Comentário a “A interminável questão: por que (devo) agir moralmente? Análise do capítulo 12 de Ética Prática de Peter Singer”

 

Ana Bijóias Mendonça[1]

 

Referência do artigo comentado: CASTRO, Paulo Alexandre e. A interminável questão: por que (devo) agir moralmente? Análise do capítulo 12 de Ética Prática de Peter Singer. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400197, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15593.

 

O artigo que agora se comenta não poderia ser mais atual. Não apenas por resgatar um tema muito caro à ética, mas porque estamos a viver tempos de grande incerteza presente e futura. Aquilo que é do domínio da ética, aquilo que é do domínio da moral está, de certa forma, suspenso num limbo que ameaça ruir a qualquer momento. Este início de século está inevitavelmente marcado por ideologias e idiotias que pensávamos já não existirem. A sociedade moderna parece estar fragmentada e aturdida por falsas promessas hedonistas que uma economia global tem fomentado e que a tecnologia tem acentuado (as causas são conhecidas e muitos autores tem advertido para tais efeitos, por exemplo, de Guy Debord a Paul Virilio, ou de Giles Lipovestsky a Zygmunt Bauman), e assiste-se ao regresso de extremismos, quer políticos quer religiosos, que acentuam essa fragmentação e geram ainda maior alienação. Ora, aquilo que sabíamos ser, até há algumas décadas atrás, do domínio da verdade ou da mentira (embora a manipulação humana seja uma constante ao longo do processo civilizacional), aquilo que se sabíamos distinguir, com alguma clareza e bom senso, o bem do mal, o certo do errado, tornou-se um terreno pantanoso e, portanto, escorregadio. É neste sentido que a pergunta dada em título ganha a sua relevância.

Castro (2024) resgata um capítulo fundamental da obra Ética Prática de Peter Singer fazendo aquilo que deve ser o exercício hermenêutico: uma análise incisiva e detalhada dos termos e argumentos empregues ao mesmo tempo que interroga a razão de ser do seu uso. A clareza e o intuito de tal procedimento é bem visível logo nas primeiras linhas, quer do resumo, quer no primeiro parágrafo do artigo. E embora, o estilo de escrita possa ser discutível (algo próximo ao texto de Peter Singer – diga-se em boa verdade, que não se vê como poderia ser de outra forma), é, contudo, inegável a argúcia com que o autor prende o leitor ao texto. A forma como, por um lado, analisa a argumentação e teses de Peter Singer e as desmonta, e, como por outro lado, enreda o leitor na dinâmica textual, não permite distrações ao leitor, obrigando-o a seguir o artigo numa leitura contínua. O autor está ciente do trabalho que desenvolveu e nesse sentido apresenta duas “conclusões”: uma, relativa à análise do capítulo e outra, relativa ao pensamento ético de Peter Singer. Não teria de o fazer dado que o intuito do ensaio é claro, mas terá sentido necessidade de justificar (desta forma) algumas das asserções que se foram lendo ao longo do artigo e que exigiam um lugar adequado para tal.

A pergunta colocada é, como se sabe, de difícil resposta e o filósofo admite-o. A razão desta dificuldade prende-se com a complexidade de relacionar aquilo que é do domínio da racionalidade com o domínio da ética. No fundo, aquilo que Peter Singer quer é apresentar as razões racionais para todo o agir moral. Sabendo que o ideal seria interpretar a pergunta com neutralidade (ou como se diz no ensaio, “não se comprometendo com nenhum ponto de vista específico”), ou para usarmos a nomenclatura de John Rawls, colocando um véu de ignorância, também se sabe a exigência e desígnio que a ética arrasta consigo (os juízos éticos devem ser universalizáveis), que como se lê: «a ética como disciplina exige que se abandone o ponto de vista pessoal dos estados de coisas do mundo e se adote o ponto de vista do espetador universal que procura ajuizar de um modo universal». Ora, da análise entre aquilo que é do domínio do racional e aquilo que é do domínio ético, quer o autor do artigo quer Peter Singer chegam à mesma conclusão:

A possibilidade de sucesso para uma ligação razão-ética parece comprometida. Não se vislumbram soluções para esta ligação dado que nenhum obstáculo pode apresentar mais dificuldades do que a própria natureza da razão. A razão não é exclusivamente teórica e, nessa vertente prática, utilitária, choca com um plano que tem a sua raiz numa teorização mais ou menos abstrata, a ética. Quer isto significar que, embora o ser humano aplique ou tente aplicar quotidianamente um determinado posicionamento ético é levado mais a agir pelo uso prático da razão e, queira-se ou não, essa vertente prática da razão apela interiormente à satisfação de vontades e desejos dos sujeitos

Assim Peter Singer, percebe que tem de utilizar uma nova forma de abordagem ao problema ou um novo argumento que mostre [...] que é racional para nós todos agir[mos] de modo ético, independentemente do que queiramos” (Singer, 1994, p. 338). Para tal o filósofo faz uma passagem por Hume, por Nagel e Sidgwick perscrutando as razões e argumentos que podem ajudar a solucionar a questão. Acontece que mesmo considerando tais argumentos e procurando a conciliação possível entre ética e interesse pessoal (admitindo que as pessoas são movidas pelos seus interesses e motivações), Peter Singer vê-se obrigado a fazer uma recondução natural (porque não dizer, paradoxal?) para a felicidade e só a perspicácia do autor do artigo permite ilustrar (e bem) com o exemplo dos vendedores de automóveis aquilo que está em causa e o que o filósofo pretende dizer (entre interesses pessoais e ação ética). Talvez por isso, Castro (2024) diga no final do ponto 3 do seu artigo (antes da primeira “conclusão”) que «a busca de razões para o agir moral conduziu inevitavelmente à questão pelo sentido da vida, o que, parece, encobre a afirmação de que é o agir moral que confere sentido à vida». Paulo Alexandre e Castro percebe que na transmutação da pergunta (ou problemática) para o sentido da vida permite a Peter Singer inscrever a moralidade nela. Isso significa nas palavras do autor do artigo que, se por um lado, Peter Singer demonstra a inviabilidade do percurso humano através do individualismo ou egocentrismo [não deixa de ser verdade que apelando à comunhão, à comunicação, à identificação com o universo que nos rodeia] há o apelo moral para a consciência individual de cada homem (o que revela ainda uma ligação à moral kantiana, no estrito sentido em que a lei moral estaria inscrita em todos os homens) como forma de estabelecimento de uma comunidade verdadeira de seres humanos em comunhão com o mundo.

O sentido da vida – e aqui Peter Singer deveria ter percebido com clareza suficiente– não se pode circunscrever aos crentes (confundindo-se aqui a ação moral com a prática religiosa) pese embora a aproximação social e cultural que tal ideia propaga. Paulo Alexandre e Castro percebe esta subtil fraqueza no texto do filósofo da mesma forma que percebe que ele poderia ter-se socorrido de Albert Camus já na obra Ética Prática para conceber um sentido mais alargado e justificado para o sentido da vida. Neste sentido e perscrutando alguns dos principais críticos do filósofo eticista (destaque-se Huemer (2009)), refere o autor do artigo, concluindo:

O desejo de prescritivismo moral de Peter Singer parece expressar mais um paradigma de avaliação, ou melhor, um paradigma de aprovação ou desaprovação das ações morais do que relatar objetivamente fatos morais. Contudo, pode ser o caso de que o aparente jogo que Peter Singer realiza seja o mais adequado:  ter uma conceção natural da moralidade (seja o intuicionismo moral ou emotivismo) não significa que não haja lugar para a racionalidade e, sobretudo, para o desejo de objetividade moral. Por isso a pergunta «por que devo agir moralmente?», se transmuta numa pergunta pelo sentido da vida, em que subjetividade e objetividade se controvertem também nesse jogo frágil, mas constante entre expressar desejos latentes e afirmar razões objetivas para a existência.

 

Referências

CASTRO, Paulo Alexandre e. A interminável questão: por que (devo) agir moralmente? Análise do capítulo 12 de Ética Prática de Peter Singer. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400197, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15593.

HUEMER, M. Singer´s Unstable Meta-Ethics. In: SCHALER, J. A. Peter Singer Under Fire. Chicago: Open Court, 2009.

SINGER, P. Ética Prática. Tradução De Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Livraria Martrins Fontes Editora, 1994.

SINGER, P. Como havemos de viver? A ética numa época de individualismo. Lisboa: Dinalivro, 2005.

 

Recebido: 20/05/2024 – Aprovado: 25/05/2024 – Publicado: 25/06/2024



[1] Investigadora do Centre for Functional Ecology (CFE ) - Science for People & the Planet, Department of Life Sciences, TERRA Associated Laboratory, University of Coimbra, Calçada Martins de Freitas, 3000-456, Coimbra – Portugal. Investigadora da Universidade Aberta (Open University), Lisboa – Portugal. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6205-5785. Email: ana_bijoias@hotmail.com.