Comentário a “A interminável questão: por que (devo) agir moralmente?: análise do capítulo 12 de Ética Prática de Peter Singer”: para uma ética feminista[1]

 

Patrícia Gouveia[2]

 

Referência do artigo comentado: Alexandre e Castro, Paulo. A interminável questão: por que (devo) agir moralmente?: análise do capítulo 12 de Ética Prática de Peter Singer. Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400197, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15593.

 

No artigo com o título “A interminável questão: por que (devo) agir moralmente? Análise do capítulo 12 de Ética Prática de Peter Singer”, Alexandre e Castro (2024) apresenta um contributo evidente para a disseminação de conhecimento de um dos autores mais importantes da contemporaneidade, no seu campo específico de estudos. O texto está bem estruturado, bem escrito, é consistente e a argumentação coerente. A originalidade do artigo reside na sua metodologia de investigação incremental, ou seja, através de um processo modelar, os autores convocados, que entram em diálogo com o filósofo australiano, vão desvendando outras camadas de conhecimento, orientando dessa forma o leitor, no seu trajeto. Alexandre e Castro (2024) reflete as palavras de Peter Singer em Escritos sobre uma vida ética (2000) quando este afirma: “[...] Para fazermos juízos morais sem nos basearmos apenas nas nossas intuições irreflectidas, precisamos de tempo tanto para recolher os factos como para pensar sobre eles” (Singer, 2008, p. 24). Ora, se é o uso do tempo que nos permite raciocinar na ética e se esta implica algo maior do que o indivíduo e suas preferências pessoais, situando-se, segundo Singer, o aspeto universal da ética de cariz utilitarista na razão persuasiva (Singer, 2008, p. 30-33), através da qual o indivíduo reflete por via da ação informada pela razão a perspetiva do grupo, então se pode levar em conta que o grupo representado deve ser considerado de forma equitativa.[3]

A ação informada, a qual deverá contar com a participação das mulheres e estar situada num contexto específico de interesses que ultrapassem os caprichos individuais e situem a discussão dentro de um quadro mais amplo de lutas, seria então considerada pela razão persuasiva como uma prática ética. Já Espinosa (1992, p. 452) enfatizava que “[...] as afecções que nascem da Razão ou são excitadas por ela, se se tem em consideração o tempo, são mais fortes que aquelas que se referem às coisas singulares, que nós contemplamos como ausentes”. Ao integrar emoções e afetos na experiência da razão por via de um exercício que nos conduz à liberdade, Espinoza (1992, p. 443) advoga que os sábios são superiores aos ignorantes. Assim, afirma que, quanto “[...] maior é o número de causas simultâneas, pelas quais uma afecção é excitada, tanto maior ela é” (Espinoza, 1992, p. 453). A leitura de Espinoza é pertinente, na medida em que nos sugere levar em conta o papel da felicidade e da liberdade, na experiência humana, situando a filosofia e a ética numa razão prática que nos remete a autores mais recentes.

Considerando-se, com Ortega y Gasset, que a civilização do século XIX se pode resumir, em duas grandes dimensões, a democracia liberal e técnica, uma copulação simbiótica entre capitalismo e ciência experimental,[4] também devemos ter em vista que nem toda a técnica é ciência. A crítica do autor espanhol à especialização da ciência é vasta, chegando mesmo a afirmar que a ciência precisa que os humanos se especializem, mas que não pode ela própria especializar-se ou, dito de outro modo, em política, em arte, nos usos sociais, nas outras ciências, especialistas podem tomar posições primitivas de grande ignorância, tornando-se herméticos, isotéricos e satisfeitos dentro das suas limitações e, nesse sentido, aproximando-se dos humanos das massas (Ortega y Gasset, 1989 [1929], p. 39). Assim, conclui-se que a especialização pode sufocar tanto a ciência como o Estado e que, por isso mesmo, ambos devem ser combinações de sangues e línguas, mestiços e plurilíngues, lugares de convergência nos quais convivem grupos nativamente separados. Logo, enfatiza-se que o Estado deverá conter, no seu interior, acima de tudo um programa de colaboração e dinamismo.

É precisamente esse dinamismo “vivo” que uma metodologia de investigação que assenta na difração de índole feminista nos propõe. Diferença, contradição e confusão desafiam e perturbam relações hierárquicas entre investigador e “investigado”, inquirindo e analisando separações e relações binárias entre teoria e prática, razão e emoção. Uma ética do cuidado, a qual sugere que a linguagem como ordem simbólica implodiu e, por isso, a questão do humano, embora não se torne necessariamente obsoleta, deve ser abordada de ângulos e perspetivas diferentes (Angerer, 2017, p. 18), nas quais os emaranhados entre naturezas, tecnologias e culturas sejam abordados de forma integrada e transdisciplinar.

Se a filosofia ocidental foi, em certa medida, ignorando sistematicamente uma parte significativa da população mundial, ao contrário, a ética feminista elege o cuidado com o outro, com os seres invisíveis e ignorados, como parte da sua práxis. Nesse sentido, o feminismo sustenta uma ética social e política extensível ao mundo natural, o qual se toma como contínuo às condições de subjugação de mulheres, negros, indígenas, animais, terra e outros, numa ecologia de intersecções. O feminismo pressupõe não apenas que se pense sobre ecologia e ambiente, mas é acima de tudo uma forma de envolvimento com o conhecimento, a subjetividade, a política, a ética, a ciência, a cidadania e o agenciamento, que permeia e reconfigura teoria e prática numa ética da atenção e do cuidado pelos outros, que ajuda na construção de uma cidadania responsável numa democracia participativa. Essa ética da compaixão e da solidariedade reside numa humildade epistemológica baseada no equilíbrio entre razão e emoção, num continuum bio cultural.

O materialismo feminista contemporâneo, em reação ao pós-modernismo, assenta na premissa de um continuum natureza-cultura que é tecnologicamente mediado através de uma ecologia heterogénea, a qual inclui o orgânico e o não orgânico em montagens neurais transitórias (DeLanda, 2022). Essa filosofia da imanência, por oposição à transcendência (Beauvoir, 2015 [1949]), é específica da epistemologia francesa e da filosofia da ciência e assume-se com um realismo que advoga que a matéria é vital, inteligente e que se auto-organiza (Braidotti, 2022). Teremos então de aprender a pensar de modo diferente e ter em consideração que o bio poder transitou para uma lógica de disseminação informática cujos corpos se transformam em tecnocorpos, os quais são permeados pelas vicissitudes do ambiente, são socialmente responsáveis e estão afetivamente conectados. Esses corpos são simultaneamente reais e virtuais e se diluem através da exposição e desaparecimento a múltiplas redes biogenéticas tecnomediadas pela computação, encorajando experimentações.

Puxando os limites da biologia, a nova condição do corpo dilui a distinção moderna tradicional entre arte, performance, media, design e arquitetura, torna o natural e o artificial em entidades inseparáveis, salientando as potencialidades da incerteza, da subversão, da transformação e do jogo, e celebrando a anomalia, a monstruosidade e a estranheza morfológica flexível. Os estudos sobre a deficiência são também considerados nessas constelações de múltiplas possibilidades flexíveis, nas quais a realidade mediada pela tecnologia se torna uma segunda natureza e onde natureza e artifício se tornam indistinguíveis. Por isso, a pergunta de Paulo Alexandre e Castro, “por que devo agir moralmente?”, nos remete afinal para o “[...] sentido da vida, em que subjetividade e objetividade se controvertem também nesse jogo frágil, mas constante entre expressar desejos latentes e afirmar razões objetivas para a existência” (Alexandre e Castro, 2024, p. 14).

 

Referências

ALEXANDRE E CASTRO, P. A interminável questão: por que (devo) agir moralmente?: análise do capítulo 12 de Ética Prática de Peter Singer. Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e0240031, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14518. Acesso em: 10 jun. 2024.

Angerer, M.-L. Ecology of Affect: Lüneburg: Meson Press, 2017.

Beauvoir, S. de. The Second Sex. V. 1. Lisboa: Serpente Emplumada, 2015 [1949] (Edições Quetzal).

Braidotti, R. Posthuman Feminism. Cambridge: Polity, 2022.

DELANDA, M. Materialist Phenomenology, A Philosophy of Perception. London & NY: Bloomsbury, 2022.

Espinosa, B. de. Ética. Lisboa: Relógio D’Água, 1992 [1677].

FOX, I. Diffraction as a Feminist Research Method. Edited by Sharon Webb. Full Stack Feminism, July 2023. Disponível em: https://doi.org/10.21428/6094d7d2.29c686d6"https://doi.org/10.21428/6094d7d2.29c686d6. Acesso em: 10 jun. 2024.

Ortega Y Gasset, J. A Rebelião das Massas. Lisboa: Relógio D’Água, 1989 [1929].

Singer, P. Escritos sobre uma vida ética. Lisboa: Dom Quixote, 2008.

 

Recebido: 12/06/2024 – Aprovado: 15/06/2024 – Publicado: 05/07/2024



[1] A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico, mas as citações não respeitam esse modelo.

[2] Professora Associada com Agregação na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL), Lisboa – Portugal. Investigadora integrada do Interactive Technologies Institute (ITI/LARSyS), Lisboa – Portugal. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4351-8999. Email: mouseland@netcabo.pt.

[3] Sobre as desigualdades de género no uso do tempo, consulte-se, por exemplo, o projeto europeu GENMOB (2015-2017), no qual a autora deste texto participou: http://genmob.ceg.ulisboa.pt/. Acesso em: 11 jun. 2024.

[4] Para Ortega y Gasset, a ciência experimental inicia-se no final do século XVI, com Galileu, constitui-
-se nos finais do século XVII, com Newton, e, finalmente, começa a desenvolver-se em meados do século XVIII.