Comentário a “Nietzsche e a política do corpo”

 

Raquel R. Rocha[1]

 

Referência do artigo comentado: MONTEIRO, Átila B. Nietzsche e a política do corpo. Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400192, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15674/16596.

 

Monteiro (2024) apresenta uma perspectiva nietzschiana do corpo em relação a sua compreensão sob o ponto de vista político e seus possíveis desdobramentos, na atualidade. Com base em uma caracterização nietzschiana do corpo, o autor nos conduz e instiga ao debate do corpo e subjetividade, na contemporaneidade. Do que se trata o corpo, sua potência e seu poder? – essa é a questão que somos convidados a pensar e a partir da qual iniciamos nossas considerações. Pensar acerca do corpo e suas implicações políticas significa olhar para além da sua percepção enquanto natureza, bíos, e/ou pensá-lo enquanto mercadoria, isto é, como objeto para manutenção do poder estabelecido no capitalismo.

Considerando que o corpo também é resultado de processos e devir histórico, e no intuito de promover um diálogo com o texto original, nós nos propomos abrir um breve excurso a respeito da noção de estética da existência, em Nietzsche e em Foucault. Nosso ponto de partida para examinar a estética da existência tem início com o seguinte trecho retirado do texto: “Acreditamos que a ética-estética da existência envolve muito mais aspectos políticos do que supomos a um primeiro olhar” (Monteiro, 2024, p. 14) – são justamente os aspectos políticos nos quais a estética da existência está implicada que nos interessam. Nesse sentido, o autor abre o nosso olhar para a possibilidade de pensar o corpo como elemento fundamental na constituição de uma estética da existência que se faz, sobretudo, como posicionamento ético e político no mundo. Refletir sobre o viés político do corpo, a partir da estética da existência, significa ter em vista a produção da subjetividade desse corpo que é atravessado pelos aspectos políticos, econômicos, culturais de uma sociedade, isto é, significa compreender que o corpo é produzido e ao mesmo tempo produz subjetividade.

Para além das questões levantadas no que dizem respeito ao conservadorismo e aos valores morais, a percepção de uma estética da existência nietzschiana volta o nosso olhar para pensar os processos de formação dos sujeitos, a produção de modos de vida que caracterizam o corpo como político, capaz de criar próprios valores e se colocar no mundo, de modo autêntico. Nesse aspecto, a concepção de estética da existência de Nietzsche nos provoca e apresenta uma noção positiva do corpo como obra de arte, possibilidade de criação de novos modos de vida e valores, vida como vontade de potência.

Enquanto, para Nietzsche, a concepção de estética da existência é intrínseca à ideia de vontade de potência, para Michel Foucault, a estética da existência está ligada ao cuidado de si; ela não se limita apenas à expressão individual, mas também envolve uma crítica à formação de subjetividades dentro de estruturas de poder. Aqui é importante levar em conta que, embora o intelectual francês seja notoriamente influenciado pela genealogia nietzschiana, na produção do seu pensamento, a percepção de estética da existência foucaultiana, em certa medida, distancia-se de Nietzsche, ao ser considerada a partir da perspectiva do cuidado de si.

Ao longo de seus últimos textos e obras[2], Foucault apresenta a estética da existência em função de dois momentos: primeiro, na relação entre o cuidado de si e a constituição de modo de vida como obra de arte, presente no período helenístico-romano do pensamento ocidental; segundo, na noção de amizade como estética da existência. Em ambos os momentos, a estética da existência é apreendida como forma de resistência, constituição de modo de vida, na qual o corpo ocupa um lugar de expressão de si e se torna um corpo político que se constitui como resistência ante a normatividade vigente. É na concepção de estética da existência, na obra de Foucault, que nos propomos refletir acerca do corpo e dialogar com o texto principal.

A percepção do corpo dentro da concepção foucaultiana de cuidado de si nos ajuda a compreender melhor a produção política dos corpos, isto é, o caráter político de constituição de si mesmo como obra de arte, como posicionamento ético, estético e sobretudo, político, capaz de produzir resistências ao poder e à normatividade de sua época. Nesse aspecto, a estética da existência é uma forma de resistência ao poder normativo e coercitivo, pois permite aos indivíduos desenvolverem uma autonomia moral e ética, através de suas próprias escolhas e práticas de vida, buscando a autenticidade e a liberdade dentro das estruturas sociais dadas. Foucault (1990) compreende a noção de cuidado de si enquanto elemento de elaboração de uma estética da existência na qual a constituição dos sujeitos se faz no sentido de uma elaboração de si mesmo – e isso a partir de práticas ascéticas, orientadas por exercícios de si sobre si mesmo. Trata-se de um cuidado de si que suscita a criação de um modo de vida, isto é, uma forma de vida outra que não se submete mais aos poderes e saberes vigentes. Para o autor, "[...] não há outro ponto, primeiro e último, de resistência ao poder político senão na relação de si para consigo" (Foucault, 2004, p. 306).

Enquanto, para Nietzsche, a vontade de potência é um ponto fundamental para a estética da existência, para o intelectual francês, cuidar de si mesmo é o ponto central da sua estética da existência, pois o cuidado de si é uma força produtora de subjetividade, resistência e afirmação de si, a qual tem no próprio corpo a experiência transformadora de si. Cuidar de si mesmo é fundamental para a arte de viver: com base nele, os sujeitos são responsáveis por transformar a sua existência em um modo de vida belo, um exemplo de estética da existência.

É, portanto, na elaboração de si presente, tanto no pensamento de Nietzsche, a partir de sua vontade de potência, como no pensamento de Foucault, com o cuidado de si, que podemos situar a produção de uma estética da existência que faz do corpo um corpo político, ou melhor, uma política do corpo. Para ambos os autores, a estética da existência é apreendida como uma maneira de desafiar as normas dominantes e buscar formas mais autênticas de viver.

 

Referências

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. I: A vontade de saber. São Paulo: Paz e Terra, 1990.

FOUCAULT, Michel. Hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France, 1981- 1982. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

MONTEIRO, Átila B. Nietzsche e a política do corpo. Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400192, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15674/16596.

 

Recebido: 01/07/2024 – Aceito: 07/07/2024 – Publicado: 12/08/2024



[1] Professora do Instituto de Humanidades, Artes de Ciências Professor Milton Santos da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2687-2080. E-mail: raquelrodrigues@ufba.br.

[2] Foucault refere-se à estética da existência a partir do curso “Hermenêutica do sujeito” (1981-1982).