Comentário a “Nietzsche e a política do corpo”

 

Daniel Filipe Carvalho[1]

 

Referência do artigo comentado: MONTEIRO, Átila B. Nietzsche e a política do corpo. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400192, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15674.

 

Mas o desperto, o sabedor, diz: corpo sou eu inteiramente; e alma é apenas uma palavra para um algo no corpo.

O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.

(Nietzsche, 2018, p. 33)[2]

 

O artigo do professor Átila B. Monteiro aborda um importante tópico da reflexão nietzschiana, suas considerações acerca do corpo. Embora não tenha uma obra ao longo de toda a sua produção filosófica dedicada ao tema, a reflexão de Nietzsche sobre o corpo ocupa um lugar central em sua filosofia, especialmente em seu período final, marcado pela tentativa de reabilitação de um projeto prático-especulativo de maior alcance e pelo vocabulário da vontade de poder. Nietzsche escreve, em uma anotação de agosto-setembro de 1885, publicada postumamente, que é necessário “[...] tomar o corpo como ponto de partida e fazer dele o fio condutor, eis o essencial. O corpo é o fenômeno mais rico, que permite observações mais claras. A crença no corpo é mais bem estabelecida do que a crença no espírito” (Nietzsche, 1999, p.  635; NF/FP 1884-1885, 40 [15], KSA 11.635). Em outro fragmento do mesmo período, igualmente editado postumamente, Nietzsche escreve que “[...] o fenômeno do corpo é o fenômeno mais rico, mais claro, mais compreensível: deve ser posto metodicamente em primazia, sem que descubramos algo sobre seu significado último” (Nietzsche, 1999, p. 205; NF/FP 1885-1887, 5 [56], KSA 12.205). Em outro fragmento póstumo:

Ponto de partida do corpo e da fisiologia: por quê? Ganhamos a representação correta da espécie de nosso sujeito-unidade, a saber, como regentes à frente de uma comunidade, não como “almas” ou “forças vitais”, bem como de sua dependência em relação aos que são regidos e em relação às condições hierárquicas e de divisão do trabalho, como o que possibilita, simultaneamente, os indivíduos e o todo (Nietzsche, 1999, p. 638; NF/FP 1884-1885, 40 [21], KSA 11.638).

 

Fazer uma filosofia que toma o corpo como ponto de partida, pois, na contramão de uma tradição idealista que coloca o pensamento, a alma, o eu, a consciência, a razão no centro em torno do qual orbita toda a reflexão filosófica, é o projeto executado por Nietzsche, em sua filosofia madura: “[...] considero o autoespelhamento do espírito um ponto de partida infrutífero e não acredito em boa investigação que não tome o corpo como fio condutor” (Nietzsche, 1999, p. 266; NF/FP 1884-1885, 26 [432], KSA 11.266). Mas esse projeto de uma filosofia a partir do corpo envolve, ao mesmo tempo, uma filosofia do corpo, uma compreensão que passa pela restituição do homem à natureza e à história, a qual terá como saldo uma imagem do corpo como multiplicidade conflituosa, como algo político, longe das conotações moralizantes acumuladas ao longo de dois mil anos de uma tradição filosófica metafísica, moral e cristã.

            É sobre essa compreensão do corpo instanciada na filosofia nietzschiana que se debruça o artigo em questão, através de um duplo movimento: o primeiro deles em direção à desconstrução das noções usuais de corpo e de unidade individual, por meio do qual se põe em relevo o fato de que o corpo faz parte de um devir histórico e está sujeito a teias sociais que o produzem; o segundo, no sentido de delinear a natureza política da compreensão elaborada por Nietzsche acerca do corpo, entendido pelo filósofo como uma multiplicidade conflituosa, de maneira que sua unidade será resultado não de uma função teleológica, mas de disputas, imposições, resistências, relações de mando e obediência.

            Como Monteiro (2024) mostra, as considerações de Nietzsche sobre o corpo atravessam toda sua obra, e estão conectadas às preocupações do filósofo em cada um de seus períodos de produção. Mas se, no período inicial, sua reflexão sobre o corpo ainda estava ligada a um projeto de cunho estético-metafísico, embora concebido enquanto especulação com fins edificantes, a partir de seu período intermediário, as reflexões a respeito do corpo ganham novos contornos, na medida em que são realizadas no interior de uma empreitada que mobiliza as diversas ciências no intuito de dissolver os dualismos da tradição filosófica (uma empreitada que atende inicialmente pelo nome de filosofar histórico, que conecta história e fisiopsicologia e, posteriormente, genealogia) da qual resulta uma imagem do corpo como algo enraizado na história, na natureza e na cultura, sem que isso signifique uma adesão acrítica a uma imagem produzida pelo discurso da ciência.

            Ao contrário, a compreensão de corpo e de subjetividade, a qual emerge na filosofia nietzschiana, será marcada pelo seu entendimento enquanto uma multiplicidade conflituosa de impulsos, de forças que não estão teleologicamente direcionadas a uma unidade. O corpo não é algo dado, fixo, natural, todavia, resultado de um processo ininterrupto de construção, sob disputa, um devir de arranjos temporários de imposições e resistências, internas e externas – separadas tão somente pela sublime presunção da palavrinha “e” –, sem um sentido predeterminado. Com efeito, conforme delineia Monteiro (2024), o corpo, essa “grande razão”, é “uma multiplicidade dinâmica em contínua transformação”, uma multiplicidade política constituída no interior de uma determinada comunidade política, também esta sempre um devir de arranjos temporários de imposições e resistências; o corpo, em suma, é produzido no interior de uma determinada coletividade social.

            Como fica evidenciado na introdução e nas considerações finais do artigo, a reflexão acerca da natureza política do corpo e de uma política do corpo, na filosofia nietzschiana, está inserida em um conjunto de preocupações de Monteiro (2024) a propósito do lugar do corpo, das representações do corpo e das políticas do corpo, na contemporaneidade, o que indica a pretensão de refletir sobre tais questões a partir de um diálogo, certamente frutífero, com as contribuições de Nietzsche, nesse campo de reflexão. Já de início, o texto aponta o paradoxo liberdade-opressão relativo ao corpo, na contemporaneidade, na medida em que, ao mesmo tempo que viveríamos em um tempo histórico de maior experimentação e liberdade em relação ao corpo, assistimos, por outro lado, à ascensão de conservadorismos político-morais que tentam controlar os corpos no que diz respeito à sexualidade, ao uso de drogas, ao aborto (no momento em que escrevo este comentário, a discussão no Brasil gira em torno do monstruoso PL 1904/2024, que pretende obrigar vítimas de estupro a se tornarem mães, caso engravidem, dos filhos de seus abusadores) etc.

            Nesse sentido, a reflexão a respeito da compreensão do corpo, na filosofia de Nietzsche, ou da política do corpo, em Nietzsche, deve servir para pavimentar uma reflexão mais ampla sobre as políticas do corpo, na contemporaneidade, significando ainda um contraponto às principais tendências de tomada do corpo e da imagem do corpo, em nosso tempo, seja em sua redução ao corpo biológico pelo discurso científico, seja pela visão moralizante do discurso religioso ou pela apropriação de sua imagem espetacularizada e performada, enquanto mercadoria, pelo capital.

 

Referências

LOPES, R. A. O corpo como fio condutor: Notas a propósito de uma expressão. In: MARTON, S.; BRANCO, M. J. M.; CONSTÂNCIO, J. (org.). Sujeito, Décadence e Arte: Nietzsche e a modernidade. Lisboa-Rio de Janeiro: Tinta da China, 2014. p. 99-142.

MONTEIRO, Á. B. Nietzsche e a política do corpo. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400192, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp. br/index.php/transformacao/article/view/15674/16596. Acesso em: 10 mar. 2024.

NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. 15 Bände. Berlin: Walter de Gruyter, 1999.

NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2018.

 

Recebido: 20/06/2024 – Aprovado: 24/06/2024 – Publicado: 10/07/2024



[1] Professor do Departamento de Ciências Sociais e Filosofia do CEFET-MG, Belo Horizonte, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7392-0743. E-mail: danielcarvalho@cefetmg.br.

[2] Com exceção da epígrafe, as demais citações de Nietzsche são feitas a partir da edição crítica das obras do filósofo, Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), editadas por Giogio Colli e Mazzino Montinari. As abreviaturas NF/FP se referem aos Nachgelassene Fragmente/Fragmentos Póstumos, seguidas do ano de composição do fragmento, da seção, do volume e da paginação na edição crítica. A referência encontra-se ao final. As traduções são de minha autoria.