O conceito de era axial: raízes, desenvolvimento e atualidade

 

Carlos Eduardo Sell[1]

Daiane Eccel[2]

 

Resumo: O artigo realiza um mapeamento histórico, epistemológico e crítico das raízes, consolidação e retomada do conceito de era axial, com destaque para seu momento de solidificação, com o livro Origem e meta da história, de Karl Jaspers (1949). A partir da análise das características epistemológicas de cada uma dessas etapas, demonstram-se os elementos de continuidade, assim como os que se modificam, na compreensão daquilo que é a era axial. Enquanto, nas duas primeiras fases (histórica e filosófica), havia uma maior ênfase na simultaneidade e na igualdade entre civilizações, seu deslocamento para o campo da sociologia (fase 3), implicou maior relevo para a diversidade de civilizações.  Destaca-se que, na fase atual, diferente das etapas anteriores, o conceito se desloca da análise das civilizações pré-modernas para a análise da civilização moderna como um tipo de era axial. Apesar disso, entende-se que existe uma base comum presente em todas as fases da discussão. A investigação conclui que, a despeito de certas leituras evolucionistas aqui criticadas, a utilização do conceito de era axial, seja em chave histórico-filosófica, seja em chave sociológica, contém pressupostos cosmopolitas e plurais e, como tal, continua a ser um importante recurso analítico para a compreensão da complexidade e diversidade cultural das civilizações do passado e do presente.  

Palavras-chave: Era axial. Karl Jaspers. Modernidades Múltiplas. Multiculturalismo. Cosmopolitismo.

 

INTRODUÇÃO

Desde que S. Einsenstadt (1986) publicou a obra Origens e Diversidade das Civilizações na Era Axial, o conceito de era axial vem recebendo a atenção de pensadores que se propõem repensar a modernidade, quer no âmbito da teoria social, quer no âmbito da filosofia. Uma das principais razões de sua importância e aceitação reside na possibilidade de o conceito oferecer perspectivas múltiplas com relação à cultura, expandindo os horizontes da reflexão sobre o moderno para além do contexto ocidental. Ao mesmo tempo, a gama de questões que envolvem a teoria da era axial é multiforme e desperta reflexões sobre problemas fundamentais a ela atinentes, como a origem e o desenvolvimento da história, a modernidade secular e o retorno do sagrado.

Apesar de o tema ser amplamente discutido, no cenário internacional, o debate teórico a seu respeito, no Brasil, permanece restrito ao artigo do pensador de orientação weberiana Wolfgang Schluchter, “A modernidade: uma nova (era) cultura axial?”, traduzido ao português em 2017. Frente a tal lacuna, o objetivo deste escrito é recuperar o histórico do conceito de era axial, tanto no âmbito histórico e filosófico quanto científico-social, com o intuito de contribuir para seu aprofundamento crítico e sistemático. Com base nessa revisão histórica panorâmica, discutimos como alguns autores contemporâneos atualizam o conceito, a fim de compreender, para além de todo tipo de evolucionismo ou eurocentrismo, a realidade global atual. Ao percorrer cada uma dessas etapas – incluindo autores do século XVIII até o XXI (Anquetil Duperron, Jean-Pierre Abel Rémusa, Victor von Strauss, Edward Roth, Erns von Lasaulx, John Stuart Stuart-Glennie, Alfred Weber, Karl Jaspers,  Shmuel Eisenstadt, Robert Bellah, Jan Assmann e Jürgen Habermas), pretendemos não apenas assinalar os elementos de continuidade que dão unidade ao conceito, mas também ressaltar suas particularidades e especificidades, em cada período e em cada pensador que o emprega. Isso, por sua vez, nos abrirá caminho para, sem ignorar seus limites, destacar suas contribuições no contexto da reflexão sobre as múltiplas formas do moderno. Nosso primeiro objetivo, portanto, é de caráter histórico-epistemológico, e o segundo, de caráter crítico-sistemático.

Do ponto de vista histórico-epistemológico, o artigo delimita as diferentes interpretações do conceito de era axial que foram elaboradas por diversos autores, em três momentos. No primeiro, salienta-se o papel dos precursores dessa noção (no campo da filologia e da história), pois são eles que lançam as bases do conceito. Depois, a exposição realça a contribuição singular de Jaspers, que eleva o conceito a uma dimensão histórico-filosófica. Na terceira parte, discute-se a retomada do conceito no campo da teoria social, em três autores contemporâneos,  Shmuel Eisenstadt, Robert Bellah e Jürgen Habermas, bem como no egiptólogo Jan Assmann. Ao descrever historicamente e caracterizar teoricamente os principais autores de cada uma dessas fases, mostramos como o conceito sofre dois importantes deslocamentos epistemológicos. O primeiro diz respeito à forma, porque, enquanto em seu uso histórico-filosófico, predominante nas duas fases iniciais, os autores destacavam o elemento de unidade do diverso (ou seja, a simultaneidade de civilizações em um determinado tempo eixo), no campo da teoria social, enfatiza-se o elemento da diversidade na unidade (isto é, as diferentes formas do ser moderno). Já o segundo deslocamento se refere ao conteúdo, já que, enquanto nas duas fases iniciais, os autores investigaram as civilizações pré-modernas, no campo da teoria social, ele passa a ser utilizado para entender predominantemente a civilização moderna.

Do ponto de vista crítico-sistemático, o artigo se preocupa em demonstrar que, a despeito de autores, como Robert Bellah, terem feito um uso do conceito, a partir de uma perspectiva  evolucionista, e apesar das oscilações em sua compreensão, o conceito repousa em última instância sobre uma lógica cosmopolita e plural. Em segundo lugar, é importante ressaltar que, independentemente das mudanças no uso do conceito, há um elo comum perpassando cada fase da discussão. Isso implica determinar no que consiste o elemento da axialidade, questão que será focalizada especialmente em nossas conclusões.

 

1 AS RAÍZES DO CONCEITO: A ERA AXIAL COMO SIMULTANEIDADE DE EVENTOS 

O nome fundamental para a difusão do conceito de era axial é, sem dúvida, o de Karl Jaspers (1883-1969), através do livro Ursprung und Ziel der Geschichte [Origem e meta da história], publicado em 1949, no qual o autor afirma: 

Este eixo da história mundial parece situar-se por volta de 500 a.C., no processo espiritual entre 800 e 200. Foi aqui que se deu a viragem mais profunda da história. Surgiu o ser humano com o qual ainda hoje vivemos. Este período é brevemente designado por “era axial” (Jaspers, 2017, p. 17)[3].

 

Ainda que o conceito tenha sido cunhado pelo autor, na primeira metade do século XX, o tema em si mesmo, a saber, a coincidente simultaneidade “de feitos extraordinários” (Jaspers, 2017, p. 17) entre os séculos VIII e II a. C., é mais antiga. Segundo os estudos de cunho histórico-filosófico realizados por Jan Assmann (2018), o primeiro pensador a lidar com a questão foi o especialista em estudos orientais, Abraham-Hyacinthel Anquetil Duperron, já na segunda metade do século XVIII. Entre esse pesquisador parisiense, o qual viveu entre 1805 e 1931, e Karl Jaspers, com sua obra de 1949, há, ainda, uma série de autores que contribuíram com a discussão. O objetivo desta primeira seção será apresentar cada um deles, embora de maneira resumida.

O francês Abraham Anquetil Duperron, crítico do colonialismo e defensor de um cosmopolitismo universal, cultivava profundo interesse pelas línguas orientais, como o persa e o sânscrito. Isso o levou à tradução dos Upanishads, que chegaram ao Ocidente por seu intermédio. Também traduziu textos do Avestá, a partir do persa. Na volta de sua viagem para a Pérsia e para a Índia,  em 1762, levou 180 escritos persas e indianos à Biblioteca Real de Paris. Anquetil Duperron seria o pai dos estudos modernos sobre o Irã. É com esse pensador que surge a ideia de “simultaneidade”, ou seja, a percepção de que os eventos que mais tarde seriam elencados por Jaspers ocorreram no mesmo período, em sociedades diferentes. Escreve Duperron (apud Assmann, 2018, p. 31):

Naquela época ocorreu uma espécie de revolução na natureza, que produziu gênios em partes da terra, que dariam o tom para o mundo. As leis dos homens, veladas nos emblemas egípcios (hieróglifos) e na posse de um pequeno grupo de sacerdotes, eram pouco conhecidas fora da África. Licurgo e Sólon se contentavam em civilizar duas únicas cidades; e o resto da Grécia ouvia os sábios, vários dos quais, em parte educados no exterior, disputavam os fundamentos físicos do universo [...]. A Pérsia, que havia substituído sem razão o culto dos astros e espíritos maus pelo criador, confundiu os atributos do autor do princípio do bem com os do princípio do mal. Durante 500 anos, a Índia, com exceção de alguns poucos sábios, havia se rendido aos dogmas do Fo (Buda). Em Israel, finalmente, os profetas começaram a cessar, e os judeus, inacessíveis a suas admoestações e desatentos aos terríveis castigos com que Deus os castigara, pareciam adquirir o gosto pelo culto às divindades estrangeiras.

 

Anquetil Duperron não fazia qualquer valoração a respeito de um acontecimento com relação ao outro. Conforme Assmann (2018), o autor enfatiza, em seu segundo livro, Legislação oriental, que não há nenhuma supremacia por parte dos gregos ou do Ocidente, de forma geral. Todos compõem, portanto, um grupo único que passou por um processo revolucionário no período.

Um século depois do retorno de Anquetil Duperron à França, surge Jean-Pierre Abel Rémusa. Sua especialidade e proximidade com as línguas asiáticas fizeram com que ele chegasse aos escritos dos sábios chineses do século VI a.C., como Lao Tsé e Confúcio. Em sua obra de 1823, Memoire sur la vie et les opinions de Lao-Tsé, o autor constata que as ideias presentes em Pitágoras, Platão e seus discípulos também se encontravam nos escritos de Lao-Tsé. Seus estudos ampliaram-se até o ponto de investigar aquilo que havia de comum entre os sábios orientais e o cristianismo. Para Rémusa (apud Assmann, (018, p. 46), o logos grego, o qual tem como fundamento um elemento universal, também estava presente no tao chinês:

Esta palavra Tao parece bem representada apenas pela palavra   λόγος (logos) e seus derivados, no triplo sentido de “Ser supremo” (souveriane être), razão, e também palavra (parole), bem como para expressar a ação de falar, raciocinar, render razão. É evidentemente o λόγος de Platão que organizou o universo [...] em uma palavra, é esta mesma noção da primeira causa do universo que estava tão difundida entre os filósofos das principais seitas da antiguidade, que há todos os motivos para acreditar que era uma das bases da teologia dos egípcios e das nações orientais entre as quais estes filósofos haviam estudado.

 

A explicação de Rémusa repousa na ideia de uma comunicação presente entre o Oriente e o Ocidente, cujo eixo de intersecção é o Egito, onde muitos dos filósofos estudaram. Graças a Rémusa, o espectro da era axial – que ainda não era assim designada – ampliou-se até a China, por meio da figura de Lao-Tsé, havendo, desse modo, mais uma tentativa de deslocar o eixo central do mundo grego e, portanto, ocidental. Por outro lado, não há um completo deslocamento para a China, mas, antes, a aposta na ideia de uma comunicação de sociedades que partilhavam uma causa universal.

Quase meio século depois, em 1870, o alemão Victor von Strauss publica a tradução de Tao- Tê King e volta igualmente seus olhos à China, quando compara Lao-Tsé e Mestre Eckhart, seguindo a inclinação da tradição de estudos comparativos entre Ocidente e Oriente, no âmbito teológico-filosófico[4]. O autor, de origem luterana, é fortemente influenciado por questões teológicas, motivo pelo qual está presente em suas pesquisas a busca por uma “religião originária” [Urreligion]. Parte de seus argumentos funda-se na concepção de uma religião monoteísta presente no Egito. Apesar de tais constatações, é nos escritos chineses de Lao-Tsé, nos quais se encontra a ideia de uma consciência monoteísta, que se desenvolvem os robustos fundamentos de um sistema ético.

Edward Röth, em suas obras de 1846 e 1858, investiga o processo de desenvolvimento da especulação filosófica ocidental, negando qualquer tipo de criação ex machina por parte dos filósofos gregos. Segundo o autor, a especulação egípcia e zoroastriana nos chegou por meio dos gregos e judeus, não havendo, assim, rupturas históricas. Há, pelo contrário, uma espécie de evolução da religião rumo à especulação filosófica grega. Enquanto a emoção e a imaginação exercem papel fundamental no desenvolvimento dos processos religiosos, a razão ocupa lugar central na especulação filosófica. A segunda é, no entanto, consequência da primeira, mesmo que não seja uma consequência necessária. Röth, a despeito de ter teorizado sobre o problema da era axial, “[...] é um antípoda da tese” (Assmann, 2018, p. 80), haja vista descartar a hipótese de haver qualquer salto ou revolução no processo. É dessa maneira que Röth retoma a tese da importância das influências egípcias sobre os gregos como um passo anterior e fundamental para o desenvolvimento da filosofia ocidental, sobretudo no que diz respeito às especulações cosmológicas.

Contemporâneo de Röth, Erns von Lasaulx publica seu Neuer Versuch einer alten, auf die Wahrheit der Tatsachen gegründeten Philosophie der Geschichte, no qual desenvolve correlações entre Numa Pompílio, o rei de Roma entre os séculos VIII e VII a.C., e Moisés. Ambos teriam influências egípcias. Contemporâneo de Hegel, Lasaulx também se insere na tradição das filosofias da história, mas suas teses não compartilham do tom evolucionista e de preconceito racial do século XIX. Para o autor, a história opera em simultaneidade entre as civilizações, mas com “frequências” [Schwingung] diferentes. Haveria um “espírito do povo” [Volksgeist], o “espírito do tempo” [Zeitgeist] e a humanidade. Ao invés de um nacionalismo, o autor cultiva a crença de uma “conexão dos povos”. Todas as sociedades que se desenvolveram simultaneamente, como já havia sido apontado por Anquetil Duperron, via texto de Jan Assmann (2018), são a confirmação desse espírito do povo. 

Na segunda metade do século XIX, por meio de sua “Teoria da revolução moral”, John Stuart Stuart-Glennie afirmava que as sociedades antigas se separavam das modernas entre os séculos VI e V a.C.  Eugene Halton (2014) dedica uma obra inteira a esse pensador, o qual, de acordo com ele, permaneceu obscurecido pelo debate em torno da era axial. Para o comentador, a necessidade de retomada da teoria de Stuart-Glennie baseia-se nos seguintes argumentos: i) Jaspers não teria dado crédito suficiente a  Stuart-Glennie e ii) a expressão “revolução moral” indica com maior precisão o fenômeno que Jaspers chama de era axial. Para além disso, “Stuart-Glennie também introduziu gradações inexploradas por Jaspers”, como uma visão da pré-história como panzoística (Halton, 2014, p. xi.).

Como seus antecessores, Stuart-Glennie viajou à Palestina e ao Egito, entre 1861 e 1862, aos 20 anos, para onze anos depois publicar seu livro In the Morningland, que veio à luz em 1878, sob o título Isis and Osiris or the origin of Cristianity as verification of the ultimate law of History. Nele, o autor desenvolve sua teoria das três fases da história. Na fase do animismo, o mundo ainda não é um objeto de conhecimento para o homem; na segunda, chamada de “revolução moral”, os homens diferenciam-se do mundo e passa a haver uma relação sujeito-objeto, na qual o sujeito o condiciona e é protagonista. Por último, ocorre uma relação entre homens e mundo (subjetiva/objetiva), mas sem determinação.

Depois de um hiato na investigação da temática, em 1935, o contemporâneo, membro do círculo weberiano em Heidelberg e amigo de Karl Jaspers, Alfred Weber, irmão mais jovem de Max Weber, dedica-se à pesquisa de uma era mundial sincronizada. Em Kulturgeschichte als Kultursoziologie, o autor trata do bloco euroasiático e da região norte do continente africano. Alfred Weber traça uma tipologia de culturas, com base em três conceitos fundamentais: estrutura social [Gesellschaftsstruktur], processo civilizatório [Zivilisatorischer Prozess] e agregação vital [Lebensaggregierung]. Discute, para além disso, as culturas avançadas primárias relacionadas à Índia e China (Taoísmo, Confucionismo, Budismo e Jainismo) e culturas secundárias no Ocidente, como judeus, persas, gregos e romanos, abrangendo o período de 550 a.C. até 1500 d.C. Jaspers debate as teses do seu colega, quando se pergunta sobre as causas a respeito da simultaneidade do período axial. Para ele, Alfred Weber tem uma tese “metodologicamente discutível” (KJG, I/10 2017, p. 29) relacionada aos povos equestres que saíram do Oriente e se expandiram pelo mundo, através do domínio de cavalos. O caráter nômade, portanto, associado à ideia do domínio de cavalos, abarca uma parte das teses sobre a sincronicidade do período. Mas Jaspers não se convence de sua completude e desenvolve outros elementos, os quais deverão ser elucidados ao longo deste texto.

 

2 DESENVOLVIMENTO E CONCEITO: A ERA AXIAL COMO FILOSOFIA DA HISTÓRIA

A seção anterior demonstrou que a ideia de era axial se desenvolveu e se complexificou paulatinamente, contudo, é apenas com Karl Jaspers, em seu livro Origem e meta da história (publicado em 1949), que o conceito alcança um novo patamar epistemológico. Com esse pensador, o que ainda estava apenas sugerido, nos autores anteriores, é levado à maturidade teórica. Assim, explicita Jaspers (KJG, I/10, 2017, p. 17):

Neste tempo se concentram fatos extraordinários. Na China vivem Confúcio e Lao-tsé, surgiram todas as direções da filosofia chinesa, meditam Mo-ti, Chuang-tsé, Lie-tsé e incontáveis outros. Na Índia surgiram os Upanishads, viveu Buda, se desenvolveram, como na China, todas as possibilidades filosóficas desde o ceticismo até o materialismo, desde a sofística até o niilismo. No Irã, Zaratustra ensinou a exigente visão de mundo da luta entre o bem e o mal. Na Palestina surgem os profetas, desde Elias, seguido por Isaías e Jeremias até o Deutero Isaías. A Grécia vê Homero, os filósofos – Parmênides, Heráclito, Platão – os  trágicos Tucídides e Arquimedes. Tudo o que estes nomes apenas indicam cresceu durante estes poucos séculos quase simultaneamente na China, na Índia, no Ocidente, sem que soubessem uns dos outros.

 

A referida obra de Jaspers é tardia, quando comparada aos seus demais escritos, sobretudo sua conhecida Psicologia das Visões de Mundo (publicada em 1919), seu opus magnum, Filosofia,  e A situação espiritual de nosso tempo (1933). Todavia, ela pode ser considerada como uma espécie de coroamento do pensamento da fase de sua Filosofia da Existenz. Algumas ideias que formam essa obra já haviam sido esboçadas anteriormente, nos escritos desse pensador.  Jan Assmann (2018) defende a tese de que a filosofia da história, presente em Jaspers, é, em última instância, baseada na Filosofia da Existenz, termo cunhado pelo próprio autor – e esse é o elemento que, mesmo inserido no contexto das filosofias da história do pós-guerra, a torna singular.  Com efeito, depois do final da segunda guerra, o pensamento de Jaspers ganha contornos cada vez mais políticos, os quais dialogam com o seu próprio tempo, como a questão da culpa alemã ou, mais tarde, da ameaça da bomba atômica.

 Certos conceitos, como situação-limite (luta, morte, acaso e culpa), salto [Durchbruch] e fracasso já estavam claramente presentes na Psicologia das visões de mundo, além das reflexões sobre a técnica, as quais já constavam em Situação espiritual de nosso tempo. A retomada da filosofia da história enquanto recurso de compreensão do tempo próprio do pós-guerra era comum no período, e dela fizeram uso não somente Karl Jaspers e Alfred Weber, mas também Karl Löwith, com seu famoso Meaning in History, publicado em 1949. O mesmo ocorre com a obra de Bruno Snell, Die Entdeckung des Geistes (traduzida no Brasil como A cultura grega e as origens do pensamento europeu), investigação resultante da busca da origem do logos por meio dos gregos[5]

A denominação que Hannah Arendt (2003, p. 77) confere a Jaspers, em um dos seus textos de Homens em Tempos Sombrios, a saber, “cidadão do mundo”, faz jus à percepção de seu antigo professor e amigo: Jaspers afirma que o cristianismo – um dos elementos fundantes do Ocidente – oferece uma narrativa sobre a história, mas ele lembra que esta é apenas uma das múltiplas narrativas possíveis.  Isso significa que a crença cristã sobre a qual o Ocidente, de Agostinho a Hegel, é fundado, aí incluídas suas pretensões universalizantes derivadas do cristianismo, limita-se a um espaço determinado. Por isso, Jaspers segue a tendência de parte de seu círculo intelectual, como é o caso, por exemplo, dos irmãos Max e Alfred Weber, e expande seu interesse histórico-filosófico para além dos limites europeus e suas conquistas territoriais. Na busca por um eixo que abarque a história universal sem preponderância de uma experiência histórica sobre a outra, ele sabe que não podemos nos limitar a apenas uma civilização, em específico. Por outro lado, Jaspers não se estende territorialmente ao mundo inteiro, embora as ressonâncias da era axial cheguem, de alguma forma, a todas as partes do globo, pois é “[...] historicamente universal” (Jaspers, 2017, p. 22).

Para esboçar sua teoria, Jaspers delimita tempo e espaço: trata-se do período entre os séculos VIII e V antes de Cristo, na China, na Índia e no grande conjunto que ele chama de Ocidente, o qual compreende a Grécia e a Palestina. Nesse período, no qual há uma “[...] fantástica concomitância exata” (Jaspers, 2017, p. 39), surgem, de modo concomitante, nomes como Confúcio e Lao-Tsé, na China; ocorre também a iluminação de Buda, na Índia, aparecem os Upanishads, surgem os profetas na Palestina, bem como os grandes nomes da filosofia grega.

Tais ocorrências deslocam o eixo da história para uma história mundial e diferenciam as civilizações acima nomeadas das culturas antigas que, por mais grandiosas que se revelassem até então, passaram a ser pré-históricas, pois, diante da era axial, “[...] perdem sua forma” [Gestalt] (KJG, I/10, 2017, p. 23). Cabe a tais culturas, tanto as mais antigas quanto as que estão territorialmente fora das civilizações axiais, incorporarem-se a elas. A axialidade constitui uma espécie de princípio, de arché, não somente no sentido histórico, mas principalmente espiritual. Salienta Jaspers (KJG I /10, 2017, p. 22): 

Daquilo o que aconteceu, o que foi criado e pensado naquela época, vive a humanidade até hoje. Em cada uma das suas novas ascensões, regressa em memória a esse tempo axial, deixando-se reavivar a partir daí. Desde então, a recordação e o despertar das possibilidades da era axial – os renascimentos – provocaram uma ascensão espiritual.  O regresso a este início é o acontecimento recorrente na China, na Índia e no Ocidente[6].

 

Diferentemente de outros tipos de filosofias da história, como a do modelo hegeliano, por exemplo, Jaspers não entende a era axial comparando o Ocidente com o Oriente, a partir de juízos de valor previamente estabelecidos. Não se trata de uma continuidade que evolui mais aqui e menos ali. Trata-se, antes, de uma espécie de revolução interna ou manifestação de algo novo [Durchbruch] que ocorre simultaneamente em cada um desses contextos culturais. No que diz respeito ao Ocidente, por exemplo, não se tem uma passagem milagrosa do mito para o logos, como afirmam entusiastas do milagre grego. Mesmo que todas as civilizações axiais fossem a-míticas, como Jaspers, de fato, concebe que são, os mitos não foram eliminados, mas se transformaram em alegorias, apontando uma mudança espiritual nesse processo. A passagem do mito para a alegoria comporta um processo de espiritualização do qual deriva o pensamento especulativo, o mesmo que acompanha o homem moderno. É verdade que há uma espécie de avanço, marcado pelo surgimento do pensamento especulativo em todas as grandes civilizações, sobretudo quando comparadas às culturas antigas, contudo, essa conclusão não deriva da comparação entre Ocidente e Oriente, como fez Hegel. Ao contrário, “[...] a era axial é a única que constitui um paralelo universal na história mundial, na sua totalidade” (Jaspers, 2017, p. 26).

Fundamental, no que conceerne ao paralelismo, é a ideia jasperiana de comunicação. Esse conceito já ocupa um lugar privilegiado na filosofia da existência do autor, pois alude a uma comunicação existencial, que é diferente de uma mera comunicação linguística. A comunicação existencial não transmite nenhum conhecimento no sentido prático, ou não troca informações: ao invés disso, comunica existências. A era axial exige justamente uma “comunicação ilimitada”, a qual, diferentemente do que se possa imaginar, não consiste na troca de aprendizados ou técnicas ou línguas entre uma civilização axial e outra, mas sai da “[...] historicidade fechada em si mesma” (Jaspers, 2017, p. 32), como estava dada no passado pré-histórico. É pelo tipo de comunicação existencial que se compreende e se vê o outro, atualizando a própria existência. Jaspers nota que não houve muito contato entre as civilizações axiais, mas o fato de se tratar de fontes distintas garante, nesse período da história, a comunicação entre os diferentes e evita a exclusividade de uma verdade. A verdade na existência se revela com o outro, por meio da comunicação existencial. A verdade absoluta, inquestionável em Jaspers, se dá somente no âmbito da transcendência e permanece, portanto, oculta[7]

O autor identifica alguns fenômenos de ordem sociológica que explicariam o paralelismo entre os lugares nos quais a era axial se desenvolveu. Ele observa, por exemplo, que todas as civilizações em questão eram formadas por Estados e cidades (Jaspers, 2017, p. 31) e que padeciam sob lutas internas, instabilidade política e crises. No entanto, longe de tentar refutar as três objeções elencadas contra a simultaneidade que funda a tese da era axial[8], Jaspers preocupa-se prioritariamente em defender a ideia de que a era axial é marcada por um grande passo da ordem do espírito: o que faltava a todas as civilizações anteriores, por mais grandiosas que fossem, era uma espécie de salto qualitativo com relação ao pensamento especulativo, o que lhes conferia uma espécie de estado de dormência. Aquilo que Jaspers chama de Durchbruch, o salto irrompido, a revolução interna, a manifestação de algo que surge através de uma crise, fez com que a cisão sujeito/objeto fosse mitigada. Segundo o autor: “No pensamento especulativo, o homem eleva-se até ao próprio ser, que é apreendido sem dualidade, no desaparecimento do sujeito e do objeto, no colapso dos opostos” (KJG, I/10, 2017, p. 19, grifo do autor).

O pensamento especulativo formado a partir de crises irrompidas nas civilizações axiais fez com que o sujeito tomasse consciência de si mesmo, elevando-se ao transcendente. Esse elemento, o qual já estava presente de alguma forma, em 1919, afirma-se em sua filosofia da história e reafirma-se posteriormente, quando, em suas conferências semanais emitidas pela televisão, a convite da Rádio Baviera, na década de sessenta, Jaspers (2011, p. 53) afirma: 

Enquanto não experimentou a sensação de ver-se soterrado e não optou por ‘passar além’, em direção à transcendência, o homem não é verdadeiramente ele próprio. Não passa do animal racional a que está acorrentado. Para contraditar essa imagem que diminui, o homem foi chamado “o ser que contempla Deus”. Somente em relação com a transcendência é que o homem toma consciência de ser livre, na forma de vida superior exemplificada por homens de todas as raças e de todos os tempos”.

 

Essa forma de vida, que reconhece a realidade abrangente advinda dos diferentes blocos das civilizações axiais, os quais se diferenciam em parte das civilizações mitológicas, se revela de diversas maneiras: pelo conhecimento de si mesmo e do mundo, por meio do logos filosófico, pela meditação filosófica ou de cunho oriental, pelo conhecimento do Tao, pela busca pela ataraxia, pelo caminho para o Nirvana ou a entrega a Deus (Jaspers, 2017, p. 19). Esse elevar-se acima de si mesmo, passando primeiramente pelas situações-limite, constitui, por excelência, a face existencial de sua filosofia da história. 

Situações-limite [Grenzsituationen] e fracasso [Scheitern] são conceitos importantes para a filosofia da história de Jaspers. Grosso modo, pode-se dizer que o salto [Durchubruch] ocorre pela irrupção das situações-limites e que, necessariamente, o homem fracassa, assim como a própria era axial também fracassa, na medida em que não permanece e é tomada por grandes impérios. As situações-limite são descritas por Jaspers, em sua Psicologia das visões de mundo, em dois aspectos: no que diz respeito à realidade abrangente e no âmbito individual. Para cada uma das situações-limite, há uma antinomia. Assim, tem-se: para a luta, a mútua ajuda; para a morte, a vida; para o acaso, o sentido, e, para a culpa, a consciência da purificação. Elas são “[...] as situações que são sentidas, experienciadas e pensadas nos limites da nossa existência” (Jaspers, 2019, p. 219). Diferenciam-se das meras situações nas quais o homem se encontra envolto cotidianamente, as quais podem ser modificadas por ele ou se dissipam sozinhas. A vida está ela mesma situada, isto é, envolvida em situações.  As situações-limite, por sua vez, são aquelas com as quais o homem se depara em sua realidade e das quais não é possível fugir. Resta-lhe, então, tomar consciência sobre elas e assumir a responsabilidade que lhe cabe, como teria acontecido com as civilizações axiais. Por esse motivo, Jeanne Hersch (1978, p. 21) afirma que, em Jaspers, “[...] as situações-limite estão longe de ocupar uma função puramente negativa e de prejudicar a existência possível [...]. Ao contrário: a existência procura a experiência das situações-limite, esforçando-se por aprofundá-la até lhe encontrar um sentido que a reintegre a ela em sua autenticidade”[9]

A tomada de consciência acerca das situações-limite ocorridas na era axial, no entanto, não é garantia de nenhuma perenidade a respeito de nenhum tipo de sucesso, pois toda situação, em seu limite, fracassa. Daí que o fracasso tem também uma dimensão existencial e é importante na filosofia da história de Jaspers, não somente porque a “[...] a era axial também fracassou” (Jaspers, 2017, p. 33), mas porque existe fracasso diante das situações, bem como fracasso em face da transcendência. É também pelo fracasso que se toma consciência da transcendência e do próprio ser, conforme parece ter-se dado na era axial. 

 

3 ATUALIDADE DO CONCEITO: A ERA AXIAL COMO DIVERSIDADE 

O conceito de era axial ocupa, hoje, um lugar fundamental no campo das humanidades, tendo-se tornado uma das principais chaves analíticas para a reflexão desta área do saber, na era da globalização. Com efeito, as humanidades buscam formas de pensar que adotem uma perspectiva cosmopolita, e é nesse contexto e nesse espírito que o conceito de era axial se apresenta como uma alternativa teórica pertinente. Para fundamentar essa tese, vamos examinar doravante quatro autores (Jan Assmann, Robert Bellah, Shmuel Eisenstadt e Jürgen Habermas) que exploram, de maneira variada, as potencialidades do conceito. 

 

3.1 Para além do evolucionismo 

Uma das críticas mais recorrentes ao conceito de era axial é que ele seria inevitavelmente evolucionista, qual seja, que implica uma visão que compreende a história como uma sucessão de estágios necessários, nos quais os níveis posteriores são considerados superiores em relação aos anteriores. Nosso entendimento é que uma compreensão evolucionista da era axial é, de fato, possível, mas essa não é uma implicação necessária da teoria. Ou, dito de outro modo, é possível adotar uma compreensão não evolutiva do conceito. Para defender nosso argumento, contrapomos a versão ainda relativamente evolucionista da era axial de Robert Bellah com outra visão claramente não evolucionista, postulada por Shmuel Eisenstadt. 

 

a) Robert Bellah: a era axial como incremento da capacidade adaptativa:

O sociólogo americano Robert Bellah (2005) notabilizou-se, no campo da sociologia da religião, como um dos herdeiros da tradição funcionalista de Émile Durkheim (2003) e Talcott Parsons (1969). Do primeiro, herda principalmente a preocupação em encontrar um equivalente funcional capaz de substituir a religião como esfera da regulação e integração social. Ao lado de Durkheim, outra influência decisiva para Bellah é Talcott Parsons, de quem herda a tese da modernização social.

Essa visão ainda se reflete na última grande obra de Robert Bellah (2011), intitulada Religion in Human Evolution. Nesse escrito, ele parte da definição de Clifford Geertz e inspira-se em outros autores (em especial Alfred Schutz), para conceituar a religião como um “sistema de símbolos”, o qual permite uma nova percepção da realidade. Para entender o desenvolvimento da religião, Bellah retoma o princípio da coevolução entre biologia e cultura de Merlin Donald (1991), segundo a qual a cultura humana evoluiu em três estágios: mimético, mítico e teórico. Por esse motivo, ele não se furta de inserir a história da humanidade no contexto maior da evolução física e biológica. Sua análise começa com os primórdios do universo físico (Big-Bang), passa pelas origens da vida biológico-celular (organismos unicelulares) e desemboca, ao final, na origem do homo sapiens. No contexto dessa longa marcha, a religião emerge da capacidade humana de simbolização e se efetiva concretamente pelo surgimento de jogos e ritos. 

O fato de Robert Bellah inserir a cultura humana e, como parte dela, a religião, na continuidade do desenvolvimento físico e biológico da humanidade, denota o primeiro traço de sua visão evolucionista. Mas, além disso, essa perspectiva também é aplicada ao desenvolvimento histórico-cultural do fenômeno religioso. Para ele, os estágios da cultura mimética e mítica são acompanhados por religiões de tipo tribal, e é no estágio da cultura teórica, com suas sociedades arcaicas, que surgem as religiões da era axial.

A fim de entender o caráter das religiões tribais, Robert Bellah elege três casos históricos: as tribos Kalapalo do Brasil, Walbiri da Austrália e Navaho dos EUA. Examinando esses grupos, ele coloca em relevo a importância do rito e do mito para a integração dessas formas ainda relativamente igualitárias de organização social. Todavia, nas sociedades arcaicas, representadas pelas primeiras grandes civilizações (antigo Israel,  Grécia antiga,  Índia da  segunda metade do primeiro milênio anterior à era cristã e a China do mesmo período), marcadas pela superação de sociedades baseadas no parentesco e pela instauração de diferentes tipos de hierarquia e estratificação social (amparadas em riqueza, prestígio e poder), as formas mítico-rituais mudam de significado e são postas a serviço dos estratos dominantes. Os rituais coletivos cedem lugar aos rituais centrados na figura do rei e de seus interesses políticos. 

É contra esse pano de fundo que emerge, por sua vez, uma nova fase histórica denominada era axial, a qual Bellah analisa detalhadamente, tomando como exemplos os casos de Israel, Grécia, China e Índia. Todos esses casos são marcados pela crítica aos mitos e ritos vigentes. No caso de Israel, essa crítica é realizada pelos profetas e suas exigências de fidelidade à aliança com Javé. O caso da Grécia é diferente, pelo fato de que, no mundo helênico, a mitologia reinante buscou ser superada pelo saber racional, defendido pelos filósofos. Bellah também vê o mesmo movimento ser efetivado na China, mas, nesse caso, a crítica ao status quo é feita por uma aristocracia intelectual, como mostram os Analectos de Confúcio. Por fim, no caso da Índia, o ritualismo hindu é superado pela ênfase em uma vida de contemplação e iluminação proposta pelo Budismo. 

A era axial representa, assim, um salto qualitativo, porque as tradições religiosas que rompem a unidade entre cosmos, sociedade e religião produzem um pensamento de segunda ordem, que é reflexivo em relação às suas próprias sociedades. As religiões passam a enfatizar, portanto, o aspecto da salvação e da transcendência. 

Diferentemente do que faz Jaspers, o qual definia a era axial com base na simultaneidade histórica da ideia de transcendência, Bellah parte da hipótese de que ela representa um novo estágio ético da humanidade. Nos diferentes casos históricos da era axial, a dupla rito e magia é substituída por exigências morais de caráter universalista. E, mais importante do que isso, a passagem das sociedades tribais para as sociedades arcaicas e, principalmente, destas últimas para as civilizações da era axial, é marcada pela perspectiva do progresso. Para Bellah, a evolução é entendida como incremento da capacidade adaptativa, e os diferentes estágios culturais da humanidade são similares à evolução da cognição humana. Como notaram seus críticos (Stausberg, 2014), a análise histórico-social de Bellah, embora não seja darwinista e mesmo que ele afirme estar desprovido das premissas teleológicas e do progresso, não escapa de resquícios evolucionistas. Como contraposição a tal ideia, há a interpretação não evolucionista desenvolvida pelo sociólogo Shmuel Eisenstadt, da qual tratamos abaixo.

 

b) Shmuel Eisenstadt: a era axial como diversidade de civilizações 

Em nosso entender, a leitura evolucionista que Bellah confere à tese era axial não é uma decorrência necessária do conceito em si mesmo, todavia, resultado de seu enquadramento na sociologia funcionalista de Durkheim e Parsons. É preciso, portanto, dissociar ambos os elementos. A obra de Shmuel Eisenstadt, doravante apresentada, pode ser lida como a confirmação de que esse empreendimento é possível. Com efeito, Eisenstadt (2017) é um autor que, desde o início de sua carreira, já tinha se colocado o propósito de desenvolver uma teoria comparada dos sistemas imperiais (em The political system of Empires, de 1963). Mas foi somente quando se aproximou da obra de Max Weber que esse esforço conseguiu desvencilhar-se dos pressupostos evolucionistas da teoria do desenvolvimento social de Parsons. 

Weber (1988) estava convencido de que o processo de racionalização era universal e, dentre outros fatores, era impulsionado pela teodiceia religiosa. A necessidade de explicar a origem do mal estimula as religiões a elaborar sistemas ético-doutrinais cada vez mais complexos. Em função disso, foram esboçados, em diferentes lugares e tempos históricos, grandes sistemas religiosos de pensamento. Assim, longe de uma exclusividade ocidental, a racionalização assume formas culturais variadas, sendo o Ocidente apenas uma versão histórico-contingente dela. Conforme suas investigações, enquanto a civilização chinesa (Confucionismo e Taoísmo) tinha desenvolvido uma racionalidade de adaptação ao mundo, a civilização indiana (Hinduísmo e Budismo) e o Ocidente criaram religiões que instauraram modos de tensão com a realidade mundana. Mas ambas elaboram essa tensão de forma diferente, pois, enquanto a Índia desenvolveu uma espécie de racionalização mística de fuga do mundo, o contexto judaico-cristão privilegiou o caminho ascético da racionalização dominadora do mundo. 

Embora a teoria de Max Weber nos traga a lembrança de seu irmão Alfred, elas são muito diferentes e em nenhum momento o primeiro emprega a expressão “era axial”, nem parece estar consciente dela. Na verdade, foi Eisenstadt (2017) que releu a teoria de Weber sob essa ótica e notou que, mesmo não se dando conta disso, a análise weberiana pode ser lida como uma teoria da era axial. Ocorre que as culturas investigadas por Weber são praticamente as mesmas dos grandes teóricos da era axial, e ele reconhece que todas elas significaram um ponto de ruptura no processo de evolução das religiões, ou seja, elas pertencem a uma era axial da humanidade.

Eisenstadt releu e reinterpretou as grandes monografias de Weber como uma teoria da era axial, mas discordou substancialmente da análise weberiana das religiões da China. Segundo ele, dada a escassez de fontes, Weber menosprezou o caráter ético tanto do Confucionismo quanto do Taoísmo, rebaixando-os a um tipo de religião cultural de afirmação do mundo. Nos termos de Eisenstadt, o que Weber captou, embora o tenha formulado de outra forma, era uma tensão entre o imanente e o transcendente, que, apesar de suas diferenças, é o ponto comum entre todas as culturas por ele analisadas. Essa tensão, ao contrário do que afirmava Weber, não estava ausente no mundo chinês. 

A contribuição mais decisiva de Eisenstadt para a teoria da era axial foi assinalar que a civilização ocidental-cristã havia sofrido um processo de transição interna que a levou a uma nova etapa da sua história. Como observou muito bem Schluchter (2017), Einsenstadt mostrou que a modernidade é uma segunda era axial. Devido ao processo de secularização, o mundo ocidental rompeu a dicotomia transcendente versus imanente e assentou as bases de um projeto cultural fundado na ideia de autonomia individual e autonomia política. Consequentemente, a ordem social passou a ser fruto exclusivo da construção humana. Essa reivindicação levou ao surgimento de diferentes programas políticos, dos quais os mais importantes foram o movimento liberal e o socialista/comunista, além das variantes nacionalistas, fascistas e nacional-socialista da configuração moderna. 

O segundo aspecto essencial da contribuição de Eisenstadt (2001) consiste na tese da multiplicidade da modernidade. Através dessa ideia, buscou ressaltar o fato de que a expansão do projeto europeu, a despeito da colonização e do imperialismo, não significou apenas um transplante das instituições ocidentais, pois desencadeou um processo de recriação contínua do moderno. A primeira onda de expansão da Europa para as Américas levou ao surgimento de novas formas de construção do projeto moderno, seja na versão anglo-americana, seja na versão ibero-americana. Analogamente, a segunda onda de expansão da modernidade conduziu suas instituições e seu projeto cultural ao encontro de outras civilizações axiais, produzindo espécies ainda mais diversificadas de reformulação dessa forma sociocultural. 

A partir dessas inovações, Eisenstadt conectou a teoria da era axial com a teoria da globalização. Por esse caminho, logrou ir além do aspecto histórico-formativo da civilização ocidental. Ao mesmo tempo, conseguiu romper o elo entre modernidade e Ocidente, mostrando que o moderno não implica a ocidentalização do mundo. Desse modo, ele foi além das teorias da modernização de fonte parsoniana que apostaram na homogeneização do mundo. Superando esses problemas, ele integrou a dimensão da diversidade e da diferença no modo de pensar o mundo atual. Essas inovações alargaram o horizonte da teoria da era axial e, com Eisenstadt, ela passou a ser mais do que uma teoria do passado para assumir a condição de uma teoria do presente. 

 

3.2 Era axial a favor do multiculturalismo

Entendendo que a era axial pode ser entendida para além do evolucionismo presente nas teorias de Robert Bellah, resta argumentar ainda em que medida as teses sobre o conceito podem contribuir para uma perspectiva multicultural. Para tanto, devemos examinar as considerações do egiptólogo Jan Assmann e, depois, demonstrar como Jürgen Habermas (2019) retoma o legado da era axial, a fim de corrigir aspectos de sua teoria e apresentar uma interpretação descentrada da modernidade globalizada.

 

a) Jan Assmann: a era axial como mito fundador

Em 2018, o egiptólogo alemão Jan Assmann publica o seu Era axial: uma arqueologia da modernidade [Achsenzeit: eine Archeologie der Moderne], investigando as raízes do conceito, a partir de Anquetil Duperron, passando por Alfred Weber, Karl Jaspers, Eric Voegelin, até chegar aos autores atuais. As teses de Assmann, via de regra, concebem o legado jasperiano da era axial como uma espécie de passado normativo de uma humanidade globalizada. Jaspers, na visão de Assmann, alargou o horizonte espacial para além do clássico ou, ainda, afirma que o clássico é globalizado por Jaspers. Assmann entende que a tese da era axial é, entre outras coisas, uma tentativa de resposta de Jaspers ao discurso nacionalista alemão contemporâneo do autor. Trata-se de uma ferramenta intelectual contra os anseios totalitários e anti-humanistas de seu tempo (Assmann, 2018, p.15).

O egiptólogo transforma a teoria de Jaspers e sua lista de critérios[10] para a composição da era axial em um instrumento analítico, de sorte a rever a situação das culturas axiais e não axiais. Avalia que a lista formulada é basilar, porque os autores que se seguem adotaram os mesmos critérios, ampliando-a. Apesar da centralidade dos critérios, Assmann argumenta que não existem culturas totalmente axiais ou totalmente fora do eixo axial e que, ao utilizar os critérios estabelecidos por Jaspers, novos aspectos sobre as diferentes culturas podem ser revelados. Ao final, o mais importante nessa investigação não será contar com a inclusão ou a exclusão da cultura no grupo axial, porém, antes, desvelar aspectos importantes das culturas analisadas, perguntando-se o motivo pelo qual não correspondem aos critérios. Enquanto civilização não axial, Assmann se refere aqui ao próprio Egito, o qual fica de fora do grupo elencado por Jaspers, não somente pelo critério temporal, mas também pelo elemento do politeísmo, em contraposição ao monoteísmo. O monoteísmo é percebido como uma ruptura com diversos elementos, como o paganismo, culto à imagem, magia, sacrifício humano, da mesma forma como a filosofia se entende como ruptura do mito. Nesse sentido, há uma convergência entre monoteísmo e metafísica, surgidos na era axial, que, por sua vez, coincide com a irrupção do transcendente, elemento que já havia sido assinalado por Einsenstadt. 

Como ilustra o próprio título da obra, Assmann tenta pensar a modernidade levando em conta a ideia de era axial e seu valor heurístico. O autor assevera que Jaspers, de fato, faz um tour de force em direção a um cosmopolitismo intelectual e alastra as fronteiras históricas para além do Ocidente. Por outro lado, reconhece que a tese da era axial traz selada em si mesma a marca de um ocidental, já que Jaspers segue compreendendo a história a partir de um início e um fim, tal qual faz o cristianismo. Para além disso, ressalta que os dois eixos que parecem sustentar a era axial, para além da própria ideia de sincronicidade, são o monoteísmo e a metafísica, duas marcas ocidentais. 

Ao lançar luz sobre as filosofias da história, Assmann entende a teoria de Jaspers como uma espécie de grande e potente mito fundador da modernidade científica ocidental.  A teoria de Jaspers é mítica e não histórico-filosófica ou científica, na medida em que assume por certo os pressupostos dados, sem exame e questionamento, sem apreciação crítica. Mantém, conforme assinalado pelo próprio autor, valor analítico, mas é problemática, sob o ponto de vista da reconstrução histórica e dos elementos que a compõem[11]. Na perspectiva de Assmann, é preciso estar atento também às civilizações pré-axiais e pós-axiais. Segundo ele, não foi a era axial em si, como é descrita por Jaspers, que se tornou clássica e imorredoura para a história posterior, tanto do Ocidente quanto do Oriente, mas principalmente a literatura secundária que a classificou. Assim, não se trata aqui dos nomes em si, como Buda, Confúcio, os profetas e os filósofos gregos, mas o que foi feito dessa literatura. A escrita secundária, a exegese e a sua canonização a transformaram em clássica, tendo-nos sido legada como memória cultural.

Essa transformação da era axial em memória cultural, através de sua apreciação exegética e investigativa, parece ser uma clara tentativa, da parte de Assmann, de salvar o conceito jasperiano de seu obscurantismo mítico. Ao operar dessa maneira, o autor resguarda o conceito de Jaspers, ao mesmo tempo que confere peso às civilizações pré-axiais, como é justamente o caso do Egito e da Mesopotâmia. Nessa linha, os parâmetros normativos são resguardados e o horizonte da memória cultural é alargado a níveis cosmopolitas. Assmann é, sobretudo, um crítico do modo como as filosofias da história moderna fazem uso instrumental do passado em nome da própria legitimidade moderna, principalmente levando em conta a ideia de progresso. De acordo com o autor, a ancoragem na normatividade de um passado seguro possibilita graus de liberdade na formação do futuro. Para suprir a ideia de um passado normativo seguro, a tese de Jaspers é lida por Assmann a partir de um ponto de vista analítico e validada sob a égide da memória cultural. 

 

b. Jürgen Habermas: a era axial como processo de aprendizado 

Jürgen Habermas (2019), em sua tentativa de realizar uma genealogia do pensamento ocidental, que é pós-metafísico, mostra-se consciente de que, para entender corretamente sua pretensão universalista, deve-se adotar um ponto de vista desprovido de qualquer conotação eurocêntrica. Essa é a razão pela qual ele opta por integrar a teoria da era axial em seu modelo teórico. Ao descrever como ele realiza tal absorção teórica, queremos demonstrar como o conceito de era axial se revela apto a preencher as exigências de uma perspectiva cosmopolita e global. 

Segundo Habermas, para entender a realidade global na qual vivemos, destacam-se três perspectivas. A primeira é funcionalista (Niklas Luhmann e John W. Meyer) e defende a existência de uma sociedade mundial. Habermas critica esse ponto de vista, por pensar que se trata de uma visão que privilegia os sistemas sociais (mercado e Estado), em detrimento da cultura, já que as estruturas sistêmicas levariam a um processo de homogeneização mundial das representações simbólicas. A segunda perspectiva, ao contrário da anterior, é radicalmente culturalista e se assenta sobre o conceito de civilização, aqui concebida como totalidades isoladas que convivem lado a lado (Huntington, 1999). 

Para superar essa oposição, Habermas defende um terceiro ponto de vista, o qual procura demonstrar, a partir da dialética entre tradição e modernidade, como cada cultura, com base em seu próprio pano de fundo, recebe e articula sua própria versão do moderno. Fica claro, portanto, que ele acaba por assumir o ponto de vista da teoria das modernidades múltiplas de Eisenstadt e Johan Arnason (2003). Em seguida, o autor se pergunta, através de um experimento mental, quais seriam as condições normativas para que essas diferentes configurações do moderno possam dialogar entre si. O pensamento pós-metafísico ocidental, argumenta ele, só pode realizar sua pretensão universal, se assumir sua condição particular e falível no contexto das trocas interculturais de um multiculturalismo global (Habermas, 2019, p. 111). No entanto, dado o objetivo deste artigo, preferimos realçar os impactos que a recepção da teoria das modernidades múltiplas possui, não tanto sobre o plano prescritivo-normativo de seu trabalho, mas principalmente sobre o plano descritivo-empírico de sua teoria sociológica.

Sabemos que, desde a década de 1970, a teoria de Habermas é marcada pelo esforço por desenvolver uma teoria da evolução social capaz de superar as aporias do materialismo histórico (Habermas, 2014). Esse esforço atinge seu primeiro resultado em sua célebre Teoria da ação comunicativa (Habermas, 2012), obra na qual ele entende que o processo de mudança social se realiza de duas formas interligadas: como reprodução material, através dos meios sistêmicos do dinheiro e do poder, e como reprodução simbólica do mundo da vida (cultura, sociedade e personalidade). Em função da diferenciação entre mundo da vida e sistema, Habermas concebe a mudança social como um lento processo pelo qual as esferas sistêmicas do Estado e do Mercado se desacoplam do mundo da vida e, retroativamente, acabam por solapar sua racionalidade comunicativa, impondo-lhe sua lógica de funcionamento (colonização do mundo da vida). 

No entanto, Habermas reconhece que, ao longo dessa empreitada, não aprofundou suficientemente a correlação entre evolução social e desenvolvimento das imagens do mundo. Ele admite ainda que sua teoria da evolução social se ocupou apenas dos processos de adaptação [Anpassung] social, mas ignorou os processos de aprendizado [Lernprozesse] que a acompanham, tanto na sua dimensão cognitiva [sozialkognitve] quanto na sua dimensão moral [moralisches Lernen] (Habermas, 2019, p. 139). A incorporação do conceito de era axial seria, assim, um recurso para superar essas lacunas. Em suas próprias palavras: “[...] com a abordagem teórica civilizacional podemos corrigir certo estreitamento da teoria da ação comunicativa” (Habermas, 2019, p. 118). Habermas é muito claro, quanto ao esforço de incorporar o conceito de era axial justamente para corrigir sua anterior perspectiva evolucionista.

Isso leva Habermas a aprofundar sua compreensão do processo de transição das sociedades tribais do neolítico, bem como das sociedades organizadas estatalmente com cultura escrita para o próximo estágio dos grandes impérios do mundo antigo. É justamente para pensar essa transição que ele incorpora as reflexões de Robert Bellah sobre a importância do mito e do rito, enquanto princípios que articulam as sociedades tribais e as sociedades organizadas estatalmente. Dessa maneira, em exercício que qualificou de provisório, ele apresenta uma análise comparativa da era axial no monoteísmo judaico, na doutrina e na práxis de Buda, no Confucionismo e no Taoísmo e, por fim, na filosofia grega clássica (dos pré-socráticos a Platão). 

Não há como, nos limites deste texto, descrever em detalhes como Habermas caracteriza cada uma dessas esferas culturais. O mais importante é enfatizar que, para ele, a era axial representa “[...] um impulso cognitivo na história espiritual da humanidade” (Habermas, 2019, p. 177). Essa mudança cognitiva, por sua vez, conduziu a uma moralização do sagrado (Habermas, 2019, p. 309) e, consequentemente, significa um passo além da visão mítico-ritual das sociedades pregressas. Essa dupla transição (cognitiva e moral) reflete-se no plano da cultura (na medida em que permite uma imagem transcendente de mundo), da sociedade (visto que organiza a vida religiosa em torno de escritos sagrados e de um culto) e no plano da personalidade (porque estimula a individualização da comunicação religiosa). Em feliz síntese, Habermas (2019, p. 464, grifo do autor) realça:

Com o conceito de Deus, o judaísmo cria um ponto de referência transcendente a partir do qual o mundo da natureza e da história como um todo podem ser objetivados. As concepções cosmológicas do budismo (com o polo profundo e imóvel da realidade que é o Nirvana), do confucionismo e do budismo (com o Tao que mantém tudo em equilíbrio) e do platonismo (com o Ser eterno), desenvolveram uma terminologia equivalente de caminhos intelectuais de transcendência. Disso decorre a estrutura dualista das imagens de mundo da Era Axial que diferenciam o mundo enquanto totalidade dos eventos intramundanos que nele ocorrem.

 

Há quem julgue (Rees, 2017) que a revisão teórica de Habermas é incompatível com sua tese da sociedade pós-secular, na qual defende o diálogo entre cidadãos leigos e crentes. Discordamos desse ponto de vista, por entender que, ao incorporar o conceito de era axial, Habermas supera a visão ainda linear e evolucionista da primeira versão de sua teoria da ação comunicativa. Em sua obra mais recente, Habermas (2019) consegue demonstrar que processos de aprendizado sociocultural não são exclusivos do Ocidente e ocorrem de diferentes formas, ao longo de distintas civilizações. Mesmo assim, cabe lembrar que a última obra de Habermas trata da história da filosofia e, por essa razão, fica a dever um maior aprofundamento das condições sociais de nossa era global. Com efeito, ele aplica o conceito de era axial às civilizações históricas, porém, pouco esclarece como a versão judaica da era axial desembocou no moderno mundo secularizado. Nesse ponto, sua teoria ficou aquém da reflexão realizada por Eisenstadt, que conseguiu ir além do aspecto retrospectivo e apresentou o mundo moderno como um novo momento axial. Ainda assim, ele demonstra que, longe de autocentrado, o conceito de era axial permite uma leitura multicultural dos processos histórico-sociais que perpassam a humanidade. 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conceito de era axial já possui uma longa história e, para destacar sua atualidade, propusemos uma recuperação de sua trajetória intelectual. Foi dada atenção à fase de gestação do conceito, em regra, simplificada ou mesmo ignorada pela maioria das exposições, com exceção do trabalho de referência de Jan Assmann, em Era axial: uma arqueologia da modernidade [Achsenzeit: eine Archeologie der Moderne]. Embora nessa fase o conceito ainda não fosse empregado explicitamente, já estava presente a tese da simultaneidade de trajetórias, que é seu elemento central. Ao pesquisarem a língua e a cultura de outras civilizações, os estudiosos do período apontam criticamente para alguns elementos, como a questão do exclusivismo e preponderância do Ocidente, enfatizando a similaridade e proximidade das religiões e outras formas de pensamento (literatura, filosofia, teologia), em determinado momento da história.

Não obstante, mesmo que nessa fase já estejam presentes praticamente todas as premissas que vamos encontrar, nos pensadores subsequentes, é com a obra de Karl Jaspers, em 1949, que o conceito adquire, de fato, um novo estatuto e se torna um instrumento de compreensão filosófica das múltiplas formas de civilização. Foi ele que, nos marcos de sua filosofia da história de tipo existencial, entendeu a era axial como um salto qualitativo simultâneo, dado lateralmente nas civilizações axiais, o qual levou a humanidade a um novo patamar na história do ser. 

Nas etapas em que o conceito de era axial foi empregado em sentido predominantemente histórico e filosófico, havia sempre uma maior ênfase na simultaneidade e na igualdade. Mas, com seu deslocamento para o campo da sociologia, é a diversidade que ganha relevo. Nesse âmbito, ele tem sido utilizado como um importante instrumento de compreensão dos elementos de unidade e diversidade da era da globalização. Mesmo que se possa alegar, criticamente, como faz Assmann, que ele está impregnado dos mitos fundadores do Ocidente, e mesmo que, pelo menos na versão de Robert Bellah, ele ainda oculte certos traços evolucionistas, a apropriação que dele fazem Eisenstadt e Habermas demonstra que, ao romper com a identificação entre modernidade e Ocidente, o conceito de era axial permite uma ampliação do olhar e a compreensão da diversidade de culturas que, longe de superiores ou inferiores, são expressão da riqueza e da multiplicidade do humano. Diante da necessidade de que nosso olhar para o mundo atual seja cada vez mais amplo e plural, transcendendo o enraizamento intelectual em apenas uma região do mundo (a qual é tomada como parâmetro exemplar de comparação), o conceito de era axial representa uma importante possibilidade de pensar o nosso tempo, de forma cosmopolita e global. 

Entretanto, importa ressaltar que, ao destacar os deslocamentos e mudanças epistemológicas do conceito (que não devem ser entendidos como rupturas), não podemos perder a sensibilidade para o elo entre cada uma de suas fases de discussão. Isso não implica postular uma completa harmonia entre os autores aqui tratados. Com efeito, o que mantém a diversidade de autores focalizados no artigo, em diálogo entre si, é o interesse comum sobre o fenômeno temporal-espacial da axialidade. Por axialidade entende-se, grosso modo, aquilo que o próprio conceito jasperiano indica. O termo em alemão Achsenzeit, traduzido ao inglês como axial age e, por sua vez, ao português, como era axial ou, eventualmente, como tempo-eixo, indica um eixo temporal comum que perpassa diferentes civilizações, com características comuns nos diferentes espaços geográficos, o qual, de fato, forma uma espécie de substrato que as une. Tais características são constituídas por elementos permanentes e comuns presentes em cada civilização axial, mas que não anulam suas diferenças específicas. É esse elemento de axialidade que funda as grandes civilizações, sejam aquelas do passado, sejam aquelas do presente, quer contempladas em sua unidade, quer vistas em sua diversidade.

 

The Concept of “Axial Age”: Origins, Development, and Current Status

Abstract: This article traces the historical roots and origins of the concept of the “axial age” until it reaches its moment of consolidation, with the book The Origin and Goal of History, originally published in 1949, by Karl Jaspers. In addition, some contemporary authors are analyzed who, based on a critical examination of the concept, propose to update it. By analyzing the epistemological characteristics of each of these stages, we can show which elements continue and at the same time which elements change in the understanding of the axial age. While in the first two phases (historical and philosophical), there was a greater emphasis on the simultaneity and equality between civilizations, its shift to the field of sociology (phase 3) implied a greater emphasis on the diversity of civilizations. We also point out that in the current phase, unlike the previous stages, the concept shifts from the analysis of pre-modern civilizations to the analysis of modern civilization as a type of axial era. Despite these shifts and changes, we understand that there is a common basis present in all phases of the discussion. In addition, the research concludes that, despite certain evolutionist readings, criticized here, the concept of the axial age, whether used in a historical-philosophical or sociological key, contains cosmopolitan and plural assumptions and, as such, continues to be an important analytical resource for understanding the complexity and cultural diversity of past and present civilizations.

Key-words: Axial age. Karl Jaspers. Multiple Modernities. Multiculturalism. Cosmopolitanism.

 

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Submissão: 22/06/2024 – Decisão: 26/08/2024

Revisão: 10/09/2024 – Publicação: 15/10/2024



[1] Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC – Brasil. Bolsista de produtividade CNPq nível 1D, Brasília, DF – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3281-7045. E-mail: carlos.sell@ufsc.br.

[2] Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3408-0622. E-mail: daianeeccel3@gmail.com.

[3]  As traduções das citações são de inteira responsabilidade dos autores deste artigo. As referências que estiverem postas como KJG se referem aos volumes da Karl Jaspers Gesamtausgabe. O sistema de citação é sugerido pela própria coleção e é padronizado. Os volumes são indicados depois das siglas.

[4] Como referência, nessa tradição, encontra-se Rudolf Otto e seu conhecido livro O sagrado.

[5] Snell (2009) ignora o que Jaspers ressalta, a saber, a simultaneidade do que ele nomeia como era axial, em alguns pontos do mundo, estendendo sua visão para muito além da Grécia. No entanto, Snell partilha a ideia de Jaspers a respeito da descoberta consciente da alma – elemento fundamental para a tese da era axial –, sobretudo sob o ponto de vista de uma filosofia da história com cunho existencial. Argumento parecido volta com o opus magnum de Eric Voegelin, Ordem e História, publicado em cinco volumes, na década de cinquenta, já com forte influência de Karl Jaspers e Arnold Toynbee.

[6] Werner Jaeger (2003), em sua Paideia: a formação do homem grego, reivindica também a ideia de uma arché, ao explicar o motivo pelo qual a civilização ocidental tem rememorado suas raízes voltando aos gregos. Importa, no entanto, afirmar que a obra de Jaeger, contemporânea do livro de Jaspers, ilustra claramente a tendência de reafirmar a tese de uma exclusividade grega com relação aos povos do Oriente. Jaspers, ao contrário, defende a simultaneidade de manifestações culturais, na China, Índia e Ocidente.

[7] Argumenta Arendt (2003, p. 80): “A pertinência dessas considerações a favor de uma fundamentação filosófica da unidade da humanidade é evidente: a ‘comunicação ilimitada’, que, ao mesmo tempo, significa a fé na compreensibilidade de todas as verdades e a boa vontade em revelar e ouvir como condição primária de todo intercurso humano, é uma das ideias, se não a ideia central, da filosofia de Jaspers. O ponto aqui é que, pela primeira vez, a comunicação não é concebida como ‘expressão’ de pensamentos, e, portanto, secundária em relação ao próprio pensamento. A própria verdade é comunicativa, ela desaparece e não pode ser concebida fora da comunicação; no âmbito ‘existencial’, verdade e comunicação são a mesma coisa. ‘A verdade é o que nos liga’. É apenas na comunicação — entre contemporâneos e também entre vivos e mortos — que a verdade se revela”.

[8] Contra a tese da era axial, objeta-se que: i) aquilo que há de comum entre os fatos que compõem o paralelismo histórico aventado por Jaspers é de caráter apenas aparente. A demais diferenças, como língua, raça, estrutura política, são tão evidentes, que o comum é apenas uma casualidade; ii) a era axial não é um fato dado, mas um juízo de valor e iii) o paralelismo histórico não tem caráter histórico, mas repousa no comércio espiritual e que não pertence a uma história comum (KJG I/10, 2017, p. 23-25).

[9] Aleida Assmann (2018, p. 39) reitera a importância das situações-limites, quando afirma: “[...] a era axial tem a mesma importância para história da humanidade assim como as situações-limites têm para a vida individual”.

[10] São os critérios elencados e comentados por Assman (2018): 1) O homem toma consciência do todo, do seu lugar no todo e de seus próprios limites; 2) A consciência torna-se ainda mais consciente. O pensar dirige-se ao próprio pensamento; 3) Questionamento das opiniões, costumes e condições que são inconscientemente válidas. O implícito torna-se explícito e rejeitado; 4) Passagem do mito para o logos e rejeição do mito; 5) Espiritualização; 6) Nascimento da filosofia; 7) Ascensão do pensamento especulativo na direção do próprio pensamento ele mesmo (pensamento do Um); 8) Anseio por libertação e redenção; 9) A história torna-se objeto de reflexão.

[11] A posição de Assmann com relação a isso já estava clara, em seu artigo de 2012, “Cultural memory and the mith of the Axial Age”, presente no livro que é referência para o tema, organizado por Robert N. Bellah e Hans Joas, The Axial Age and its consequences.