Comentário a “As reflexões de Leonhard Euler sobre o ‘espaço’ e o ‘tempo’”

 

Joãosinho Beckenkamp[1]

 

Referência do artigo comentado: FREITAS, Vinícius França. As reflexões de Leonhard Euler sobre o “espaço” e o “tempo”. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400196, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15497.

 

Euler é, sem dúvida, um dos matemáticos mais produtivos de todos os tempos e, entre os do século dezoito, figura como um dos primeiros, ao lado de um Lagrange, de um Laplace, de um Bernoulli (pais e filhos) ou de um Cramer. Sua presença magistral na história da matemática se justifica, assim, amplamente.

Tratar de Euler no contexto da história das ideias filosóficas, entretanto, acarreta um certo risco, podendo levar os aventureiros no campo da filosofia, sempre sequiosos de novidades, a lançar a moda dos estudos eulerianos em filosofia. Por isso, o primeiro ponto a ser aprovado no artigo é a lembrança inicial de que as incursões de Euler na seara filosófica são geralmente desaprovadas pelos historiadores, a ponto de alguns lamentarem que Euler tenha sido levado a se rebaixar a considerações triviais e muitas vezes confusas, nesse campo.

Freitas (2024) aponta para um tópico específico que tem granjeado a Euler a fortuna de ser incluído na história da filosofia, a saber, sua presença nas reflexões de Kant na esfera da ciência natural. Além das populares Cartas a uma princesa da Alemanha, de 1768, Kant conhecia e se vale de dois artigos mais técnicos de Euler, “Reflexões sobre o espaço e o tempo”, de 1750, objeto do artigo aqui em comento, e “Investigações sobre a origem das forças”, de 1752. Este último, como mostrou Timerding, em artigo publicado na Kant-Studien, em 1919, está presente nas vacilações de Kant em torno dos conceitos de inércia e de força gravitacional.

Já o artigo de 1750 é expressamente mencionado por Kant (1905), em seu “Ensaio para introduzir o conceito de grandeza negativa na filosofia”, de 1763, e em “Dos primeiros fundamentos da distinção das regiões no espaço”, de 1768. No último texto, Kant identifica o ponto relevante no artigo de Euler como sendo o ensaio de mostrar a posteriori a indispensabilidade do espaço e do tempo absolutos na nova ciência mecânica. Com isso, Kant toca num aspecto central do breve artigo de Euler, a saber, a clara compreensão de que as noções de espaço e de tempo se impõem desde os primeiros passos da mecânica com Galileu e Newton, uma vez que, sem elas, não é possível pensar sequer sua noção inicial de um estado inercial da matéria; afinal, só podemos determinar se um corpo mantém seu estado de movimento ou é acelerado, considerando seu comportamento no espaço ao longo de um tempo. Mesmo que isso não constitua grande contribuição para o avanço da teoria, ficando patente antes sua trivialidade, Euler colaborou, entretanto, com suas ponderações filosóficas sobre noções fundamentais explícitas ou implícitas na nova ciência física, para firmar no continente europeu a filosofia natural newtoniana.

Merece certamente atenção a hipótese levantada por Freitas (2024) acerca da reticência de Euler em definir o que são espaço e tempo em si mesmos. Em vez de caracterizar isso como uma simples confissão de ignorância, Freitas (2024) compara a atitude de Euler à de Newton em relação à força de gravidade, o que a coloca no terreno das questões fundamentais da epistemologia moderna. A maneira como Newton introduz, em seu sistema do mundo, a força da gravidade causou muita perplexidade em alguns e mesmo resistência em outros, pois o que se esperava de uma teoria, até a grande virada que vem no século XVII, justamente com Galileu e Newton, é que ela nos forneça a verdade a respeito da natureza última das coisas, o que, em termos tradicionais e aristotélicos, seria apresentar a substância na qual se baseia tudo o mais.

Ora, Newton expressamente se recusa a especular sobre o que seria a força gravitacional em si mesma, limitando-se a expor a equação pela qual os efeitos a ela atribuídos podem ser integrados num cálculo de simples relações. Esse procedimento foi sendo aceito só pouco a pouco, ao longo de todo o século XVIII, encontrando-se Euler entre os que cooperaram para normalizar procedimentos explicativos com um enorme potencial de revolucionar também a filosofia. No século XIX, a concepção newtoniana de explicação científica se tornaria a nova normalidade, a ponto de constituir a base doutrinária do positivismo, do naturalismo e do materialismo vigentes até o final do século, quando, então, uma primeira crise séria do modelo leva a uma nova revolução na física, inclusive no concernente às noções de espaço e de tempo.

Um último problema interessante tocado por Freitas (2024) é o referente ao significado de “reflexão”, no texto de Euler. Partindo de uma passagem do ensaio de Euler na qual se opõem reflexão e sentidos, Freitas (2024) sugere que o termo seja interpretado na linha de Locke e Newton, ou seja, como reflexão sobre as próprias operações da mente. Esse aspecto do processo certamente desempenha uma função nas considerações de Euler, mas dificilmente coadunaria com o uso do termo, no título do ensaio, a não ser que se quisesse interpretá-lo também no sentido de uma reflexão sobre a própria mente a propósito das noções de espaço e de tempo. Aqui parece indicado incluir ainda um outro sentido em que o termo é usado na escola wolffiana, da qual Euler também é descendente: ao lado da abstração e da comparação, a reflexão é tratada como uma das três operações fundamentais da mente pelas quais se chega a representações claras e distintas, significando, pois, a consideração progressiva dos diversos aspectos ou pontos notáveis de uma representação.

No caso do ensaio de Euler, ele está refletindo, não sobre si mesmo (o que levaria à psicologia empírica), mas sobre como as noções de espaço e tempo são empregadas na mecânica, onde se poderá obter clareza acerca dos aspectos fundamentais que devem ser levados em conta, numa eventual definição de espaço ou de tempo (o que conduziria à ontologia ou, mais modernamente, à epistemologia). Nesse sentido, a reflexão seria entendida de maneira próxima ao método analítico sugerido por Kant, em um ensaio de 1762, a análise kantiana se encontrando muito alinhada com a noção wolffiana de reflexão como aquele ato da mente pelo qual simplesmente se analisa ou se passam em revista os diversos aspectos de uma representação, antes de se tentar qualquer definição.

Concluindo, pode ser destacado que o artigo aponta para uma nova direção a ser incorporada à pesquisa filosófica, a saber, a inclusão de autores que geralmente permanecem à sombra dos clássicos, sendo muitas vezes esquecidos, mas que, num ou noutro aspecto do desenvolvimento das ideias, puderam ter uma função relevante.

 

Referências

FREITAS, Vinícius França. As reflexões de Leonhard Euler sobre o “espaço” e o “tempo”. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400196, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15497.KANT, Immanuel. Gesammelte Schriften. V. 2. Berlin: de Gruyter, 1905.

 

Recebido: 20/05/2024 – Aprovado: 25/05/2024 – Publicado: 25/06/2024



[1] Docente na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0767-9373. Email: jobeqk@gmail.com.