Entre a visão e a imagem: para uma antropologia (fenomenológica) da imagem em Hans Jonas

 

Jelson R. de Oliveira[1]

 

Resumo: No presente artigo, pretende-se demonstrar a centralidade do problema da imagem, na ontologia e na antropologia filosófica de Hans Jonas, deixando de lado os aspectos éticos. Trata-se de analisar como, a partir dos elementos derivados da sua biologia filosófica (caracterizada como uma descrição do fenômeno da vida), é possível compreender a centralidade da noção de imagem, em suas diferentes implicações para a constituição da diferença dos animais humanos em relação às demais formas de vida animal. Para tanto, objetiva-se evidenciar as características centrais do que podemos chamar de uma Antropologia fenomenológica da imagem, constituída com base em três aspectos: [1] a participação do animal humano na história da liberdade, descrita como fio condutor da compreensão do fenômeno da vida, no qual se situa a relação entre a visão e a distância; [2] a concepção da imagem como parte do processo de autoconstituição de si mesmo, por parte do humano; [3] a imagem como elemento de diferenciação do animal humano em relação aos demais animais, segundo o processo de continuidade transanimal do ser humano. Por fim, espera-se explicitar como a imagem exerce papel fundamental, seja no contexto da ontobiologia jonasiana (na medida em que dá testemunho da liberdade própria das formas de vida animal), seja na constituição de sua antropologia filosófica (por meio do conceito de transanimalidade).

 

Palavras-chave: Imagem. Biologia filosófica. Antropologia fenomenológica. Liberdade eidética. Hans Jonas.

 

Introdução

Desde os dias da filosofia grega, o olho tem sido celebrado como o mais excelente dos sentidos. A mais nobre das atividades do espírito, a theoria é descrita geralmente com metáforas tiradas da esfera visual (Jonas, 2001, p. 135)

 

Hans Jonas está entre os pensadores que realizaram uma “fenomenologia dos sentidos” (Jonas, 2001, p. 136) e, especialmente, uma fenomenologia da visão – com enfoque para a questão da imagem. Sua análise do fenômeno da vida, desenvolvida em The Phenomenon of Life: toward a Philosophical Biology (publicada, pela primeira vez em inglês, em 1966), reconhece a importância da visão para a vida animal (especialmente no capítulo 6, cujo título é “The nobility of sight: a study in the Phenomolonology of the Senses”[2]) e da imagem, como estágio específico da liberdade humana (capítulo 7, sobre o “Homo pictor[3], em Image-making and Freedom of Man”[4]). Além disso, Jonas volta ao tema, em outros dois trabalhos: [1] em um texto complementar sobre a questão do Homo pictor, intitulado “Visão e pensamento: uma resenha do livro Pensar Visual[5], de autoria de Rudolf Arnheim (1969); e [2] no ensaio “Ferramenta, imagem[6] e túmulo: o transanimal no ser humano” (1985/6)[7], no qual o tema da liberdade é analisado como uma das condições específicas da vida humana e, ao mesmo tempo, como um dos seus elementos diferenciais (embora não disruptivos).

Devemos notar, ainda, que o tema da imagem acaba por exercer um papel central nas reflexões éticas de Jonas, tanto em Das Prinzip Verantwortung, de 1979, quanto em Tecknik, Medizin und Ethik, de 1985, obras nas quais o filósofo classifica a era moderna como o tempo da “[...] neutralização metafísica do ser humano” (Jonas, 2013, p. 27), no qual desaparecem qualquer ideia, modelo, arquétipo, imagem (imago Dei), natureza ou essência do ser humano, embora também essa época seja marcada pelo afã de melhoramento do ser humano. A questão ética aí disposta diz respeito ao fato de que, sendo o ser humano “a mais plástica das criaturas”, ele, agora, é também o seu próprio projeto, a serviço do qual estão os novos poderes biotecnológicos. O diagnóstico que elege esse um dos desafios éticos mais urgentes do mundo contemporâneo parte do reconhecimento de que esses poderes são destituídos de qualquer força orientadora – a qual poderia se apresentar, por exemplo, na forma de uma imagem de ser humano a ser preservada, por exemplo. Jonas é contundente a esse respeito: [...] agora trememos na nudez de um niilismo no qual o maior dos poderes se une ao maior dos vazios; a maior das capacidades, ao menor dos saberes sobre para que utilizar tal capacidade” (Jonas, 2006, p. 65)[8].

No presente artigo, pretendemos demonstrar a centralidade do problema da imagem, na ontologia e na antropologia filosófica de Hans Jonas[9], deixando de lado os aspectos éticos[10]. Trataremos de analisar como, a partir dos elementos derivados da sua biologia filosófica (caracterizada como uma descrição do fenômeno da vida), é possível compreender a centralidade da noção de imagem em suas diferentes implicações para a constituição da diferença dos animais humanos, em relação às demais formas de vida animal[11].

 

1 A FENOMENOLOGIA DA VISÃO

Para Rubio (2014, p. 76), “[...] a recepção de Jonas como teórico da imagem não reparou suficientemente no fato de que a antropologia filosófica jonasiana se inscreve em um programa maior no qual se combinam uma filosofia do orgânico com una metafísica da liberdade”. Assim, a análise do tema da imagem deve ser pensada no âmbito de uma ontologia (geral) da vida, mas, desde aí, também em uma antropologia filosófica, levando-se em conta que o ser humano não pode ser pensado de maneira independente das demais formas de vida, o que se comprova pela chamada transição que marca a divisão temática da obra de 1966, a partir do capítulo 9 (Jonas, 2001, p. 183). A reflexão de Jonas começa, por isso, com uma análise sobre a visão e termina com a afirmação da condição do ser humano como homo pictor, o fazedor de imagem. Isso se explica pelo fato de que, para Jonas, a filosofia da vida é, ao mesmo tempo, uma filosofia do organismo e uma filosofia do espírito, dado que a estratégia da sua biologia filosófica é restituir o caráter psicofísico da vida, anulado tanto pelos esforços do dualismo quanto dos movimentos pós-dualistas modernos (materialismo e idealismo).

Para tanto, as chaves hermenêuticas da ciência moderna não são suficientes – o que faz com que Jonas desenvolva uma biologia filosófica em complemento crítico à biologia científica. Isso ocorre precisamente porque a biologia, como parte da ciência moderna, foi vítima dos mesmos limites, deixando de lado aquilo que é a característica essencial da vida: a atividade espiritual[12]. Em sua interioridade, portanto, a vida carrega a evidência de sua dualidade corpo e espírito, a qual não pode ser explicada dualisticamente. O monismo integral de Jonas, em outras palavras, não nega a dualidade (o caráter dialético e dual da própria vida, na medida em que é constituída de um polo material que se articula e complementa com um polo espiritual), mas o dualismo (a forma epistemológica da explicação dessa dualidade). Ora, o fio condutor dessa explicação é a ideia de liberdade, considerada por ele como o fio condutor da descrição do fenômeno do vivo, desde suas formas mais originais e primitivas até as mais complexas e evoluídas.

Apoiando-se, de um lado, em uma raiz ontológica de tipo aristotélica (já encontrada, por exemplo, em De anima) e, de outro, nos dados fornecidos pela própria biologia científica (tal como descrita por Darwin, por exemplo), que ele critica, porém, não abandona, Jonas descreve a história da evolução da vida como um processo integral de aparecimento interdependente de matéria e espírito: onde há vida (ou, melhor ainda, desde quando houve vida) já existe/existiu aí algo que diferencia um ser orgânico de um ser inorgânico, e isso pode ser entendido como uma interioridade que se realiza na forma de uma liberdade, compreendida como uma escolha dos organismos em benefício de si mesmos. Se a vida é caracterizada por um esforço autoafirmativo, então, segundo Jonas, tal esforço ocorre por meio de escolhas estratégicas em vista de sua autopreservação.

Em resumo, todas as formas de vida dizem sim para si mesmas e empenham-se em escolher as melhores condições para sua sobrevivência, segundo diferentes níveis de complexidade. Um vegetal, um fungo, um animal não humano ou um animal-humano são marcados por esse esforço autoafirmativo, embora de formas diferentes. Isso leva Jonas a reconhecer o metabolismo como o primeiro degrau da liberdade, pelo qual essa mesma liberdade é exercida, na forma de uma necessidade – trata-se de uma liberdade para fazer e não para não fazer; uma “liberdade necessária” ou uma “liberdade dialética”, portanto. Além do metabolismo, outros degraus de liberdade passam a incluir a sensação, a percepção, a emoção, a motilidade e, no grau mais elevado, a racionalidade (ou aquilo que chamamos, mais propriamente, de uma subjetividade).

Ora, é precisamente na passagem para a percepção – por conseguinte, no aspecto característico da diferenciação entre a vida animal e a via vegetal – que Jonas situa a reflexão sobre a visão. A estratégia do argumento ressalta a importância da distância na lógica da relação de mediatez e imediatez estabelecida pelos organismos com o meio, algo que deriva da distância em relação ao mundo (implicando determinado âmbito de liberdade), em relação aos demais seres vivos, depois aos demais seres humanos e, finalmente, em relação a si mesmo. Tibaldeo (2021, p. 295) caracteriza tal situação como uma “dialética[13] da distância e da mediação”, de sorte que a questão/problema da distância possa ser reconhecida como a condição fundante da caracterização do fenômeno da vida, na medida em que dela deriva o esforço dos organismos para preencherem a sua precariedade, por meio do encontro com as condições de sobrevivência oferecidas pelo meio e – dado que a evolução do ser humano está ligada à dos demais seres –, então, ela se torna também um conceito-chave para a descrição da experiência de diferenciação específica do ser humano em relação ao mundo, tendo como auge a sua diferenciação em relação a si mesmo, através da criação de uma imagem de si[14].

De acordo com Jonas, entre as demais formas de percepção, a visão é a que liga o organismo ao mundo, preenchendo o gap estabelecido pela distância entre o si mesmo e o mundo. Em outras palavras, a visão é essencial no esquema da mediatez própria da experiência animal com respeito ao mundo: se a planta foi compreendida por meio da sua proximidade imediata com o mundo, o caso da visão mostra que o animal elabora essa distância e amplia, colocando-se em relação com as coisas que estão “[...] fora do alcance orgânico direto” (Jonas, 2001, p. 184). Com esse gesto, ocorre a separação entre o “eu” e o objeto e, consequentemente, amplia-se a liberdade própria da existência animal, aumentando também – ato contínuo – os riscos implícitos nessa abertura.

Por isso, a visão é o símbolo máximo do distanciamento característico do animal em relação ao seu meio: é ela, afinal, que inspira o organismo animal em suas escolhas diante do mundo que o cerca, possibilitando a formulação de estratégias capazes de garantir nutrição e reprodução. Abrindo-se ao mundo, por um mecanismo (sentido) tão perspicaz como é a visão, o animal acaba por ampliar a própria estratégia e, consequentemente, a si mesmo. Vendo um objeto diante de si, por medo ou por desejo, o animal começa a lidar com um âmbito de complexidade inédito na história da vida: enxergar seus predadores e suas presas passa a fazer parte central, por conseguinte, de sua estratégia em busca de sobrevivência, e isso só é possível devido à capacidade de formular e “compreender” a imagem adquirida pelo sentido da visão. Consequentemente, é a visão que induz à escolha que envolve o surgimento das emoções e mesmo da locomoção[15].

Ocorre que, na concepção de Jonas, “[...] a visão mesma [...] contém potencialidades transanimais [trans-animal potentialities] de contemplação e atitudes que uma faculdade mental superior pode concretizar” (Jonas, 2001, p. 184). É por isso, precisamente, que a imagem representa “[...] um novo grau de mediatez” (Jonas, 2001, p. 184) próprio do que é humano – algo que ocorre, pois, não apenas nos animais em geral, mas passa a caracterizar o humano em particular: conforme Jonas, essa questão se apresenta como “[...] uma extensão ideativa da percepção” (Jonas, 2001, p. 184), ou seja, uma percepção a distância. Esse elemento funciona, por sua vez, como condição para que humano introduza um novo tipo de mediaticidade, o qual repousa justamente na “[...] interposição do abstrato e mentalmente manipulado eidos entre o sentido e o objeto atual” (Jonas, 2001, p. 184).

Em outras palavras, tendo desenvolvido a capacidade de imaginar [imaging] e, mais ainda, de verbalizar [speaking] o imaginado, o ser humano amplia a distância em relação ao mundo (pode ver mais longe, pode locomover-se adiante e pode, sobretudo, imaginá-las a distância), porque

[...] deixa de ver as coisas diretamente: passa a vê-las através da tela das representações, as quais ele possui a partir do seu convívio anterior com os objetos e que são evocadas pelo conteúdo atual da percepção, impregnando-a com sua carga simbólica, por sua vez acrescentando-lhe alguma coisa advinda da nova experiência (Jonas, 2001, p. 185).

 

2 A IMAGINAÇÃO COMO “MEDIATEZ DE TERCEIRO GRAU”

O que está em jogo, pois, é o fato de que a imaginação (a criação de ideias e imagens mentais) passa a caracterizar um novo tipo de distanciamento do ser humano em relação ao mundo, algo que não apenas o torna capaz de linguagem, porém, sobretudo, lhe dá capacidade simbólica. Isso ocorre, porque as ideias preenchem algum tipo de vácuo entre as experiências atuais e a ausência do objeto. Em outras palavras, as “imagens abstratas” oferecem para o sujeito humano uma experiência que se efetiva por meio de um novo tipo de distanciamento em relação ao mundo, precisamente a “experiência simbólica”, pela qual o sujeito tem em suas mãos o mundo “[...] sem que esse lhe imponha sua presença” (Jonas, 2001, p. 185). Não há distância maior do que a imaginação de algo que não está aqui, portanto.

É essa a marca da nova experiência de distanciamento (de mediatez) que Jonas chama de mediacy of the third degree (Jonas, 2001, p. 185), a qual possibilita uma nova maneira de relação com a verdade, ou seja, com a capacidade metafísica do pensamento. Nota-se assim, como, de um lado, Jonas deu tanta atenção à visão, em sua fenomenologia da vida (porque é ela, precisamente, que possibilita uma reflexão maior a respeito da distância, ou seja, do aumento da mediatez do animal em relação ao mundo); e, de outro lado, é ela que possibilita a diferenciação do ser humano em relação aos demais animais. Podemos afirmar, por conseguinte, que esse novo tipo de mediação própria do ser humano, evocada pela imaginação, na forma de uma nova relação do eu animal com o mundo, é precisamente a marca mais original e mais fundamental da fenomenologia jonasiana da imagem.

Além disso, segundo o filósofo, desse primeiro movimento se desdobra um segundo, pelo qual o mundo não é apenas o “reino indefinido” (Jonas, 2001, p. 184) da exterioridade, ocorrendo um confronto entre o “eu” e a “[...] soma total do ‘outro’, do ‘mundo’” (Jonas, 2001, p. 184), porque, como resultado desse processo, o eu como que “volta atrás” em relação a sua exteriorização, para abarcar a si mesmo como parte da reflexão. Assim, se a forma, ou seja, a ideia (a imagem) se torna o modo de relação do eu com toda exterioridade, é ela que também gerencia um novo tipo de articulação teórico-simbólica, agora do eu consigo mesmo.

Em outras palavras, o ser humano torna-se capaz de um outro tipo de distanciamento, aquele de si em relação a si mesmo. Para Jonas, é assim que se “[...] desenvolve uma nova dimensão da reflexão, em que o sujeito de toda objetivação aparece a si mesmo como tal, tornando-se objetivado por um tipo de relação novo e mais automediador” (Jonas, 2001, p. 185). Esse distanciamento se dá pelo tipo de pergunta própria da antropologia: “O que é o ser humano, qual é meu lugar e minha parte no plano das coisas?” (Jonas, 2001, p. 185). Com tais perguntas iniciais, o “eu” se coloca na mesma distância em relação a si mesmo que todas as demais coisas existentes no exterior, transformando-se ele mesmo em objeto de si, objetivando-se, portanto. Assim como as coisas são “[...] trazidas em atos de intencionalidade eidética” (Jonas, 2001, p. 185), igualmente o eu o é, em relação a si mesmo.

Estamos no campo da auto-objetificação, ou seja, de “[...] outro exercício da faculdade eidética” (Jonas, 2001, p. 185), o qual não ocorre apenas por meio da exteriorização da “representação pictórica”, mas, antes, pelo fato de que “[...] o verdadeiro ser humano surge quando o pintor do touro e até mesmo o seu caçador passa a preocupar-se com a imagem impossível de representar a sua própria conduta e o estado do seu eu” (Jonas, 2001, p. 185). Pensemos nos desenhos de uma caçada no fundo de uma caverna pré-histórica: ali, depois de ter desenhado o touro e a cena da própria caçada, o ser humano se depara com o enigma de não poder representar a si mesmo, sua conduta, seu estado de alma. Diante da imagem, a pergunta evidente seria, precisamente, sobre quem imaginou a imagem, quem desenhou o desenho. Com a imagem exterior se alcança, por isso, a objetificação do eu íntimo.

 

3 A CONSTITUIÇÃO DE UMA IMAGEM DE SI

É assim que a distância passa a ocupar um lugar fundamental, não apenas na compreensão da relação dos organismos em geral com o meio (por ser menos evidente, na planta, ocorre de forma imediata e, no animal humano e não humano, mediata) mas, sobretudo, na constituição do que é o próprio do ser humano. O resultado desse exercício não é outra coisa senão “[...] a constituição de uma nova entidade, o ‘eu’” (Jonas, 2001, p. 185). Segundo Jonas, não por acaso, “[...] de todos, este é o maior empreendimento [venture] em termos de mediatez e objetificação” (Jonas, 2001, p. 185). O filósofo esclarece que, graças a essa perspectiva, “[...] o ser humano configura, experimenta e julga seu próprio estado interior e sua conduta exterior segundo uma imagem daquilo que é do homem” (Jonas, 2001, p. 185), de sorte que é possível afirmar que ele passa a encarnar a própria ideia do ser humano que ele mesmo tem ou, melhor ainda, que vive: “[...] queiramos ou não, ele vive a ideia do ser humano” (Jonas, 2001, p. 185). É por isso que “a imagem do ser humano jamais o abandona” (Jonas, 2001, p. 186) e é precisamente isso que significa “[...] ser criado à imagem de Deus” (Jonas, 2001, p. 186) ou seja, manter e conviver com a imagem de ser humano que cada um dos espécimes representa e, ao mesmo tempo, cria para si mesmo.

Dado que essa imagem depende da comunicação com a sociedade em geral, através da palavra, nota-se como a linguagem passa a exercer papel fundamental na manutenção da essência do ser humano, sendo ela o modo pelo qual o indivíduo é pressionado, para se acomodar à imagem do ser humano que ele mesmo mantém para si. Os outros, para Jonas, passam a representar a forma pelo qual o “eu” encontra si mesmo: “[...] assim como aprende dos outros a ver as coisas e a falar delas, também aprende deles a ver a si próprio e a expressar o que vê aí, à ‘imagem e semelhança’ do padrão estabelecido” (Jonas, 2001, p. 186). Dizer “eu”, em outras palavras, significa relacionar-se adequadamente com os outros, de forma que é no horizonte da alteridade que o “eu” encontra sua própria identidade. Jonas descreve essa relação de maneira dialética: de um lado, “a unidade solitária” do eu; de outro, a imagem pública do ser humano, conservada pela vida social e a partir da qual cada indivíduo forja sua subjetividade.

Essa relação complexa pode, segundo Jonas, levar a três perspectivas: [1] a “completa acomodação” que faz com que cada “eu” seja “absorvido no modelo geral”; [2] “[...] na inconformidade derrotada, pode retirar-se para a sua própria solidão”; e [3] “em casos raros”, na afirmação poderosa capaz de dar origem “[...] a uma nova imagem do ser humano”, vindo a influenciar a imagem social vigente. É nesses termos que, conforme Jonas, “[...] no refletir-se sobre o eu, a divisão sujeito-objeto, que teve início na evolução animal, atinge sua forma mais extrema” (Jonas, 2001, p. 186), porque, ao aplicar-se sobre si mesmo, o “eu” provoca um novo tipo de distanciamento, de si em relação a si mesmo e, com isso, funda a atividade racional de autorreflexão. É apenas se distanciando de si mesmo que o eu pode tomar posse de si: “[...] só através da distância incomensurável de ser seu próprio objeto é que pode o ser humano ‘possuir’ a si mesmo” (Jonas, 2001, p. 186). Uma tal posse de si representa um estágio de evolução nunca alcançado por nenhum animal: antes desse acontecimento, “[...] animal algum se possuía a si próprio” (Jonas, 2001, p. 186) como o ser humano se possui.

Tal complexificação da existência no humano, na qual o contato com outro resgata o interesse vital em torno de um novo objeto, que é precisamente esse “si mesmo” ou “eu”, mostra como o ser humano se tornou capaz de “[...] ser feliz e infeliz, graças à medida do seu ser em padrões contra os termos que transcendem a situação imediata” (Jonas, 2001, p. 186). Em outras palavras, sua felicidade passa a depender da ideia distante que ele forja de si mesmo, no “encontro” feliz ou infeliz com a alteridade e com o mundo. O preço, contudo, é bastante alto: “[...] extremamente preocupado com o que é, como vive e com o que faz de si mesmo, e olhando para si a partir da distância de seus desejos, aspirações e aprovações, o ser humano - e somente o ser humano - está aberto ao desespero” (Jonas, 2001, p. 186).

Note-se que Jonas reinterpreta, a partir daqui, alguns temas centrais da fenomenologia ou, especialmente, do existencialismo: para ele, aquela capacidade de distanciamento do ser humano em relação a si mesmo é produtora do sentimento de desespero, resultado da ocupação do ser humano consigo mesmo. Esse sentimento é descrito como a divisão do “eu”, que, desde o fosso aberto pela divisão sujeito-objeto implicado na formulação da imagem que ele forja de si mesmo, “[...] emergiu para a interioridade do próprio sujeito” (Jonas, 2001, p. 186) – ou seja, se a primeira distância havia sido aquela que separava sujeito e objeto (eu e mundo), agora temos outra, a qual distancia sujeito e sujeito, isto é, que distancia o sujeito de si mesmo.

Conforme Jonas, o último degrau desse desespero é o suicídio: “[...] o suicídio, esse privilégio exclusivo do ser humano, demonstra a última maneira pela qual o ser humano pode tornar-se objeto de si mesmo” (Jonas, 2001, p. 186). O suicídio é a distância última do ser humano em relação a si mesmo, seu modo próprio e único de objetificação, dado que, no auge do processo de distanciamento de si que leva ao desespero, por intermédio de um afastamento profundo do eu em relação a si mesmo, acaba-se por abrir a possibilidade do suicídio como um produto do sentimento de distância que apavora o eu diante de si. Para Jonas, por isso, é desse “confronto do eu consigo mesmo” que nascem tanto as “maiores exaltações” e as “[...] depressões mais profundas que têm lugar na experiência humana” (Jonas, 2001, p. 187). Esse é o conteúdo, ou seja, a matéria-prima que aos poucos se integra à imagem total que o ser humano faz de si mesmo, a partir do ato reflexivo. Um trabalho que, frisa Jonas, continua nunca terminado enquanto ele continuar vivo.

Dessa forma, recuperando uma longa tradição na qual o ser humano se reinterpreta em seus próprios termos, a antropologia fenomenológica de Jonas alcança seu sentido último na frase em latim, que reza: “Quaestio mihi faxtus sum” [eu me tornei uma questão para mim mesmo]. Tendo aberto a distância de si em relação a si mesmo, o ser humano deu vazão à atividade reflexiva que passou a caracterizá-lo enquanto humano. Nesse campo, as construções da cultura, da religião, da ética e da metafísica não passariam de “[...] tentativas jamais acabadas de enfrentar esse problema [da distância] no âmbito de uma interpretação da realidade total” (Jonas, 2001, p. 187). É precisamente aí que, segundo Jonas, “[...] a biologia cede lugar à filosofia do ser humano” (Jonas, 2001, p. 187), porque o campo da complexidade biológica que reconheceu a distância como fundamento da visão passa a exigir uma nova antropologia filosófica, cujo procedimento é fenomenologicamente embasado no mesmo dado fornecido pelo esforço da vida em vencer a distância.

A antropologia fenomenológica alcança um novo patamar metafísico: na visão de Jonas, a busca pela essência do ser humano não pode se dar a não ser em função do encontro de cada indivíduo com a ideia, isto é, com a imagem do ser humano que ele mesmo representa ou, em outras palavras, “[...] em encontros do ser humano com o ser” (Jonas, 1973, p. 209[16]). Nesses “encontros”, o ser humano constrói a imagem de si mesmo e não apenas recebe uma essência dada. A essência, nesse caso, é a própria capacidade do encontro (como condição de abertura), no que ele traz de novo: o ser humano é capaz de inventar a sua própria história, por isso, também inventa a sua própria essência.

De acordo com Jonas, a “essência” do ser humano é a liberdade que lhe é própria de escolher a si mesmo – de recusar uma ideia de essência fixa ou pré-estabelecida, portanto. Uma possibilidade que, para Jonas, “[...] não é ela mesma histórica, e sim ontológica” (Jonas, 1973, p. 210). Jonas termina esse texto, na versão alemã, fazendo referência implícita à tradição humanista que teria afirmado, já no famoso texto De hominis dignitate oratio, de Pico della Mirandolla, que a imagem mais própria do ser humano é o “[...] estar entre aspas: entre animal e anjo, entre passado e futuro, entre condenação e salvação” (Jonas, 1973, p. 210)[17]. É precisamente como parte desse entre que o ser humano se faz no vir-a-ser e se abre segundo a lógica da contingência, que é o estado pleno da liberdade, no qual Jonas afirma residir aquilo que faz com que a experiência de “[...] encontro com o ser se transform[e] em encontro com o nada” (Jonas, 1973, p. 210).

Segundo Jonas, foi precisamente a experiência niilista (antiessencialista, antimetafísica) que exigiu a retomada da questão da “[...] essência da liberdade humana na sua relação com o mundo restante da vida” (Jonas, 1973, p. 210): é a partir de sua interioridade (do modo próprio de possuir tal interioridade), desde a experiência mais própria de seu encontro único com o mundo, portanto, que se tornou possível ao ser humano “[...] tatear metafisicamente” (Jonas, 1973, p. 210) até um novo sentido para aquilo que, na tradição, se chamou “transcendência” e “eternidade”. Tal novo sentido só pode ser encontrado, como Jonas sugere, na formulação de uma pergunta sobre a liberdade que parte do âmbito biológico e alcança seu auge na reflexão filosófico-metafísica do ser humano sobre si mesmo. A transcendência, por conseguinte, está situada no horizonte aberto pela biologia, na medida em que ela expressa uma nova forma de distância, na qual a imaginação do “depois” leva à superação da condição mundana do ser humano e orienta o seu agir ético. É esse o tema central do texto “Ferramenta, imagem, túmulo: sobre o transanimal no ser humano”.

 

4 O SER HUMANO COMO TRANSANIMAL

Jonas inicia esse texto recorrendo à teoria darwinista da descendência, para afirmar que a compreensão do ser humano passa pela sua inclusão ao reino do animal. Uma evidência que, para ele, remete tanto a Aristóteles quanto a Lineu, cujas teses dão conta de que o ser humano é “[...] um animal vertebrado, homeotermo, mamífero placental” e localizado “[...] dentro ou próximo de uma família determinada de animais: a dos primatas” (Jonas, 1988, p. 43). Tal evidência e os traços comuns que ela implica obrigam a reconhecer a transanimalidade do ser humano e, mais ainda, a ver nela “[...] sua essência própria” (Jonas, 1988, p. 43). Obviamente, uma tal definição pode levar a crer que exista uma ou várias características capazes de diferenciar o ser humano dos outros animais. Jonas lembra que uma das mais famosas, precisamente a aristotélica, caracteriza o ser humano como “[...] animal que possui linguagem (o entendimento); zóon lógon éjon, ou, na versão latina: homo, animal rationale” (Jonas, 1988, p. 43).

A Bíblia, por sua vez, “[...] colocou a ênfase na capacidade de distinguir entre bem e mal” (Jonas, 1988, p. 43) donde deriva a fórmula de “imago Dei”, a qual pressupõe linguagem e entendimento, mas vai além deles, acentuando o caráter suprassensível de sua configuração existencial. Ora, foram essas características que teriam dado ao ser humano sua pretensa superioridade diante dos demais animais, mesmo estando ele vinculado à animalidade; por causa delas, precisamente, ele seria capaz de transcender essa tal condição.

Contudo, Jonas ressalta que, em todas as tradições, o corpo tem sido o grande testemunho do pertencimento do ser humano ao reino dos animais, de sorte parecer estranho que a doutrina darwinista tenha causado, quanto a isso, algum “shock cultural” (Jonas, 1988, p. 44), pois ela apenas teria resgatado esse dado evidente e elementar da condição humana. Recorrendo àquilo que, em The phenomenon of life, ele chamou de philosophical aspects of darwinismo (Jonas, 2001, p. 38-57), Jonas mostra mais uma vez que, do ponto de vista filosófico, o que mais espanta é a força da “[...] explicação imanente de nossa origem segundo regras de jogo puramente biológicas”, que foi capaz de aniquilar definitivamente qualquer ideia de origem transcendental do ser humano, em nome do “[...] monismo onipotente de uma natureza não intencionada e mecânica” (Jonas, 1988, p. 44).

Esse é, do ponto de vista filosófico, o maior evento da antropologia moderna, de tal sorte que nenhuma “filosofia do ser humano” pode ser pensada, depois disso, sem levar em conta tais premissas, posto que ela representa o “[...] último desencantamento, depois de todos os anteriores acerca do mundo restante” que afetou as “raízes mais profundas da imagem tradicional do ser humano” (Jonas, 1988, p. 44). Conforme Jonas, um tal evento tem consequências diretas sobre a antropologia precisamente porque, agora, o ser humano passa a ser definido com base na própria luta pela sobrevivência – partilhada com os demais organismos – e, consequentemente, em função da sua “[...] superior eficácia em obter êxitos” (Jonas, 1988, p. 44), pois aquela racionalidade, antes tida como sua marca transcendente, passou a ser compreendida como um instrumento a serviço de tal êxito.

Todas as características consideradas, tradicionalmente, como propriamente “humanas”, passaram, assim, a ser vistas a partir desse “matiz biológico” (Jonas, 1988, p. 44). Nesse sentido, aquele shock só haveria de afetar quem permaneceu refém da interpretação grega ou cristã, a qual manteve historicamente o ser humano como um ser separado do âmbito da natureza em geral. Nesse sentido, ele não passou de “[...] uma vingança contra a larga unilateralidade histórica” (Jonas, 1988, p. 45). O incômodo causado pelas teses darwinistas, no fundo, se apoiava em uma “crítica à natureza animal” em si mesma.

Jonas se mostra crítico de Darwin, exatamente porque, segundo ele, a teoria evolucionista, ao tentar superar o fosso, acabou gerando outro, na medida em que permaneceu refém do monismo materialista próprio da ciência moderna: “[...] o desencanto que a princípio nos permitiu ver começa a cegar-nos” (Jonas, 1988, p. 45). E é precisamente aí que entra em cena a tarefa da Antropologia da Imagem: “[...] para encontrar a justa medida entre as unilateralidades, chegou o tempo para a tarefa da antropologia filosófica de voltar a refletir sobre o essencialmente transanimal no ser humano, mas sem negar sua animalidade” (Jonas, 1988, p. 45-46).

Tal tarefa começa pelo próprio reconhecimento de que precisamente os dados que levam à compreensão da superação da animalidade, por parte do ser humano, não são outra coisa que parte de sua própria “condição mediata da relação com o mundo”, algo que “[...] se constitui dentro do conjunto da existência animal” (Jonas, 1988, p. 47). Em outras palavras, a estratégia da antropologia agora é pensar a transcendência, sem negar a imanência, contudo, antes, como um dos seus resultados. Assim, as características capazes de diferenciar os humanos dos demais animais não são outra coisa que um desenvolvimento das suas táticas de manter-se na existência, parte de sua ordem de mediatez, na qual a imagem desempenha um papel central. Uma nova escala de liberdade, como vimos, não é outra coisa que algo construído sobre aquela “condição mediata” que é “[...] ainda mais intensificada” (Jonas, 1988, p. 46).

Para dar conta de sua tarefa, o autor toma três exemplos (entre outros possíveis) que seriam “testemunhos” dessa conexão gradual de distanciamento do ser humano em relação ao animal não humano; “artefatos visíveis da produção humana”, os quais, tendo aparecido na pré-história, “[...] não poderiam ser obra de nenhum animal e que mostram já em sua forma mais primitiva e simples a essência da característica de seu produtor” (Jonas, 1988, p. 46). Jonas escolhe três instrumentos (“tipos paradigmáticos” [Jonas, 1988, p. 47]) pelas evidências que eles carregam[18]: a ferramenta, a imagem e o túmulo são considerados como “testemunhos”, exatamente porque não deixam dúvidas sobre o fato de terem sido fabricados por mãos humanas e, ao mesmo tempo, por remeterem a uma importante diferença em relação a seus fazedores com os demais seres animais. Tais artefatos, “[...] em seu conjunto proporcionam à interpretação como que as coordenadas básicas da antropologia filosófica” (Jonas, 1988, p. 47), cuja base, como tentamos ressaltar aqui, é o conceito de imagem, amparado em um novo tipo de distância que se estabelece entre o ser humano e os demais animais, uma distância que não passa de uma nova escala na mediatez do “eu” em relação ao mundo.

 

5 A IMAGEM COMO DIFERENÇA

Por questões didáticas, não vamos levar a cabo aqui uma análise desses três artefatos, restringindo-nos ao exame do tema da imagem, posto que ele se liga diretamente aos objetivos do presente artigo. Para Jonas, a produção de imagens é uma característica propriamente humana, como uma “diferença não gradual” (ou seja, radical[19]) em relação ao animal. É o que leva a outra das grandes afirmações dessa antropologia: “[...] o homo pictor, o produtor de imagens, nos ensina que o homo faber, o mero produtor e usuário de ferramentas, por si mesmo ainda não é plenamente o homo sapiens” (Jonas, 1988, p. 49). A afirmação recorre, portanto, a um novo tipo de distanciamento, evidenciado agora pelos desenhos que marcam nova distância em relação às necessidades biológicas: a “[...] inutilidade biológica de qualquer mera representação” (Jonas, 1988, p. 49) é prova de que apenas o ser humano poderia dirigir-se ao fundo de uma caverna para desenhar imagens sobre uma rocha.

De acordo com Jonas, por isso, a produção de imagens marca uma distância decisiva do ser humano em relação aos demais animais: “[...] um ser que faz imagens, ou melhor, que se dedica à produção de coisas inúteis ou persegue fins outros que os biológicos” (Jonas, 1988, p. 49). Nos dois casos, estaríamos diante de uma evidência incontestável de um novo distanciamento. Uma imagem representa, afinal, uma apropriação nova e de nenhuma maneira prática ou útil: seu interesse está no âmbito do eidos, porque se trata de uma “[...] produção intencional da semelhança com a aparência visual de uma coisa (em estado imóvel ou em ação) sobre o meio estático da superfície de outra coisa” (Jonas, 1988, p. 49).

Em outras palavras, uma imagem é uma representação. Sua produção, por exemplo, pode ocorrer apenas a partir de poucos traços, por meio de uma “[...] economia na omissão e na simplificação” (Jonas, 1988, p. 50), dado que o que está em jogo, no ato representativo, não é a repetição da coisa, mas precisamente a sua representação. Com isso, uma forma – que é geral - pode representar um “[...] número indeterminado de indivíduos” (Jonas, 1988, p. 50). No fundo, como eidos, a imagem se apresenta por meio de uma “[...] separação intencional de matéria e forma” (Jonas, 1988, p. 51) ou da existência factual e da representação de uma coisa.

Jonas não pensa a imagem apenas a partir de seu produtor, mas também de seu intérprete, por assim dizer. Ele lembra que a imagem inclui igualmente esse ato de contemplação e de decifração, que falta ao animal, ao qual só interessa “a coisa presente” (Jonas, 1988, p. 51), ou seja, a realidade – e “[...] a realidade não sabe nada da representação” (Jonas, 1988, p. 51). O autor sublinha que essa capacidade é “[...] uma nova escala da mediatez além daquela que já se encontra na visão como tal” (Jonas, 1988, p. 51). Na medida em que ocorre uma separação entre a imagem e o seu conteúdo, abre-se uma nova distância: “[...] a presença do eidos se torna independente do objeto” (Jonas, 1988, p. 51) e ocorre uma “[...] separação de segunda ordem, quando se capta a aparência como tal aparência” (Jonas, 1988, p. 52), quer dizer, quando a aparência se distancia do real.

Jonas enfatiza que, por isso, há uma distinção entre memória e recordação: se a primeira se encontra no animal, a segunda só existe no humano, porque implica uma capacidade de imaginar que nasce de uma capacidade precedente, a de desprender a imagem de uma coisa da sua existência real ou, ainda, da sensação e da percepção momentânea que ela pode causar. O ser humano, afinal, como já vimos, é capaz de se distanciar de suas próprias experiências e projetar novos horizontes imaginativos, em função deles, já que, do ponto de vista da imaginação, a repetição da experiência se torna “supérflua”. É por isso que Jonas afirma – mais uma vez, chamando atenção para o tema da distância – que “[...] a liberdade assim obtida – de refletir sobre as coisas na imaginação – é uma liberdade ao mesmo tempo de distância e de domínio” (Jonas, 1988, p. 52). Trata-se de uma distância dupla, relacionada a espaço e tempo, portanto.

É nesse ponto que entra em cena a afirmação a respeito de como a imagem acaba por abrir o ser humano para a experiência da verdade, tal como aparece já em The Phenomenon of Life: “[...] a separação entre eidos e realidade, com que nos confrontamos com os fenômenos da ‘imagem’ e da ‘verdade’, representa a transição para uma nova elevação crítica do caráter mediato na relação do organismo [no caso o ser humano] com o meio ambiente” (Jonas, 2001, p. 183). Isso ocorre porque, para Jonas, a imagem implica a pergunta sobre se ela é mais ou menos verdadeira em relação ao objeto real que copia ou representa e, com isso, “[...] o homo pictor se submete ao critério da verdade” por meio do dístico “adequatio imaginis ad rem” que antecede a “adequatio intellectus ad rem” (Jonas, 1988, p. 53): em outras palavras, a primeira relação humana com a verdade se dá através da imagem/imaginação e não pela descrição verbal ou científica, que só se dá posteriormente.

A verdade, por isso, é uma forma de lidar com a distância imposta entre a imagem e a coisa real. Mas é essa questão que também abre ao ser humano a possiblidade de criar, não apenas o “verdadeiro”, mas igualmente o “falso”, por meio da imaginação do que não existe que implica a criatividade: essa é uma liberdade para o possível que está nas mãos do ser humano, como criador, aquele que precisa também contar com a capacidade motora do corpo[20] para efetivar seu ato criativo. Ora, esse é, conforme Jonas, outro tipo de liberdade, que se constitui ainda como um fato transanimal: “[...] o controle eidético da motilidade” (Jonas, 1988, p. 54). Sem isso, a imagem não seria possível: o corpo deve estar a serviço da imaginação para criar (exteriorizar) os projetos que foram imaginados (interiormente). Isso é importante, porque esse dado torna possível a afirmação de que “[...] o homo pictor [...] representa o ponto no qual se unem o homo faber e o homo sapiens” (Jonas, 1988, p. 54), sendo ele, por conseguinte, o auge da capacidade humana de reconhecer-se enquanto tal.

Ao poder criar o que não viu, o homem entra, finalmente, na distância decisiva entre o real e o imaginado. E mais, se a memória, como foi destacado, se distingue da recordação e se esta é, precisamente, uma competência humana, então nada implica tanto essa capacidade quanto a memória dos mortos: o túmulo, escreve Jonas, inaugura uma nova distância, com a qual “[...] supera inclusive a imagem” (Jonas, 1988, p. 55). Assim, a imaginação precisa de outro mundo, para além de tudo o que se viu e se experimentou aqui. As crenças são, por isso, uma forma de ampliação da distância inaugurada pela imagem: elas se opõem ao “real”, “[...] progredindo por cima de todo o visível até o invisível e do sensível ao suprassensível” (Jonas, 1988, p. 56).

Meditando sobre sua própria morte, o ser humano é o único animal, segundo Jonas, capaz de imaginar esse “[...] depois e além” (Jonas, 1988, p. 56). Diante do túmulo, portanto, o ser humano encontra-se consigo mesmo, porque imaginando esse “além”, olha para o aqui e agora, dando origem à reflexão. É precisamente por isso que Jonas considera o nascimento do “eu” como um acontecimento promovido pela volta da razão sobre si mesma, algo que é implementado pelo seu encontro com a morte, ou seja, com o “[...] conhecimento de sua mortalidade” (Jonas, 1988, p. 56), já que é esse conhecimento que exige uma volta (de cunho ético) sobre a sua própria vida. Jonas se alia, assim, a uma longa tradição que pensa “a morte como musa da filosofia”, quer dizer, o pensamento da morte como disposição para um pensamento sobre a vida. A morte, como interrogação das interrogações, leva à interrogação sobre o sentido de si mesmo, pergunta constitutiva do “eu”. Também aqui, por outras vias, Jonas chega ao mesmo resultado de seu antigo mestre, Heidegger, porque afinal, diante do túmulo, o ser humano se descobre como um ser-para-a-morte. A frase de Jonas é oracular: “[...] dos túmulos se levanta a metafísica” (Jonas, 1988, p. 56).

Além disso, a história, como reflexão do sucedido, também é dependente do culto aos antepassados e disso deriva a imaginação do eterno pela qual a consciência “[...] se alheia de si mesma, e só assim descobre sua mesmidade, abandonando, em um último sacrifício, ainda mais sua imediatez” (Jonas, 1988, p. 57), ou seja, abrindo uma distância até então inédita. Não por acaso, Jonas se refere a esse movimento como um “[...] último distanciamento” (Jonas, 1988, p. 57) que começou com a primeira mediação biológica nos inícios da vida e alcançou, agora, seu auge: “[...] só através da imensa distância do ser-objeto-de-si-mesmo o ser humano pode ‘possuir-se’ a si mesmo” (Jonas, 1988, p. 58).

Por último, Jonas ressalta que, nesse novo estágio, tendo forjado uma imagem de si mesmo, isso passa a obrigar o ser humano a viver segundo tal imagem que ele forjou de si mesmo: “[...] a partir daqui, querendo ou não, o ser humano – todos nós – deve viver a ideia ou a ‘imagem’ do ser humano na qual ele segue trabalhando sem cessar” (Jonas, 1988, p. 58). O risco aí contido remete à ideia de um “abismo” que se abre, quando o ser humano, confrontado com tal imagem, pode tanto elevar-se quanto abater-se pelo desespero e até mesmo pelo suicídio, como vimos anteriormente.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente artigo, tentamos mostrar como a noção de imagem exerce um papel central, na filosofia da vida de Hans Jonas, desde seus aspectos ontológicos e biológicos até os de cunho antropológico. Demonstramos como, a partir de tal centralidade, é possível pensar a imagem do ponto de vista da visão, ou seja, da constituição perceptiva da vida animal, em sua diferenciação com o primeiro degrau da liberdade caracterizada pelo metabolismo, presente já nas formas mais elementares da vida; e, além disso, como imagem, ou seja, como projeção simbólica de significados, que começam com a diferenciação do eu com o mundo e, desde esse ponto, com a autoconstituição do ser humano como tal.

Dessa forma, a antropologia fenomenológica da imagem parte do ponto de vista de que o ser humano deve ser entendido tanto como parte do reino da vida quanto como uma diferenciação dentro dele, ou seja, como uma forma própria de ser vivo. Nos dois contextos, conforme explicitamos, é a noção de distância que se apresenta como articuladora das dimensões da exterioridade (visão) e da interioridade (da imagem até a representação de si mesmo). Assim, na imagem, estão implicadas – além da visão e da distância – noções como representação e imaginação, próprias do animal humano. Todos esses são, conforme Hans Jonas, aspectos de uma mesma constituição autoafirmativa da vida, a qual se revela por meio do conceito de liberdade.

            Como é próprio do pensamento jonasiano, tais dimensões conectam a biologia (pela visão) à ontologia (pela imagem) e essas à antropologia. Mas isso não é tudo: derivam daí os aspectos éticos, que colocam em questão a crise niilista da imagem do ser humano no mundo contemporâneo, processo que tem levado à negação de qualquer ideia, natureza ou essência humana, a partir da qual se tornasse possível pensar um projeto de melhoramento do ser humano. Nesses termos, a questão da imagem se torna central para a crítica de Jonas à (bio)tecnologia e aos seus efeitos, no que concerne ao projeto de melhoramento e aperfeiçoamento do ser humano, como os defendidos pelo transumanismo[21]. Essas questões, no entanto, são aqui meramente apontadas, em termos das considerações finais, já que, devido às questões didáticas e metodológicas do presente artigo, só poderão ser desenvolvidas em trabalhos posteriores.

 

Between vision and image: towards a (phenomenological) anthropology of the image in Hans Jonas

Abstract: In this article, we aim to demonstrate the centrality of the problem of the image in the ontology and philosophical anthropology of Hans Jonas, setting aside the ethical aspects. We will analyze how, based on elements derived from his philosophical biology (characterized as a description of the phenomenon of life), it is possible to understand the centrality of the notion of image in its different implications for the constitution of the difference between human animals and other forms of life. To this end, we aim to demonstrate the central characteristics of what we can call a Phenomenological Anthropology of the Image, constituted from three aspects: [1] the participation of the human animal in the history of freedom, described as the guiding thread for understanding the phenomenon of life in which the relationship between vision and distance is situated; [2] the conception of the image as part of the process of self-constitution of the human being; [3] the image as an element of differentiation of the human animal in relation to other living beings, according to the process of trans-animal continuity of man. Finally, we hope to demonstrate how the image plays a fundamental role both in the context of Jonasian ontobiology (insofar as it bears witness to the freedom inherent to animal forms of life) and in the constitution of his philosophical anthropology (through the concept of trans-animality).

 

Keywords: Image. Philosophical biology. Phenomenological anthropology. Eidetic freedom. Hans Jonas.

 

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Recebido: 04/07/2024 – Aprovado: 22/08/2024 – Publicado: 04/10/2024



[1] Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR; Curitiba, PR – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2362-0494 E-mail: jelsono@yahoo.com.br.

[2] Na versão alemã, esse é o capítulo 8 do livro, já que faltam na versão norte-americana o ensaio 2 (Percepção, causalidade e teleologia) e o 4 (Harmonia, equilíbrio e devir: o conceito de sistema e sua aplicação ao terreno da vida).

[3] “Expressão colocada em circulação por Hans Jonas. Mediante essa expressão, o filósofo dá título à sua abordagem antropológico-filosófica, segundo a qual o que caracteriza a espécie humana, sua differentia especifica, é a faculdade de captar e produzir imagens. [...] As imagens são os testemunhos mais básicos acerca do humano” (Rubio, 2019, p. 127). Afirmação semelhante é feita por Tibaldeo (2021, p. 295), para quem “[...] a imagem é um aspecto central da antropologia de Jonas”, com a finalidade de fazer com que os seres humanos compreendam sua “singularidade” para além da “separação metafísica” que fundou as visões sobre o “especificamente humano”, a partir dos “pressupostos dualistas ou monistas” que ergueram a diferença entre humanos e animais não humanos. Sobre a questão do homo pictor em torno da imagem do ser humano na filosofia de Jonas, cf. Tibaldeo, 2022.

[4] Na versão alemã, o texto se chama, precisamente, Homo pictor: da liberdade da imagem.

[5] Publicado originalmente em Journal of Aesthetics and Art Criticism, outono de 1971, e inserido como capítulo XI de Philosophical Essays (Jonas, 2011, p. 351-369).

[6] No presente artigo, traduziremos o termo Bild usado por Jonas, em alemão, por “imagem”. Tal preferência se apoia no próprio uso do termo image, por Jonas, na versão original em inglês de The phenomenon of life, onde ele caracteriza o ser humano como um image-making, por exemplo (Jonas, 2001, p. 157). Nesse texto, Jonas utiliza a palavra drawing (desenho) para se referir, basicamente, às formas visuais de cunho material (formas e estruturas, por exemplo) produzidas pelo homem pré-histórico ou por crianças. O conceito de imagem faria referência, assim, não apenas a esse “objeto visual”, por assim dizer, mas à sua função enquanto simbolização ou representação, conforme mencionaremos adiante.

[7] Originalmente, uma conferência intitulada Werkzeug, Bild und Grab, proferida nos Salzburger Humanismusgespräche, de 1985, e publicada em Scheidewege, v. 15, p. 47-58, 1985/1986, antes de formar parte (segundo capítulo, da segunda parte, a qual tem como título “A teoria do organismo”) do livro lançado por Jonas em 1992, com o título de Philosophische Untersuchungen und Metaphysische Vermutungen (vertido para espanhol como Pensar sobre Dios y otros ensayos [Jonas, 1998]).

[8] Em trabalhos anteriores, examinamos o conceito de niilismo na obra de Jonas (Oliveira, 2018, 2023).

[9] Michelini (2019) demonstrou como a antropologia e a ontologia são atividades complementares em Jonas e como isso deriva de uma posição em relação a Heidegger.

[10] Tais aspectos já foram tratados em trabalho anterior: ver Oliveira (2012).

[11] Sobre esse tema, ver o importante texto de Lopes (2017).

[12] Vale lembrar que a palavra “espírito” ou “espiritual”, usada por Jonas, nesse contexto, não tem nenhum caráter religioso, muito pelo contrário: ao aludir a “espírito” (mind), ele se refere à atividade interior, à interioridade própria de tudo o que vive e que se apresenta em diferentes graus de liberdade.

[13] Sobre o tema da dinâmica dialética no âmbito da vida como um todo, cf. Tibaldeo; Frogneux (2020).

[14] Quanto a esse tema, cf. Tibaldeo (2017, 2019b).

[15] Embora nosso objetivo aqui não seja descrever a própria consideração de Jonas a respeito da fenomenologia da visão, tal como isso é desenvolvido pelo autor, especialmente no capítulo sexto de sua obra de 1966, é importante notar que, para ele, a visão não se relaciona apenas com a atividade físico-corporal do olho (a mera dimensão da sensibilidade), todavia, a uma perspectiva “espiritual” que pode se manifestar mesmo em seres vivos que não enxergam ou mesmo conectada a outros sentidos, como o do tato, por exemplo, que depende da capacidade de phantasia ou imaginatio para “funcionar” efetivamente. Isso soluciona o problema, por exemplo, das pessoas deficientes visuais: “Os cegos podem ver por meio de suas mãos, não por lhes faltar o uso dos olhos, mas sim por serem seres dotados da capacidade universal da ‘contemplação’, e só acidentalmente terem sido privados do órgão da visão” (Jonas, 2001, p. 141-142). Imaginar, assim, é ter a capacidade de separar a forma da matéria – isso não depende da visão como sensibilidade, mas como faculdade espiritual.

[16] Mantendo-se fiel à sua intuição de que a filosofia anglófona teria dificuldade com esses temas espinhosos da tradição metafísica, Jonas acrescenta ao texto em inglês, na versão alemã, dois parágrafos sobre a temática da essência do homem, os quais não existem na versão original do livro.

[17] Em uma das passagens do texto, pode-se ler: “Assim, tomou o homem como obra de natureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo: ‘Ó Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei” (Della Mirandola, 2018, p. 24)

[18] A ressalva de Jonas quanto ao tema da linguagem demonstra o quanto ele está conectado com as teses antropológicas (inclusive com o existencialismo de Heidegger) sobre o tema da linguagem. Mas, além disso, comprova que ele não deixa de levar em conta tal dado como uma propriedade do humano, embora tenha, por meio dos três artefatos escolhidos, tentado “voltar mais atrás”, lançando mão de um “testemunho” ainda anterior à própria linguagem. Nesses dispositivos (a ferramenta, a imagem e o túmulo), Jonas encontra o testemunho da própria linguagem, quase como a sua premissa mais essencial: “[...] podemos supor que seus produtores deveriam ser sujeitos falantes” (Jonas, 1988, p. 46). Para Jonas, se isso é provável, no caso das ferramentas, torna-se certo, no caso das imagens, já que estas dão visibilidade àquilo que as palavras deixam invisível: “[...] dar às coisas uma nova existência no símbolo” (Jonas, 1988, p. 54). Quem fala cumpre, portanto, um papel semelhante a quem cria imagens: simboliza. Jonas lembra que dar nomes, no contexto bíblico, é a primeira tarefa de Adão. Para ele, “[...] o caráter genérico do nome é como o genérico da imagem” (Jonas, 1988, p. 55). Desenhar é igual a nomear ou, melhor dizendo, desenhar é abreviar. Ambos envolvem “[...] a disponibilidade do eidos” (Jonas, 1988, p. 55). Sobre esse tema, vale lembrar que Jonas esclarece sua posição precisamente na resenha do livro de Rudolph Arnheim, Visual Thinking, no qual explicita – algo também destacado por Rubio (2014, p. 73) – que a função imaginativa e a função conceitual, embora semelhantes, não podem ser equiparadas, tentando separar a função de representação da função de significação. Lopes (2017, p. 408) notou – corretamente – que a linguagem está “pressuposta” na temática da ferramenta, imagem e túmulo, como se lê no ensaio “Wandel und Bestand” (1970) e, mais ainda, que “[...] a filosofia da linguagem deve estar no centro de toda antropologia filosófica”, conforme se lê nos seus Philosofical Essays (Jonas, 2010, p. 254). Em seu trabalho, Lopes (2017) oferece, além disso, uma análise acurada de vários temas da antropologia filosófica jonasiana. Ademais, Schirra e Sachs-Hombach (2024, p. 12) analisaram como a habilidade humana de usar imagens pode ser tomada como uma marca do humano que é dependente da produção da linguagem. Para esses autores, “[...] a relação conceitual entre a competência de usar a linguagem assertiva e a capacidade de empregar imagens deve ser concebida como sendo muito mais próxima do que geralmente se espera”, vindo a concluir que “[...] não pode haver criaturas que possuam apenas uma dessas habilidades”.

[19] Tenha-se em mente, contudo, que falar em diferença não é, em nenhum sentido, falar em “ruptura”, porque, de acordo com Jonas a história da vida é a história de um continuum de liberdade, que liga todas as formas de vida, segundo degraus específicos de liberdade. Tais degraus não são rupturas, mas processos de complexificação, ou seja, de diferenciação.

[20] Sobre esse tema, conferir: Tibaldeo; Frogneux (2019).

[21] Cf., a esse respeito, Oliveira (2020, 2021).