Comentário a “Epistemologia e autonomia no conceito de ideia musical de E. Hanslick”: a autonomia da música em Hanslick”

 

Lia Tomás[1]

Referência do artigo comentado: Nachmanowicz, Ricardo Miranda. Epistemologia e autonomia no conceito de ideia musical de E. Hanslick. Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400166, 2024.

 

Eduard Hanslick (1825-1904), o mais conhecido e influente crítico musical do século XIX, ao recolocar o problema da autonomia da música a partir da publicação do livro Do belo musical (1854), põe em xeque parte dos alicerces historicamente consolidados sobre os vários usos e funções da música, notadamente aqueles destacados por C. Dahlhaus (1999, p. 11) e que advêm da definição de música dada por Platão na República (398d): “[...] a melodia se compõe de três elementos: as palavras, a harmonia e o ritmo”.

Entretanto, convém recordar que, a despeito de certa unanimidade sobre tal definição até meados do séc. XVII, documentos mais antigos, como o livro Adversus Mathematicos de Sexto Empírico (160-210 d.C.), já apontam problemas que se dirigem a tal conceito, mesmo que os fundamentos apresentados pelo autor tenham outros fins. No citado livro, Sexto Empírico procura refutar ideias presentes nos seis campos do conhecimento que compunham os estudos cíclicos, empregando uma linha de raciocínio que se associa à Escola de Epicuro e à de Pirro. A metodologia adotada é fazer o questionamento de tudo, ou ainda, procurar demonstrar que argumentos de iguais peso e força, mas em campos opostos, podem levar a uma suspensão de juízo, vista a indecidibilidade sobre determinado tema (Pereira, 1996, p. 117-118).

Após expor os argumentos mais usuais sobre a música – o refreio das afecções da alma por sua persuasividade encantatória, seu estreito parentesco com a filosofia, sua atuação direta na psique humana e decorrente mudança de caráter, a incitação de diversos estados anímicos, o papel do músico como condutor do caráter das mulheres, entre outros – Sexto Empírico inicia a desconstrução de tais ideias, como veremos a seguir:

[6.19] Tais são os argumentos a favor da música. Mas, diz-se contra essas ideias, primeiro, que não é prontamente concedido que, por natureza, algumas melodias excitam           a alma e outra tranquilizam. Com efeito, tal coisa é contrária à nossa opinião. Pois, tal como o estrondo do trovão [...] não significa a epifania de algum deus [...], [6.20] visto que outros corpos colidindo uns nos outros igualmente produzem um estrondo similar [...], do mesmo modo, algumas melodias musicais não são naturalmente de um tipo e outras de outro, mas essa opinião é acrescentada por nós. Portanto, a mesma melodia é excitante para os cavalos, mas não o é de modo algum para os homens quando eles a ouvem nos teatros – e para os cavalos talvez não seja excitante, mas perturbadora. [6.21] Em segundo lugar, ainda que a melodia da música seja desse modo, também não foi devido a isso que a música se estabeleceu como útil para a vida. Com efeito, não é porque tem o poder de regular que a música refreia o pensamento, mas porque tem o poder de distrair. [...] [6.22] Então, do mesmo modo que o sono ou o vinho não dissolve a tristeza, mas a sobrepassa, o torpor produzindo enfraquecimento e esquecimento, a melodia desse tipo não tranquiliza a alma entristecida ou o pensamento agitado pela raiva, mas, se faz algo, os distrai (Roeder [Sexto Empírico], 2014, p.  93-95).

 

Mesmo com variantes de argumentação, o foco central dos ataques de Sexto Empírico destina-se à teoria do éthos, ideia que remonta a Damon (V a.C.) e preconiza que a música, ou os diferentes tipos de música, afetam de modo direto o caráter e o comportamento humano. Essa característica, segundo o autor, não pertence à natureza da música, não sendo algo intrínseco a ela, de modo irrefutável, e, portanto, quaisquer atribuições sobre a música que perpassem esse viés são passíveis de dúvidas. Como exemplo, é da natureza do fogo amornar, queimar, ferver, incendiar, ou seja, o aumento da temperatura de um objeto, quando colocado em contato com o fogo, é algo que se pode graduar, mas não se pode impedir que o fogo haja de acordo com sua natureza, a qual é aquecer. No caso da música, não é possível estabelecer uma relação causal entre a escuta e direta atuação na psique, visto ela não ser uma espécie de fármaco destinado a algum fim. Sua atuação (ou não) depende também de fatores externos, do contexto onde está sendo executada, situação social, finalidade etc., de sorte que seus resultados, mesmo verificáveis, apresentam imprecisões.

            Ao comparar a atuação de uma mesma música para os cavalos e para os homens, assim como sua capacidade de alterar seu objetivo (no caso, a distração), Sexto Empírico assinala não apenas a falibilidade do aspecto causal – efeito este que deveria ser idêntico, como no caso do fogo –, como também aponta, embora de modo incipiente, para o conjunto de problemas centrais que, muitos séculos depois, levou E. Hanslick à escritura de seu livro: A música significa o quê? É da sua natureza significar? O fato de um ouvinte associar a música a algum fato, sentimentos ou correlatos, depende de algo que é intrínseco à música ou ao repertório de tal ouvinte? Essa associação seria causal ou relativa? O fato de uma música ser instrumental e autorreferente significa que ela não possa ser expressiva? É necessário que a música instrumental tenha de significar ou mesmo representar algo?

Mesmo que Hanslick não tenha dado respostas definitivas sobre as questões colocadas acima, a importância de Do belo musical se justifica, tanto pela constância de estudos sobre a obra como pela atualidade dos problemas ali abordados. Eis o nosso comentário ao texto de Nachmanowicz (2024).

 

Referências

DAHLHAUS, C. La idea de música absoluta. Trad. de R. Barce Benito. Barcelona: Idea Books, 1999.

Nachmanowicz, R. M. Epistemologia e autonomia no conceito de ideia musical de E. Hanslick. Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400166, 2024.

PEREIRA, A. R. Polémica acerca da Mousiké no Adversus Musicos de Sexto Empírico. Hvmanitas,v. XLVIII, p. 117-139, 1996. Disponível em: https://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/humanitas48/08_Rodeia_Pereira.pdf. Acesso em: 10 mar. 2024.

ROEDER, S. O Contra os Músicos de Sexto Empírico: introdução, tradução e comentários. 2014. Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014.

 

Recebido: 01/06/2024 – Aprovado: 08/06/2024 – Publicado: 25/06/2024



[1] Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) - Câmpus de São Paulo, São Paulo, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0747-4201. E-mail: lia.tomas@unesp.br.