Comentário a "Animalidade humana e naturalismo realista em Alasdair MacIntyre"

 

Elton Vitoriano Ribeiro[1]

 

Referência do artigo comentado: Sousa, José Elielton de. Animalidade humana e naturalismo realista em Alasdair MacIntyre. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400215, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15858.

 

O artigo de José Elielton de Souza sobre "Animalidade humana e naturalismo realista em Alasdair MacIntyre" apresenta uma excelente discussão sobre temas importantes da filosofia moral de MacIntyre e sua relação com o naturalismo ético de cunho neoaristotélico. A conclusão do autor de que "MacIntyre endossa, então, um tipo de naturalismo realista, no qual o ser humano é compreendido como animal racional e dotado de corpo, e também como animal social e mutuamente dependente, de modo que nossas ações, tal como nossos corpos, têm antecedentes animais que informam nosso comportamento ético" é, substancialmente, correta.

Ora, concordando com o autor em sua análise e interpretação da filosofia moral de MacIntyre, quero abordar aqui três direções fecundas para a filosofia moral, as quais podem ser enriquecidas com a discussão do artigo e o pensamento macintyriano. Tais direções eu já apontei em outros textos (Ribeiro, 2010), mas trato aqui de organizá-las como comentário de aprofundamento do artigo em realce. As direções que quero discutir, brevemente, são a das relações entre moralidade e biologia, a questão da vulnerabilidade humana e o necessário caminho de compreensão da moralidade e da vida humana como estruturadas na forma de narrativas. Essas três direções estão presentes no artigo e podem ser fontes para ulteriores esclarecimentos e explanações.

A primeira questão pertinente presente no artigo de Souza (2024) é acerca das relações entre moralidade e biologia. Ou melhor, no contexto atual, quais são as possibilidades de relação entre a compreensão filosófica da moralidade, nas suas várias interpretações; e as diversas compreensões explicativas provindas das ciências biológicas, fisiológicas, neurológicas e evolucionistas. Será que existem interpelações mútuas entre essas compreensões do fenômeno moral? Seria a moralidade uma construção da cultura ou da natureza? Ou quem sabe de ambas, dado que natureza e cultura sempre estiveram nas origens da busca humana pela compreensão da moralidade.

Nesse aspecto, uma excelente discussão pode surgir com a ajuda do livro de Joseph Mendonsa (2022). Nesse texto, o autor constrói um estudo comparativo entre o ponto de vista ético-filosófico de Alasdair MacIntyre e a Ética Biológica, a partir do perguntar-se pela importância da biologia humana para a moralidade e discutir as relações entre a dimensão ético-racional e a evolução humana. Mais especificamente, o autor se pergunta qual é o ponto de conexão entre a teoria da racionalidade prática de MacIntyre e uma reflexão ética baseada nas teorias que nascem a partir da teoria da evolução de Darwin. Aqui é importante, lembra Souza (2024, p. 06), que "[...] as fontes principais do naturalismo macintyriano são Aristóteles e Darwin".

Quais questões são interessantes de ser analisadas? Alguns exemplos, com base no livro de Mendonsa (2022) são: a moralidade é puramente adaptável ou geneticamente determinada? Quais são as raízes biológicas da moralidade humana? Quais os influxos atuais das perspectivas neurobiológicas para a compressão da racionalidade e da moralidade? O que existe de similar entre os animais humanos e os animais não humanos e que pode gerar boas discussões filosóficas sobre a racionalidade prática e a moralidade? Em função das relações entre biologia e moralidade, é possível pensar uma objetividade moral não reducionista e não relativista?

No último capítulo do livro de Mendonsa (2022), temos o instigante título: “MacIntyres's views and Biological Ethics: The points of connection”. Acredito que os elementos ali levantados dariam uma boa discussão com o artigo de José Elielton, afinal de contas, a ética biológica da evolução e a visão da moralidade de MacIntyre são compatíveis ou incompatíveis? Aspectos importantes da ética entram em discussão aqui, como a discussão ser - dever ser, a questão dos desejos e da phronesis, a relação entre racionalidade, desejo e virtudes, e a questão dos processos históricos das tradições de racionalidade moral.

A segunda questão que gostaria de comentar é a da fragilidade humana presente em nossa vulnerabilidade e dependência social. Souza (2024, p. 02) argumenta bem, quando frisa que MacIntyre propõe uma "[...] ética das virtudes naturalista, ancorada no reconhecimento da identidade animal do ser humano, justamente com a vulnerabilidade e dependência às quais estamos submetidos, enquanto animais biologicamente constituídos". Sobre esse ponto, eu pretendo ampliar a discussão, partindo do tema da fragilidade humana.

É muito curioso notar os noticiários, quando apresentam problemas de saúde de vários líderes de nossa sociedade. Eles e elas são pessoas que vivem as dificuldades da vida humana em suas vicissitudes, acidentes e acasos, como todos nós. No entanto, a forma como essas notícias são anunciadas revela um medo abissal da nossa fragilidade de animais racionais dependentes e vulneráveis. O ideal de perfeição, força e beleza de nossa sociedade contemporânea escamoteia nossa real condição humana. Como nos recorda MacIntyre, a vulnerabilidade humana e a incapacidade que caracteriza nossas vidas, especialmente na infância, na velhice e em momentos de enfermidade física e psíquica, devem ser tidas em consideração em qualquer filosofia moral que queira dialogar com os homens e mulheres de nosso tempo.

Quem abriu os olhos de MacIntyre para essa realidade foi São Tomás de Aquino, o qual, numa oração, rezou: “Peço a Deus que me conceda a possibilidade de compartilhar, com alegria, o que tenho com aqueles que necessitam, e a de pedir, humildemente, aquilo que preciso a quem puder me ajudar”. Pedir humildemente, reconhecer nossa dependência e vulnerabilidade é sinal de virtude. Nas palavras de MacIntyre, o conhecimento que temos de nós mesmos depende também de quanto aprendemos com os outros, a propósito de nós mesmos, e mais ainda da confirmação da parte dos outros que nos conhecem bem. Os juízos que formulamos sobre nós mesmos precisam de uma confirmação que apenas os outros podem nos dar. Portanto, crescer humanamente, florescer, é crescer no reconhecimento de nossa dependência, nossa vulnerabilidade e nossa fragilidade. Acolher essa dimensão fundamental de nossa humanidade e animalidade, em nós mesmos e nos outros, olhá-la com carinho e compreensão, agir em prol da construção de uma sociedade onde nossas fragilidades sejam cuidadas é algo profundamente moral.

A terceira questão é a da narratividade (Ribeiro, 2015). Viver humanamente é viver uma narrativa e, nesse ponto, MacIntyre é muito enfático, quando argumenta que nós sonhamos, devaneamos, recordamos, duvidamos, planejamos, reconsideramos, criticamos, inventamos, amamos, odiamos e aprendemos, em forma de narrativas. Em minha opinião, Souza (2024) apresenta boas bases para ampliar a discussão sobre a questão da linguagem propriamente humana, incorporando a questão da narratividade. Souza (2024, p. 06) argumenta que

[...] grande parte do que temos de animal inteligente em nós não é especificamente humano, uma vez que, mesmo quando usamos a linguagem para proferir sentenças bem formadas sobre o que aprendemos por meio de nossas percepções, ainda nos apoiamos, até certo ponto, em capacidades naturais anteriores ao uso de nossos poderes linguísticos.

 

Ora, sendo isso aceito, assim como MacIntyre também sustenta, podemos ganhar muito abrindo a discussão para a questão da linguagem e da narratividade, na vida humana, e sua incidência em nossas construções argumentativas em filosofia moral. Acredito que Charles Taylor desenvolve muito bem essa discussão, em The Language Animal: The full shape of the Human Linguistic (Taylor, 2016).

Não é aqui o lugar de desenvolver esse problema. Mas gostaria de acenar que, assim eu entendo, toda narrativa é um ato político. Afirmo isso, porque a vida humana, a qual é vida social, precisa de narrativas políticas para darem coesão social aos grupos humanos – e essa é uma tarefa moral e política, mais especificamente, uma tarefa humana (Ribeiro; Figueiredo, 222). Portanto, boas discussões são levantadas por Souza (2024). Aqui eu abordei três direções, que são, na minha opinião, essenciais para o florescimento humano no mundo histórico.

 

Referências

MENDONSA, J. Alasdair MacIntyre's Views ans Biological Ethics: Exploring the Consistency. New Castle upon Tyne (UK): Cambridge Scholars, 2022.

RIBEIRO, E. MacIntyre para teólogos. PENSANDO - Revista de Filosofia (UFPI), v.6, p. 85-100, 2015.

RIBEIRO, E. Reconhecimento ético e Virtudes. São Paulo: Loyola, 2010.

RIBEIRO, E.; FIGUEIREDO, L. Aristóteles, MacIntyre e o Comunitarismo. PENSAR - Revista Eletrônica da FAJE, v .13, p. 7-19, 2022.

Sousa, J. E. de. Animalidade humana e naturalismo realista em Alasdair MacIntyre. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 2, e02400215, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15858.

TAYLOR, C. The Language Animal: The full shape of the Human Linguistic. Cambridge, Massachusetts: Belknap Press of Harvard University Press, 2016.

 

Recebido: 15/06/2024 – Aprovado: 18/06/2024 – Publicado: 05/07/2024



[1] Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), Belo Horizonte, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2276-7221. Email: eltonvitoriano@gmail.com.