Comentário a “O Radicalismo de direita e a Personalidade autoritária em Theodor Adorno”

 

Francisco Fianco[1]

 

Referência do artigo comentado: Bordin, Reginaldo Aliçandro; DIAS, José Francisco de Assis. O radicalismo de direita e a personalidade autoritária em Theodor Adorno. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 3, e02400195, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15563.

 

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “tal como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma recordação como ela relampeja no momento de um perigo. [...] O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que tampouco os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer (Walter Benjamin, 2012, p. 243-244).

 

Bordin e Dias (2024) trazem muito oportunamente luz a elementos desse novo radicalismo que estavam presentes já no período no qual se dedicou sobre ele o filósofo frankfurtiano e que, para nosso espanto e desespero, ainda se fazem notar no ressurgimento do radicalismo fascista deste início de milênio. Talvez o elemento mais importante destacado por Adorno, nesses textos pós-guerra, seja o fato, muito bem recuperado no artigo em questão, de que esse novo radicalismo não é uma ruptura, qualitativamente diferenciada do fascismo original das décadas de 20 e 30 do século passado, e sim o acréscimo, a essa postura tradicional, de elementos da personalidade autoritária, as quais se fazem subjetivamente presentes, através da cultura de massa que grassou a partir de meados do século passado e que, hodiernamente, ganha parâmetros inauditos, pelas tecnologias de comunicação interativa, obrigando-nos todos a pensar a atualização não apenas dos meios de comunicação e seu papel de construção social, como também da facilidade por meio da qual discursos de ódio e pulsões anticivilizatórias são inescrupulosamente proferidos e ganham eco na mentalidade popular.

O que nos propomos considerar aqui, enquanto contribuição e comentário, é a questão em termos de atualização e ponderação contemporânea do diagnóstico feito por Adorno, de forma a tornar mais explícita, na nossa política recente, os exemplos nefastos daqueles elementos já identificados por Adorno, no século passado, o que nos permite – com o perdão da expressão – dar nome ao gado. Um segundo momento seria o de tecer brevemente um diálogo psicanalítico mais específico com a Psicologia das Massas e a Análise do Eu, realçando essa aproximação que o artigo em questão traça entre Teoria Crítica e Psicanálise, já presente nos textos de Adorno utilizados por Bordin e Dias (2024).

Tal abordagem parece pertinente, uma vez que, por mais que nos custe e desagrade reconhecer, talvez a revivescência das tendências totalitárias de forma cíclica dentro de nosso sistema de capitalismo tardio não seja uma anomalia, todavia, um elemento intrínseco ao seio da cultura e mesmo individualmente arraigado, pelo menos dentro da subjetividade moderna e pós-iluminista, como sugerem de alguma maneira Adorno e Horkheimer, ao abordarem a moralidade e o sadomasoquismo, no capítulo “Juliette ou Esclarecimento e Moral”, da célebre obra sobre a Dialética do Esclarecimento (Adorno; Horkheimer, 2010). Remetemo-nos aqui a um trecho do próprio artigo sobre o qual comentamos, para corroborar essa possibilidade de interpretação:

Adorno vinculou essa conservação à conexão entre fascismo e capitalismo, algo intrínseco ao processo social e histórico da modernidade e não estranho a ela. Para isso, Adorno entendeu que o fascismo não foi um mero desastre histórico, um acidente de percurso, mas está entranhado nos fenômenos culturais e políticos expressos pelo capitalismo. Ele não surgiu do acaso, diagnosticou Horkheimer (1980, p. 116): o fascismo é a verdade da sociedade moderna, que foi alcançada desde o início pela teoria (Bordin; Dias, 2024, p. 2).

 

Já em seu texto sobre Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista (Adorno, 2015), desvelam-se as relações entre constituição psíquica individual e organização social coletiva, relembrando o texto sobre as massas de Freud. “Não é exagero se dissermos que Freud, apesar de seu pouco interesse pela dimensão política do problema, claramente antecipou o surgimento e a natureza dos movimentos de massa fascistas em categorias puramente psicológicas” (Adorno, 2015, p. 156). Mas isso não sugere, evidentemente, uma particularização do problema enquanto uma patologia exclusiva de um indivíduo que não tenha relação ou como causa as questões econômicas e culturais, seja da depressão econômica da República de Weimar, seja da barbárie da uberização no neoliberalismo nosso de cada dia. “De acordo com Freud, o problema da psicologia de massas está intimamente relacionado ao novo tipo de sofrimento psicológico, bastante característico da era que, por razões socioeconômicas, testemunha o declínio do indivíduo e seu consequente enfraquecimento” (Adorno, 2015, p. 157).

Assim, não podemos separar claramente o subjetivo do social na compreensão de mecanismos tão complexos como a sociedade contemporânea e devemos incluir ainda, nesta reflexão, os mecanismos através dos quais os indivíduos se convertem em “[...] meras encruzilhadas das tendências do universal” (Adorno; Horkheimer, 2010, p. 128), ou seja, a forma através da qual os meios de comunicação de massa se convertem em mistificação e doutrinação coletiva.

Aqui, gostaríamos de destacar que talvez essa integração dos novos elementos do radicalismo de direita em oposição a seus esquemas tradicionais, mais concretos e militarizados, conforme é apontado por Adorno, possa ter um um paralelo com a questão da dominação social e subjetiva desempenhada por mecanismos sutis que os frankfurtianos percebem no seio da sociedade americana e que os choca tanto, a ponto de se verem impelidos a elaborar o capítulo sobre “O Esclarecimento como Mistificação das Massas”, talvez o mais célebre dos capítulos da já citada Dialética do Esclarecimento, o qual não constava no rascunho original da obra, escrito ainda antes do exílio (Duarte, 2003).

O radicalismo de direita pode ser entendido aqui, portanto, como uma técnica de psicologia de massa, amplamente utilizada pela indústria da cultura e da publicidade, centrada em um modelo de submissão à autoridade, a uma personalidade carismática de representação paterna. Não implica argumentação racional e sim comoção de pulsões inconscientes cooptadas pela propaganda dos grandes meios de comunicação de massa. Esse esvaziamento cognitivo direciona os afetos da massa ao líder de forma acrítica, em um mecanismo bastante semelhante ao de adoração religiosa:

A ênfase em A Personalidade Autoritária, entretanto, recai menos na diagnose dos aspectos patológicos da civilização ocidental do que na explicação dos mecanismos psicológicos que levam os indivíduos, acometidos da mencionada fraqueza de ego, a agredirem de modo impiedoso os mais fracos e se submeteram incondicionalmente aos mais fortes (principal característica dos mais “graduados” na escala F) (Duarte, 2003, p. 84).

 

Para ilustrar esse ponto da relação do fascismo com a religião, o artigo em pauta lembra o exemplo dos discursos de Martin Luther Thomas, analisados por Adorno, que não falava abertamente, como nos discursos nazistas, da superioridade da raça branca ou da eliminação das minorias, mas usava metáforas do Novo Testamento e disfarçava sua retórica totalitária com parábolas religiosas. Por isso, talvez não nos devesse causar tanto estranhamento o fenômeno que vemos atualmente – o da assimilação de pessoas com tendências religiosas fervorosas, mesmo extremas, a uma ideologia política igualmente extremista, como na assimilação de certas correntes do neopentecostalismo brasileiro ao necrofascismo tupiniquim bolsonarista.

O pensamento fascista como tendência de eliminação das antinomias, da substituição do conflito de classes, o qual é interno, pelo conflito com um outro imaginário, externo e projetivo, é a união do estado enquanto instância política com os burgueses como classe econômica hegemônica, que vemos de forma tão corriqueira e corrupta em nossos noticiários políticos. Para que essa projeção funcione, é necessária a dimensão do outro, do de fora, que recebe aquela agressividade que não pode ser direcionada nem ao líder nem aos irmãos de ideologia, conforme explica Freud:

Nas aversões e repulsas que emergem explicitamente contra estranhos que estão próximos, podemos reconhecer a expressão de um amor por si próprio, de um narcisismo que anseia por sua autoafirmação [...]. Não sabemos por que uma sensibilidade tão grande deveria ser lançada justamente sobre esses detalhes de diferenciação; mas é inegável que nessa conduta dos seres humanos revela-se uma prontidão para o ódio, uma agressividade cuja origem é desconhecida e à qual gostaríamos de atribuir um caráter elementar (Freud, 2020b, p. 175).

 

Isso se dá, por exemplo, entre os pequenos burgueses, a classe média, a qual pensa que é rica (Souza, 2019) e, embora ameaçada pelas inovações tecnológicas e pelas grandes redes de varejo, prefere imaginar como grande inimigo o fantasma do comunismo, ou as fantasias perversas do pânico moral e das teorias da conspiração. Ou, por outro lado, na oposição que a extrema direita faz entre setores agrários conservadores defensores da família e das tradições e as cidades progressistas que querem impor agendas de gênero e degeneração dos costumes:

Por outro lado, Adorno (2020a, p. 52) afirma que, de modo psicanalítico, existe um sintoma sociopolítico importante e característico, pois esses movimentos querem a catástrofe, nutrem-se com fantasias de fim de mundo. E eles se convertem em apelo organizativo da massa desejosa de estabelecer compromissos políticos. O êxito desse movimento, afirma Adorno (2020a, p. 53), é o de atrair as pessoas por meio do fingimento de que são os garantidores do futuro (Bordin; Dias, 2024, p. 6).

 

Essa agressividade não precisa se desenvolver apenas contra outros grupos. Se concebida como pulsão de morte, ela se presentifica através dessas fantasias de fim de mundo, de arrebatamento, de que o mundo está errado e precisa ser corrigido, por meio de algum acontecimento catastrófico, muitas vezes com inspiração na escatologia religiosa.

Assim, podemos entender o radicalismo de direita e a personalidade autoritária como as faces de Jano de uma espécie de síndrome psicopatológica, de anti-intelectualismo, de descrédito de qualquer tipo de teoria que promova sensibilização e autoconhecimento. Nesse sentido, o Fascismo pode ser compreendido como uma tendência destrutiva, na forma de uma revolta contra a imagem paterna, um caminho de descarga das potências agressivas em revolta contra a própria civilização como um todo. Por isso, temos, por um lado, um desejo fantasioso pela guerra e pelo caos e, por outro, um gozo no ataque a qualquer elemento que represente ordem social, cultura e sociabilidade, como vimos tanto na invasão ao Capitólio nos Estados Unidos quanto em nossa versão tropical do ataque à Praça dos Três Poderes, em Brasília.

Alguns textos mais contemporâneos sobre a ascensão do fascismo podem ser trazidos à baila, a fim de complementar e atualizar a discussão, tanto de autores brasileiros, a exemplo de Como conversar com um fascista, de Márcia Tiburi (2015), quanto de autores estrangeiros, tais como Como funciona o Fascismo: a política do “nós” e “eles”, de Jason Stanley (2018), ou Como morrem as democracias, de Steven Levitzki e Daniel Ziblat (2018), entre diversos outros textos que tentam dar conta desse fenômeno terrível, o qual vem minando a nossa coesão social contemporânea em diversos âmbitos.

Definitivamente, voltando a dialogar com o artigo em questão, o fenômeno do radicalismo de direita não poder ser compreendido apenas por um viés psicanalítico e, certamente, sua dimensão social e econômica deve ser sempre bem analisada. Do contrário, poderíamos cair na estagnação conceitual de que essas tendências agressivas e sadomasoquistas da psique humana fazem parte de uma certa natureza inexorável e, portanto, imutável, resignando-nos à ideia de que tendências fascistas sempre estarão presentes no seio das sociedade democráticas e que não há nada a fazer. Mas aqui podemos relembrar uma sentença que encerra um outro texto de psicanálise bastante importante e que, de certa forma, dialoga fortemente com a Psicologia das Massas, que é o Mal-Estar na Civilização, cuja última frase (Freud, 2020a, p. 405) alerta para o fato de que toda a tarefa da cultura é fortalecer Eros em sua eterna e irresolúvel luta contra Tânatos. E, mesmo que o inimigo não tenha cessado de ganhar, nós não podemos cessar de lutar: como quem relampeja, na iminência de um perigo.

 

Referências

ADORNO, Theodor W. Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. In: ADORNO, Theodor W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. Tradução de Verlaine Freitas. São Paulo: Editora Unesp, 2015. p. 153-189.

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet, prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 241-252.

Bordin, Reginaldo Aliçandro; DIAS, José Francisco de Assis. O radicalismo de direita e a personalidade autoritária em Theodor Adorno. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 3, e02400195, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15563.

DUARTE, Rodrigo. Teoria Crítica da Indústria Cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura [1930]. In: FREUD, Sigmund. Cultura, Sociedade, Religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Tradução de Maria Rita Salzano Morais. Belo Horizonte: Autêntica, 2020a. p. 305-410.

FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas e Análise do Eu [1921]. In: FREUD, Sigmund. Cultura, Sociedade, Religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Tradução de Maria Rita Salzano Morais. Belo Horizonte: Autêntica, 2020b. p. 137-232.

LEVITZKI, Steven; ZIBLAT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: Da escravidão a Bolsonaro. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019.

STANLEY, Jason. Como funciona o Fascismo: a política do “nós” e “eles”. Porto Alegre: LPM, 2018.

TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista. Rio de Janeiro: Record, 2015.

 

Recebido: 20/05/2024 – Aprovado: 25/05/2024 – Publicado: 25/06/2024



[1] Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo (UPF), Passo Fundo, RS – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4839-6759. E-mail: fcofianco@upf.br.