que essa pessoa implica (B) “[...] que há algo de estranho ou suspeito no seu modo de vestir” (Cavell, 1976, p. 9, grifos nossos).
Finalmente, como reagir à questão levantada por Mates (1958, p. 164) e que, na verdade, procede de um argumento que une muitos opositores da FLO: “[...] qual autoridade considera incorreto usar a palavra ‘voluntário’, como faz o filósofo?” A formulação mais clara dessa questão segue-se deste modo: se o que capacita (enable) filósofos que partem da linguagem ordinária a dizer “what should we say when” seria suas intuições, então, eles deveriam ter uma capacidade ou status diferenciado em relação aos outros falantes.
Se Mates estivesse correto, a fonte dessa autoridade seria inteiramente subjetiva, o que autoderrotaria o argumento da filosofia da linguagem ordinária. Afinal, como esses filósofos podem dizer como deveríamos (should) falar, acessando as próprias intuições? Diante de sua objeção, restaria à FLO apelar ao método extensional, isto é, se desejam dizer o que deveríamos falar (should speak), a partir de como falamos, deveriam descrever como acontece de falarmos (cf. Mates, 1958, p. 166; cf. Norris, 2017, p. 28-29). E, para dizer como deveríamos falar, com base em como, de fato, falamos, a FLO deveria investigar fatos, procedendo a uma investigação empírica para revelar como acontece de usarmos a linguagem. Tal procedimento evitaria que tais filósofos confundissem suas crenças sobre como falamos com os usos ordinários de uma língua, tornando a FLO um tipo de versão extensional de armchair philosophy, a qual emula resultados de investigações empíricas, a partir de investigações em primeira pessoa do singular. Para Mates (1958, p. 167), essa confusão é vista no desacordo entre Austin e Ryle. Contudo, tais objeções demonstram sua incompreensão sobre a FLO.
Ao declarar que os filósofos da linguagem ordinária possuem duas opções, ou confiam em sua própria intuição pessoal ou no método empírico, Mates está questionando a natureza das recordações feitas pela FLO. Estivesse correto, restaria ao filósofo uma entre as seguintes alternativas: corrigir os usos da linguagem ordinária, através de juízos analíticos (armchair philosophy), ou produzir juízos sintéticos baseados em evidências empíricas sobre usos corretos de uma língua. Segue-se disso que as opções sugeridas por Mates ao filósofo da linguagem ordinária o colocariam na posição de ter que realizar distinções conceituais, baseado em suas intuições pessoais sobre os usos ordinários das palavras, trabalhando à maneira de um teórico, cujo vínculo com usos de uma linguagem é externo aos próprios usos. No entanto, veremos, a posição de Cavell não se encaixa em nenhuma dessas alternativas.
Segundo o argumento de Benson Mates, as relações de implicação entre (A) e (B) seriam contingentes, referindo-se a como acontece de usarmos a linguagem. Todavia, esse ponto de vista parece não fazer justiça à força da implicação entre (A) e (B). Em reação, o argumento de Cavell (cf. 1976, p. 9) é o seguinte: ao questionar a voluntariedade da sua maneira de vestir, essa pessoa deve implicar (must mean) que sua roupa é estranha. Sobre isso, Espen Hammer (cf. 2002, p. 7) comenta que, longe de meramente expressar como acontece de usarmos uma língua, Cavell reconhece em implicações desse tipo condições de inteligibilidade dos falantes. Como Cavell (1976, p. 21) mesmo afirma, “[...] é por vezes o que ele (FLO) quer dizer quando chama a certas expressões ‘usos incorretos’ da linguagem, e esclarece também as consequências de tais expressões: elas deterioram a nossa compreensão [they break our Understanding]”. Há um tipo de necessidade veiculada pelo termo must que expressa condições normativas para usos inteligíveis de palavras por falantes competentes de uma língua. Cavell (1976, p. 9) se refere a uma “[...] implicação ‘pragmática’; o fato é que ele não diria (não poderia) dizer o que disse sem implicar o que fez: mas deve querer dizer (must mean) que as minhas roupas são peculiares”.
Ao declarar que o filósofo da linguagem ordinária possui uma relação interna com a normatividade da linguagem ordinária, que sua capacidade de dizer “what we say when” vem da sua condição de falante competente, assume-se que uma dada comunidade, na figura de seus membros, é responsável pelo que é entendido como normal ou natural. Em alternativa à compreensão filosófica que busca os fundamentos na figura de um sujeito isolado de sua comunidade, considera-se aqui que o filósofo nem fala na primeira pessoa do singular (método intencional) nem usa a terceira pessoa (método extensional), mas usa a primeira pessoa do plural. Isso significa que, do ponto de vista da FLO, deve-se falar como representante de uma linguagem comum entre pessoas. Sobre esse tema, no ensaio “Must We Mean What We Say?”, Cavell (1976, p. 14) diz o seguinte:
[...] deixem-me dizer apenas isto: a pista para compreender o tipo de afirmação S (“Quando perguntamos se uma ação é voluntária, implicamos que a ação é suspeita”) está em apreciar o fato de “nós”, embora no plural, ser na primeira pessoa. As formas na primeira pessoa do singular foram recentemente objeto de grande atenção, tendo-se demonstrado que têm propriedades lógico-epistemológicas muito significativas. A forma plural tem propriedades semelhantes e igualmente significativas; mas tem sido, tanto quanto sei, negligenciada.
A distinção entre as perspectivas da primeira pessoa do singular e da primeira pessoa do plural é notada por uma análise simples da equivalência extensional entre as seguintes afirmações: “[...] (i) quando perguntamos se uma ação é voluntária, implicamos que ‘a ação é suspeita’ é verdadeira, então a afirmação (ii) ‘X é voluntário?’ implica que ‘X é suspeito’ também é verdadeira – e vice-versa” (Cavell, 1976, p. 12). Aqui, embora haja uma equivalência formal entre as afirmações (i) e (ii), no que concerne aos seus valores de verdade, há uma distinção entre elas, em vista de quem pode (enabled) dizê-las. Enquanto um falante competente está capacitado a falar na primeira pessoa do plural — afirmação (i) —, um teórico poderia fazer só a afirmação (ii) (cf. Cavell, 1976, p. 14).
A possibilidade de a FLO ser vista como uma maneira de recuperar os significados mais comuns e naturais das palavras, ações e gestos de uma linguagem está fundamentada na situação do filósofo como um membro de sua comunidade. Cavell (1976, p. 21, grifos nossos) refuta o argumento de Mates, que esse filósofo deveria ter uma relação especial com a linguagem para ser capaz de recordar sua normatividade: “[...] a normatividade que Mates sentiu, e que está certamente presente, não reside nas afirmações do filósofo da linguagem comum sobre o uso comum; o que é normativo é o próprio uso comum”.
Nessa perspectiva, podemos entender esse filósofo como quem deve, primariamente, confiar em si na condição de falante competente e representativo de uma maneira de falar que é comum a ele e outros. Há ainda um segundo aspecto, afora o reconhecimento de uma normatividade em relação aos usos significativos de uma linguagem. Isso entra em cena a partir dos seguintes questionamentos: o que é revelado pela possibilidade de aceitarmos ou não as implicações do que dizemos? O que isso diz sobre nós mesmos? E quais as consequências de uma não aceitação?
A prática da FLO não pode garantir o estabelecimento de uma mutualidade entre falantes competentes de uma língua, mesmo em vista de um reconhecimento mútuo da normatividade pragmática na qual se baseia a inteligibilidade das ações. É certo que, ao recuperar “what to say when”, se pode recordar possibilidades de comunicar condições humanas específicas (plights of mind). Contudo, pela prerrogativa do exercício de uma responsabilidade pessoal, podemos também manter ou não uma prática, seguir ou não o curso das ações mais naturais, em um dado contexto, ou mesmo propor novas maneiras de projetar a linguagem.
Vejamos algumas consequências da responsabilidade pela significação na FLO de Cavell.
Passemos à questão das relações entre autoconhecimento e responsabilidade pessoal. Até então, apresentamos os argumentos de Cavell sobre a fonte da evidência dos usos corretos de uma língua/linguagem. Agora, apresentaremos algumas conexões entre as noções de autoconhecimento, normatividade e responsabilidade da FLO cavelliana.
Para esse fim, passemos a analisar a afirmação S: “[...] quando perguntamos se uma ação é voluntária, estamos a insinuar que a ação é suspeita” (Cavell, 1976, p. 12, grifos nossos). Pode-se notar, nesse exemplo, conexões entre a inteligibilidade dos usos das palavras e o entendimento de conteúdos implicados nesse questionamento. No caso de S, há algo que deve ser entendido, e, portanto, teríamos problemas para entender quem questiona a voluntariedade de uma ação e não implica uma insinuação. Segundo Cavell (cf. 1976, p. 8), essas circunstâncias constituem distorções no entendimento.
O elemento da responsabilidade pessoal é condição de inteligibilidade, ao se usar a linguagem ordinária em acordo com outros usos de falantes competentes. Mas aqui passemos ao seguinte questionamento: de que forma a normatividade, a qual parece definir os usos possíveis da linguagem ordinária, se concilia com a responsabilidade pessoal pela significação?
Nesse ponto, ser-nos-á útil avaliar como Constantine Sandis (2021, p. 10) interpreta Cavell.
Conhecer o significado de uma palavra ou expressão é ter interiorizado (ou seja, ser capaz de seguir) as descrições das regras que revelam o que está a ser dito quando a palavra é utilizada, ou seja, o que se quer dizer com a palavra ou expressão em questão.
Sandis argumenta que o conhecimento das implicações é prático, está nos usos e corresponde a uma capacidade para seguir descrições de regras. Se fosse assim, o significado poderia ser explicitado em descrições que recuperam a normatividade do que é dito, pois, como declara, “[...] o que é normativo é o próprio uso comum” (Cavell, 1976, p. 21). No entanto, Cavell (1976, p. 32) afirma algo mais: “[...] o que queremos (tencionamos) dizer, tal como o que queremos (tencionamos) fazer, é algo pelo qual somos responsáveis”. Isso significa que levar tais implicações em conta consiste numa responsabilidade do falante pela sua inteligibilidade. Considerando tanto o aspecto da normatividade quanto o da responsabilidade, Cavell pretende articular uma concepção de FLO capaz de explicitar a trama normativa da vida comum, todavia, apenas onde e quando ela se torna problemática ao entendimento.
Nesse sentido, deve haver o exercício de uma responsabilidade pessoal, ao assumirmos ou propormos usos e significados. Em sua visão, a FLO não é uma prática generalista, de alguém externo aos usos da linguagem de uma comunidade, cujo trabalho fosse resumido à descrição de regras da significação. O filósofo, como indivíduo membro da comunidade, em contextos específicos de interação intersubjetiva, deve recordar os usos mais comuns e naturais das palavras, de sorte a cuidar da sua inteligibilidade e ser capaz de comunicar uma situação específica (plight of mind). Em última instância, como fonte dos usos corretos, ele se torna responsável pelo entendimento ou pela rejeição desses usos comuns, a fim de comunicar uma condição humana particular.
Um modo de notar essa conciliação entre normatividade e responsabilidade segue-se do que Cavell entende ser uma ação “normal”. Para explicitar essa ideia, ele explora um sentido em que não fazer algo bem (ou suficientemente bem) significa o mesmo que deixar de praticar uma ação: “[...] quando é que não fazer bem uma coisa não é realmente fazer a coisa?” (Cavell, 1976, p. 29). Em sentido análogo, Constantine Sandis sugere uma comparação entre culinária e comunicação. Entretanto, nesse caso, ressalta que uma ação normal (cozinhar) depende da ação de seguir regras da culinária, e que há casos de violação de regras, os quais determinam que a ação de cozinhar não foi realizada. Enquanto, em outros casos (de violação das mesmas regras), pode-se dizer que a ação de cozinhar foi efetuada, embora se tenha cozinhado mal. Segundo Sandis (2021, p. 11), “[...] tal como a linha entre cozinhar mal e não cozinhar pode ser ultrapassada em certos casos de violação da mesma regra, o mesmo acontece com a linha entre comunicar mal e não comunicar de todo”. Analogamente, situações filosoficamente confusas surgem nas ocasiões em que deixamos de fazer uma ação (bem-feita), mas apenas quando isso implica que deixamos de praticá-la (cf. Cavell, 1976, p. 32).
O que significa dizer que uma ação não foi realizada? Significa o mesmo que assumir que regras não foram seguidas? Um juízo sobre a realização ou não de uma ação, a exemplo da ação de cozinhar, não deveria se assentar em entendimentos flexíveis sobre o que é ou pode ser uma ação de cozinhar? Tal flexibilidade poderia ser resumida pela ação de recordar regras? O elemento da responsabilidade pessoal parece trazer conflitos a tal compreensão.
Se há, portanto, fixidez e flexibilidade, tal situação implica a seguinte ideia: a de que, em circunstâncias filosoficamente confusas, quando se busca esclarecer qual é a situação, deve-se então apelar à comunidade pelo reconhecimento do que pode ser entendido como normal. Trata-se de apelo dirigido a membros de uma comunidade, os quais devem assumir responsabilidades sobre a manutenção do significado ou da compreensibilidade de alterações, no entendimento do que pode ser ou não normal. Por conseguinte, torna-se vazio pensar a FLO a partir da ideia de regras da linguagem. Primeiro, porque não caberia ao filósofo explicitar a normatividade dos usos da linguagem comum, explicitando as regras gerais de entendimento mútuo. Segundo, ao explicitar especificamente o problema que resulta em uma situação de ininteligibilidade mútua, o filósofo, como falante competente, poderia somente reivindicar o reconhecimento de tal “descoberta” e não apresentar regras da linguagem que devem ser seguidas.
O autoconhecimento que resulta dessa prática diz respeito, pois, à elisão ou não de uma responsabilidade pessoal pelo significado, de como uma pessoa pode entender a si mesma e os outros, em vista desse exercício de assumir uma, entre várias maneiras de continuar dando significado à vida comum. A FLO não visa apenas a que se recordem os usos mais comuns e naturais de uma linguagem, como se, com isso, se pudesse garantir a comunicação entre partícipes, em uma cena de conversação. Visa a esclarecer também atitudes de reconhecimento ou rejeição do indivíduo em relação à comunidade. Esse ponto Cavell desenvolve com plenitude, ao longo de The Claim of Reason. Ao explicitar “o que devemos falar quando” (what should we say when), o filósofo, como uma pessoa representativa, busca as condições normativas da significação, responsabilizando-se pela atitude de acolher ou não essa mesma normatividade, em sintonia com seu interlocutor membro de sua comunidade. Recordar, no sentido de recuperar os usos mais comuns das palavras ou de sugerir usos diversos, constitui uma forma de exercer a responsabilidade pessoal pela manutenção ou rejeição da prática que as palavras identificam. Nas palavras de Espen Hammer (2002, p. 8), “[...] dizer algo é assumir uma posição particular em relação aos outros, uma posição que engloba obrigações e expectativas e que permite reposicionar-se ao longo de certos percursos”.
A FLO constitui um exercício filosófico que pretende ser útil em contextos nos quais há uma “ruptura no entendimento” capaz de impedir a comunicação de significações — ações e palavras —, de ações assentidas mutuamente como parte da iniciação em uma forma de vida.
Os filósofos imaginam, devido a uma imagem distorcida da mente, que o termo “voluntário” se deve aplicar a todas as ações que não sejam involuntárias (ou não intencionais), quando só se aplica quando há uma razão específica para levantar a questão (Cavell, 1976, p. 7, grifos nossos).
De outra forma, ao se deixar de lado o que justifica o questionamento sobre os usos das palavras, perdem-se de vista as ações para as quais esses questionamentos não fariam sentido, “[...] as coisas comuns, normais e naturais que fazemos” (Cavell, 1976, p. 7). Sobre essa demanda por uma razão específica, queremos mostrar como ela se associa ao autoconhecimento.
A busca por entendimento mútuo não se resume à atitude de excluir certos usos anormais de uma linguagem, mas preza pelo esclarecimento de uma comunidade de falantes que orienta o sentido da aplicação das palavras, nos contextos nos quais isso é necessário ao entendimento de quem somos. Essa busca pelo esclarecimento dos usos se torna também uma reivindicação pelo significado, isto é, essa busca se torna uma atitude de reivindicar a própria condição de falante competente, diante de outros falantes, que poderão ou não reconhecer certos usos como formas legítimas de comunicar. Avaliando essa situação em The Claim of Reason, há uma consequência que torna a FLO um exercício de autoconhecimento. Segundo ele, o que deve se seguir de desacordos entre falantes competentes é a (im)possibilidade de reconhecimento de uma voz na primeira pessoa do plural (nós).
Não se trata de dizer algo falso.... Numa encruzilhada como esta, temos de concluir que, neste ponto, somos simplesmente diferentes; ou seja, não podemos falar um pelo outro. Mas não foi feita nenhuma afirmação que não tenha sido confirmada; a minha autoridade foi restringida (Cavell, 1979, p. 19, grifos nossos).
Quando há desacordos sobre o significado ordinário de palavras e ações, de modo que cada pessoa anteveja implicações pragmáticas diversas, além do reconhecimento de que, em dada circunstância, não há comunidade possível, isso constitui uma espécie de autoconhecimento. Como Cavell (1979, p. 19-20) afirma, “[...] ele não disse algo falso sobre ‘nós’; ele aprendeu que não existe nenhum ‘nós’ (ainda, talvez nunca) para dizer algo sobre”. Portanto, na FLO, recordações da forma “what we should say when” constituem apelos à comunidade em vista do esclarecimento das extensões e limites dos possíveis entendimentos mútuos sobre implicações, expectativas, interesses, desejos etc., os quais se seguem dos usos comuns das palavras, em contextos específicos de interação.
O que pretende uma filosofia assim? Com a palavra Richard Eldridge (2003, p. 2): “[...] o que se procura, na e através da procura de uma ação plenamente expressiva, visando a exemplaridade da voz, é um comum eventual ou transfigurado, uma habitação comum adequada para o humano”.
É significativo que Cavell reconheça a presença de sentimentos opressivos que eliminam a voz subjetiva da filosofia como sintoma de uma autorretenção de verdades sobre nós mesmos (cf. Cavell, 1976, p. 1-2). Isso permite observar seu compromisso com a concepção de uma FLO como um método de autoconhecimento, em que se efetivam, principalmente, atitudes de aceitação ou rejeição dos significados mais comuns e naturais do que fazemos e dizemos, em comunidade.
Como pessoa em conversação com outras e que busca expressividade exemplar, a atitude do filósofo deve ser a de exercer uma atividade de esclarecimento das condições de entendimento mútuo. A filosofia que procede dos usos da linguagem ordinária procura esclarecer as condições para que haja comunidade, isto é, que haja comunicação e que essa comunicação seja, sobretudo, uma forma de autoconhecimento, indicando que as recuperações dos usos mais comuns e naturais das palavras e ações dependem do exercício da responsabilidade e da aceitação de uma linguagem comum aos outros. Em particular, ao(s) outro(s) com quem se quer comunicar.
Na FLO cavelliana, o filósofo é quem busca clareza sobre a sua responsabilidade pessoal pelo significado. Segundo Sandra Laugier, Silvana Silva e Alena Ciulla e Silva (cf. 2016, p. 2), desde o início, Cavell tenta recuperar a voz da subjetividade na filosofia, explicitando as condições de inclusão do sujeito no ordinário. Esse aspecto do pensamento de Cavell está colocado desde o seu ensaio “Must We Mean What We Say?” e se aprofunda ao longo de seus escritos, pelo seu contato com as Investigações Filosóficas, de Wittgenstein (2022).
Em sua primeira abordagem da FLO, Cavell pensa as condições de significação, com base em conteúdos de implicações. Posteriormente, a partir de The Claim of Reason, as implicações passam a ser somente um dos possíveis jogos de linguagem que associam significação e usos da linguagem ordinária.
A filosofia da linguagem ordinária de Cavell se dirige a incômodos pessoais, sem perder de vista a pessoalidade do incômodo, de modo a identificar nos usos da linguagem ordinária as condições de inteligibilidade de seres humanos que buscam se comunicar, se entender, cooperar, atribuir significado ao mundo e às situações da mente (plight of mind). As recordações filosóficas de usos compartilhados da linguagem têm, portanto, a função de reivindicar um reconhecimento mútuo, em dada circunstância, na qual não se encontra senso de comunidade, em que se perdeu o contato significativo com o outro e, por conseguinte, consigo mesmo.
Self-knowledge, normativity and responsibility in Stanley Cavell's philosophy of ordinary language
Abstract: The article discusses the relationship between Stanley Cavell's philosophy of ordinary language – FLO, and the possibility of self-knowledge through the uses of ordinary language. In this sense, I discuss the ideas of normativity and personal responsibility involved in the possibility of intersubjective communications, in which meaningful uses of ordinary language can be shared and which result in self-knowledge. Thus, I analyze the Cavellian conception of FLO, correlating it with the conditions of subjective expression, a central theme in Cavell's philosophy.
Keywords: Language. Normativity. Responsibility. Self-knowledge.
REFERÊNCIAS
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WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Edição bilingue alemão/português. Apresentação, tradução e notas de João José R. L. de Almeida. Curitiba, PR: Horle Books, 2022.
Submissão: 07/08/2024 – Decisão: 10/09/2024
Revisão: 25/09/2024 – Publicação: 28/10/2024
[1] Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Feira de Santana, BA – Brasil. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0927-5230. E-mail: rfmsantos@uefs.br.
[2] Falantes nativos ou competentes são aqueles indivíduos membros de uma comunidade de falantes capazes de agir e usar as palavras, atribuindo significado às ações, sendo, por si mesmos, evidência dos usos inteligíveis de uma linguagem.
[3] O filósofo da linguagem ordinária, na FLO de Cavell, se constitui como um indivíduo membro de sua comunidade e que se torna capaz de reivindicar para os outros membros, em situações concretas de comunicação, o significado de suas ações e palavras, à medida que tais significados se tornem problemáticos ou não encontrem, naturalmente, o assentimento do outro. Tal filósofo deve então ser um sujeito, uma pessoa, capaz de refletir sobre os próprios usos da linguagem, de sorte a trazer à sua consciência os limites e responsabilidades pessoais que a possibilidade de se expressar envolve. Nesse sentido, o filósofo é também aquele capaz de acessar o legado de sua própria cultura, em contextos efetivos ou ficcionais, com a finalidade de se tornar inteligível para si mesmo e para os outros.
[4] O que se compreende aqui por “língua” não se reduz a uma visão de grafemas e fonemas, todavia, envolve os usos significativos de palavras em contextos comuns, de modo que, nesse sentido, a “língua” deve ser entendida como parte de uma linguagem que também envolve as ações de falar.
[5] Cavell questiona a fonte dos usos corretos das palavras e não a fonte dos seus empregos, que a maioria das pessoas faz. Questionamentos sobre os empregos das palavras se relacionam a como a maioria das pessoas está utilizando as palavras e diferem de questões sobre os usos corretos das palavras. A primeira questão pode ser feita de um ponto de vista externo, por um gramático, antropólogo, etnógrafo. A segunda, constituindo problema de inteligibilidade, requer a atenção do filósofo da linguagem ordinária.
[6] Cavell (1976, p. 240) declara que o propósito da FLO é o de “[...] descobrir as situações específicas da mente [the specific plights of mind] e as circunstâncias em que um ser humano dá voz à sua condição”.