Comentário a “O radicalismo de direita e a personalidade autoritária em Theodor Adorno”: o que o fascismo instrumentaliza?
Rosalvo Schütz[1]
Referência do artigo comentado: Bordin, Reginaldo Aliçandro; DIAS, José Francisco de Assis. O radicalismo de direita e a personalidade autoritária em Theodor Adorno. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 3, e02400195, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15563.
O diagnóstico apresentado por Bordin e Dias (2024), quanto às condições geradoras do radicalismo político de extrema direita e da personalidade autoritária, a partir do pensamento de Adorno, é muito claro: trata-se de comportamentos que não foram extintos com a vitória da guerra dos aliados sobre o nazismo. Por isso, sobrevivem mesmo em sociedades onde as democracias estão aparentemente consolidadas. Bordin e Dias (2024) indicam que o nazismo não foi um acidente histórico ou um delírio, mas sim gestado pela própria dinâmica imanente da sociedade capitalista, daí a conexão entre capitalismo e fascismo. Exemplarmente, a citação de Horkheimer (1939, p. 115), segundo a qual “[...] quem não quer falar de capitalismo também deveria silenciar sobre o fascismo”[2], resume essa afirmativa.
Ou seja, a própria dinâmica da sociedade capitalista tornaria os indivíduos mais vulneráveis a esses tipos de pensamento e comportamento. Assim, por exemplo, as pessoas se tornariam facilmente receptivas às ideias fascistas, na medida em que se sentissem ameaçadas por elementos como “a possibilidade permanente de desclassificação” de amplas camadas burguesas ou por causa da “perda de sua capacidade produtiva”, ambas situações geradas pela tendência de concentração do capital. Os indivíduos dessas camadas passariam, então, a procurar os culpados pela sua situação e, geralmente, seriam levados a “eleger” inimigos contra os quais nutrem profundos sentimentos de ódio, a ponto de pregarem a sua erradicação. Há, portanto, uma tendência a culpar grupos pelas mazelas que se está passando, como se fossem os verdadeiros culpados, embora sejam ilusórios.
Além da frustração diretamente decorrente dessa dinâmica econômica, geralmente o ressentimento – diante da possibilidade de perda de valores considerados como corretos e vinculados à sociedade existente – também se fortalece, de modo a aumentar ainda mais a suspeição de ameaça e insegurança. É o que os autores expressam como “sentimento de terror, de pânico relacionado à dissolução e sentimento de catástrofe social”, num contexto de permanente ameaça de pauperização. Daí, conforme o próprio Adorno, pequenos burgueses, agricultores em crise, dentre outros, serem extremamente vulneráveis às tendências autoritárias do fascismo, uma vez que este lhes apresenta supostos culpados e os mobiliza de forma militante contra eles. Geralmente beneficiários de direitos sociais e políticas públicas e, de modo geral, supostas ideias socialistas ou mesmo comunistas são, então, nomeadas como sendo culpadas de sua situação de vulnerabilidade e ameaça permanente de desemprego e falta ou redução de renda.
Logo, compreende-se como a psicologia de massas, a manipulação de mecanismos inconscientes e o papel dos slogans propagandísticos passam a atuar, a fim de conduzir essas insatisfações numa perspectiva autoritária, conservadora e fascista. Ou seja, mediante esse artifício, não apenas as contradições do sistema e as insatisfações pessoais decorrentes são neutralizadas quanto ao seu caráter subversivo, mas, além disso, elas são transformadas em impulsos reacionários, os quais, inclusive, reforçam a legitimidade do sistema que os causou. Nesse contexto, gostaríamos de enfatizar um elemento específico desta análise. Ademais, um elemento que parece ficar despercebido em muitas análises no âmbito da teoria crítica. Trata-se daqueles sentimentos que de fato existem e que são instrumentalizados pela propaganda fascista.
Ora, levando-se em conta que as situações de insegurança e de possibilidade de descarte são reais e decorrentes da lógica de acumulação do capital, “eleger” inimigos e “nomear” culpados “irreais” pode se tornar uma das formas mais eficientes de manter ocultas as “causas materiais” e de “atrair as pessoas por meio do fingimento” para falsas bandeiras, como “a cruzada anticomunista e antissindicalista”. É nesse sentido que a afirmação de Horkheimer (2002, p. 124), segundo a qual “[...] os nazistas manipularam os desejos reprimidos do povo alemão”, nos parece muito acertada. Acontece que esses “desejos reprimidos” não podem ser adequadamente superados, sem que haja um processo de efetiva democratização da sociedade e dos meios de produção, em contraposição à lógica concentradora do capital que os gerou. Ao que parece, sempre que necessário e, geralmente, em momentos de crises de reconhecimento, o capitalismo lança mão do fascismo para se preservar e evitar a subversão e a transformação. Mas ele não pode fazer esse movimento sem recorrer aos conteúdos de insatisfação realmente existentes, direcionando-os contra “falsos culpados”.
Diante disso, um desafio para o pensamento crítico está em identificar quais são os conteúdos autênticos “instrumentalizados” pela propaganda fascista. Esses conteúdos deveriam ser tomados como pontos de partida de uma práxis social capaz de desencadear processos emancipatórios/libertários, nos quais as verdadeiras causas pudessem ser identificadas e enfrentadas. Afinal, não se trata de negar as situações de pauperização, ameaça existencial, insegurança social, terror e pânico que assolam as pessoas em grande parte da sociedade capitalista. Trata-se de evitar que sejam eleitos falsos inimigos, indicados culpados irreais, que o ressentimento e o ódio se voltem contra inocentes, que o modelo de personalidade autoritária seja tomado como solução e que a “gigantesca técnica de enganação psicológica” seja desmascarada e superada, de sorte que os slogans autoritários e os governos reacionários percam sua legitimidade enganadora. Até mesmo a religião, indicada por Bordin e Dias (2024) como um dos meios de “[...] difusão de ideias totalitárias de direita” mais eficientes, só consegue realizar tal façanha na medida em que manipula sentimentos/conteúdos de esperança autênticos (Schütz, 2020).
Por esse motivo, cabe a seguinte questão: por que temos tanta resistência em aceitar que os conteúdos humanos, afetos e paixões, a partir dos quais o fascismo se legitima, na medida em que os manipula, são conteúdos autênticos, os quais merecem ser levados a sério, a ponto de poderem se tornar impulsos para uma práxis libertária e antifascista? Afinal, se a propaganda fascista só funciona porque ela consegue se apresentar como sendo portadora de um “caloroso interesse humano”, “uma simplicidade sem pretensão de superioridade”, portadora de pensamentos genuínos “não intelectuais”; e mesmo, uma vez que consegue gerar sentimentos de “pertencimento ao grupo”, como apontam os autores, isso deveria nos desafiar a considerar a relevância desses elementos, a fim de evitar que sejam agenciados instrumentalmente para fins reacionários. Não deveriam ser esses elementos autenticamente humanos também balizadores de resistências e da práxis libertária/emancipatória?
Na medida em que fica claro que o fascismo é uma das formas de reação mobilizadas para a preservação da sociedade capitalista, também fica evidente o seu caráter de classe. Consequentemente, toda luta e contraposição às suas condições de possibilidade se situam igualmente numa perspectiva de classe. E aqui se demonstra novamente, mas agora pelo avesso, a pertinência da assertiva de Horkheimer. Uma das aparências enganadoras necessárias do fascismo é justamente sua aparente eliminação da perspectiva de classe, apresentando-se como um sistema social sem contradição, “[...] eliminando completamente o inimigo escolhido” (Adorno, 2015, p. 141). Portanto, em se tratando de evitar a convergência ideológica entre a insatisfação autêntica com o radicalismo de direita, parece ser imprescindível não só desvelar os “pressupostos teóricos e suas estratégias de convencimento”, mas também levar a sério esses elementos, a ponto de transformá-los em impulsos para engajamentos que efetivamente enfrentem e superem as causas materiais e sociais desse mal-estar.
Referências
ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Tradução: Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
ADORNO, Theodor W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora Unesp, 2015.
Bordin, Reginaldo Aliçandro; DIAS, José Francisco de Assis. O radicalismo de direita e a personalidade autoritária em Theodor Adorno. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 3, e02400195, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15563.
HORKHEIMER, Max. O eclipse da razão. Tradução: Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Centauro, 2002.
HORKHEIMER, Max. Die Juden und Europa. Zeitschrift Für Sozialforschung, v. VIII, 1939, p. 115-137.
SCHÜTZ, Rosalvo. Transcender sem transcendência: elementos para uma reabilitação materialista da religião. Veritas, Porto Alegre, v. 65, n. 1, e36155, 2020.
Recebido: 03/07/2024 – Aprovado: 10/07/2024 – Publicado: 12/08/2024
[1] Docente na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Toledo, PR – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4548-6652. Email: rosalvoschutz@hotmail.com.
[2] “Wer aber vom Kapitalismus nicht reden will, sollte auch vom Faschismus schweigen”.