“A ciência como valor cultural” e “A ciência em uma sociedade livre”[1]

 

Autor: Ilkka Niiniluoto[2]

Tradutor: Vinícius Carvalho da Silva[3]

 

Resumo: Nascido em Helsinque, em 1946, Ilkka Niiniluoto fez mestrado em matemática, em 1968, e doutorado em filosofia teórica, em 1974, na Universidade de Helsinque. Foi Professor Associado de Fundamentos de Matemática, entre 1973 e 1977, e Professor de Filosofia Teórica, de 1977 a 2014. Sua prolífica carreira acadêmica inclui posições como presidente de importantes sociedades filosóficas e reitor da Universidade de Helsinque. Tem, como obras principais: Is Science Progressive? (1984), Truthlikeness (1987), Critical Scientific Realism (2002), Truth-Seeking by Abduction (2018) e Beauty, Truth, and Justice (2022). Sua pesquisa explora as interfaces entre Filosofia da Ciência, Epistemologia, Lógica, Teoria da Verdade e Axiologia da pesquisa científica. Em Critical Scientific Realism, Niiniluoto aborda o problema do valor da ciência, refutando uma concepção instrumentalista utilitária e defendendo um cognitivismo socialmente responsável, em que a ciência é concebida como uma atividade culturalmente valiosa por si mesma, sem a necessidade de satisfazer critérios impostos por necessidades práticas de ordem política e econômica.

 

Palavras-chave: Realismo crítico. Epistemicismo/cognitivismo. Valor da ciência.

 

Apresentação

Em sua obra Critical Scientific Realism, o filósofo finlandês Ilkka Niiniluoto realiza um empreendimento ao mesmo tempo ambicioso e pedagógico. O livro possui um amplo espectro, abarcando uma detalhada discussão sobre os variados tipos de realismo, suas nuances ontológicas, semânticas, epistemológicas e axiológicas, discorrendo sobre o realismo crítico científico, os problemas metafísicos fundamentais no campo da filosofia da ciência e a relação entre ciência, cultura e sociedade. Dada a amplitude e a erudição da obra, o que o autor realiza não é nada trivial.

O estilo de sua redação, sua linha expositiva e os exemplos fornecidos conferem ao texto um tom didático, o qual faz com que o projeto possa servir tanto à pesquisa avançada quanto ao estudo introdutório – com exceção de algumas partes, em que o formalismo lógico pode, de fato, dificultar o avanço dos neófitos. A difícil proeza de promover uma síntese entre demandas tão assimétricas tem o seu preço. Alguns capítulos são acentuadamente mais técnicos e complexos do que outros, mas, de um modo geral, o leitor percebe os esforços do autor, no sentido de explicar conceitos, debates e problemas, pedagogicamente.

A primeira iniciativa de traduzir ao menos alguns textos dessa obra me mobilizou ainda durante a pesquisa de doutoramento, quando discutimos alguns de seus elementos centrais com Antonio Augusto Passos Videira, meu orientador. Passados alguns anos, voltei ao texto, quando o TeHCo, o Grupo de Teoria e História dos Conhecimentos do Instituto de Física da USP, me convidou, na pessoa do Dr. Ivã Gurgel, para apresentar um seminário no ciclo “Por que confiar nas ciências?”, em dezembro de 2020. A apresentação foi baseada, sobretudo, no capítulo “Realismo, Ciência e Sociedade” do livro em questão. No momento em que escrevia o texto, os seminários de estudo do TeHCo avançaram na leitura e debate de Critical Scientific Realism, o que contribuiu sobremaneira para o presente trabalho.

Na ocasião, defendi que existem condições necessárias, metafísicas e axiológicas, para confiarmos nas ciências. Pressupor que a ciência tem algo a nos dizer acerca do real, que não se limita a construir imagens da natureza, que busca se aproximar da realidade, ainda que tal aproximação assintótica jamais chegue a uma compreensão final, me parece ser uma condição necessária para a confiança nas ciências. O realismo, portanto, parece ser a metafísica mais prolífica para a teoria do conhecimento científico. Sustentei igualmente que tal condição, embora necessária, não é suficiente. A ciência não pode ter na “busca da verdade” ou de compreensão da realidade o seu único ideal. Em seu horizonte utópico, a luta por justiça social, o bem comum, a universalização do acesso ao conhecimento científico e a socialização de seus resultados são fundamentais. 

O que então chamamos de “teoria axiológica da verdade”, fazendo um jogo de palavras com a “teoria semântica da verdade” de Tarski, possui, por conseguinte, dimensões epistêmicas, éticas, sociais e, no mais nobre e amplo sentido do termo, políticas, ensejando uma imagem de ciência “epistemicamente centrada e socialmente robusta”, como propomos, em “O valor da ciência: o debate entre a concepção epistêmica e o reducionismo utilitarista na filosofia da ciência de Ilkka Niiniluoto” (Silva, 2019). Essa imagem, a qual contempla abertamente, sem falsas dicotomias, valores epistêmicos e sociais, encontra respaldo na literatura justamente no “cognitivismo socialmente responsável” defendido por Niiniluoto, no capítulo “Realismo, Ciência e Sociedade”, de Critical Scientific Realism.

Para uma tradução concisa, escolhemos duas seções desse capítulo. São as seções 10.2 e 10.3, “Ciência como um valor cultural” e “Ciência em uma sociedade livre”, respectivamente. A escolha se deve ao fato de que elas tratam tanto do valor da ciência, no sentido do fim, do objetivo, do “para que” da ciência, quanto dos princípios axiológicos, valores morais e culturais que compõem o ethos, e permeiam as práticas científicas. Indo além, as duas seções indicam como tais questões estão imbricadas, como os valores da ciência são compatíveis com nossas concepções de ciência, isto é, com o modo como respondemos à questão “Qual é o valor da ciência?”.

Se nossa concepção é mais ou menos “epistemicamente centrada”, “veritista”, “cognitivista”, tendemos a defender determinados valores para a pesquisa científica, os quais podem ser suprimidos ou mudar de posição, em nossa escala de valores, caso nossa concepção de ciência seja mais “instrumental”, “utilitária” ou praticista. A questão do valor da ciência, tal como a entendemos, nos parece encarnar o entrelaçamento entre metafísica, epistemologia e axiologia. Para respondermos ao que é a ciência (e aqui o singular é uma idealização), temos que pensar acerca da natureza da realidade, do nosso lugar no mundo, de como o acessamos e em que medida é possível conhecê-lo. Pensamos a ciência como expressão da cultura, do conhecimento sistemático derivado de um conjunto de práticas de natureza histórica e social, em sua relação com o mundo, com a vida. Nesse sentido, a ciência é não somente um modo de saber, mas uma forma de viver, possuindo, portanto, inegável dimensão existencial e axiológica. Na tradução que se segue, acreditamos, encontramos ecos expressivos de tal compreensão.

 

TRADUÇÃO

A CIÊNCIA COMO VALOR CULTURAL

Para estudar mais sistematicamente o valor cultural da ciência, é desejável começar pela questão levantada por L. J. Cohen (1997)[4], se ser realista é um dever moral do cientista. De acordo com Cohen, essa conclusão pode ser defendida pelos argumentos que se seguem: (i) se o conhecimento é um fim em si mesmo e (ii) se o realismo é parte da melhor metodologia para obtenção do conhecimento, então (iii) o cientista possui a obrigação ética de ser realista.

Estou de acordo que esta é uma inferência válida e uma forma de silogismo prático que conecta os fins com os melhores meios para obtê-los. Também tenho exposto razões para sustentar a premissa (ii)[5] em um sentido forte, no qual o sucesso empírico da ciência nos indica a proximidade com a verdade[6] de suas melhores teorias. (Nessa perspectiva, alguns antirrealistas metodológicos podem ser realistas, sem que saibam  disso). Para um realista crítico, a premissa (ii) não exige que todos, nem mesmo a maioria dos resultados científicos sejam verdadeiros. Ela não nega a possibilidade de que uma ideia verdadeira possa ocorrer, algumas vezes, por “revelação”, ou por algum outro meio não científico. Mas isso seria somente um acidente, sem que o acontecimento pudesse ser justificado. Além disso, (ii) não implica que a ciência responderá a todas as questões importantes acerca da realidade – não há nenhuma garantia a priori do sucesso completo da ciência, nesse sentido. Antes, o ponto da premissa (ii) é que o método da ciência é elaborado para ajudar-nos a corrigir nossos erros e nos aproximar da verdade, e que, quanto a isso, a ciência é mais eficaz que seus concorrentes.

A fim de avaliar a premissa (i), é instrutivo considerar primeiro a visão alternativa, de J. D. Bernal, o conhecido historiador da ciência britânico, um convincente e eloquente defensor da tradição otimista do Iluminismo. A ciência possui um valor cultural, ele argui com Bacon e Marx, desde que sirva como um instrumento eficiente e indispensável para o progresso social (Bernal, 1939, 1969).

Em seu Science in History (1969), Bernal distinguiu cinco sentidos diferentes de ciência: (1) instituição, (2) método, (3) tradição cumulativa do conhecimento, (4) um fator importante para o desenvolvimento e a manutenção da produção, (5) uma das mais poderosas influências modeladoras das crenças e atitudes dos seres humanos (Bernal, 1969, p. 31). O “[...] desenvolvimento progressivo da ciência advém da renovação contínua de sua interconexão com a indústria” (Bernal, 1969, p. 1237): a ciência soluciona problemas que surgem primariamente de questões práticas relacionadas a “necessidades econômicas” (Bernal, 1969, p. 39), trazendo-nos receitas que descrevem como as coisas devem ser feitas (Bernal, 1969, p. 40) e meios racionais para o planejamento consciente da produção e da ordem social. “Ciência implica socialismo”, como Bernal desejou defender, com sua tese (Bernal, 1969, p. 11).

Especialmente em seu trabalho, no final dos anos 1960, Bernal estava dolorosamente consciente da possibilidade de que a ciência, se não fosse livre e socialmente responsável, poderia ser “[...] distorcida para meios e fins destrutivos” (Bernal, 1969, p. 1309). O perigo, como ele o via, surgia de teorias da ciência “idealistas” (Bernal, 1969, p. 497).

O ideal de ciência pura – de possuir a Verdade por si mesma – é a declaração consciente de uma atitude social que tem contribuído muito para frear o desenvolvimento da ciência, colocando-a em mãos obscuras e reacionárias (Bernal, 1969, p. 41).

 

Mas, se não forem tomadas por um “pessimismo cósmico” (Bernal, 1969, p. 661), as ciências naturais e sociais, em conjunto, irão remover males conhecidos e desconhecidos, curar doenças, promover o bem-estar para todos, descobrir “novas coisas boas” e “novas bases efetivas de organização para a ação social” (Bernal, 1969, p. 1310), e transformar a sociedade em “uma unidade livre de exploração” (Bernal, 1969, p. 1309)[7].

O otimismo baconiano de Bernal e a retórica marxista já não são apreciados, em nossos dias. Nós conhecemos demasiados males, a opressão e os retrocessos que nos têm chegado sob os nomes de ciência e tecnologia. Ainda assim, admiro a coragem das concepções e esperanças de Bernal.

Estamos de acordo que a ciência – apesar de suas muitas associações destrutivas contemporâneas – ao menos tem sido e ainda pode continuar sendo um “valor cultural”. Todavia, existem razões para modificarmos a caracterização de Bernal de “como” e “por que” a ciência é uma valiosa forma de atividade em nossa cultura, e para discordarmos dele quanto à função que os valores epistêmicos (tais como “verdade”) desempenham, na orientação da ciência.

Valores culturais podem ser expressos como um sistema axiológico, que afirma quais tipos de coisas ou de fins devemos levar em conta como sendo possuidores de valores intrínsecos ou derivados (cf. Rescher, 1969). Em geral, um sistema axiológico A= V,B,Iconsiste de três elementos:

Primeiro, V é um ordenamento hierárquico de valores intrínsecos que são considerados valiosos em si mesmos, independentemente de outros fins. Valores intrínsecos podem ser, por exemplo,

 

Hedonísticos: felicidade

Vitalísticos: vida, saúde

Econômicos: recursos, prosperidade

Políticos: poder, liberdade, igualdade, justiça, paz

Sociais: amor, amizade

Epistêmicos: conhecimento, verdade

Estéticos: beleza

Religiosos: sacralidade, santidade

 

O tipo dominante de valores intrínsecos é uma característica central de um sistema axiológico – e expressa o ethos de uma cultura, caso tal sistema seja amplamente aceito. Segundo, B é um sistema de crenças que nos diz como (ou por qual meio) os valores intrínsecos em V podem ser seguidos. Terceiro, I, é uma série de valores instrumentais que servem, de acordo com as crenças B, como instrumentos efetivos, ou passos intermediários para alcançar ou promover os valores intrínsecos V.

Em que sentido a ciência poderia ser considerada como um valor cultural? A posição de Bernal parece ser clara: seus valores intrínsecos são primariamente políticos e sociais (bem-estar social, justiça, liberdade de expressão), com elementos hedonísticos e vitalísticos (felicidade, saúde). Objetivos econômicos estão entre seus valores instrumentais, desde que nos ajudem a alcançar uma boa vida, livre de miséria. E a ciência, enquanto uma busca do conhecimento, também é um valor instrumental a serviço da indústria e da organização social. A concepção de ciência de Bernal é instrumental, a ciência é instrumentalmente orientada, na medida em que tem em vista os valores epistêmicos como “meios” para “fins” que pertencem à esfera das aplicações sociais do conhecimento científico – e rejeita explicitamente a ideia de que a verdade pode ser valiosa por si mesma.

A concepção de orientação instrumental da ciência pode existir em diversas variantes, pois pode ser combinada com muitos sistemas axiológicos diferentes. A ciência pode ser tomada como um instrumento para o progresso tecnológico e econômico (conforme pensam muitos pragmatistas – cf. Rescher, 1977, 1978), para uma vida social racional (segundo muitos marxistas pensam), ou por Bildung, a educação do pensamento racional humano (como muitos filósofos do Iluminismo e muitos de seus sucessores românticos sustentaram).

Uma alternativa a tal orientação instrumentalista é incluir valores epistêmicos (tais como verdade e informação) dentre os valores intrínsecos de nosso sistema axiológico, o que seria a premissa (i) do argumento de Cohen. Essa concepção de ciência pode ser chamada de cognitivismo, uma vez que considera que a essência da ciência é a de ser uma busca racional pelo conhecimento, i.e., na qual informações verdadeiras acerca da realidade são justificadas por meio de métodos sistemáticos de investigação (cf. Levi, 1967).

O cognitivismo também pode existir em muitas variantes. A crítica de Bernal contra o ideal de “conhecimento puro e intrínseco” é direcionada em especial contra uma versão do cognitivismo que considera a Verdade (com V maiúsculo) como o único valor básico e, portanto, permanece indiferente, ou mesmo hostil às tentativas de aplicar o conhecimento científico às necessidades da humanidade, em um sentido socialmente responsável. Entretanto, cognitivistas podem muito bem aceitar, além da verdade, outros valores intrínsecos (tais como beleza, saúde, justiça, liberdade etc.), em sua axiologia. Desse modo, eles podem também aceitar que os melhores resultados da investigação científica, além de seus valores epistêmicos intrínsecos, possuem igualmente valores instrumentais relativos à meta de uma boa vida.

Assim, o cognitivismo não precisa aceitar o cientificismo, entendido como uma concepção axiológica que atribui valor intrínseco somente à ciência. De fato, contra o cientificismo, nesse sentido, um realista científico crítico pode apreciar tanto os “fins em si mesmos” quanto outros domínios da vida humana e da cultura (tais como família, arte etc.)[8]

Com relação particularmente a Bernal, a oposição retórica entre a orientação instrumental e o cognitivismo vem a ser, em grande medida, desnecessária, se nós compreendemos que um sistema axiológico pode atribuir ao mesmo objetivo (tal como “verdade”) um valor tanto intrínseco quanto instrumental (em relação a outros valores intrínsecos no sistema), ao mesmo tempo (Niiniluoto, 1990b).

O contraste entre o cognitivismo e o instrumentalismo não se torna irrelevante ou inútil, por meio dessa observação. Seus efeitos ainda existem em relação ao método científico e às políticas científicas. Primeiro, assumindo a validade de uma vindicação de verdade na ciência, um cientista pode apelar somente para seus valores epistêmicos, ou para indicadores de tais valores, porém, não para seus valores instrumentais extracientíficos. O sucesso preditivo e pragmático pode ser, sob algumas condições, um critério de verdade falível, mas não devemos nos enganar ou iludir. Por exemplo, isso não pode ser um argumento em favor (ou contra) de que a verdade de uma hipótese científica deve ser benéfica e útil (ou prejudicial e nociva) em relação aos nossos interesses práticos.

Segundo, ao passo que um cognitivista considera valiosa e racional a busca por uma ciência básica “pura”, ou “pesquisa fundamental teoricamente orientada”, mesmo se o conhecimento obtido nunca nos leve a aplicações de utilidade prática, um instrumentalista justifica a racionalidade de toda atividade científica com algum tipo de pesquisa aplicada ou estratégica. Esta é uma das razões pelas quais eu prefiro um “cognitivismo socialmente responsável” ao tipo de instrumentalismo representado por Bernal.

Outra razão em preferir o cognitivismo se baseia sobre a observação de que “o sucesso empírico e pragmático da ciência pode ser explicado por seu sucesso epistêmico”e não o contrário, como sugere Bernal. Mesmo se você valoriza mais as aplicações práticas da ciência do que seus avanços puramente epistêmicos, o modo mais efetivo de alcançá-las é por meio do desenvolvimento de teorias poderosas. “A teoria é a coisa mais prática que pode ser concebida”, segundo sustentou Ludwig Boltzmann (Boltzmann, 1974, p. 35). Assim, ao invés de ser uma ideologia perigosa e reacionária, como defende Bernal, a busca por valores epistêmicos intrínsecos é um elemento explicativo e indispensável à garantia de que a ciência é capaz de servir como fonte de valores culturais, na sociedade. 

 

A CIÊNCIA EM UMA SOCIEDADE LIVRE

O questionamento e a autocrítica da razão humana são importantes tarefas da filosofia, todavia, não devem basear-se em imagens monocromáticas ou glamourizadas da ciência[9]. Nessa conclusão, eu argumento que tal projeto reflexivo serve para iluminar a necessidade crucial em assegurar a estrutura normativa da atividade científica.

Em uma série de livros notáveis, Contra o Método (1975), Ciência em uma sociedade livre (1978) e Adeus à Razão (1987), Paul Feyerabend lançou um ataque contra as visões tradicionais [received views] de ciência. Sustentando-se em seu trabalho sobre incomensurabilidade e variação radical de significado [radical meaning variance][10], o qual estava em parte baseado em seu endossamento inicial do realismo científico eliminativista, Feyerabend argumentou contra a ideia de Método Científico: não há regras metodológicas universais ou independentes de contexto que o cientista não deva quebrar, em nome do progresso, em algumas ocasiões. Como não há nenhum método fixo, a ciência não está associada a nenhum tipo especial de Razão ou Conhecimento. Isso significa que a ciência não possui nenhuma autoridade epistêmica especial e que, em uma sociedade livre, deve ser tratada como quaisquer outras tradições doxásticas.

Feyerabend foi um autor prolífico, que às vezes gostava de empunhar sua bandeira dadaísta[11] (e procurava chocar os pensadores ortodoxos e provocar Popper, em particular), contudo, às vezes preferia formular sua posição com mais precisão e cautela (cf., p. ex., Feyerabend, 1978; Munévar, 1991). Suas críticas das concepções demasiadamente restritas e rígidas de ciência e da confiabilidade da razão são geralmente penetrantes e bem-humoradas, mas os argumentos teóricos de seu anarquismo epistemológico não são muito convincentes. Seu argumento passa da inexistência de métodos absolutos, os quais seriam válidos em todas as circunstâncias, para o famoso princípio de que “qualquer coisa serve”, entretanto – mesmo como uma redução do racionalismo excessivo –, isso parece ser novamente um exemplo da falácia do “tudo ou nada”[12], [13]

Posteriormente, desistindo das noções de justificação e falsificação, ele concebeu o conhecimento humano como “[...] um oceano crescente de mutuamente incompatíveis (e talvez mesmo incomensuráveis) teorias, mitos e contos de fada, onde nada nunca é determinado e nenhuma visão jamais pode ser omitida” (Feyerabend, 1975, p. 30). Se esse tipo de proliferação é a correta descrição da investigação (ou seu objetivo), então a regra “qualquer coisa serve” seria quase trivialmente correta! Mas, paradoxalmente, a defesa de “permanentes revoluções” na ciência tem levado Feyerabend a uma consideração extremamente cumulativista da ciência, onde nenhuma visão jamais é omitida (ver Niiniluoto, 1984, p. 161).

Em seu último trabalho, Feyerabend (1984a) comparou a ciência com a arte, inclinando-se por uma posição antirrealista, que Preston (1997) caracteriza como construtivismo voluntarista: a natureza tal como é descrita pelos cientistas é “um trabalho de arte que está continuamente sendo ampliado e reconstruído por eles” e em resposta a outros tipos de atividades culturais o universo, “realmente” contém deuses e outras entidades não científicas.

A mais significante e duradoura influência filosófica de Feyerabend provém do clássico Sobre a Liberdade (1859), de John Stuart Mill. Penso que é apropriado ver Feyerabend como um cético pirrônico em epistemologia e um absolutista em moral, o qual coloca a liberdade (como liberdade negativa, ou liberdade com restrições) enquanto o mais alto valor intrínseco no topo de seu sistema axiológico. Da perspectiva de seus valores, ele considera as normas metodológicas, fatos externos e a verdade objetiva, como restrições indesejáveis, tiranos que devem ser depostos[14].

O que para Feyerabend foi um projeto moral, ou uma cruzada, é – um tanto surpreendentemente – um fato para muitos sociólogos da ciência contemporâneos. Enquanto o anarquista filosófico se incomoda com aquilo que lhe parece ser o status excessivamente forte, ou dominante, da pesquisa e educação científicas, em nossa sociedade, os sociólogos da ciência relativistas e construtivistas declaram que a pesquisa científica não possui nenhuma vantagem epistêmica em relação a outros sistemas de crenças[15]. Ainda me lembro do meu espanto inicial, ao descobrir o acordo entre Feyerabend e os sociólogos “filosoficamente neutros” (ver Mulkay, 1977; Niiniluoto, 1991a).

O apelo de Feyerabend à liberdade torna razoável questionarmos se a liberdade poderia ser uma alternativa à verdade. Muitos filósofos objetam que liberdade e verdade não podem ser distinguidas, nesse sentido. Talvez a formulação mais forte de tal questão nos seja dada por Habermas (1983): de acordo com sua teoria consensual, a verdade é definida como o resultado último do diálogo, em uma comunidade livre. Cada membro da comunidade deveria estar livre e em uma posição simétrica para apresentar suas questões e argumentos. Por esse critério dialógico, conceitualmente “liberdade” é uma condição necessária de “verdade”.

Em minha concepção, entretanto, é demasiado forte tomar a liberdade por uma condição necessária ou condição suficiente da verdade. Um membro dominado de uma comunidade assimétrica, com boa sorte, pode vir a descobrir alguma coisa que seja verdadeira (cf. Harding, 1986). E um grupo de mentes livres e democráticas, em um diálogo simétrico, provavelmente não encontrará a verdade acerca de nenhuma matéria factual, se seus membros não têm acesso e não interagem com o mundo externo.

Por outro lado, é plausível pensar que liberdade é uma condição necessária ou constitutiva da justificação.  Boas razões não podem ser dadas a favor ou contra uma vindicação científica, se todas as possíveis questões críticas acerca desta não são permitidas. Consequentemente, a liberdade é necessária ao conhecimento (contudo, diretamente, antes por sua ligação com exigência de justificação do que com a verdade). Uma formulação clássica desse princípio geral de liberdade de pensamento nos foi dada por Mill (1859).

Mill elencou três diferentes razões para a liberdade de opinião. Primeiro, nós não podemos estar certos de que a concepção da qual nos opomos seja falsa. Segundo, mesmo quando nossa opinião é correta, é importante que também seja criticada por suas fraquezas e que visões opostas possam ser apresentadas como objeções a ela. Terceiro, duas concepções em conflito podem, ambas, conter alguns elementos verdadeiros (cf. noção de verdade parcial). Vemos que Mill não está vindicando que a liberdade seja necessária ou suficiente para a verdade, mas sim que ele discorre sobre a apresentação e a aceitação pública de opiniões.

A primeira razão de Mill é claramente relacionada com o falibilismo de Popper. A segunda razão é um importante golpe contra o dogmatismo, no interior da comunidade científica, e, desse modo, fundamenta o princípio de proliferação de Feyerabend: para o progresso da ciência, é importante multiplicar as alternativas existentes às teorias correntes, o que também revela que é socialmente desejável sermos tolerantes com respeito a sistemas de crença que sejam alternativas ao conhecimento científico. Assim, o princípio de liberdade de religião permite a cada cidadão endossar livremente sua crença, apesar de sua possível irracionalidade.

Tem sido sugerido por Lloyd (1997) que todo o projeto de Feyerabend deve ser entendido à luz de seu compromisso com o princípio de Mill. Feyerabend observou, certa vez, que a astrologia o aborrecia imensamente[16], mas que, ainda assim, “tem direito à defesa”. De acordo com sua interpretação, Feyerabend não está realmente endossando as ideias incultas da magia, cura pela fé e medicina chinesa, porém, antes, engajando-se na nobre defesa das opiniões minoritárias[17].

O relativismo de Feyerabend difere de Mill, todavia, ao menos no sentido de que ele não acredita que a ciência progride em direção à verdade. E mais, do princípio de tolerância entre opiniões diferentes, de Mill, não se segue que não exista tal coisa como a autoridade epistêmica no interior da prática científica (cf. Kitcher, 1993), ou que a ciência não possua nenhuma diferença em relação, ou tenha vantagem epistêmica contra, a pseudociência.

Feyerabend defende, em nome da “liberdade”, dentre outras coisas, a Igreja Católica, criacionismo, astrologia e voodoo contra a “tirania” da ciência. Penso que ele deveria estar mais atento ao fato de que a religião e pseudociências são sistemas de crença tipicamente dogmáticos. O ideal de ciência, ao invés disso, depende de métodos críticos autocorretivos, os quais não aceitam dogmas internos incorrigíveis, autoridades permanentes ou sagradas escrituras e nenhuma violação externa de sua autonomia. Nesse sentido, a ciência se esforça em ser a única instituição de busca do conhecimento na qual o autoengodo coletivo, em longo prazo, é impossível.

As condições de Mill para a boa ciência têm sido abolidas, nas sociedades autoritárias. A autonomia da ciência pode florescer unicamente em sociedades que estejam dispostas a suportar instituições científicas autocorretivas (cf. Rescher, 1978) e sejam suficientemente sábias para permitir que a comunidade científica resolva problemas cognitivos, por meio do método crítico.

Há, então, uma ligação entre ciência e valores da sociedade ocidental, democrática e liberal, como Richard Rorty (1989) argumentou, seguindo John Dewey. Entretanto, penso que é problemático conectar esses valores a uma doutrina antirrepresentacional de linguagem e ciência. Se nossa consideração do sucesso da ciência é correta, não se pode simplesmente valer-se da ciência e de tecnologias propiciadas por esta, com virtudes baconianas, sem ao mesmo tempo “comprar” sua explicação realista.

Também está errado delinear, por assim dizer, uma dicotomia entre “objetividade” e “solidariedade”, afinal de contas, Rorty é famoso por abolir, ao invés de criar, dicotomias. A resposta correta para a questão de Rorty, “solidariedade ou objetividade?” é “ambas”! Podemos ser solidários aos valores de nossa comunidade e de toda a humanidade, não obstante, podemos alcançar isso, buscando a verdade objetiva na ciência.

Rorty (1991) pensa que a ênfase na objetividade é uma forma disfarçada da ideia do cientista como um sacerdote de uma cultura não religiosa, mediador entre nós e alguma coisa não humana: o que Deus foi para a cultura pré-moderna, a natureza o é para os modernos, e ambos são rejeitados pela nova cultura pós-moderna (não religiosa e não científica).  Uma interpretação um tanto diferente é possível, porém. Ao menos a religião cristã é extremamente antropocêntrica[18]: o homem é a imagem e semelhança de Deus, tendo o direito de controlar e subjugar outras criaturas de Deus. O pragmatismo de Rorty (como aquele de James, Dewey e Putnam) continua (prossegue com) essa perspectiva antropocêntrica do mundo: o desprezo da objetividade pode ser reclamado como um resquício da posição confortável na qual não tínhamos de nos relacionar com qualquer coisa (como o Mundo) que fosse não humana por natureza.

Quais, mais precisamente, são as conexões entre ciência e valores democráticos? Feyerabend deu uma resposta, em seu princípio do “relativismo democrático”, segundo a qual “[...] cidadãos, e não grupos especiais, detêm a última palavra na decisão do que é verdadeiro ou falso, útil ou inútil na sociedade” (Feyerabend, 1987, p. 59). Esse princípio contém duas subteses: em minha visão, a primeira é incorreta e a última, correta.

Primeiro, quem decide o que é verdadeiro ou falso? Permita-nos ilustrar isso com um exemplo atual. Em nossos dias, alguns historiadores argumentam que a perseguição aos judeus e os campos de concentração nunca existiram. O parlamento alemão aprovou uma lei que torna crime a disseminação pública de tal opinião. Este é um modo por meio do qual a sociedade se defende dos movimentos neofascistas. No entanto, isso não significa que os cidadãos decidam o que é verdade. A ideia de que a “verdade” histórica é política pode resultar do uso de “verdade” como significando “crença consensual” ou de uma visão antirrealista do passado. Realistas científicos refutam tais absurdos, por insistir que a verdade acerca do holocausto é determinada pelo fato de que Auschwitz realmente existiu.

A verdade não é determinada pelos cidadãos, todavia, nem pelos cientistas. (E também não o é pela política, como pontuado por Russel, em 1940). Como já dito, a verdade sobre a história é determinada pelos fatos históricos, os quais são independentes de nós. O que nos é acessível é melhorarmos nossos conhecimentos da História e reinterpretá-los para nós mesmos.

De modo geral, a ligação entre a ciência e os valores ocidentais não significa que o método da ciência seja, em si mesmo, democrático. Como Popper enfatizou, a discussão pública e crítica entre os cientistas é um elemento importante da pesquisa. Todavia, nenhum simples princípio de “igualitarismo cognitivo” é aplicado dentro ou fora da comunidade científica. A ciência é um sistema de conhecimento especializado. Quando necessitamos de conhecimentos – por propósitos cognitivos, educacionais ou práticos – acerca de partículas elementares, consultamos um físico nuclear, quando acerca do Terceiro Reich, consultamos historiadores profissionais. Quando os editores de jornais decidem acerca da aceitabilidade de artigos submetidos, eles consultam avaliadores que são os melhores entre os seus pares naquela questão específica discutida pelo artigo.

As opiniões de tais especialistas são falíveis, contudo, são as melhores que podemos obter, se elas estão baseadas na livre investigação, na consideração cuidadosa das evidências e na discussão crítica entre os colegas. Essas opiniões possuem autoridade epistêmica dentro da ciência e na sociedade em geral – mas não porque os cientistas são melhores, mais inteligentes ou mais virtuosos do que outros cidadãos e porque nós temos que confiar em tais gentlemen (Shapin, 1994), mas porque eles se utilizam de métodos públicos e críticos de investigação, e podemos avaliar a confiabilidade de suas vindicações.

Quando especialistas discordam, os assuntos não são definidos por um voto, o argumento mais forte deve vencer. A suspensão de juízo também é uma possível posição racional em algumas matérias. A ciência não possui respostas prontas para todos os problemas cognitivos. E é mesmo possível que alguns problemas cognitivos permaneçam, para sempre, sem solução científica.

Assim, a “democratização da ciência” não pode significar o desaparecimento da distinção entre conhecimento especializado e leigo[19]. Ao invés disso, deve significar a democratização da participação na comunidade científica: em uma sociedade livre, uma carreira científica deve ser acessível, em princípio e na prática, a todos que possuam talento suficiente, motivação e energia para trilhar a educação profissional. As possibilidades e condições para tal filiação não devem depender de nacionalidade, gênero e recursos financeiros[20].

Deve significar também democratização na distribuição pública do conhecimento, o que, dessa forma, também redistribui o poder no interior da sociedade (ver Fuller, 1993). Os mais avançados resultados da ciência devem ser acessíveis a cada cidadão interessado, por meio de sistemas de educação e canais de comunicação pública. E mais, deve significar também a democratização de políticas de ciência e tecnologia.[21] Chegamos então à parte correta do relativismo de Feyerabend: os cidadãos, em última análise, decidirão o que é “socialmente útil ou inútil”.

O problema aqui não é o que é verdadeiro e o que é falso, mas quais áreas de pesquisa e desenvolvimento são financiadas pelos fundos públicos, com quais propósitos o conhecimento científico é aplicado, quais são os limites éticos da tecnologia genética e da experimentação animal, como projetos tecnológicos são avaliados em termos sociais e morais, e quais tipos de riscos são socialmente aceitáveis. Bons exemplos de tais métodos democráticos incluem “painéis de consumidores” e “conferências de consenso”, onde membros leigos da sociedade avaliam as consequências de tecnologias alternativas sobre o que eles consideram como bem-estar.

O conhecimento especializado sobre assuntos factuais desempenha um papel parcial na análise de tais questões, entretanto, em última análise, os problemas políticos envolvem decisões a respeito de valores que não são derivados dos resultados da ciência empírica. O relativismo moral moderado defendido no capítulo 8[22] é um aliado natural da democracia, uma vez que exclui a possibilidade de que cientistas e filósofos desempenhem a função de “ditadores” na sociedade, escolhendo os valores intrínsecos pelos métodos da ciência. Certamente, o conhecimento factual sobre a natureza, história e sociedade é, em muitos sentidos, relevante para a consideração racional e a modificação dos valores: o “decisionismo” que toma os valores como escolhas puramente arbitrárias e subjetivas não é plausível (Habermas, 1971). Em questões relativas aos objetivos e decisões de indivíduos, grupos e sociedades, cientistas têm dado informações confiáveis acerca da situação presente e das consequências prováveis dos cursos de ação alternativos ou dos projetos tecnológicos alternativos. Mas continua a existir a possibilidade de desacordo entre cidadãos racionais a propósito dos fins sociais aceitáveis – e estes não são decididos pela ciência, mas por procedimentos democráticos de tomada de decisão.

Todavia, sob quais condições a ciência é capaz de desempenhar toda essa importante função, em uma democracia moderna?  Dissemos acima que a confiança na ciência depende do fato de que a comunidade de seus praticantes emprega o método crítico de investigação científica. Está claro que a validade dessa condição depende, por sua vez, da estrutura normativa da ciência.

As atividades científicas são governadas, ao menos, por quatro tipos de normas sociais, a maior parte das quais não está escrita. Primeiro, há a etiqueta, isto é, regras para o comportamento decente ou apropriado em eventos acadêmicos, como conferências e defesas de doutorado. Segundo, a ética da ciência refere-se às práticas científicas moralmente aceitáveis ou inaceitáveis – tais como a honestidade ao coletar e divulgar dados, a equidade com respeito aos colegas, evitar danos desnecessários aos objetos de investigação e a responsabilidade para com o uso dos resultados[23]. Terceiro, a metodologia expressa a forma adequada da busca pelo conhecimento. Em quarto lugar, há a legislação concernente à sociedade, em geral, e às instituições científicas, em particular.

Uma descrição clássica da estrutura normativa da ciência foi dada na formulação do ethos da ciência de Robert Merton (ver Merton, 1973). Seus princípios sustentam que a ciência é uma atividade coletiva de busca por novos conhecimentos, na qual os cientistas não almejam suas próprias vantagens pessoais (Desinteresse), publicam seus resultados para toda a comunidade (Comunismo)[24], avaliam os conhecimentos propostos através de critérios impessoais pré-estabelecidos (Universalismo) e por meio de escrutínio crítico, em termos de critérios lógicos e empíricos (Ceticismo organizado). Referências à raça, nacionalidade, religião, classe social e qualidades pessoais estão excluídas da argumentação científica – pois isso é apelar em proveito pessoal, na avaliação dos conhecimentos vindicados. Tais normas estão muito próximas da visão comum [receveid view] da ciência de tradição analítica. John Ziman (1994) argumenta que elas têm servido ao progresso e produtividade da ciência, por encorajar a criatividade pessoal e a abertura ao debate público.

Algumas das normas (tais como o princípio de fair play, em atribuir créditos para as descobertas científicas, eliminando o plágio) têm a função de manter elevada a motivação dos cientistas, na busca de novos resultados. Todavia, é importante perceber que muitas normas em ciência, tanto éticas (p. ex., regras contra a fabricação de dados ou fraudes) quanto metodológicas (p. ex., regras para testar hipóteses estatísticas), são centradas na verdade [truth-centred]: são desenvolvidas para garantir a natureza confiável e autocorretiva da investigação científica. Em outras palavras, essas normas sociais são epistemologicamente, e não apenas sociologicamente, altamente relevantes e interessantes.

A existência de normas metodológicas e morais para a conduta dos cientistas mostra que o sonho de Feyeraband de liberdade ilimitada não pode ser realizado, na ciência. E não deveria ser, também, desde que tais normas (ou muitas delas) são constitutivas do empreendimento que nós chamamos de ciência. O anarquismo como a espera de uma liberdade negativa absoluta está, então, condenado ao fracasso.

Os anarquistas falham em perceber que regras “restritivas” (métodos, máximas morais) garantem liberdade positiva para a ciência, isto é, elas capacitam os cientistas a alcançar os objetivos da investigação. A existência de fatos objetivos e verdadeiros, e métodos objetivando-os, independentes dos desejos pessoais dos cientistas ou de interesses de grupo, é que torna o acordo intersubjetivo possível na ciência. Tal objetividade significa igualmente que a verdade está acima da autoridade humana: ao invés de ser “tirana”, a verdade garante que nós sejamos livres, uma vez que nenhuma pressão social sobre nós tem o poder de modificá-la. Em um sentido levemente diferente, o conhecimento nos ajuda a proteger-nos contra a manipulação (ver Siegel, 1988).

Importantes estudos sociológicos têm indicado muitos sentidos nos quais os princípios mertonianos são violados pelo comportamento atual dos cientistas: os exemplos incluem casos de dominação, interesse próprio, fraude e sigilo (ver Mulkay, 1979). Tais violações não demonstram que as normas mertonianas não são mais válidas: a invalidez de uma norma significa que ela pode ser violada sem uma sanção. Este não é o caso com o mau comportamento científico, como o interesse crescente nos códigos científicos e comitês na ciência acadêmica indicam. Se as normas centradas na verdade são constitutivas da ciência, como eu tenho argumentado, elas não podem ser superadas como uma “ideologia” antiquada – no mesmo sentido que, por exemplo, a antiga ideologia dos competidores amadores nos jogos olímpicos tem sido transformada, no interior de uma nova ideologia do esporte, em uma profissão. Portanto, as pessoas deveriam estar profundamente interessadas e preocupadas com o futuro da ciência, nas sociedades ocidentais. Pesquisa e desenvolvimento (P&D)[25] estão amplamente ligados a propósitos militares e comerciais, em um sentido que não satisfaz as demandas mertonianas por publicidade e diálogo crítico.[26]

Mesmo a pesquisa acadêmica, nas universidades, está dominada por políticas científicas nacionais que visam, a curto prazo, a benefícios econômicos e aplicações industriais. A Big Science, com seus laboratórios, está se tornando cada vez mais custosa. Exigências de prestação de contas e o uso esquemático dos indicadores de ciência encorajam o comportamento tendencioso com respeito às normas éticas. John Ziman (1994), levantando as condições atuais de pesquisa, argumenta que os alicerces normativos mertonianos CUDOS (Comunalismo, Universalismo, Desinteresse, Originalidade, Ceticismo)[27] agora estão substituídos por PLACE (Proprietário, Local, Autoritário, Comissionado, Especializado). Todas essas mudanças podem colocar em perigo as habilidades epistemológicas e as credenciais da investigação científica – e prejudicar o progresso científico.

Observadores cínicos argumentam que a ciência, em um sentido tradicional, já está corrompida, deteriorada e perdida. Entretanto, o realismo é uma filosofia que nos encoraja a lutar pela ciência, por seus métodos e por sua ética. Na verdade, esta é uma boa razão social para manter o entusiasmo com realismo crítico acerca da ciência.

 

AGRADECIMENTO

Agradeço ao professor Ilkka Niiniluoto, da University of Helsink, pelo diálogo e cordial e pelo modo gentil com que assentiu com esta tradução. Agradeço aos colegas de pesquisa do ECTS, Estudos Conceituais e Sociais em Ciência, Tecnologia e Sociedade (UERJ). Creio que foi em uma das adoráveis tardes de reunião de pesquisa, no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), que tomei contato com o texto de Niiniluoto. Agradeço aos colegas de TeHCo, grupo de pesquisa do Instituto de Física da USP, onde meu contato com Critical Scientific Realism foi retomado. Aos colegas de Physikós – Estudos de História e Filosofia da Física e da Cosmologia (UFMS-CNPq), agradeço pelos valiosos debates sobre o tema. Agradeço aos editores e pareceristas da revista Trans/Form/Ação pelo meticuloso trabalho, sem o qual essa publicação não seria possível.

 

“Science as cultural value” and “Science in a free society”

Abstract: Born in Helsinki in 1946, lkka Niiniluoto received a master's degree in mathematics in 1968 and a doctorate in theoretical philosophy in 1974 from the University of Helsinki. He was Associate Professor of Foundations of Mathematics from 1973 to 1977 and Professor of Theoretical Philosophy from 1977 to 2014. His prolific academic career includes positions as president of important philosophical societies and rector of the University of Helsinki. His main works are Is Science Progressive? (1984), Truthlikeness (1987), Critical Scientific Realism (2002), Truth-Seeking by Abduction (2018) and Beauty, Truth, and Justice (2022). His research explores the interfaces between Philosophy of Science, Epistemology, Logic, Theory of Truth and Axiology of scientific research. In Critical Scientific Realism Niiniluoto addresses the problem of the value of science, refuting a utilitarian instrumentalist conception and defending a socially responsible cognitivism in which science is conceived as a culturally valuable activity in its own right, without the need to satisfy criteria imposed by practical political and economic needs.

 

Keywords: Critical realism. Epistemicism/cognitivism. Value of science.

 

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Recebido: 24/07/2024 – Aprovado: 12/08/2024 – Publicado: 23/08/2024



[1] Seções “Science as cultural value” eScience in a free society”. In: NIINILUOTO, I. Critical scientific realism. Oxford: Oxford University Press, 1999.

[2] Professor of Department of Philosophy, History and Art Studies, University of Helsink. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3162-5970. E-mail: ilkka.niiniluoto@helsinki.fi.

[3] Professor da Licenciatura em Filosofia - Faculdade de Ciências Humanas e da Pós-Graduação em Ensino de Ciências - Instituto de Física, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, MS, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1061-2727. E-mail: vinicius_c_silva@ufms.

[4] N.T. As indicações dos anos, páginas e obras foram mantidas conforme o original.

[5] N.T. O que faz, no capítulo 6 da referida obra.

[6] N.T. Niiniluoto emprega truthlikeness, termo que preferimos traduzir por “proximidade com a verdade”.

[7] N.A. Bernal obviamente tinha em mente a bomba atômica e outras aplicações militares da ciência. Esse artefato foi resultado de pesquisa e desenvolvimento aplicados (ou seja, engenharia baseada na ciência). O Projeto Manhattan não buscou a “verdade por si só”. Essa caracterização pode se aplicar a pioneiros da física, como Ernest Rutherford. Talvez a tese de Bernal seja apenas a de que os defensores do ideal da ciência pura geralmente são ingênuos e não percebem os propósitos maléficos para os quais seu trabalho pode servir.

[8] N.A. A criação artística da beleza pode ser um fim em si mesmo, o qual coexiste em um sistema axiológico, enquanto um valor intrínseco, juntamente com a busca científica pela verdade. Penso que se pode sustentar que a arte também serve a importantes funções epistêmicas. A construção de novos sistemas de representação e pontos de vista pode ser útil para a imaginação requerida na formação das teorias e dos conceitos científicos. Além disso, uma obra de arte (p. ex., uma novela psicológica ou de ficção) pode nos oferecer informações autênticas sobre a realidade (cf. Niiniluoto, 1986d). Todavia, um artista, usualmente, não tenta justificar seu trabalho como uma vindicação de verdade. Se assim o fizesse, ele se transformaria em cientista. (Esta é uma modificação da história da lagarta se transformando em borboleta, narrada por Kemeny (1959), para ilustrar a relação entre filosofia e ciência.).

[9] N.T. No original, lê-se: “The questioning and self-criticism of human reason is an important task of philosophy, but it should not be based upon black-and-white horror-stories or glimmering pictures of science”.

[10] N.T. Para saber mais sobre o trabalho de Feyerabend, ver Kordig, 1970.

[11] N.T. “Who sometimes liked to wear his dadaist cap”.

[12] N.A. “Qualquer coisa serve” não é propriamente uma recomendação metodológica de Feyerabend, mas sua caricatura dos predicamentos racionalistas (ver Feyerabend 1978, p. 188; cf. Lloyd, 1997). Porém, um realista científico razoável pode tomar regras metodológicas “dependentes de contexto” [não universais] em um sentido forte, como sendo projetadas para funcionar em nosso universo (ver Boyd, 1990, grifos nossos]. Feyerabend (1984b), ao elevar o físico positivista Ernest Mach a herói do pensamento científico, parece propor, um tanto quanto surpreendentemente, a testabilidade empírica como um princípio metodológico científico sólido e geralmente válido (cf. Niiniluoto, 1986a). Ele reivindica que a rejeição de Mach da teoria atômica foi “razoável”, uma vez que ele seguiu um princípio aceito “por muitos cientistas e por quase todos os modernos filósofos da ciência”, a saber, que “as puras construções do pensamento” “não têm lugar na ciência”, uma vez que “declarações de tal tipo são, por princípio, não testáveis”.

[13] N.T. O princípio que encontramos em Contra o Método é “Tudo vale”, mas, claramente, pelo contexto geral da epistemologia de Feyerabend, esse princípio deve ser lido como “Tudo vale, desde que certas condições, como a, b, c sejam satisfeitas”. Tais condições seriam do tipo (a) compromisso com o bem público, (b) adoção de um pluralismo epistemológico, (c) luta em prol do direito de afirmação de cosmovisões contra hegemônicas, e assim por diante.

 

[14] N.A. Aqui, Feyerabend concorda com as concepções de Michel Foucault.

[15] N.T. Ver capítulo 9, de Critical Scientific Realism, Niiniluoto, 1999; cf. Russel, 1983.

[16] N.T. A expressão usada por Niiniluoto é “bores him ‘to tears’”.

[17] N.A. Observe-se, entretanto, que o que é uma opinião minoritária é uma questão relativa. Na Europa Central do pós-guerra, onde Feyerabend foi educado pelo último membro do Círculo de Viena, Viktor Frank, a filosofia analítica e o realismo científico eram (e, na maioria dos lugares, ainda são) posições minoritárias. Pelo menos, a julgar pelo enorme fluxo de informações pseudocientíficas, na mídia contemporânea, pode-se afirmar que a visão científica do mundo foi reduzida a uma posição minoritária, atualmente, nos países ocidentais. E o princípio de proliferação de Mill também justificaria algo que Feyerabend desaprovou: a importação da ciência e da religião ocidentais como novas alternativas para as culturas do Leste e do Sul.

[18] N.T. No original: human-centred.

[19] N.A. Para uma discussão desafiadora dessa questão, ver Fuller (1993). A “presunção democrática” de Fuller diz que “a ciência pode ser examinada e valorada por um público leigo apropriadamente informado”, mas isso é ambíguo.

[20] N.T. No original: Wealth.

[21] N.A. Discuti problemas de política de ciência e tecnologia em Niiniluoto (1997c).

[22] N.T. Ver Moral Relativism. In: NIINILUOTO, I. Critical Scientific Realism. Oxford: Oxford University Press, 1999. p. 229.

[23] N.A. Para a ética da ciência, ver Tranöy (1988). O Committee on the Conduct of Science nomeado pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos publicou um guia útil, On Being a Scienist (Washington, 1989).

[24] N.T. Pode ser lido também como “comunalismo”.

[25] N.T. R&D, em inglês.

[26] N. T. Publicidade como qualidade do que é público, ou seja, aberto a todos, de conhecimento público. Refere-se ao que Merton chama de “Comunalismo”. O que Niiniluoto refere como diálogo crítico parece corresponder ao que Merton trata por “ceticismo organizado” e mesmo “universalismo”. Afinal, o universalismo garante que o conhecimento científico seja criticamente elaborado, a partir de critérios universais previamente estabelecidos, e o “ceticismo organizado” possibilita aquilo que Niiniluoto chama de método crítico autocorretivo da pesquisa científica, assegurando que o conhecimento científico, por ser público e universal, seja objeto do escrutínio crítico da comunidade científica.

[27] N.T. O acrônimo foi traduzido conforme o original, onde as letras O e S se referem, nessa passagem específica, a Originality e Scepticism. Em trecho anterior, no entanto, o sentido mertoniano das letras aparece quando o autor lista Organized scepticism como uma das normas do ethos.