Comentário a “Duas contribuições de Lélia Gonzalez para a consolidação de um Feminismo Decolonial e Antirracista”: feminismo antirracista

 

Susana de Castro[1]

Referência do artigo comentado: Souza, Roberta Bandeira de. Duas contribuições de Lélia Gonzalez para a consolidação de um Feminismo Decolonial e Antirracista. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 2, e02400174, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15244.

 

Em reportagem de jornal de grande circulação, lê-se que banqueiro deixa herança de R$ 300 milhões! Sem filhos, ele pagava as contas de uma sobrinha, cujo cartão de crédito ultrapassava R$ 100 mil! No mesmo jornal, lemos que Raiane da Silva, de 22 anos, vive com sua mãe e os dois filhos em uma ocupação no centro do Rio de Janeiro. Mãe solo e desempregada, vive com o dinheiro da bolsa família, R$ 600. Esse dinheiro só sustenta a alimentação da família por quinze dias! O banqueiro branco deixa 300 milhões de herança, enquanto a mãe solo negra, que não conseguiu terminar o Ensino Fundamental II, precisa sustentar sua família com R$ 600.

O privilégio da branquitude precisa ser questionado, assim como sua raiz colonial denunciada, se quisermos que, neste país, mulheres como Raiane possam dar algum futuro digno a seus filhos e pôr fim à reprodução da condição de pobreza de geração a geração.

Não podemos separar a luta feminista da luta antirracista, como bem mostra Souza (2024), em seu artigo “Duas contribuições de Lélia Gonzalez para a consolidação de um Feminismo Decolonial e Antirracista”. Antes mesmo de o termo “interseccionalidade” aparecer na academia brasileira, Lélia Gonzalez já abordava, em seus escritos, a inseparabilidade das questões de raça, classe e gênero. No caso das nações que foram colonizadas, como o Brasil, essa inseparabilidade é ainda mais evidente. Se a maioria da população negra não tem acesso a uma boa educação, a uma boa saúde e a um bom emprego, como podemos tratar de feminismo, sem falar de classismo ou racismo? A mulher negra, além disso, ainda enfrenta a opressão de gênero, o que a leva a sofrer do machismo de seus companheiros e do patriarcado estrutural que discrimina as mulheres, de maneira geral. Souza (2024) mostra que Gonzalez foi pioneira nos estudos decoloniais, ao apontar para as raízes coloniais do racismo e do machismo. Além disso, ela também foi pioneira em denunciar a relação entre o sistema educacional, o currículo escolar brasileiro e a nossa mentalidade colonizada. Quem passa pelo sistema educacional, da escola à universidade, sofre uma “lavagem cerebral” e sai de lá “embranquecido”, uma vez que toda a história é relatada a partir da perspectiva do homem branco colonizador. O espelho cultural brasileiro, importante nos anos formativos, destaca a imagem desse homem branco desbravador dos mares e das matas.

Evidentemente, esse currículo eurocêntrico esconde a realidade palpável, a saber, que a cultura brasileira é profundamente influenciada pela cultura africana e indígena. Basta andar nas ruas brasileiras, para perceber que falamos o “pretuguês”, uma mistura dos idiomas africanos e português. Nossa cultura popular celebra o samba e o carnaval. Apesar dessa clara africanização da nossa cultura, o brasileiro médio nega sua ancestralidade africana ou indígena. Prefere lembrar antepassados longínquos europeus, a celebrar qualquer ligação com o sangue das populações que foram escravizadas, no período colonial. A educação aliena o povo de sua própria história, fazendo com que ele se identifique com os seus algozes.

A falsa ideia de “democracia racial” esconde, portanto, como frisa Gonzalez, um grande recalque. Recalcamos nossas origens não europeias, ao mesmo tempo que celebramos nossa mestiçagem. Contraditório, não? Pois é só Freud para explicar esse imbróglio. A negação do racismo do brasileiro representa, na verdade, uma grande neurose coletiva. A cura para essa “doideira” toda passa necessariamente, primeiro, pelo reconhecimento de que esse racismo está introjetado em nosso imaginário coletivo, provocando sintomas terríveis e violentos; e, segundo, pela obrigação de revermos nossos livros de história, sociologia, filosofia.

Souza (2024) deixa claro para o leitor os principais passos do pensamento crítico de Lélia Gonzalez, sua preocupação com a história, a cultura e a psicanálise, assim como seu vínculo com a causa feminista e a luta antirracista.

 

Referência

Souza, Roberta Bandeira de. Duas contribuições de Lélia Gonzalez para a consolidação de um Feminismo Decolonial e Antirracista. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 2, e02400174, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15244. Acesso em: 22 mai. 2024.

 

Recebido: 10/06/2024 – Aprovado: 15/06/2024 – Publicado: 05/07/2024



[1] Professora Titular de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6290-2729 Email: susanadec@gmail.com.