Comentário a “Nietzsche e a política do corpo”
Miguel Angel de Barrenechea[1]
Referência do artigo comentado: MONTEIRO, Átila B. Nietzsche e a política do corpo. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400192, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15674/16596.
O instigante artigo “Nietzsche e a política do corpo”, de Átila Monteiro, não tem como objetivo principal discutir as complexas e controversas teses sobre política, sustentadas pelo filósofo, notadamente, no final de sua obra.[2] Tampouco é o seu escopo central discutir os desdobramentos ontológicos e epistemológicos de sua concepção de corpo, entendido como “fio condutor”.[3] Trata-se de uma reflexão sobre as múltiplas configurações que adota o corpo, como permanente jogo de forças em conflito, em relações de mando e obediência, as quais caracterizam o fenômeno da vida.
A partir do artigo de Monteiro (2024), achamos importante trazer à tona a questão da relevância dos “modos de vida”, da arte de autoformação, do perfeccionismo humano, das teses micropolíticas que estão no cerne da obra nietzschiana.[4] Consideramos oportuno aludir à interpretação da teórica italiana Fornarique, em “Sobre a utilidade (e o dano) da Filosofia de Nietzsche para a vida” (Fornari, 2022, p. 496-497), chama a atenção para aspectos da teoria de Nietzsche, a qual visa ao aprimoramento do homem, na sua vida cotidiana, num “trabalho de si sobre si”, afastado das “sereias da política ou da opinião pública”. Para além de mudanças das macroestruturas políticas, é essencial a “autopoiese": trabalho estético, genuíno exercício de arte de viver, de transformar a própria existência. A autora parte de sua experiência pedagógica com jovens universitários, os quais, ao entrarem em contato com Nietzsche, principalmente com sua concepção perspectivista, ficam chocados, mas instigados a um exercício crítico, a mirar a realidade de outra forma, como um “Argo de cem olhos”, com os “[...] olhos abertos e as orelhas em pé” (Fornari, 2002, p. 495-6). O diagnóstico nietzschiano sobre uma modernidade decadente pode ser aplicado à experiência cotidiana – caracterizada como pós-moderna, meta-moderna etc. –, quando predomina um esvaziamento de valores e crenças; momento niilista em que abundam os “últimos homens”, os quais apenas desejam conservar-se.
Fornari (2022) sustenta que, perante essa crise axiológica, e inspirados nas teorias nietzschianas, podemos acolher suas propostas de transformação individual, que visam à modificação radical de nossas inclinações e aversões, numa genuína autopoiese, uma Selbstbildung. O autor alemão, em face do predomínio dos “últimos homens”, sugere realizar uma autocura, uma terapêutica de si, modificando as nossas tendências afetivas, as quais nos impõem uma vida de mediocridade e sofrimento.[5] Essa “terapêutica”, além de uma cura dos afetos, constitui-se em um efetivo exercício poiético, uma verdadeira arte de viver, em que a multiplicidade dos nossos impulsos, em permanente mudança, são configurados, organizados numa hierarquia pontual de forças.
Essa “organização” dos afetos, longe de constituir um “eu”, uma “identidade subjetiva”, é uma miríade de impulsos, os quais exigem nossa atenção, nossa permanente criação de novas formas de vida[6]. Fornari (2022) adverte que essa arte da existência não fica apenas numa proposta teórica e abstrata, mas transmite as mais profundas experiências da vida de Nietzsche. Ele mesmo, como relata na sua autobiografia Ecce homo (Nietzsche, 2008), no transcorrer de sua existência e obra, realizou numerosos “exercícios espirituais”, que almejavam à transformação de hábitos, inclinações e afetos no seu dia a dia. Ele destaca sua lida com a comida e a bebida, com o clima, com as distrações e com múltiplas vicissitudes da sua vida cotidiana, relevantes não somente para sua existência singular, mas para a elaboração de sua filosofia. Afirma Fornari (2022, p. 49): “Nietzsche propõe de fato uma série de práticas de cuidado de si [...] uma estética da existência, compreendida como askesis, como exercício de reconquista, de disciplina, de fortificação e de transformação.”
Fornari, no tramo final de sua análise sobre a “estética da existência” de Nietzsche, mostra como as observações pessoais podem ter um impacto mais amplo, além do sujeito que realiza sua auto-observação, sua autopoiese, sua terapêutica singular. O perfeccionismo de Nietzsche, retratado nos seus livros e aforismos, não pretende ficar enclausurado no âmbito de uma subjetividade fechada. Aqui aparece o aspecto político, coletivo de sua obra. Ele convoca leitores raros, diferentes dos “últimos homens”, que tanto predominam na modernidade e até na atualidade. Ler “bem” Nietzsche é ter calma, paciência, ruminar seus aforismos. Numa época como a dele, como a nossa, de aceleração e pressa exageradas, o texto nietzschiano exige nos relacionarmos com minuciosa atenção com as experiências do autor e articulá-las com as nossas próprias vivências; tarefa também autopoiética, autoeducativa. Em Ecce Homo, que adota como subtítulo o aforismo de Píndaro, “Chega a ser o que tu é”, vemos um “[...] alerta macroscópico da consciência de que o constituir-se da subjetividade não é mais desempenhado no plano epistemológico do ‘conhece-te a ti mesmo’, mas naquele da experiência vivida e praticada” (Fornari, 2022, p. 501).
Finalmente, Fornari evidencia como o perfeccionismo nietzschiano, propõe uma autotransformação, mas não fica no plano pessoal, individual. Ao aludir ao que é mais próprio, a criação de si mesmo – numa época de imposições sociais de fuga, de distração – propõe uma convocatória supraindividual, vai de subjetividade a subjetividade. No mais íntimo, na autoeducação, retratada nos seus textos, convoca os seus leitores à realização do mais próprio em cada um deles. Em tempos niilistas, “[...] cada texto de Nietzsche é uma autêntica ginástica do pensamento e do espírito [...] numa época de grave anorexia espiritual”, o relato de suas experiências é “[...] um estímulo para começar a nutrir a própria personalidade”. (Fornari, 2022, p. 501).
Referências
BARRENECHEA, M. A. Nietzsche e o corpo. 2. ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2017.
BARRENECHEA, M. A. Nietzsche: atualidade da grande política. In: BARRENECHEA, M. A.; DIAS, R. M.; AZEREDO, V. (org.). XLI Encontros Nietzsche: intérpretes e interpretações. Curitiba: CRB, 2022. p. 211-224.
BILATE, Danilo. Nietzsche: por uma ética dos afetos. Rio de Janeiro: Mauad, 2022.
BLONDEL, Erik. Nietzsche, le corps et la culture. Paris: PUF, 1985.
CONWAY, Daniel W. Nietzsche y lo político. Trad. Gabriel Merlino. Buenos Aires: Prometeu Libros, 2011.
DIAS, R. M. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
FORNARI, M. C. Sobre a utilidade (e o dano) da filosofia de Nietzsche para a vida. In: BARRENECHEA, M. A.; DIAS, R. M.; AZEREDO, V. (org.). XLI Encontros Nietzsche: intérpretes e interpretações. Curitiba: CRB, 2022. p. 495-501.
MONTEIRO, Átila B. Nietzsche e a política do corpo. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400192, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp. br/index.php/transformacao/article/view/15674/16596. Acesso em: 10 jun. 2024.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
WOTLING, Patrick. Nietzsche et le problème de la civilization. Paris: PUF, 1995.
Recebido: 05/07/2024 – Aprovado: 10/07/2024 – Publicado: 12/08/2024
[1] Professor Titular de Filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-001-8172-5027 E-mail: miguelangelbf12001@yahoo.com.br.
[2][2] Lembremos que o pensamento nietzschiano sobre política, particularmente sua concepção de “grande política”, deu lugar a inúmeras interpretações, ocupando todo o espectro ideológico, desde teses de direita, até a esquerda, passando por posturas democráticas. Para uma adequada síntese, na ampla literatura sobre o tema, destacamos a abordagem de Marton (1985) e o nosso recente artigo (Barrenechea, 2022).
[3] A questão da relevância do corpo, no pensamento nietzschiano, assim como a natureza política do corpo, foi debatida por importantes intérpretes. Salientamos o enfoque de Blondel (1985) e o de Wotling (1995), que abordam detalhadamente a problemática das questões orgânicas na teoria nietzschiana, bem como as metáforas políticas decorrentes de sua perspectiva corporal. Tratamos dessas questões na 2ª edição do livro “Nietzsche e o corpo” (Barrenechea, 2017).
[4] Diversos teóricos colocaram em destaque, acima das teses macropolíticas, oriundas das formulações da grosse Politik, a relevância da sua proposta paraa transformação da própria subjetividade, muito mais de que como indicação para modificar o Estado, a economia, as estruturas administrativas. Acompanhamos, nessa questão, a interpretação de Conway (2011), o qual foi dos principais teóricos que caracterizou, em “Nietzsche e o político”, a política nietzschiana como um “perfeccionismo ético”.
[5] Nessa questão do cuidado de si, da cura de si mesmo, ressaltamos a tese de Bilate (2022, p. 30) quando sustenta que a Ética, segundo a concepção nietzschiana, é primordialmente uma “[...] fisiopsicologia, uma afetologia ou ética dos afetos.
[6] Nesse ponto da “arte de viver”, na filosofia nietzschiana, adotamos as relevantes reflexões de Rosa Dias, em Nietzsche, vida como obra de arte (2011).