Comentário a “A lógica e os fatos em Wittgenstein”

 

Valério Hillesheim[1]

 

Referência do artigo comentado: Oliveira, Wagner Teles de. A lógica e os fatos em Wittgenstein. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400218, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15664.

 

O artigo de Oliveira (2024) aborda um dos temas essenciais da filosofia tardia de Wittgenstein, a lógica e os fatos. A preocupação central gira em torno da filosofia terapêutica e prática. A filosofia da ação tem como objetivo fazer descrições e exemplificações, a fim de dissolver os principais problemas e enigmas filosóficos. O primeiro e principal enigma é a ideia de uma lógica pura a priori como condição de possibilidade de correlacionar linguagem, pensamento e realidade, no que concerne à psicologia e à certeza. A análise conceitual mostra que a oscilação entre critérios e sintomas pode turvar a interdependência entre lógica e fatos. Na análise da tensão entre experiência e lógica, não há a adesão às teses realistas, nem às teses subjetivistas, muito menos às teses idealistas. Para Wittgenstein, a filosofia não é teórica, abstrata e proponente de teses, por isso, o recurso aos instrumentais clássicos da filosofia é abandonado completamente, e uma nova e genuína filosofia é proposta em seu lugar.

O pensamento tardio de Wittgenstein abandona, é verdade, a pretensão da pureza lógica cristalina do Tractatus e um método único para a filosofia. No entanto, sua preocupação com a lógica permanece constante. Várias passagens exemplificam a busca da solução de problemas filosóficos, através da lógica, denominada, muitas vezes, como gramática. “Não queremos encontrar uma teoria das cores (nem fisiológica, nem psicológica), mas apenas a lógica dos conceitos de cor. E esta proporciona o que muitas vezes injustamente se esperou de uma teoria” (Wittgenstein, 1996, p. 101). Inúmeros intérpretes do pensamento de Wittgenstein também enfatizam o caráter lógico do seu pensamento. Por exemplo, Moreno (1995, p. 20) ressalta: “Seu interesse não incide sobre a descrição de ‘ligações mecânicas ou causais’, mas apenas sobre as relações conceituais, ‘lógicas’ ou ‘gramaticais’ geradas no interior dessas práticas”. Oliveira (2024) assume inteiramente esse caráter lógico, tanto no tratamento dos conceitos psicológicos quanto na análise dos conceitos relacionados à certeza.

A renúncia à dependência de estados mentais, da causalidade científica, da dependência ao externalismo ou do internalismo faz com que o significado dos conceitos psicológicos e os que expressam certeza tenham relação com as regras gramaticais e os usos dos conceitos, em diferentes jogos de linguagem, calcados em formas de vida. Com a concepção de que os jogos de linguagem são formas de apresentar o modo como os conceitos são usados, a partir de regras gramaticais, o sujeito metafísico e psicológico não ocupa nenhum papel na significação dos conceitos. O interesse não incide sobre a origem ou sobre a construção dos conceitos, seja na dependência da empiria, seja na dependência de alguma abstração apriorística. Wittgenstein busca esclarecer o significado por uma investigação gramatical:  

A gramática não diz como a linguagem tem que ser construída para cumprir com sua finalidade, para agir desta ou daquela maneira sobre as pessoas. Ela apenas descreve o emprego dos signos, mas de maneira alguma os elucida (Wittgenstein, 1996, § 496, p. 186).

 

Nessa perspectiva, de acordo com Wittgenstein, o problema deixa de ser científico, e a busca é por aquilo que aparece como uma confusão, sentida como um problema (1992), para poder dissipar a confusão e esclarecer as razões lógicas e gramaticais que estão na base da confusão e do problema. “Por isso nossa reflexão é uma reflexão gramatical” (Wittgenstein, 1996, § 90, p. 65).

Por razões como as acima apresentadas, a multiplicidade e a diversidade empírica, representadas ou expressas pelos fatos, não determinam causalmente a unidade e a lógica dos próprios fatos. A sequência cronológica de experiências empíricas, a estrutura e a organização dos fatos são significativas pelas regras gramaticais que determinam as condições de sentido dos próprios fatos e experiências empíricas. A precedência da ordem factual pode condicionar e influenciar a estrutura dos fatos, porém, não a determina. A determinação depende das ações e práticas regradas, a partir de um quadro de referência e de formas de vida que estão na base dos jogos de linguagem.

Dessa forma, há, de um lado, os fatos que são contingentes, de outro lado, a necessidade que pertence à lógica. Como conciliar a necessidade lógica com a contingência dos fatos? A reflexão proposta por Oliveira (2024) explora a tensão entre a dimensão da contingência factual e a necessidade lógica. O artigo articula os principais conceitos que permitem colocar a investigação sobre a psicologia e a certeza em correlação entre interior e exterior sob a perspectiva das ações e pensamentos articulados gramaticalmente, em correlação com os condicionamentos empíricos. Wittgenstein afirma: “A distinção entre ‘interior’ e ‘exterior’ não nos interessa” (Wittgenstein, 2003, § 60, p. 71). “A consequência mais geral disso é que o esclarecimento dos conceitos psicológicos pode ser feito apenas na medida em que eles forem confrontados com situações de uso, sendo possível, somente assim, compreender corretamente a trama na qual eles são tecidos” (Oliveira, 2024, p. 5), pois, em Wittgenstein, “[a] verdade de certas proposições empíricas pertence ao nosso quadro de referências (Wittgenstein, 2000, § 83, p. 35). Isso está em consonância com a concepção de que “[a] fluidez dos limites é sobretudo resultado do entrecruzamento entre as categorias e o quanto elas se manifestam vagas em algumas situações (Wittgenstein, 2007b, § 319)”, conforme Oliveira (2024, p. 7). Como pano de fundo dessa articulação, está a imagem de mundo que está na base, também, da concepção e na expressão de juízos.

A dimensão gramatical, imbricada na relação entre fatos e conceitos ou entre fatos e a lógica, implica ações praticadas como condição de sentido. “Os vários atos possíveis de descrições empíricas, ou mesmo científicas, necessitam, em alguma medida, da normatividade e de critérios para que o próprio imbricamento entre mundo e linguagem seja significativo” (Hillesheim, 2022, p. 134). Entre o universo empírico e o universo lógico não há uma demarcação nítida e definitiva. O equilíbrio entre a dimensão empírica e a dimensão normativa não depende de um essencialismo realista ou subjetivista. A presença do complexo mundo dos fatos e a prática normativa, urdida nos usos da linguagem, estão entrelaçadas com ações, em jogos de linguagem regrados estruturadamente. A estruturação está vinculada a formas de vida, base presente e imanente aos jogos, em contextos de uso determinado. Isso impede que a fluidez seja ininteligível e propensa às confusões conceituais que a gramática e a terapia filosófica pretendem evitar.

Por mais que seja anunciada certa tensão entre proposições empíricas e normativas, “[c]ontudo, isso é certo: a mesma proposição pode ser tratada uma vez como coisa a verificar pela experiência, outra vez como regra de verificação” (Wittgenstein, 2000, § 98, p. 41); isso não compromete as condições de sentido. Pelo contrário, com isso, Wittgenstein quer evitar os usos indevidos, as visões unilaterais e as posições que enrijecem e adoecem o pensamento. O atuar que está no fundo do jogo de linguagem (Wittgenstein, 2000) é uma forma de vida (Wittgenstein, 1996, § 23), não é um fundamento essencialista, básico e permanente para estabelecer as condições de sentido. As formas de vida são condições prévias, engastadas nos jogos de linguagem e não são classificáveis por nenhuma taxionomia científica. Não podem ser tomadas como a causa dos jogos de linguagem. Elas permitem entender o entrelaçamento de razões de maneira estruturada. O entrelaçamento entre formas de vida e visão de mundo é condição de sentido, “[...] uma base inamovível nos seus jogos de linguagem” (Wittgenstein, 2000, § 403, p. 115). Logo, o entendimento do entrelaçamento entre lógica e experiência, envolvendo os conceitos da filosofia da psicologia e da certeza, deixa de ser problemático, e os “[m]al-entendidos que dizem respeito ao uso de palavras, provocados, entre outras coisas, por certas analogias entre as formas de expressão em diversas áreas de nossa linguagem” (Wittgenstein, 1996, § 90, p. 65) serão dissolvidos. Dessa forma, o trabalho terapêutico da filosofia faz com que os equívocos entre as investigações factuais e conceituais sejam apagados (Fichas, 1989, § 458).

A filosofia de Wittgenstein busca por razões constitutivas do entrelaçamento entre pensamento e linguagem, até mesmo na unidade da experiência empírica e das práticas envolvendo a subjetividade. A normatividade das ações linguísticas é instituída pelas ações que determinam o pensar, o dizer e o expressar. Assim, a constituição da certeza e dos conceitos psicológicos está engendrada pelas interações regradas entre o sujeito e suas ações, em jogos de linguagem estruturados e regrados, em contextos determinados, ancorados em formas de vida. O cerne do papel da lógica e sua relação com os fatos deve ser pensado e caminhar pari passu com a seguinte ideia: “Quando os jogos de linguagem mudam, há uma modificação nos conceitos e, com as mudanças nos conceitos, os significados das palavras mudam também” (Wittgenstein, 2000, § 65, p. 31).

 

Referências

HILLESHEIM, Valério. Linguagem, Conhecimento e Formas de Vida em Wittgenstein. Curitiba: Appris, 2022.

MORENO, Arley. Wittgenstein Através das Imagens. 2. ed. Campinas, SP: UNICAMP, 1995.

Oliveira, Wagner Teles de. A lógica e os fatos em Wittgenstein. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400218, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15664. Acesso em: 10 jun. 2024.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Coleção Os Pensadores).

WITTGENSTEIN, Ludwig. Fichas (Zettel). Tradução de Ana Berhan da Costa. Lisboa: Edições 70, 1989.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Anotações sobre as Cores. Tradução de Felipe Nogueira e Maria João Freitas.  Lisboa: Edições 70, 1996.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Da Certeza. Tradução de Maria Elisa Costa. Lisboa: Edições 70, 2000.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Gramática Filosófica. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Loyola, 2003.

WITTGENSTEIN, L. MS 169. In: WITTGENSTEIN, L. Últimos Escritos Sobre a Filosofia da Psicologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.

Recebido:  09/07/2024 – Aprovado: 15/07/2024 – Publicado: 12/08/2024



[1] Professor titular da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Salvador, BA – Brasil. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-0473-1893. E-mail: vhillesheim@uneb.br.