Liberalismo e republicanismo: avanços e contradições sobre o espaço público no pensamento de Hannah Arendt

 

Marcela Uchoa[1]

 

Resumo: O estudo das revoluções burguesas realizado por Hannah Arendt é um importante diagnóstico do impacto das políticas liberais, suas contradições e evolução, na história da democracia; reflete, ainda, as contradições e dicotomias do pensamento da filósofa. O republicanismo moderno, embora crítico do liberalismo, assimilou elementos inerentes à democracia liberal, como a importância da lei, sempre imputada a partir de preceitos políticos ideológicos do seu tempo. Esta análise permite não só compreender as bases do pensamento político da teórica, mas seu desenvolvimento naquilo que denomina espaço público. Este deve ser um lugar de expressão de opiniões, por isso, para Arendt, sem pluralidade; política e liberdade pública ficam comprometidas, na medida em que impossibilitam a conservação de um espaço de efetivação da liberdade. Contudo, em um mundo desigual, quem pode exercer sua cidadania livremente, no espaço público? A promessa liberal propicia tais garantias? Em diálogo com Habermas e para além, pretende-se, com esta investigação, traçar as fragilidades de uma noção burguesa de esfera pública e enunciar a urgência de um ideal de republicanismo alicerçado e legitimado nas demandas populares.

 

Palavras-chave: Revoluções burguesas. Crise. Democracia. Espaço público.

 

O único dever que temos para com a história é reescrevê-la[2].

Oscar Wilde

 

Introdução

Baseada em ideais políticos de preservação de direitos individuais e em defesa da maximização da liberdade de escolha, a teoria liberal pensou as possibilidades de melhoria nas condições sociais, a partir de um ideal de progresso, teoria amplamente aceita no final do século XVIII e XIX (McLean; McMillan 2003, p. 309).

Segundo Ellen Wood, é possível identificar as bases históricas do liberalismo, desde o início da modernidade capitalista, ou no seu desenvolvimento. Surge inicialmente como uma reação federalista dos senhores feudais[3] que exigem sua liberdade, diante da tríade Estado, absolutismo e monarquias. Um marco relevante desse processo de ruptura é a implementação da Magna Carta[4] como documento que limitava o poder do rei e o colocava subjugado à lei – esse processo também aponta para o longo caminho que conduziria ao surgimento do constitucionalismo, conforme entende Wood (1995, p. 204):

Essa é a origem dos princípios constitucionais modernos, das ideias de governo limitado, da separação de poderes e assim por diante: princípios que substituíram as implicações sociais do "governo pelo demos" - como o equilíbrio de poder entre ricos e pobres – como o critério central da democracia.[5]

 

O ideal de controle em alternativa ao Estado absolutista, com o tempo, vai se transformar numa liberdade individual, econômica: uma liberdade negativa – onde o Estado não deve interferir. O analítico do liberalismo Isaiah Berlin argumenta que o cerne da liberdade é a ausência de coerção; consequentemente, o compromisso do Estado liberal de proteger a liberdade é, essencialmente, a função de garantir que os cidadãos não se coajam, sem justificativa convincente (Berlin, 2002, p. 122; cf. Gaus; Courtland; Schmidtz, 2018). Nesse ideal, as pessoas em condição de servos foram libertadas da servidão e da terra, de onde retiravam sua subsistência, para vender a sua força de trabalho aos detentores dos meios de produção, tornando-se, assim, assalariados.

No curso das revoluções liberais, iniciadas no século XVIII e que têm seu desenvolvimento, no século XIX, as marcas do iluminismo não passam despercebidas; ideais de liberdade, igualdade e fraternidade encontraram uma inspiração comum para revoluções em lugares e contextos tão distintos, como, por exemplo, Estados Unidos e França.

Profundamente marcada pelo horizonte de guerras e conflitos do início do século XX, Hannah Arendt resgata os preceitos que estruturam as bases da revolução francesa e dos Estados Unidos, para repensar as contradições e desafios políticos contemporâneos do liberalismo, na democracia. Nesse ínterim, assinalado por dicotomias, idealizações e contrassensos, desafiamos o modelo amigo versus inimigo de análises mais comuns. Em contrapartida, propomos um estudo sobre a consequência da reflexão arendtiana sobre os caminhos e descaminhos das revoluções liberais, a partir de um encontro confrontativo com a noção de espaço público de Habermas: seus paralelos, dicotomias, limites e a necessidade de superação, para a reconfiguração de uma nova noção de esfera pública mais inclusiva.

 

1 O liberalismo enquanto fenômeno na história das revoluções

O liberalismo encontra os seus alicerces na Europa e nos Estados Unidos, a partir da construção da sociedade liberal do século XIX, tendo inclusive seu ápice e enraizamento nas estruturas sociais, desde a Revolução Industrial. Denominado como “ondas de expansão democrática” (Huntington 1993, p. 20), o liberalismo, enquanto fenômeno histórico, estabelece uma ligação com a própria história da democracia.

Estruturado dentro de um quadro plural, o liberalismo na história nunca foi linear; é também por isso que, em On revolution, a filósofa Hannah Arendt consegue ao mesmo tempo fazer duras críticas à democracia representativa e, em contrapartida, tecer grandes elogios à Revolução Americana. Assumia como positiva a perceção do ideal de liberdade atrelada à ideia de mudança, percebia a Constituição[6] como um instrumento político de geração de poder que construía na esfera pública o espaço da liberdade. Defendia ainda que esse modelo de revolução propiciava o resgate do espaço público, enquanto espaço de ação, e não circunscrito à luta por direitos civis, características de grande parte dos processos revolucionários.

O que, para a autora, permitiu aos EUA irem além de uma noção teológica de autoridade no espaço político foi o ato da fundação[7], pois é aí onde o sentido da revolução é associado à liberdade política. Temas voltados para a fundação de liberdades civis e direitos humanos não só passam a existir, como poderão frequentemente fazer parte dos debates cotidianos das sociedades contemporâneas[8].

Müller (2013) chama atenção para o fato de que, no curso das revoluções, o conceito de liberdade foi confundido, com certa constância, com o de libertação. A conquista em específico de direitos civis, ocorrida no curso das revoluções modernas, foi produto da libertação derivado dos três direitos – à vida, à liberdade e à propriedade –, que emergem como direitos inalienáveis do ser humano. Entretanto, é importante elucidar:

A liberdade é uma opção política de vida que exige a constituição do espaço verdadeiramente político. Mesmo que a fronteira entre libertação e liberdade seja sutil, suscitando alguma incerteza, os dois conceitos não se confundem, tampouco podem as conquistas de libertação resumir a história da liberdade (Müller, 2013, p. 66).

 

Essa compreensão acontece, porque a libertação sempre foi representada de forma mais concreta, enquanto a liberdade, de maneira mais abstrata; embora as revoluções do século XVIII sejam conhecidas por seus atos de liberdade, o seu fim último sempre parece ser a libertação. Contudo, é a partir da construção desse espaço emancipador da ação política e da liberdade que a novidade da revolução se põe na defesa do nascimento de um novo mundo e, assim, se relaciona com a própria experiência da liberdade.

Para Arendt, as Revoluções nos Estados Unidos e França não estavam alicerçadas na conquista de direitos civis, como os próprios revolucionários percebiam, mas na ânsia por liberdade (Arendt, 2016, p. 26). Segundo Müller (2013), Arendt percebe que a luta pelo fim da tutela dos governos absolutistas ou da religião não deve ser confundida com a luta por liberdade, esta, de fato, característica das revoluções; assim como a luta por libertação não deve ser convertida em lutas para suprir necessidades emergenciais, como no caso da Revolução Francesa; nem tampouco com lutas por satisfação de bem-estar pessoal, como no caso da Revolução Americana.

Contudo, a despeito das interpretações dadas a Arendt de que não percebia o carácter liberal e individualista do processo revolucionário americano, em On revolution, ela alerta que os temas que foram motores de ambos os processos revolucionários mudaram o seu curso. No caso da Revolução dos Estados Unidos, defende que, embora discursivamente estivesse amparada pelo ideal de fundação da liberdade, apresentava narrativas de busca pela felicidade, de maneira individual, não tendo como finalidade o bem público. Já quanto à Revolução Francesa, entendia que esta mudou seu curso pela urgência da necessidade; mesmo sendo o objetivo inicial da revolução a fundação da liberdade, este foi sucumbido pela tentativa de resolver necessidades básicas sociais. Assim, a revolução que originalmente procurava o fim da repressão arbitrária e a ocupação do espaço público, enquanto lugar de liberdade, é convertida pela busca por sanar necessidades vitais:

[…] o jovem Marx[9] ficou convencido de que a Revolução Francesa havia falhado em instaurar a liberdade porque havia falhado em resolver a questão social. A partir disso, ele concluiu que liberdade e pobreza são incompatíveis. Sua contribuição […] mais original à causa da revolução foi interpretar as necessidades imperiosas da pobreza das massas em termos políticos, como uma revolta não por pão ou por bens, mas também por uma questão de liberdade (Arendt, 2016, p. 56)[10] .

 

Contudo, com o surgimento da sociedade de consumo, um elemento extra é colocado nessa balança: não se busca tão somente a satisfação das necessidades, porque, quando a liberdade foi sucumbida pela satisfação dos desejos, estes, em última instância, se converteram em necessidades dentro de um processo alienante, no qual o ideal passou a ser o consumo ilimitado e dispendioso (Arendt, 2016, p. 56).

A Revolução Francesa, que inicialmente contém em sua base ideais de liberdade, desvirtuou-se, na medida que centralizou a sua preocupação na questão social, o que a fez cair na violência; ao passo que a Revolução Norte-Americana, segundo Arendt, adotou princípios políticos que levavam em conta a necessidade de se instituir um novo corpo político; não foi uma revolução social entre classes, mas uma revolução nacional contra o seu colonizador estrangeiro. Começou por fazer exigências político-fiscais dos comerciantes e colonos americanos ao trono inglês. Nessa perspetiva, a questão social trazida pela Revolução Francesa está preocupada com assuntos relacionados à ordem da necessidade, e não da liberdade, o que Arendt chama de ordem pré-política.

Por outro lado, a Revolução nos Estados Unidos, a qual, em seu período inicial, se ocupou com a questão política, logo se transformou em busca por conforto material, o ideal de participação política, foi se concentrando apenas na atenção às liberdades civis e no sistema representativo, o que fez com que a sociedade estadunidense se tornasse o próprio ideal do liberalismo na democracia. Nos EUA, o motor da revolução acaba frustrado, na medida em que os cidadãos participam do poder público e da gestão do governo, com fins individuais. Assim, o ideal que norteia a expressão da Declaração da Independência dos EUA, o qual enfatiza a “busca da felicidade” originalmente percebida como possibilidade de participação nos negócios públicos, foi rapidamente subvertido pela defesa de interesses particulares e bem-estar social de quem Arendt denomina “[...] pessoa portadora de direitos e deveres, criada pela lei, que aparece diante da lei” (Arendt, 2016, p. 103)[11].

Tocqueville (2002) também procurou demonstrar como, no curso das revoluções, as esferas pública e privada entraram em conflito – fato que possibilitou que o carácter inspirador de liberdade pública fosse subvertido para o ideal de liberdade civil. Dessa forma, a liberdade característica da esfera pública passou a ser de domínio particular, segundo Arendt: “[...] liberdade e poder se afastaram, e a fatal assimilação do poder com a violência, da política com o governo, e do governo com um mal necessário começou” (Arendt, 2016, p. 106)[12].

Enquanto, nos Estados Unidos, o ideal de criação de espaço público foi sucumbido por interesses individuais, de maneira a se perceber que as obrigações públicas devem ser funções da administração governamental, na França, o poder passa a ser entendido como inerente ao governo, uma vez que consta de forma explícita no próprio texto da Constituição a garantia da preservação da República, o que faz ser inclusive necessária a criação de leis de proteção ao indivíduo, frente a abusos do poder público. Hannah Arendt afirmava que a Constituição, a qual sempre se caracterizou nos processos revolucionários como um ato de espaço da liberdade, no caso da França, a Constituição de 1791, “[...] permaneceu um pedaço de papel, de mais interesse para os eruditos e especialistas do que para o povo” (Arendt, 2016, p. 122). Isso consiste em uma boa síntese da sua herança às constituições subsequentes à ênfase no legalismo.

Em Liberalismo e democracia, Norberto Bobbio (1994) retoma a discussão sobre a dificuldade de se estabelecer o pensamento democrático, na sociedade, tendo em vista que a própria corrente liberal privilegia o indivíduo, contrapondo-se aos próprios ideais democráticos republicanos. A defesa das individualidades de direitos e interesses, em que o indivíduo independente constitui com seus pares uma comunidade homogênea, é o alicerce da democracia moderna, que, com o tempo, se transformou no próprio embargo aos ideais democráticos, na contramão do coletivo.

Bobbio (2000, p. 323-324) defende uma democracia com princípios institucionais claros, e a sua tentativa é a de evidenciar que democracia e liberalismo não precisam ser coexistentes, contudo, é necessário pensar-se um governo que possa dar garantias e, ao mesmo tempo, tenha sempre como primazia a soberania popular:

[…] foi-se afirmando, através dos escritores liberais, de Constant, Tocqueville e John Stuart Mill, a ideia de que a única forma de Democracia compatível com o Estado Liberal, isto é, com o Estado que reconhece e garante alguns direitos fundamentais […] fosse a Democracia representativa ou parlamentar, onde o dever de fazer leis diz respeito não a todo o povo reunido em assembleia, mas a um corpo restrito de representantes eleitos por aqueles cidadãos a que são reconhecidos os direitos políticos.

 

Se liberalismo e democracia se articularam a partir da ideia de representação, podemos sustentar que a democracia representativa emerge como o lugar no qual os impasses relativos às demandas individuais e à coesão social podem ser confrontados e resolvidos. Entretanto, o problema dos princípios não se soluciona nesse modelo, quando se confronta o ideal de igualdade da democracia com o ideal do liberalismo, o qual, em contraste, prioriza a liberdade individual.

Chantal Mouffe (1996) afirma que a tentativa de conciliar as demandas individuais características do liberalismo e a coesão social necessária à democracia é possível apenas através de uma teorização do indivíduo, considerando-o

[n]ão como um ser livre que existe antes e independentemente da sociedade, mas sim como uma posição constituída por um conjunto de “posições de sujeito”, inscrito numa multiplicidade de relações sociais, membro de muitas comunidades e participante numa pluralidade de formas de identificação coletiva[13] .

 

Arendt critica o sistema representativo que dá sustentação à democracia liberal, argumentando que sua base está presente nas acepções de liberdade e poder, ou liberdade e política. Para a filósofa, ao contrário do que defende a concepção liberal, liberdade e poder não podem ser separados. Defende ainda que o problema posto pelos liberais ganhou de fato força, por meio da própria ascensão do totalitarismo, no qual o espaço público se tornou restrito às liberdades individuais. Para sanar esse problema, a construção dos espaços públicos, nos quais a pluralidade possa vir a ser exercida, é condição de possibilidade para a própria formação da sociedade, na medida em que é o espaço da liberdade, em que a ação das pessoas pode vir a ser exercida coletivamente. E é no exercício dessa liberdade que temos a ideia de poder ligado à capacidade humana de agir, não apenas de maneira individual, porém, em acordo com a comunidade, poder este que deve ser efetivado de forma plural, e a sua manifestação deve acontecer na esfera pública.

 

2 A revolução americana e o novo ideal de espaço público

Michael Hardt e Antonio Negri (2000, 380-381) relembram a chegada dos intelectuais europeus aos Estados Unidos, como uma tentativa de descobrir um lugar perdido. O projeto da Pax Americana liberal, representada pelo sonho americano de mobilidade social e igualdade de oportunidades, parecia sintetizar o que seria "o modo de vida americano":

Será que a democracia americana não estava fundamentada na democracia do êxodo, em valores afirmativos e não dialéticos, no pluralismo e na liberdade? Esses valores, juntamente com a noção de novas fronteiras, não recriaram perpetuamente a expansão de sua base democrática, além de todos os obstáculos abstratos da nação, etnia e religião? (Hardt; Negri, 2000, p. 380).

 

A afirmação implícita na pergunta de Hardt e Negri se reafirma na teoria de Hannah Arendt, quando defende que a Revolução Americana era superior à francesa, porque a americana era uma busca ilimitada pela liberdade política, enquanto os franceses embasaram sua luta no combate à escassez e à desigualdade. Os Estados Unidos[14] representavam, para esses europeus, o renascer de uma ideia de liberdade que a Europa havia perdido, como se pode ver nas palavras de Arendt (2016, p. 115), quando esta assevera:

O que era uma paixão e um “gosto” na França era claramente uma experiência na América, e o uso americano que especialmente no século XVIII, falava em “felicidade pública”, onde os franceses falavam em “liberdade pública” sugere essa diferença de maneira bastante apropriada. A questão é que os americanos sabiam que a liberdade pública consistia em participar dos negócios públicos e que as atividades relacionadas a esse negócio não constituíam um fardo, mas davam aos que se encarregaram delas um sentimento de felicidade pública que não poderiam adquirir em nenhum outro lugar.

 

Do ponto de vista de uma Europa[15] em crise, os Estados Unidos – o "Império da Liberdade" de Thomas Jefferson – era responsável por promover os ideais do republicanismo que emergia como combate ao imperialismo britânico (Hardt; Negri, 2000, p. 381). De acordo com Arendt, a promulgação da Constituição dos Estados Unidos consolidou com a República o poder da revolução, enquanto fundamento da liberdade: “A Revolução Americana consolidou, finalmente, o poder da revolução, e desde que a meta da revolução era a liberdade, era, na verdade aquilo que Brecton chamara de Constitutiu Libertatis. o fundamento da liberdade” (Arendt, 2016, p. 153).

Os novos cientistas políticos dos Estados Unidos organizaram a nova Constituição republicana, inspirada na síntese dos poderes que estruturavam a Roma republicana – uma combinação entre poder monárquico, poder aristocrático e poder democrático, de forma que qualquer desequilíbrio entre esses poderes seria um sintoma de corrupção. A Constituição foi projetada para diminuir a corrupção cíclica, ativando toda a multidão e organizando sua capacidade constituinte em redes e contrapartes organizadas, com fluxos de funções diversas e equalizadas e em um processo de autorregulação dinâmica e expansiva. Apesar de, em muitos aspetos, a Constituição norte-americana representar realmente um documento novo e original, na experiência prática, a realidade foi outra (Hardt; Negri, 2000, p. 164).

Hannah Arendt, por outro lado, celebrou a democracia americana como o local da invenção da própria política moderna. A ideia central da Revolução Americana – como o estabelecimento da liberdade, ou a fundação de um corpo político que garanta o espaço onde a liberdade pode operar – enfatiza a importância do estabelecimento dessa democracia, na sociedade.

Nas condições modernas, o ato de fundar é idêntico ao enquadramento de uma constituição, e o chamado das assembleias constituintes se tornou, com razão, a marca da revolução desde que a declaração da independência iniciou os escritos de constituições para cada um dos estados americanos, um processo que preparou e culminou na constituição da união, a fundação dos Estados Unidos (Arendt, 2016, p. 121).

 

A revolução é bem-sucedida, na medida em que põe fim à dinâmica dos poderes constituintes e determina um poder constituído estável. Sua originalidade fica mais nítida face às modernas concepções europeias de soberania, as quais atribuíram o poder político a um domínio transcendente e, assim, afastaram e alienaram as fontes de poder da sociedade. Já no contexto dos EUA, o conceito de soberania se refere a um poder inteiramente dentro da sociedade. A política não se opõe, mas integra e completa a sociedade (Hardt; Negri, 2000, p. 164):

O espaço público, que é significativo na história americana, não poderia ser experimentado na Alemanha Nacional Socialista. A república como forma original de ordem política, opõe-se ao governo total como expressão mais flagrante do anti-político. O que poderia ser mais óbvio para Arendt do que assumir as distinções de Montesquieu e expandi-las com a nova experiência do governo total? (Breier, 1992, p. 169).

 

Conforme Arendt, a fundação da República e a elaboração de uma Constituição marcaram o estabelecimento de elementos que inauguravam um novo poder que poderia ser corretamente distribuído e, mais importante ainda, impediriam que uma nova experiência totalitária pudesse vir a acontecer. Fundamentados nos preceitos de Montesquieu, os revolucionários não podiam se utilizar da violência para conter o poder. Assim, o poder da República deveria ser forte, porém, não ilimitado, para que não viesse a trazer riscos à República. É necessário, por conseguinte, limitar o poder com o próprio poder, o qual se institui como uma limitação no interior de suas constituições: “[...] o poder pode ser interrompido e permanecer intacto somente pelo próprio poder” (Arendt, 2016, p. 150).

O milagre, se assim foi, que salvou a revolução americana não foi o fato de os colonos terem sido fortes e poderosos o suficiente para vencer uma guerra contra a Inglaterra, mas que essa vitória não terminou “com uma multidão de estados separados[16], crimes e calamidades [...]  até finalmente as províncias exauridas mergulhariam na escravidão sob o julgo de algum afortunado conquistador”; como Jonh Dickinson temia, com razão. Esse é realmente o destino comum de uma rebelião que não é seguida pela revolução, e, portanto, o destino comum da maioria das supostas revoluções (Arendt, 2016, p. 140).

 

Nessa exaltação à República e Constituição americana, Arendt negligenciou as várias formas de discriminação censitária e religiosa às quais os processos eleitorais estavam submetidos, como afirma Losurdo (2004, p. 23):

No que diz respeito às convenções de cada Estado chamadas a ratificar o projeto de nova constituição, elas não se apoiavam certamente em uma base popular muito ampla, se se leva em conta o fato de que em uma população de 3,5 milhões de pessoas, os votantes somavam 60 mil.

 

Contudo, Arendt não nega que diversos mecanismos institucionais foram utilizados para filtrar interesses, afirmando que os revolucionários estavam preocupados com a ruína, pelo excesso ou pela falta do próprio poder, e problematiza os interesses reais que subjazem à criação de certas instituições, como o Senado e a Suprema Corte: “Institucionalmente, é a falta de poder combinada com a permanência no cargo, que indica que na república americana a verdadeira sede da autoridade está na suprema corte” (Arendt, 2016, 201). Dessa forma, para a autora, a Constituição americana transformou a Suprema Corte na mais antidemocrática instituição americana, ao passo que é inacessível à expressão popular. Todavia, Arendt também não se furta a ver pontos positivos nesse processo, como quando salienta:

Em novidade e singularidade a instituição do senado é igualada à descoberta do controle judicial, como representado na instituição das supremas cortes. Teoricamente resta apenas salientar, que nessas duas conquistas da revolução – uma instituição duradoura para opinião, e uma instituição duradoura para o julgamento - os fundadores da república transcenderam sua própria estrutura conceitual, que decerto era anterior à revolução, foi dessa maneira que eles reagiram ao próprio horizonte de experiência que o evento lhes trouxera (Arendt, 2016, p. 231).

 

É relevante elucidar que, embora Arendt (2016) não esteja errada, quando afirma que os fundadores da República transcenderam sua estrutura conceitual, é necessário questionar se de fato, essa decisão foi favorável e visava ao bem comum de todos os americanos, segundo se pode deduzir pela linha argumentativa da citação.

Hannah Arendt via nas inovações institucionais a busca pela garantia de estabilidade da República, o que garantia o espaço de liberdade para as atividades políticas. Embora a filósofa perceba motivações nobres, em parte, essas medidas foram tomadas para impedir a participação de todos, no domínio político; não obstante, era o peso da propriedade que proporcionava inovações institucionais.

Na sua concepção idealista da Constituição americana, Arendt avalisa arranjos legais que objetivavam impedir que pequenos produtores pudessem participar e ter voz ativa, no domínio político. Por esse prisma, não lhe parece incomodar restrições à participação popular, porque os seus questionamentos tratam a questão da representação sempre na perspetiva minoria versus maioria, já que acaba por fazer uma abstração mistificada dos interesses socioeconômicos que são motores dos indivíduos e grupos sociais.

Em diálogo com a perspetiva liberal, a autora vê na Constituição americana uma forma de organização política, a qual, ainda que tivesse críticas, livrava os indivíduos do assombro de regimes baseados na dominação. Apesar de Arendt defender esses interesses como nobres, são percetíveis as armadilhas que subjazem a esse tipo de discurso, que Habermas irá chamar de discurso de democracia burguesa[17]: mais do que limitar, visavam a impedir que a participação no domínio político (espaço público) fosse, de fato, um direito de todos.

 

3 Contradições da constituição do espaço público

Sobre a noção de espaço público em Arendt, convém esclarecer que é possível estabelecer vários paralelos com os conceitos de esfera pública de Habermas.  Influenciado por Hannah Arendt, mas em oposição a ela, Habermas (1991) concebe a esfera pública num processo histórico fruto do desenvolvimento da sociedade material; a sua obra A transformação estrutural da esfera pública é essencial para compreender o desenvolvimento do conceito de esfera pública, onde o autor concebe as origens do desenvolvimento da burguesia em contraposição à hierarquia fechada da aristocracia feudal.

A partir de uma análise histórica, podemos dizer que o capitalismo se solidificou, enquanto a esfera política ganhou certa independência em relação à Economia.  A discussão política é feita no surgimento da mídia, jornais, cafés, espaços onde a esfera pública burguesa dominada pelo pensamento racional e de argumentação encontram o seu lugar.  Nesse sentido, para Habermas (1991), é evidente que a esfera pública é burguesa e que reflete os novos ideais de uma classe dominante que defende a liberdade individual, no espaço público, todavia, ao mesmo tempo, privatiza todas as desigualdades estruturais, na esfera privada da economia. Em O conceito de poder em Hannah Arendt (1980), Habermas sustenta que, uma vez que Arendt idealizava uma imagem da pólis e aderia a seu formato social de maneira rígida, fazia confusão entre o político e o social:

Um Estado, exonerado da elaboração administrativa de matérias sociais; uma política, depurada das questões relativas à política social; uma institucionalização da liberdade pública, que independe da organização do bem-estar; um processo radical de formação democrática da vontade, que se abstém em face da repressão social (Habermas, 1980, p. 110).

 

O problema, ainda de acordo com Habermas, é que as teses arendtianas são decorrência de uma construção filosófica que detém certa rigidez: enquanto ela defende uma teoria da ação claramente vinculada a Aristóteles, seu conceito de poder “comunicativamente produzido” faz com que sua concepção política esteja aliada a contrassensos, quando aplicados às sociedades modernas. Para Habermas, o grande equívoco de Arendt consiste em entender a política como “[...] a práxis daqueles que conversam entre si, a fim de agirem em comum” (Habermas, 1980, p. 115).

Considerando que a esfera pública, em Habermas, é um fruto histórico da burguesia, vários teóricos da teoria democrática têm criticado esse modelo. Mesmo que a esfera pública arendtiana seja, segundo Alford (2014, p. 128), uma interpretação equivocada da prática ateniense – porque negligenciou as diferenças de classes subjacentes à democracia grega –, as críticas ao espaço público de Habermas também se aplicam à esfera pública de Arendt.  Teóricos dos estudos feministas, por exemplo, em Griffin (Griffin, 1996), defendem que o espaço público é patriarcal, desigual, ou seja, os métodos de argumentação refletem normas e privilégios dos quais são excluídas pessoas que não tiveram instrução suficiente, sofrem de desigualdade econômica, são previamente banidas de utilizar a palavra por lógicas machistas etc. 

Da mesma maneira, a esfera pública pode ser criticada pelo seu caráter eurocêntrico e racista (Gunaratne, 2006; Santos, 2012), ou seja, os métodos de argumentação dentro do espaço público não contam com as desigualdades estruturais geográficas e históricas que dão forma às normas de argumentação. Ignoram que o racionalismo e o iluminismo são formas do universalismo altamente situadas, são formas europeias, burguesas e patriarcais, que, nesse sentido, excluem, por grau maior ou menor, pessoas não europeias, racializadas, mulheres, proletários, pessoas não instruídas, pessoas com deficiência, dentre outros.

 

 

Considerações finais

Os processos revolucionários, enquanto fenômenos de uma historicidade transformadora, são sempre forjados em contradições e lutas. A complexidade desses fenômenos sociais constitui uma série de vários e distintos momentos, dos quais, muitas vezes, é difícil diferenciar qual instante constitui a mola da vida social. Ao analisar as revoluções liberais em França e nos Estados Unidos como fenômenos, Arendt buscou compreender o depois, ou seja, entender a própria noção de esfera pública que ajudaram a instaurar. Procurou também entender se foram capazes de consolidar a visibilidade e ideia de comunidade necessárias para promover o domínio público da aparência, com mais convivência e compartilhamento, como uma arena onde seres humanos constroem, pela ação e pelo discurso, “[...] a teia das relações humanas” (Chaves, 2022, p. 143). Nesse sentido, o espaço público enquanto categoria em Hannah Arendt antecede as várias formas de governo, já que o poder é em si a potencialidade da convivência.

Uma vez que a nossa posição política diante desse tabuleiro de xadrez da história pode ser determinante nos rumos políticos do futuro, a pergunta que se faz urgente, desde a República de Platão até a contemporaneidade, é: quem é “digno” de ocupar o espaço público? Se, na antiguidade, na democracia ateniense, eram considerados cidadãos apenas os sujeitos livres (não escravizados), homens com serviço militar cumprido – o que representava apenas um estrato da população e excluía uma grande parcela da sociedade –, hoje, ainda que tenhamos inúmeros avanços, a democracia burguesa permanece limitante e paralisante de inúmeros sujeitos políticos excluídos e/ou negligenciados.

 A normatividade analítica utilizada por Habermas, na sua interpretação do espaço público face à realidade factual, também não responde à interpelação de como sua interpretação se sustenta na glorificação de um passado histórico muito delimitado, a saber, o iluminismo e seus ideais de razão, universalismo, além da tríade do ideário da Revolução Francesa. Assim, a esfera pública coexiste entre a dicotomia da validade das normas e a facticidade da realidade social desigual.

Dissidente por natureza, Hannah Arendt fez opções políticas e teóricas que impactaram não só o seu tempo, mas o curso de gerações futuras na história humana. Analisar esses impactos dentro de classificações morais dicotômicas, como “bom e mau”, não dignificam ou acrescentam à pesquisa e ao debate teórico e político. Por isso, é fundamental enquadrar a instrumentalização dos seus argumentos e os seus impactos na História. Se os ideais liberais-iluministas influenciaram a independência das colônias dos séculos XVIII e XIX e foram base de movimentos revolucionários que substituíram o poder do absolutismo e o mercantilismo pelo liberalismo, a aristocracia pela burguesia, é igualmente sob a égide das relações capitalistas que a humanidade tem vislumbrado a progressiva escassez do planeta e a contínua degeneração da própria condição de humanidade.

Nessa esteira, repensar a história das lutas liberais não só é um dever de memória e reconhecimento, contudo, é também um compromisso cívico com o futuro. Uma responsabilidade à qual Hannah Arendt não se esquivou, embora os caminhos políticos que escolheu sejam repletos de tensões e contradições.

 

Liberalism and Republicanism: advances and contradictions about public space in the thought of Hannah Arendt

Abstract: The result of Hannah Arendt's study of bourgeois revolutions reflects not only the contradictions and dichotomies of her thought, but is an important diagnosis of the impact of liberal policies, their contradictions and evolution within the history of democracy. Modern republicanism, although critical of liberalism, assimilated elements inherent to liberal democracy, for example, the importance of the law, always imputed based on ideological political precepts of its time. The relevance of this analysis allows us not only to understand the bases of the philosopher's political thought, but its development in what she calls: public space. This must be a place for the expression of opinions, and therefore, for Arendt, without plurality, politics and public freedom are compromised to the extent that they make it impossible to maintain a space for the realization of freedom. However, in an unequal world, who can exercise their citizenship freely in public space? Was the liberal promise capable of providing these guarantees? In dialogue with Habermas and beyond, we intend with this investigation to outline the weaknesses of a bourgeois notion of the public sphere and to enunciate the urgency of building an ideal of republicanism based on popular demands.

 

Keywords: Bourgeois revolution. Crisis. Democracy. Public space.

 

Referências

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Recebido: 12/06/2024 – Aprovado: 25/07/2024 – Publicado: 23/09/2024



[1] [1] Doutora em Filosofia pela Universidade de Coimbra – Portugal. Pesquisadora no Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra – Portugal. ORCID https://orcid.org/0000-0002-9417-3871. Email: maruchoa@gmail.com.

[2] No original: “The one duty we owe history is to rewrite it” (Wilde, 2002, p. 299).

[3] A abolição da servidão e a dissolução da ordem feudal preconizaram uma sociedade gestada sob a égide de interesses comunitários. Contudo, as revoltas inspiradas nessas lutas foram derrotadas e deram lugar à eliminação das terras comunais e a sua transformação em propriedade.

[4] Surge em resposta aos monarcas que centralizavam todo o poder do Estado em si. O documento, datado de 1215, não só limitou o poder do rei da Inglaterra, como foi precursor do parlamentarismo e do constitucionalismo.

[5] Tradução livre da autora. No original: “This is the origin of modern constitutional principles, ideas of limited government, the separation of powers, and so on: principles which have displaced the social implications of ‘rule by the demos’ – such as the balance of power between rich and poor – as the central criterion of democracy” (Wood, 1995, p. 204).

[6] Ressalta Soromenho Marques (2000): “A Constituição federal de 1787 foi capaz de distender duradouramente as tensões internas da sociedade norte-americana, aumentar a eficácia do ‘núcleo’ federal, sem retirar aos Estados a sua ampla capacidade de iniciativa. Nessa medida, dificilmente se pode falar em 1787-1788 numa relação centro-periferia, como seria obrigatório olhando comparativamente para os Estados europeus, quando se pretende visualizar as relações entre governo federal e governos estaduais”.

[7] O elemento clássico republicano de Hannah Arendt é o conceito de fundação, bem como sua vinculação com a recuperação do conceito de autoridade.

[8] Margareth Canovan (1999, p. 182), em Terrible truths: Hannah Arendt on politics, contingency and evil”, afirma que, para Arendt, o futuro é aberto. E é por esse motivo que assevera: “Consideremos os novos começos que o homem criou no início do século 20: não só a fundação das nações unidas, mas também o começo do nazismo, não só antibióticos, mas também armas nucleares”. Tradução livre da autora. No original: “Only consider the new beginnings that men have made in the twentieth Century – not just the foundation of the United Nations but the initiation of Nazism, not just antibiotics but also nuclear weapons”.

[9] Em Marx, esse processo é compreendido de maneira totalmente oposta. Para ele, a Revolução Francesa começa pela revolta social, nomeadamente pelo pão das classes populares, e foi dirigida politicamente pela burguesia ascendente à base de ideais de liberdade e republicanismo.

[10] Tradução livre da autora. No original: “[…] young Marx became convinced that the reason why the French Revolution had failed to found freedom was that it had failed to solve the social question. From this he concluded that freedom and poverty were incompatible. His most explosive and indeed most original contribution to the cause of revolution was that he interpreted the compelling needs of mass poverty in political terms as an uprising, not for the sake of bread or wealth, but for the sake of freedom as well” (Arendt, 2016, p. 56).

[11] Tradução livre da autora. No original: “[...] a right-and-duty-bearing person, created by the law, which appears before the law” (Arendt, 2016, p. 103).

[12] Tradução livre da autora. No original: “[...] freedom and power have parted company, and the fateful equating of power with violence, of the political with government, and of government with a necessary evil has begun” (Arendt, 2016, p. 106).

[13] Na edição em inglês: “It is necessary to theorize the individual, notas a monad, an 'unencumbered' self that exists prior to and independently of society, but rather as a site constituted by an ensemble of 'subject positions', inscribed in a multiplicity of social relations, the member of many communities and participant in a plurality of collective forms of identification” (Mouffe, 1993, p. 97).

[14] A hegemonia americana sobre a Europa, fundada em estruturas financeiras, econômicas e militares, era considerada sobrenatural, em várias séries de operações culturais e ideológicas, como, por exemplo, se seguiu nos anos finais da Segunda Guerra Mundial, quando o lócus da produção artística e a ideia de arte moderna mudaram de Paris para Nova York (Hardt; Negri, 2000, p. 382).

[15] Na Europa do século XX, a utopia americana foi recebida de maneiras diferentes, todavia, funcionou como um ponto de referência central. A preocupação contínua era manifesta tanto na crise quanto no espírito das vanguardas, em outras palavras, através da autodestruição da modernidade e da vontade indeterminada, mas incontestável, de inovação, a qual levou à última onda de grandes movimentos culturais europeus (Hardt; Negri, 2000, p. 382).

[16] Aqui o termo originalmente utilizado por Jonh Dickinson, commonwealth, foi traduzido por “Estados separados”. Essa expressão era empregada no período da Revolução Americana em alternativa à palavra Estado – por entenderem que commonwealth tinha um sentido mais republicano (ideia de comum). O cuidado se dava no fato de uma monarquia também poder ser entendida como Estado; o objetivo, então, era demarcar a diferença entre os projetos políticos. Em nota à citação, Hannah Arent ressalta a confiança de Dickinson de que as colônias venceriam a guerra contra a Inglaterra.

[17] No quarto capítulo do livro The structural transformation of the public sphere: An inquiry into a category of bourgeois society (Habermas, 1991), Habermas destaca que a produção capitalista toma o lugar do antigo modo de produzir e a sociedade civil burguesa passa a ser constituída como sociedade civil que se apropria desse espaço e passa a pressionar o Estado.