O sentido do dever: as virtudes nas obras de Marco Túlio Cícero e Miyamoto Musashi

 

Fabricio Boscolo Del Vecchio[1]

Robinson dos Santos[2]

 

Resumo: Um dos propósitos das comparações filosóficas interculturais é o exame acerca de paralelismos culturais, o qual auxilia no entendimento de problemas existenciais. No entanto, é restrito o número de produções que tenham considerado o sentido do dever e o universo das virtudes, por intermédio de abordagem comparativa intercontinental. O propósito deste artigo é explorar o sentido do dever e a concepção de virtude nas e a partir das obras do filósofo romano Marco Tulio Cícero (106 – 43 a.C.) e do mestre espadachim japonês Miyamoto Musashi (1584 – 1645), tomando como obras principais Dos Deveres, do primeiro, e “Gorin No Sho” e “Dokkôdô”, do segundo. Em ambos, encontram-se elementos teórico-normativos convergentes, quanto à conduta virtuosa do agente, seja ele entendido como cidadão, isto é, no contexto social e político, seja ele concebido como indivíduo que age no campo de combate. Entre esses elementos em comum de ambas as posições, destacam-se a crítica ao hedonismo, o elogio à racionalidade e o domínio dos instintos. Contudo, os autores divergem no tópico relacionado à felicidade.

Palavras-chave: Filosofia antiga. Filosofia oriental. Crítica ao hedonismo. Artes marciais. Racionalidade.

 

Introdução

De modo geral, tanto no Oriente quanto no Ocidente, existe uma produção acadêmica na área da Filosofia que se ocupa com os paralelismos entre ideias de pensadores ocidentais e orientais acerca de problemas específicos (Pérez, 1963; Tremblay, 2010). Contudo, na maioria das vezes as abordagens já acontecem sob certa suspeita, a qual, em grande medida, é fruto de uma leitura enviesada herdada de um pensamento anterior: parte-se, por exemplo, de pontos de vista de autores como Hegel ou Heiddeger, quando estes sugerem que filosofia oriental não é filosofia, talvez porque, no Oriente, se tenha a ideia de que a filosofia seja “[...] um saber individualizado do homem, ao passo que esta última [filosofia oriental] está vinculada à religião, aos costumes e tradições” (De Boit et al., 2019, p. 2). Notadamente, estes são exemplos de uma visão particularmente estreita a respeito da sabedoria oriental.

No entanto, também encontramos esforços acadêmicos com abordagem mais voltada ao diálogo entre as tradições, como no caso do estudo das concordâncias e discordâncias entre o estoicismo de Epicteto (55 - 135 d.C.) e a filosofia oriental do Vendata[3], da qual grande volume textual foi compilado, entre os séculos X e I a.C. (Fontoura, 2021). Nesse contexto, é relevante destacar que há estudos comparativos intercontinentais[4] entre pensadores de diferentes locais (Silva, 2018; Gregorios, 2002), bem como análises entre o que foi produzido no Japão e na filosofia antiga mais tradicional (Davis et al., 2011), como a grega (Fujii, 1954) e a romana (Biricheva, 2021)[5].

No âmbito desta discussão, cabe notar que um dos propósitos das comparações interculturais entre diferentes filosofias é o de ampliar campo de alcance da própria filosofia e favorecer o aprofundamento da compreensão em torno de questões de interesse comum. Com efeito, o processo de análise comparativa tem, entre outros fatores construtivos, o potencial de transformar a prática filosófica do ponto de vista global (Taheri, 2022). Ademais, investigações que explorem paralelismos culturais acerca de ensinamentos filosóficos auxiliam no entendimento das questões filosóficas existenciais mais fundamentais. Estudo prévio explorou análise filosófica intercultural do filme Sete Samurais, de Akira Kurosawa, com base no estoicismo romano (White, 2023). No entanto, até o presente momento, não há produção[6] que tenha considerado o senso do dever e as virtudes que contemplem uma abordagem comparativa intercontinental, tendo em vista o pensamento de um filósofo romano antigo, Marco Túlio Cícero, e de um samurai japonês medieval[7], Miyamoto Musashi.

O presente trabalho, a título de ensaio, se insere no contexto da filosofia comparativa. Com efeito, quando se trata de fazer comparações num cenário filosófico, deve-se iniciar com observações básicas relativas aos elementos que compõem a estrutura de qualquer comparação. O esforço de aproximar filosofias de diferentes locais ou modos de pensar de diferentes filósofos está no domínio da filosofia comparativa. Para tal procedimento, é preciso que se levem em conta também as próprias condições espaço-temporais e a compreensão ou formação prévia daquele que fará o exame comparativo. Além disso, quando ao menos duas condições ou pessoas são comparadas, inicialmente ocorre estudo pré-comparativo que indica pontos de semelhança ou de divergência, em função dos quais ocorrem comparações quanto a temas eleitos e de interesse e, por fim, o resultado de tal comparação é apresentado com base nos aspectos escolhidos[8] (Weber, 2014).

Para o tema aqui escolhido, tomaremos as concepções de virtude e os deveres a esta correlacionados, desenvolvidos por um pensador da tradição ocidental, a saber, o filósofo Marco Túlio Cícero (De Officiis) e outro da tradição oriental, Miyamoto Musashi ("Gorin No Sho" e "Dokkôdô").

 

1 Marco Túlio Cícero e a obra De Officiis

Marco Túlio Cícero foi um filósofo, escritor, político e advogado latino do século I a.C., sendo considerado um dos mais importantes pensadores da história da filosofia e da política romana, e suas obras tiveram grande influência na cultura e na política romanas e no pensamento ocidental, em geral. Cícero nasceu em Arpino, na Itália central, em 106 a.C., e estudou direito e filosofia em Roma e na Grécia, destacando-se como advogado e orador, sendo eleito para diversos cargos políticos, incluindo cônsul, em 63 a.C. Sua obra foi amplamente estudada e comentada, ao longo da Idade Média e do Renascimento. Suas ideias sobre virtude, justiça e liberdade foram fundamentais para o desenvolvimento do pensamento ético e político ocidental (Gilbert; McConnell, 2021).

Ao longo de sua vida, Cícero foi influenciado por diversas correntes filosóficas e intelectuais de seu tempo, bem como por seus contemporâneos e predecessores. Durante sua juventude, Cícero estudou em Atenas, onde teve contato com a filosofia grega, especialmente com a filosofia estoica, a qual teve uma grande influência em sua obra. Ele também se inspirou em autores romanos antigos que defendiam a liberdade e a virtude republicanas. Além disso, Cícero manteve correspondência com diversos filósofos e intelectuais de seu tempo, como o estoico Possidônio e o acadêmico Antíoco de Ascalão, que o ajudaram a desenvolver suas ideias e concepções filosóficas. Do ponto de vista da produção de conhecimento, apoiou-se na obra de Panécio, a fim de escrever uma de suas principais contribuições, a obra De Officiis, Dos Deveres (Rawson, 1975).

A obra De Officiis é escrita em um formato de carta-testamento ao seu filho Marco Túlio Cícero Menor, e tem como foco central a Ética. Ressalta-se, ainda, que foi escrita em um curto período de tempo (quatro semanas) e publicada a primeira vez em 44 a.C., no último ano de vida de Cícero. Nela, o filósofo apresenta elementos para uma ética prática e expõe sua concepção sobre a melhor maneira de viver, comportar-se e observar as obrigações morais; é composta por três livros, sendo que o primeiro deles versa sobre o que é honroso para alguém, contém aspectos introdutórios, expõe o escopo da discussão, traz questões relacionadas à honestidade e à natureza humana, explicita e compara as quatro grandes virtudes (sabedoria[9], justiça, coragem/magnanimidade e decoro). O segundo livro discute o que é vantajoso para alguém, fazendo apologia ao “homem bom” e ao erudito, trata da aquisição das coisas úteis, da saúde e do dinheiro, além de suas relações com as virtudes, sendo finalizado proporcionando comparações associadas às coisas úteis. Por fim, o terceiro livro aborda o lazer, aprofunda questões ligadas ao aparente conflito entre o útil e o honesto, destaca a utilidade aparente e as virtudes, assim como elabora reflexões sobre a grandeza de espírito e faz uma crítica ao hedonismo. O próprio Cícero explica que os dois primeiros livros reúnem ideias prévias de Panécio[10] e que o terceiro livro se constitui como uma produção própria e autoral.

Além das virtudes previamente citadas, as quais orientam a estrutura da obra De Officiis, Cícero identifica três principais deveres ou obrigações do homem, os quais complementam sua visão sobre a ética e a virtude. O primeiro dever é para com os deuses, o segundo dever é para com o Estado e o terceiro dever é para com os pais e a família, os quais serão desenvolvidos na seção 3.1. Para Cícero, a prática dessas virtudes e deveres era essencial para se alcançar a harmonia social, a dignidade e a felicidade (Stewart-Robertson, 1983). Ainda, em De Officiis (L1-8, 2017), Cícero menciona a seguinte divisão (que ele atribui aos filósofos estoicos): os deveres podem ser “perfeitos”, caso em que estão as ações do sábio, ou “intermediários” e “comuns”, tanto para o sábio quanto para o não sábio (Tsouni, 2023).

 

2 Miyamoto Musashi e suas obras sobre o sentido do dever

Embora trazer informações sobre um praticante de artes marciais sob perspectiva filosófica possa causar estranheza, há um extenso corpo de conhecimento que tem conectado tais áreas, para além de questões relacionadas à religião. Nesse contexto, ao se assumir parte da filosofia como “prática” e, nos dizeres de Pierre Hadot sobre seu entendimento de filosofia como “caminho de vida”, as artes marciais podem se configurar como a materialização da prática filosófica oriental, a partir do seu entendimento como cultivo do aperfeiçoamento espiritual e, principalmente, ético, inclusive com o treinamento das diferentes virtudes e da moralidade (Priest; Young, 2014). Ao mesmo tempo, é relevante salientar que tal apresentação não pode se equivocar em exibir imagem distorcida do ethos dos guerreiros japoneses e de suas atitudes em relação ao combate e aos métodos de guerra, exagerando excessivamente a conexão entre essa classe e a seita Zen (Anshin, 2009).

Miyamoto Musashi[11] foi um famoso samurai japonês que nasceu em 1584, na província de Harima (atualmente, Hyôgo-ken), no Japão, e morreu em 1645, aos 61 anos, que o enquadraria entre os períodos Sengoku (1467-1603) e Edo (1603-1868) da história japonesa. Ele é considerado um dos melhores espadachins da história do Japão, e sua habilidade com a espada o tornou uma lenda ainda em vida. O “Santo Samurai” é conhecido por ter lutado em mais de 60 duelos, ao longo de sua vida, vencendo todos eles, sendo que sua primeira vitória ocorreu aos 13 anos de idade, retirando-se do caminho da espada aos 30 anos e se tornando uma lenda viva (Miyamoto, 1993). Quase 25 anos depois de ter encerrado sua carreira como samurai, ele reaparece com a produção de material bibliográfico que o inscreverá na posteridade. Nos últimos períodos de sua vida, Musashi viveu na caverna de Reigandô, onde se dedicava à caligrafia, pintura, escultura, cerimônia do chá, poesia e ao zen-budismo.

O samurai era adepto de formas de agir e pensar muito próprias, as quais valorizavam a simplicidade e a eficiência. Ele acreditava que a vida era uma batalha constante e que, para vencê-la, era necessário ter autodisciplina, autorreflexão e autocontrole. Musashi também enfatizava a importância do treinamento e da prática constante, para alcançar a perfeição. Sete dias antes de sua morte, por câncer, ele entregou dois documentos muito significantes a Terao Magonojô, seu principal discípulo, a saber: O Livro dos Cinco Elementos (Gorin No Sho), que é tido como um dos clássicos da estratégia militar e da filosofia samurai, e O caminho em que eu vou sozinho (Dokkôdô), o qual foi escrito em 12 de maio de 1645 e que esteve em posse de uma única família, até o início do século 20 (Machida, 2012).

Embora O Livro dos Cinco Elementos tenha elevado impacto na literatura moderna, o Dokkôdô trata da filosofia de vida de Musashi, em 21 frases aforísticas[12]. O fato de Musashi ter entregue ambos os documentos a uma única pessoa levaria a considerar que o conhecimento e a compreensão de ambos os documentos são essenciais para se alcançar a amplitude de seu pensamento. Assim, o Dokkôdô (O caminho em que eu vou sozinho, Quadro 1) é o último manuscrito redigido por Musashi e, após amplo estudo transliteral, Machida[13] (2012) propõe uma versão (em inglês, que ele traduziu diretamente do japonês), a qual é apresentada aqui em português.

 


 

Quadro 1 - Dokkôdô (O caminho em que eu vou sozinho ou O caminho de caminhar sozinho)

1. I will not oppose the ways of the world.

1. Não me oporei aos caminhos do mundo.

2. I will not seek pleasurable activities.

2. Não buscarei atividades prazerosas.

3. I will give preference to nothing among all things.

3. Não darei preferência a nada entre todas as coisas.

4. I consider myself unimportant, but not the world so great and so deep.

4. Considero-me sem importância, mas não o mundo tão grande e tão profundo.

5. I will be free of desire throughout my whole life.

5. Estarei livre do desejo, durante toda a minha vida.

6. I will not regret my deeds.

6. Não vou me arrepender de minhas ações.

7. I will not be envious of anybody, good or bad.

7. Não terei inveja de ninguém, bom ou mau.

8. I will not be sad when must take my leave of any way.

8. Não ficarei triste, quando tiver que me despedir de qualquer maneira.

9. I will not seek excuses and I will hold no grudge against myself or others.

9. Não buscarei desculpas e não guardarei rancor de mim mesmo ou dos outros.

10. I will not indulge in the way of passionate love.

10. Não me entregarei ao amor apaixonado.

11. I will not seek elegance and beauty in all things.

11. Não buscarei elegância e beleza em todas as coisas.

12. I will have no luxury in my house.

12. Não terei luxo em minha casa.

13. I will have no delicacies for myself.

13. Não terei iguarias para mim.

14. I will not own anything that will one day be a valuable antique.

14. Não possuirei nada que um dia seja uma valiosa antiguidade.

15. I will have trust in myself and never be superstitious.

15. Terei confiança em mim mesmo e nunca serei supersticioso.

16. Weapons are of the highest importance to me, I will not concern myself with other things.

16. As armas são da maior importância para mim, não vou me preocupar com outras coisas.

17. I will always be prepared to die on this way.

17. Estarei sempre preparado para morrer desta forma.

18. I will take advantage of no treasure or manor in my old age.

18. Não tirarei proveito de nenhum tesouro ou feudo na minha velhice.

19. Buddhas und Gods are worthy of adoration but I will ask them for nothing.

19. Budas e Deuses são dignos de adoração, mas não lhes pedirei nada.

20. Even if I sacrifice my life I will not sacrifice my name.

20. Mesmo que eu sacrifique minha vida, não sacrificarei meu nome.

21. I will never deviate from the way of Heihô

21. Jamais me desviarei do caminho de Heihô.

Fonte:   Machida (2012) traduziu do japonês para o inglês. Tradução dos autores para o português.

            Por sua vez, a obra O Livro dos Cinco Elementos (Gorin No Sho) é composta por quatro capítulos (Terra, Água, Fogo, Vento e Vácuo), os quais levam o nome dos cinco elementos da cosmovisão budista. Nele, Musashi apresenta os preceitos de seu sistema de combate, e como foi desenvolvida a escola que ele criou, a Niten-ichi, a Escola das Duas Espadas, modo de combate que ele desenvolveu e aplicou ao longo de sua vida. O rônin[14] tentou catalogar de forma exaustiva diferentes condições de luta, mas não as aprofundou pormenorizadamente, talvez porque, para ele, fosse claro que ensinamentos não pudessem ser transmitidos pela simples via verbal e racional – seria necessário praticá-los. Em Gorin No Sho, Musashi não discute virtude, no sentido ocidental tradicional (como em Aristóteles ou como nos estoicos), todavia, a partir do prisma da prática e da maestria no combate.

Embora não haja uma explicitação consistente das virtudes, na obra de Musashi[15], reconhece-se que o samurai seguia o Caminho do Guerreiro (Tsunetomo, 2004). Nesse sentido, pode-se compreender que ele vivia sob o estrito código do Bushidô (Código de conduta dos samurais, também conhecido como Caminho do Guerreiro). O Bushidô é constituído por sete princípios morais (Foust, 2015), os quais deveriam ser seguidos no campo de batalha e na vida diária, a saber: 1) Gi (justiça e retidão), 2) Yuu (coragem, bravura heroica), 3) Jin (compaixão, benevolência), 4) Rei (respeito, polidez e cortesia), 5) Makoto (honestidade, sinceridade absoluta), 6) Meiyo (honra, glória) e 7) Chuu (dever e lealdade).

Conforme destaca Anshin (2009), a vida de um samurai exigia uma constante expressão de suas atitudes e valores morais, através de sua postura corporal. O samurai era advertido contra certos comportamentos, como comer e beber excessivamente, além de outras formas de devassidão, visto que tais condutas eram consideradas ameaças à sua saúde e longevidade, bem como sugeriam um comprometimento insuficiente com o Bushidô e uma vontade fraca, próxima da covardia. A combinação da arte da guerra com o autocultivo espiritual pode parecer contraditória. No entanto, esse caminho pressupunha uma carga extrema, tanto física quanto espiritual, distinguindo os guerreiros que se concentravam nas questões morais e éticas de sua habilidade profissional (Tsunetomo, 2004). A "virtude apoiada pelo poder" era fundamental, nesse contexto, pois o objetivo final do treinamento nas artes militares era alcançar um caráter virtuoso (Hurst, 1990).

Como apontado por Tachibana e Nakazawa (2024), na visão japonesa, virtude é um conceito complexo que se desenvolveu ao longo da história, marcado por diversas tradições filosóficas e culturais, incluindo o Confucionismo, o Budismo e as tradições ocidentais. Nesse contexto, pontuam-se as contribuições: (i) das virtudes morais ocidentais (influenciadas pela ética da virtude contemporânea ocidental, que revive conceitos da filosofia grega antiga e do cristianismo), (ii) das virtudes epistêmicas ocidentais (as quais estão relacionadas à epistemologia da virtude), (iii) das virtudes psicológicas (ligadas à psicologia positiva, a qual tem em vista as forças e virtudes do caráter – muito fortes, no contexto do presente manuscrito), assim como (iv) das virtudes morais e epistêmicas do Japão Imperial (baseadas no "Rescrito Imperial sobre Educação" de 1890), (v) das virtudes confucianas, derivadas dos "Analectos" de Confúcio, que influenciaram a moralidade e a ética no Japão, e (vi) das virtudes morais e epistêmicas do período pós-guerra.

Destaca-se a influência do Confucionismo[16] na formação do conceito de virtude, no Japão, que se intensificou durante o período do xogunato Tokugawa (1603-1868), quando a filosofia confuciana foi reintroduzida e se tornou uma base importante para a moralidade e a ética, na sociedade japonesa (Tachibana; Nakazawa, 2024). Com efeito, no Japão medieval, havia uma justa aproximação entre cumprir o dever de sua casta, nesse caso, samurai, e aproximação a uma vida virtuosa, que era composta por componentes como coragem, disciplina e desapego. Essa integração de força e moralidade separava os praticantes do Bushidô daqueles que não priorizavam a ética, em suas práticas guerreiras (Anshin, 2009).

 

3 A virtude e o sentido do dever

A virtude (ἀρετή, em grego, melhor traduzida como excelência, e virtus, em latim) é um tema caro à filosofia, e diversos pensadores se ocuparam da respectiva temática, sob variados pontos de vista. Ela é tratada desde Sócrates, a partir do que é conhecido como Tese da Identidade, ou seja, sustenta-se a tese da unidade das virtudes, enquanto a virtude é uma forma de conhecimento, e avança-se em direção à Tese da Inseparabilidade, quando se considera que elas são diversas. “[...] a partir de Sócrates, a virtude assume um sentido ético, embora na sociedade ateniense predomine o sentido social e político [...]” (Paviani, 2012, p.  92). Platão (428/427 a.C. – 348/347 a.C.), de forma inespecífica e com base no conjunto de sua obra, destacava virtudes cardeais, a saber: justiça, temperança, coragem, nobreza de caráter, as quais seriam conectadas pela sabedoria, embora esse entendimento não seja consensual (Paviani, 2012). Em Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), a Teoria da Virtude ganha destaque. Em especial na obra Ética Nicomaqueia, distinguem-se as virtudes morais, que são adquiridas por meio do hábito e da prática constante (coragem, justiça, temperança...), das virtudes intelectuais (prudência, inteligência, sabedoria...), as quais são desenvolvidas pelo aprendizado, reflexão e ensinamento (Zingano, 2008).

            Após Platão e Aristóteles, as virtudes ainda foram tratadas por diferentes escolas helênicas, como epicuristas, estoicos e neoplatônicos. Dentre os primeiros, destaca-se o próprio Epicuro de Samos (341 a.C. – 270 a.C.), o qual se dedicou ao estudo da ética e da felicidade, sugerindo que a virtude é a chave para alcançar a paz de espírito e a felicidade, alcançadas a partir do prazer moderado e da ausência de dor. Entre os epicuristas, enfatizam-se a aponía (ausência de dor), a ataraxia (falta de perturbação da alma) e a prudência, como bens supremos (Epicuro, 2021). O estoicismo se constitui como outra escola helênica que se dedicou ao estudo da virtude. A Antiga Estoá iniciou com Zenão de Cítio (334 a.C. – 262 a.C.), o qual se empenhou no estudo da ética e da virtude, defendendo que a virtude é a única fonte de felicidade e que ela deve ser praticada com o viver segundo a natureza; por sua vez, a Média Estoá incorpora as ideias de Panécio e Possidônio e a Nova Estoá (ou Estoá Romana) é desenvolvida a partir de Sêneca (2024), Epicteto (2022) e Marco Aurélio (2020). Inclusive, Preston (2010) propõe que muitas crenças mantidas por estoicos e samurais são surpreendentemente semelhantes, sendo que a semelhança mais marcante diz respeito ao papel dos exercícios espirituais na preparação tanto do estoico quanto do samurai para a morte.

Como tema filosófico, a virtude foi e tem sido uma preocupação central para os filósofos, quer no Ocidente Latino Antigo, quer no Oriente Medieval. Na tradição ocidental, a virtude foi vista como algo que deveria ser cultivado através da razão e da vontade, com o objetivo de alcançar a perfeição moral. Platão (2017), por exemplo, identificou quatro virtudes principais: coragem, justiça, sabedoria e moderação. Já no Oriente Medieval, a construção da ideia de virtude foi profundamente marcada por algumas tradições religiosas, como o hinduísmo, o budismo e o taoísmo, mas também a partir das virtudes psicológicas, das virtudes confucianas e das virtudes morais e epistêmicas do Japão Imperial (Tachibana; Nakazawa, 2024). Segundo Wong (2011, p. 7), essas tradições enfatizam a ideia de que "[...] a virtude é uma expressão da harmonia com o universo, e o comportamento virtuoso leva à realização espiritual e ao bem-estar pessoal". Nesse contexto, a noção de virtude, no Oriente Medieval, está profundamente enraizada em tradições religiosas e filosóficas que realçam a importância de viver de acordo com os princípios do universo, em busca da iluminação ou da liberação – acatando o que estivesse determinado pelo destino.

Sinteticamente, tanto no Ocidente quanto no Oriente, a virtude é vista como um caminho para se alcançar um estado moral elevado e, assim, viver uma vida plena e significativa (Tachibana, 2024). Complementarmente, a educação moral visa a aumentar a consciência dos valores e da boa vida, sugerindo que ela deve ser repensada a partir da participação pública, decidindo o que é uma atividade moral significativa, a qual envolva autodeterminação e virtude cívica (Tachibana, 2008). Em que pese a distância geográfica e histórica referente à produção filosófica do Ocidente Latino Antigo e do Oriente Medieval, há intersecções relevantes, que merecem ser desveladas.

 

4 A concepção de dever em De Officiis, e as virtudes que o compõem

Para Cícero, as virtudes são os hábitos ou disposições adquiridas que levam o indivíduo a agir de maneira virtuosa e a alcançar a excelência moral, sendo que ele identificou quatro virtudes principais: sabedoria, justiça, coragem e temperança. Com efeito, a honestidade tem lugar de destaque, sendo que ela emana de quatro fontes (virtudes) distintas, a saber: (i) sabedoria, que versa sobre o discernimento e a apreensão do verdadeiro; (ii) justiça, para manutenção da sociedade dos homens, da fé e do contrato; (iii) magnanimidade, a partir da grandeza e resistência do ânimo elevado e invencível; (iv) decoro, considerando a ordem e a medida de todas as coisas feitas e ditas, nas quais se encontram a modéstia e a temperança (Cícero, L1-15, 2017, p. 19).

            Quanto à sabedoria, esta visa à busca e aprendizagem do verdadeiro. Ao mesmo tempo, Cícero aponta que dominar o conhecimento e as artes (como a astrologia, geometria, dialética, direito civil), que tratam da investigação do verdadeiro, não pode afastar as pessoas do cumprimento das obrigações, o que seria contrário ao dever, sendo que “[...] todo louvor da virtude cifra-se na ação” (Cícero, L1-18, 2017, p. 19). Em associação a isso, indicam-se dois vícios que devem ser evitados, sendo o primeiro a tomada das coisas desconhecidas como conhecidas e concordar com elas sem reflexão (em repúdio ao dogmatismo), além de se conferir tempo e estudo excessivo e preocupação desmesurada a assuntos obscuros (e difíceis).

            Indica-se uma segunda virtude, a qual se desdobra em duas partes: a justiça e a benevolência[17]. Acerca da justiça, recomenda-se a “[...] ninguém prejudicar a outro, a não ser quando provocado por um ato injusto; e sobre a benevolência, o autor indica “garantir que se utilize os bens comuns em proveito da comunidade e os particulares, no interesse de cada um” (Cícero, L1-20-21, 2017, p. 21). Acoplados a essa ideia de justiça, surgem dois gêneros de injustiça: (1) o daqueles que a produzem e (2) o daqueles que, podendo, não repelem a injustiça praticada por outrem (Cícero, L1-23, 2017, p. 22).

Uma outra virtude elencada é a coragem ou magnanimidade. Para Cícero, a magnanimidade é uma virtude que se refere à grandeza de alma e à elevada estima de si mesmo, a qual leva a pessoa a agir de maneira nobre e grandiosa. A pessoa magnânima tem uma grandeza de espírito que a faz se esforçar para alcançar grandes objetivos, e não se preocupa com pequenas vitórias ou com a opinião dos outros (Cícero, L1-72, 2017, p. 42). A magnanimidade envolve a disposição de se esforçar para alcançar grandes realizações, mesmo que isso exija coragem e sacrifício pessoal. Para Cícero (L1-79, 2017, p. 45), ela é uma das maiores virtudes, porque eleva o homem acima das preocupações mundanas e o leva a buscar as coisas verdadeiramente grandes, como a virtude, a sabedoria e a excelência moral. Em LI-93 de De Officiis, o romano realça uma quarta parte da honestidade (como virtude maior), a qual é composta pelo decoro, que se manifesta a partir da temperança, modéstia, pleno domínio das tribulações da alma e o senso de medida em todas as coisas – essa moderação, muitas vezes, envolve o uso da prudência e da reflexão, determinando e protegendo o que é verdadeiro (Cícero, L1-94, 2017, p. 45).

            Com efeito, o mérito da virtude reside na ação, consideração que o afasta da concepção mais reflexiva e menos prática, bastante presente no modus operandi desenvolvido por filósofos gregos. Indica que “[...] é próprio do homem a busca e a investigação do verdadeiro” (Cícero, L1-13, 2017, p. 18), bem como “[...] a beleza, a consistência e a ordem devem ser ainda muito mais preservadas, quer através das nossas próprias decisões quer pelas nossas ações [...]” (Cícero, L1-14, 2017, p. 19). Assim, as virtudes residem em três coisas distintas: i) examinar o que é verdadeiro e sincero, sendo próprio de cada um, o que é consequente, de onde provém cada coisa, qual é a causa de determinado evento, ii) coibir movimentos desordenados da alma e os apetites, tornando-os sujeitos à razão, e iii) tratar as pessoas com as quais nos relacionamos de modo hábil e respeitoso, recorrendo a elas na medida em que a humanidade e a equidade permitirem (Cícero, L2-18, 2017, p. 88).

De acordo com Cícero, a renúncia ao dever decorre de muitas causas, dentre as quais se destacam: (1) não desejar ou não provocar inimizades e se dar o trabalho e despesas decorrentes dessas desinteligências e (2) paralisia por negligência, preguiça, inércia, ocupações e estudos, que contribuem para o abandono do dever (Cícero, L1-28, 2017, p. 23). Ainda, o senso do dever se materializa inclusive para com aqueles de quem se sofrem injustiças (Cícero, L1-34, 2017, p. 26), e a palavra dada deve ser mantida, ao se prometer algo aos inimigos (Cícero, L1-39, 2017, p. 29).

Para o filósofo, afastam-se do dever aqueles ávidos por esplendor e glória, os quais tiram de uns para dar aos outros (Cícero, L1-43, 2017, p. 31). Em tempo, “[...] nenhuma coisa poderá ser generosa [ninguém poderá ser liberal] se não for, ela mesma, intrinsecamente justa” (Cícero, L1-43, 2017, p. 31), em contrapartida, Cícero deixa explícito que “[...] advindo do fato de sermos, todos nós, participantes da atividade racional, qualidade pela qual nos evidenciamos dos animais, dela provindo tudo aquilo que é honesto e conveniente, ao qual deve a razão o conhecimento do dever” (Cícero, L1-107, 2017, p. 56). Dessa forma, a busca do Logos não pode ser algo opcional, constituindo-se como parte intrínseca da natureza humana. Com efeito, para Cícero, os deveres decorrem da honestidade e dizem respeito à manutenção da vida e à provisão do que é útil aos recursos e às riquezas.

 

5 Dever e virtude, segundo Musashi

No contexto que permeia a era Tokugawa, a realização prática dos valores morais, incluindo lealdade e piedade filial, exigia um exercício constante de autodisciplina e força de vontade. Esses valores não podiam ser apenas teorizados; era necessário que fossem vivenciados, diariamente, através de ações concretas e comportamentos que refletissem os ideais do Bushidô – um sistema ético voltado às virtudes morais (White, 2023). Para alcançar tal nível de autodisciplina e força de vontade, era necessário um intenso cultivo pessoal, obtido por meio da prática sistematizada, a qual se materializava a partir do Bushidô. A mera aprendizagem teórica ou atividades exclusivamente mentais eram insuficientes para formar um verdadeiro samurai; era preciso um compromisso total com o treinamento físico e prático (Anshin, 2009).

            Na obra Musashi's Dokkôdô, Kane e Wilde (2015) realizam extensa reflexão sobre o Dokkôdô, no entanto, nenhum tipo de virtude é explicitado, o que nos remete, novamente, ao Bushidô como indicação, grosso modo, do sentido do dever, como indicado em Robertson (2006, p.  132): “Martial values including a strict code of conduct and a pledge to attain honor in both life and death distinguished Japanese warriors and fueled transformations in feudal religion, philosophy, and lifestyles[18] e “Traditionally, the medieval Japanese warrior symbolized rigor and austerity in contrast with the indulgent, courtly ideals of the Heian period[19]”. Já na obra Gorin No Sho, embora Musashi não apresente a definição de virtude, de modo explícito, e o que a compõe, vale destacar que a virtude é tema central na literatura relacionada ao Bushidô, sendo associada a valores como lealdade, coragem, honra e autossacrifício (Hurst, 1990).

           É importante destacar que o termo virtude é bem desenvolvido nos estudos sobre filosofia oriental, inclusive na perspectiva dos valores de vida dos samurais – com base no Bushidô (Gerstle, 1997). Nesse cenário, comportamento cortês, sinceridade e consideração pelos outros, bem como persistência e consistência no comportamento, eram critérios importantes de virtude para os cavalheiros samurais, sendo que tal virtuosidade deveria ser mantida pela força interior que residia na dignidade do indivíduo (Ikegami, 2003). Ao indicar que Musashi não explicite nominalmente tais virtudes, salienta-se a apresentação das obrigações da pessoa que deseja conduzir bem sua vida, de acordo com sua produção literária. Nesse bojo, tais virtudes são consideradas essenciais para os samurais e refletem o código de conduta que governa seu comportamento e ações. Além disso, a virtude é frequentemente retratada como característica distintiva dos guerreiros japoneses, enfatizando-se a integridade moral e o cumprimento dos deveres para com o senhor e a sociedade (Coldren, 2014). Musashi destaca nove princípios gerais (Miyamoto, 1993), dos quais podem ser extraídas ideias que merecem atenção (Pheng, 1997):

 

1)     Não pensar de forma desonesta: a honestidade é fundamental para se alcançar a qualidade em qualquer empreendimento da vida, e sua ausência pode corromper a qualidade do serviço ou da relação. A desonestidade pode levar à tomada de atalhos e comprometer os padrões de qualidade, afetando negativamente o resultado final. Portanto, é importante lembrar que a honestidade deve ser um valor central.

2)     O caminho é no treinamento: a aprendizagem é uma jornada contínua e o treinamento é uma parte importante disso. Não importa o nível de experiência ou a posição ocupada, sempre há algo novo para aprender e desenvolver. O treinamento constante é essencial para melhorar as habilidades e capacidades e alcançar um melhor desempenho.

3)     Conhecer muitas artes – não só a arte da espada: pode-se considerar que a busca pelo conhecimento é uma das características fundamentais da humanidade. Ao adquirir conhecimentos em diversas áreas, é possível expandir a visão de mundo e obter habilidades que podem ser aplicadas em diferentes situações. Aprender sobre as leis da natureza e sobre as particularidades de cada área de atuação, por exemplo, pode permitir uma melhor compreensão e adaptação ao mundo ao redor, resultando em maior possibilidade de sucesso.

4)     Compreender os mandamentos das diversas profissões: enfatiza-se a relevância da visão ampla e profunda de todas as profissões e áreas que estão relacionadas ao cotidiano de alguém. Isso implica que um samurai não deve ser limitado apenas à sua própria profissão, todavia, precisa ter uma compreensão profunda de todos os aspectos envolvidos nos demais processos das relações laborais e sociais. Essa visão holística e multidisciplinar pode ser aplicada em várias áreas da vida, enfatizando-se a importância de se ter uma compreensão profunda e ampla do mundo ao nosso redor, a fim de sermos capazes de agir de maneira efetiva e alcançar nossos objetivos.

5)     Discernir as vantagens e as desvantagens que existem em todas as coisas: esse ensinamento do código dos samurais enfatiza a relevância de se compreender a diferença entre ganho e perda, em questões mundanas. Na perspectiva filosófica, isso sugere que devemos ter uma compreensão clara das coisas que são importantes para nós e das que não são. Devemos aprender a discernir entre as coisas que nos trarão benefícios e aquelas que nos levarão a consequências negativas. Isso é especialmente essencial em nossa busca pela realização e satisfação pessoal.

6)     Desenvolver a capacidade de discernir a verdade, em todas as coisas: a intuição é vista como uma espécie de conhecimento que não é alcançada por meio da razão ou da experiência direta, mas sim através de uma percepção imediata e não mediada. Essa forma de conhecimento pode ser particularmente útil em situações nas quais a definição de qualidade pode ser imprecisa, mas, ainda assim, pode ser facilmente reconhecida, quando vista.

7)     Conhecer pela percepção instintiva coisas que não podem ser vistas: nem tudo que é importante pode ser visto ou mensurado imediatamente. É necessário desenvolver uma percepção mais profunda e sensibilidade para reconhecer a importância das coisas que são menos óbvias. As recompensas pela qualidade podem não ser imediatas, contudo, em longo prazo, a busca pela excelência em cada projeto pode ser recompensada com uma reputação sólida. Para alcançar o êxito, é necessário ter uma visão de longo prazo e uma disposição para ver além do óbvio, à procura de recompensas que podem não ser imediatamente perceptíveis.

8)     Prestar atenção aos menores de detalhes: a atenção plena aos detalhes pode ser crucial para o sucesso, em todas as áreas da vida, porque mesmo as coisas aparentemente triviais podem ter um grande impacto em nossas vidas. Além disso, a motivação não é apenas impulsionada pelo dinheiro, mas também por reconhecimento e incentivo. Isso nos leva a refletir sobre a necessidade de valorizar e reconhecer as pessoas pelo seu trabalho, independentemente do seu status ou função.

9)     Não fazer nada de inútil: não desperdiçar esforços em atividades que não produzem resultados efetivos. Nesse sentido, é preciso planejar bem o fluxo de ação, evitando desperdícios e maximizando a eficiência em todas as áreas da vida. Ele nos lembra que o tempo e os recursos são preciosos e devem ser usados com sabedoria, sempre com um objetivo em mente.

 

Para Musashi, a virtude não se limita apenas à habilidade técnica ou física, todavia, engloba ainda aspectos éticos, morais e mentais, que indicam uma filosofia de vida austera e desprovida de excessos. A virtude aqui é entendida como um alinhamento com a natureza e uma aceitação do destino[20], mantendo-se firme no próprio caminho. Musashi documenta uma visão de virtude e dever que está profundamente enraizada na prática e na vida do guerreiro. Sua abordagem é menos teórica e mais pragmática, refletindo a cultura samurai e o código de conduta do Bushidô. Sua filosofia valoriza a ação, a autodisciplina, o alinhamento com a natureza e com o próprio destino.

Enfatiza-se a relevância do autoaperfeiçoamento, da disciplina mental e da compreensão profunda das situações (Ciecieląg, 2014). Tal conduta não se finda na transmissão de técnicas de combate, mas almeja promover mentalidade voltada à superação dos desafios, na busca da excelência e da harmonia (Tokitsu, 2012). Seu posicionamento realçava a importância da autenticidade, da simplicidade e da adaptabilidade, diante das adversidades. De acordo com Machida (2016), Musashi aborda a virtude não apenas como uma questão de habilidade técnica, mas como um conjunto de princípios éticos e morais que guiam a conduta do praticante de artes marciais e influenciam sua jornada de autodescoberta e crescimento pessoal.

Ademais, Miyamoto Musashi desenvolve a ideia de senso de dever, a partir de seus ensinamentos sobre a conduta apropriada, responsabilidade e comprometimento. O senso de dever, conforme Musashi, está intrinsecamente ligado à ética e à moralidade, sendo um aspecto fundamental do caminho do guerreiro e do aprimoramento pessoal (Machida, 2016).

 

6 O sentido do dever em marco Tulio Cícero e Miyamoto Musashi

Nesta seção, será apresentada uma análise comparativa entre Cícero e Musashi. A correlação estabelecida entre eles é informativa e tende a enfatizar interesses comuns entre seus principais textos. Dado que, em Musashi, não há uma visão teórica clara ou um conceito explícito de virtude, aqui o foco é ajustado e se concentra nos modos pelos quais os autores tratam as obrigações da pessoa que conduz bem sua vida. Para Tsouni (2023), é relevante lembrar que, em Cícero, a honestidade se constitui como a virtude das virtudes. Ainda existem as virtudes cardinais (sabedoria, justiça, coragem e decoro) e, então, virtudes correlatas (p. ex., para a sabedoria, a precaução, a justiça, a fidelidade, a coragem, a paciência, o decoro, a humildade). Embora Musashi não tenha explicitado virtudes, em sua obra, assumem-se aquelas relacionadas ao Bushidô, a saber: (1) Gi, justiça e retidão; (2) Yuu, coragem, bravura heroica; (3) Jin, compaixão e benevolência; (4) Rei, respeito, polidez e cortesia; (5) Makoto, honestidade e sinceridade absoluta; (6) Meiyo, honra, glória, e (7) Chuu, dever e lealdade. Denota-se, portanto, elevada sobreposição entre ambos os autores, em que pesem suas diferenças geográficas e temporais.

Cícero (L1-66, 2017, p. 40) indica que “[...] uma alma corajosa e grande se distingue principalmente por duas características. Uma delas é o desprezo dos bens exteriores [...]. Não deve ceder a ninguém, a nenhuma tribulação, sequer à fortuna”. E segue, ao frisar que se deve praticar ações grandiosas e sobretudo úteis, como também, veementemente, tarefas árduas, trabalhosas e arriscadas que interessem à vida, julgando bom somente o que é honesto e estar livre de tribulações (Cícero, L1-66, 2017, p. 40). Paralelamente, Musashi explicita que as posses devem ser usadas para o desenvolvimento pessoal, e que o acúmulo dos bens exteriores não é algo que deveria ser privilegiado, ao longo da velhice (Dokkôdô, Preceito 18). Como sugerido em posição contrária ao acúmulo de bens materiais, ambos os autores sugerem que a residência não deve ser um lugar de luxo. Em seu 12º Preceito do Dokkôdô, Musashi explicita: “Não terei luxo em minha casa” – e, em consonância a isso, Cícero (L1-139, 2017, p. 70) recomenda que a casa de um homem horando e estimado tem como objetivo a utilidade, com conforto e dignidade.

            O filósofo romano também destaca a coragem e, nesse sentido, que é próprio do ânimo corajoso e constante não se deixar perturbar pelas dificuldades nem se abalar, valendo-se da presença de espírito e da razão. Com efeito, salienta que a batalha não é a melhor forma de resolver diferenças, mas, quando as circunstâncias o exigem, deve-se encarar o adversário, antepondo a morte à servidão e à desonra (Cícero, L1-81, 2017, p. 45). Musashi, no Dokkôdô (Preceito 17. “Estarei sempre preparado para morrer desta forma” e Preceito 21. “Jamais me desviarei do caminho de Heihô[21]), deixa evidente sua escolha em seguir o caminho do guerreiro, no sentido de ter uma mente estratégica e de estar sempre preparado para enfrentar os desafios da vida. Assim como Cícero, Musashi enfatiza a coragem, ter confiança em si mesmo e nunca subestimar o inimigo, ressaltando a relevância de se manter calmo e sereno, mesmo em momentos de grande pressão ou perigo.

            Tanto em Cícero (L1-101-103, 2017, p. 54) quanto em Musashi (Dokkôdô 2, 3, 10), há preocupação em evidenciar que a razão deve guiar o apetite, o qual deve se curvar a ela e não a ultrapassar. Com efeito, “[...]  os apetites que se desgarram e como que exultam na busca de satisfação ou na contenção não são suficientemente freados pela razão e, sem dúvida, rompem os limites e a medida” e continua, ao afirmar que pessoas que “[...] alimentam paixões ou medos entregam-se aos extremos da volúpia” (Cícero, L1-102, 2017, p. 54); assim, o filósofo romano destaca a relevância de uma vida séria e destinada às tarefas que são de maior dimensão e importância. Em contrapartida a Musashi, em seus escritos, Cícero declara: “É lícito nos entregarmos aos divertimentos, mas, como ao sono e ao repouso, depois de cumpridas as tarefas respeitáveis e sérias” (L1-103, 2017, p. 54-55).

            Ambos os autores reprimem o prazer do corpo, dado que o mesmo não é “[...] suficientemente digno da superioridade do homem, devendo ser não só desprezado como ainda rejeitado” (Cícero, L1-106, 2017, p. 56); isso é igualmente explicitado no Dokkôdô, de Musashi, a saber: Preceito 2. “Não procure prazer físico para seu próprio partido” e Preceito 10. “Não deixe se guiar pelos sentimentos de luxúria ou amor”, o qual se alinha à ideia de Cícero (L1-106, 2017, p. 56) de que “[...] é vil dissipar-nos na luxúria, assim vivendo sem qualquer energia e no meio da maior voluptuosidade [...]”.

Cícero (L2-19, 2017, p. 89) pensa que fortuna, ou o acaso, não deveria ser ignorada, tanto na prosperidade quanto na adversidade, entretanto, ao mesmo tempo, aponta que casos fortuitos por si não determinam de modo frequente a maior parte dos desfechos, sendo que a atividade humana e seus recursos apropriados poderiam direcionar o impacto de tal acaso. Curiosamente, no Preceito 4, Musashi demarca: “Considero-me sem importância, mas não o mundo tão grande e tão profundo”. De modo interpretativo, não se pode ignorar a ideia da limitação e da mortalidade, na vida humana; logo, Machida (2012) sugere que não podemos escapar do destino, mas, ao mesmo tempo, devemos saber que o significado da própria vida surge exatamente dessa limitação, da nossa mortalidade, e é através dessa limitação que encontramos o significado da vida e desenvolvemos nossa própria jornada única.

Com efeito, o tema da utilidade é muito presente em ambos os autores, dado que o “útil” envolve as razões para a busca do dever e para a tomada de decisão, em Cícero e em Musashi, aparecendo de forma bastante contundente no Preceito 14 (“Não possuirei nada que um dia seja uma valiosa antiguidade”). Nas palavras de Machida (2012), a filosofia de Musashi, como refletida no Dokkôdô, enfatiza a importância do uso prático das coisas, em vez de seu valor estético ou simbólico (Kane; Wilder, 2015). Ele acreditava que o verdadeiro valor de uma coisa é revelado, quando esta é usada para um propósito específico pelo proprietário. Essa abordagem prática reforça a importância da ação sobre a contemplação e concebe que o conhecimento é adquirido através da experiência direta. Além disso, a ideia de que uma coisa revela sua natureza, quando é usada, lembra que cada objeto tem um propósito específico e que é apenas através do uso que podemos compreender plenamente sua verdadeira natureza, sendo que, para ele, as ferramentas eram exclusivamente para serem usadas e não para serem desfrutadas esteticamente (Kane; Wilder, 2015).

Esse tema também é explicitado no Preceito 18 (Não tirarei proveito de nenhum tesouro ou feudo, na minha velhice), quando da ideia de que, independentemente de ser um tesouro ou uma propriedade, uma possessão deve ser usada e não é um fim em si mesma ou para a satisfação pessoal (Machida, 2012). Musashi, como expressa no Dokkôdô, valoriza o uso prático das posses e enfatiza a importância do desenvolvimento pessoal, em vez do acúmulo de bens materiais. Assim como Cícero reforça, em sua obra De Officiis, Musashi acreditava que o legado duradouro para as gerações futuras é mais valioso do que manter as posses para si mesmo, na velhice. Inclusive, esse assunto também aparece em De Officiis, quando Cícero discute o senso de dever de jovens e de idosos, sendo que esses últimos devem se dedicar ao “trabalho da alma”, evitando o luxo e a intemperança dos desejos, na velhice. Com efeito, Cícero sugere que os idosos devem contribuir com a juventude e com a república, a partir de conselhos e com a prudência (Cícero, L1-123, 2017, p. 63). Um ponto importante em Cícero versa sobre a escolha dos deveres, ou seja, qual seria a gradação a ser respeitada, quanto ao senso do dever. Nesse sentido, embora não seja consensual[22], permite-se saber “[...] que os primeiros são para com os deuses imortais, os segundos para com a pátria, os terceiros para com os pais, e assim sucessivamente” (Cícero, L1-160, 2017, p. 56).

            Em contraposição à ideia de glória elevada e perfeita, explicitada por Cícero, a qual é obtida a partir de ser benquisto (benevolência), padecer de boa fé e ser digno de honra e admiração (Cícero, L2-31, 2017, p. 94), Musashi se afasta de tal perspectiva, e isso fica explicitado no Preceito 4 (“Considero-me sem importância, mas não o mundo tão grande e tão profundo”). Por outro lado, eles se reaproximam, quando: i) Cícero (L2-38, 2017, p. 97) aponta que não pode ser justo quem teme a morte, a dor, o exílio ou a pobreza, ou que antepõe seus contrários à equidade e ii) Musashi explicita seus Preceitos 8 (“Não ficarei triste, quando tiver que me despedir de qualquer maneira”) e 17 (“Estarei sempre preparado para morrer desta forma”), em Dokkôdô.

Ora, enfatiza-se que o primeiro trata da natureza efêmera da vida e dos encontros humanos. Embora possamos encontrar muitas pessoas valiosas e aprender com elas, a separação é inevitável e pode trazer grande tristeza. No entanto, o Samurai argumenta que é importante concentrar nosso coração no encontro e não na separação, para que possamos valorizar plenamente as experiências que tivemos com essas pessoas, valorizando o presente momento e abraçar cada encontro como uma oportunidade única na vida, em vez de nos preocuparmos com o inevitável adeus que virá eventualmente. Quanto ao Preceito 17, ele sugere que a morte é para todos nós a nossa experiência mais pessoal e última, na qual podemos refletir e através da qual podemos obter uma riqueza inesgotável de conhecimento, sendo que só podemos atingir o ápice do nosso potencial, quando lutamos pela vida e pela morte.

De modo amplo, pontua-se que as artes marciais, ou o caminho da espada (Heihô), no caso de Musashi, exigem racionalidade e domínio dos instintos. Em certa medida, isso coincide com ideias de Cícero (L1-101-103, 2017, p. 54), ao evidenciar a noção de racionalidade instrumental, na qual a natureza humana é orientada pela razão e os seres humanos têm uma inclinação natural para buscar o que é útil e benéfico para si mesmos. Ele argumenta que essa inclinação não é necessariamente ruim, mas que é preciso agir de forma virtuosa (honesta e justa), para usar essa inclinação, de maneira benéfica para a sociedade.

            Dentre as diversas convergências, destaca-se a crítica de Cícero (L3-116, 2017, p. 173) aos hedonistas e à procura desmedida pelo prazer, em função dele próprio, assim como a explicitação de Musashi, ao evitar momentos que estejam relacionados ao prazer (p.  ex. em Dokkôdô, no Preceito 2. Não buscarei atividades prazerosas; Preceito 5. Estarei livre do desejo, durante toda a minha vida; Preceito 10. Não me entregarei ao amor apaixonado). Tanto Musashi quanto Cícero enfatizam a relevância do dever e da responsabilidade moral, defendendo que cada pessoa tem obrigações éticas a cumprir consigo mesma, com a sociedade e com o universo. Eles valorizam a virtude como um princípio orientador para uma vida ética e significativa, realçando a importância de determinadas qualidades, como coragem, honestidade, justiça e sabedoria, para se alcançar a excelência moral e pessoal. Além disso, ambos acreditam que o autodesenvolvimento e a autodisciplina são essenciais para se atingir a virtude e cumprir o dever, reconhecendo o papel do esforço pessoal e da busca contínua pela melhoria. Suas reflexões éticas são baseadas em princípios de ética e moralidade, respeito aos outros, sendo justos em suas ações e almejando o bem comum (Machida, 2016).

            Indica-se, como ponto de divergência entre Cícero e Musashi, a ideia de felicidade. Como um samurai e zen-budista, Musashi considera a felicidade como uma condição passageira, neste mundo de mudança, que logo deve ser substituída pelo sofrimento, a verdadeira natureza deste mundo. Portanto, é errado aspirar à felicidade, pois ela própria é a nova causa do sofrimento (Kane; Wilder, 2015). Quando uma pessoa se sente feliz, ela deve considerar isso como uma bênção e não deve se apegar a isso, pois todos os apegos podem ser obstáculos para seguir o caminho (Preceito 2: “Não buscarei atividades prazerosas”). Em contrapartida, Cícero, ao mesmo tempo que se afasta da percepção estoica de felicidade – viver conforme a natureza –, também salienta, em outra obra, que a verdadeira felicidade só pode ser vivenciada em uma República perfeita (Cícero, 2019).

            Cícero, em diversos momentos, arrola aspectos relacionados aos exércitos, à guerra e aos confrontos entre Roma e outros grupos invasores. Ao mesmo tempo, tem excelência na política, na oratória e, evidentemente, na filosofia ética e moral. Já Musashi, ao buscar a perfeição nas artes liberais, materializa o supremo ideal da classe guerreira: o Bunku Ryôdô, a pena e a espada. Desse modo, a partir do senso do dever exposto por esses dois homens, em tempos e locais absolutamente distintos, podemos indicar que ambos agrupam as artes literárias e militares em suas rotinas, tanto em virtudes civis como em aplicações marciais.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao traçar uma interpretação filosófica da produção de Musashi, percebe-se que seus escritos podem ser comparados com o pensador ocidental, não apenas porque um reflete o outro, mas porque se completam mutuamente. Uma especificidade da filosofia de Musashi é que ela não se concentra apenas nos princípios que orientam a ação em direção a um objetivo, porém, igualmente considera de perto as condições de aplicação desses princípios (Machida, 2016). No entanto, o aspecto pragmático dos escritos de Musashi não deve ser visto como falta de princípios filosóficos. Na verdade, pode-se sustentar que Musashi é comparável ao movimento filosófico pragmatista, no mundo ocidental – e Cícero tem características pragmáticas e de aplicação prática amplamente reconhecidas (Tsouni, 2023).

Enquanto Cícero se dedica à composição de um texto destinado à sua descendência, seu objetivo se entrelaça com as complexidades da esfera política e administrativa da sociedade na qual viveu. Em De Officiis, ele não apenas busca transmitir ensinamentos morais e éticos, mas também visa a proporcionar orientações práticas para seus descendentes se posicionarem, quanto ao exercício do poder e da responsabilidade cívica. Cícero, influenciado pela tradição filosófica clássica e pela sua própria experiência como estadista e orador, procura equipar seu herdeiro com as ferramentas necessárias para prosperar não apenas como indivíduo, mas também como cidadão comprometido com o bem-estar da comunidade.

Por outro lado, Musashi adota uma abordagem mais introspectiva e focalizada no indivíduo, em sua obra. Ao invés de se envolver com os intricados meandros da política e da administração pública, Musashi se volta para questões mais pessoais e profundas. Seus escritos exploram os caminhos da autodescoberta, do aprimoramento pessoal e da busca pela excelência individual, nas artes marciais e na vida em geral. Musashi procura transcender as preocupações mundanas e mergulhar na existência humana, oferecendo indicativos sobre a natureza da coragem, da honra, da disciplina e da maestria. Assim, enquanto Cícero tece uma rede de deveres e virtudes voltadas para a sociedade, Musashi se dirige em busca de uma compreensão mais profunda e significativa da vida e do propósito individual.

Ambos os autores, Cícero e Musashi, ressaltam a relevância de uma vida dedicada à prática do dever e da virtude. Para Cícero, a honestidade é a virtude fundamental, enquanto Musashi, mesmo sem explicitar virtudes, enfatiza certos princípios, como honestidade, coragem, compaixão e lealdade, especialmente sob o contexto do Bushidô. Ambos concordam sobre a importância de não se deixar levar por prazeres efêmeros, como o luxo e a busca por bens materiais, e enfatizam a necessidade de agir com sabedoria, serenidade e coragem, diante das adversidades. Os dois pensadores também compartilham a ideia de que a prática constante do dever e a procura pela excelência moral são essenciais para uma vida plena e significativa.

Em suma, mesmo que em contextos culturais e filosóficos diferentes, as considerações finais sobre o sentido do dever em Cícero e Musashi convergem em muitos aspectos. Ambos enfatizam a importância da virtude, da honestidade e da coragem, reconhecendo que uma vida dedicada ao cumprimento do dever, com sabedoria e serenidade, é o caminho para alcançar um estado moral elevado e significativo.

 

The Sense of Duty: Virtues in the Works of Marcus Tullius Cicero and Miyamoto Musashi

 

Abstract: One of the purposes of intercultural philosophical comparisons is to examine cultural parallels, which helps in understanding existential problems. However, the number of works that have considered the sense of duty and the universe of virtues through an intercontinental comparative approach is limited. The objective of this article is to explore the sense of duty and the conception of virtue in and from the works of the Roman philosopher Marcus Tullius Cicero (106 – 43 BC) and the Japanese swordmaster Miyamoto Musashi (1584 – 1645), taking as main works On Duties, by the former, and “Gorin No Sho” and “Dokkôdô”, by the latter. In both, we find convergent theoretical-normative elements regarding the virtuous conduct of the agent, whether he is understood as a citizen, that is, in the social and political context, or whether he is conceived as an individual who grows old on the battlefield. Among the common elements of both positions, the criticism of hedonism, the praise of rationality and the mastery of instincts stand out. However, the authors diverge on the topic related to happiness.

 

Keywords: Ancient philosophy. Eastern philosophy. Criticism of hedonism. Martial arts. Rationality.

 

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Recebido: 09/06/2024 – Aprovado: 14/08/2024 – Publicado: 04/10/2024



[1] Escola Superior de Educação Física e Fisioterapia, Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, RS – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3771-9660. E-mail: fabricioboscolo@gmail.com.

[2] Instituto de Filosofia, Sociologia e Política, Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, RS – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3549-2143. E-mail: dossantosrobinson@gmail.com.

[3] Vendata, como tradução literal, significa veda (sabedoria) e anta (fim), e teria como síntese o termo “fim da sabedoria” ou, nos dizeres de Fontoura (2021), sabedoria suprema.

[4] Silva (2018) sugere haver evidências de possíveis conexões epistêmicas intercontinentais, em especial entre gregos e gimnosofistas hindus. Já Gregorios (2002) avança na exploração das relações entre filosofia neoplatônica, em especial Plotino, e a filosofia indiana, de modo mais amplo.

[5] Nesse estudo, Ekaterina Biricheva discute a existência do ser humano, a partir de estoicos romanos (Lucius Annaeus Seneca, Marcus Aurelius Antoninus) e de samurais japoneses (Yuzan Daidoji, Yamamoto Tsunetomo e Miyamoto Musashi).

[6] O escopo da pesquisa temática se deu em diferentes bases de dados digitais, incluindo JSTOR, PhilArchive, EBSCOhost, WebOfScience e Periódicos Capes, bem como em comunidades acadêmicas digitais, a saber: Research Gate e Academia.Edu.

[7] A atribuição de “medieval” a Miyamoto Musashi é debatida, devido às diferenças na periodização histórica entre o Japão e a Europa. Musashi, que viveu entre 1584 e 1645, pertence aos períodos Sengoku (1467-1603) e Edo (1603-1868) da história japonesa. Enquanto o termo "medieval", na história europeia, se refere aos séculos V a XV, no contexto japonês, ele é menos definido e pode abranger do período Kamakura (1185-1333) ao final do período Sengoku (1467-1603). Assim, seria mais preciso chamar Musashi de samurai do final do período Sengoku e início do período Edo, embora o uso de "medieval" possa ser aceitável, no contexto histórico japonês mais amplo.

[8] Grande parte do corpo de conhecimento sobre Filosofia Comparativa foi construído por Christian Wolff, embora o artigo de Ralph Weber (2014) o atualize e avance, quanto aos fundamentos metodológicos.

[9] Em grego, σοφία, e, em latim, sophia, e não prudência, como muitas vezes é entendido.

[10] Panécio de Rodes (185 a.C.-110/109 a.C.) foi um filósofo grego nascido em Rodes, relevante na difusão do Estoicismo entre os romanos, durante o tempo em que morou em Roma. Foi considerado um dos maiores representantes da fase médio-estoica e, com ele, o estoicismo se tornou mais eclético, sendo sua obra principal intitulada Sobre os Deveres.

[11] Em tempo: vale lembrar que o sobrenome da família é Miyamoto, e que Musashi é seu nome, dado que em japonês tradicional, o sobrenome costuma aparecer em primeiro lugar.

[12] Na filosofia oriental antiga, há dificuldade de se atribuir o produto literário ao autor, em específico, mas parece que aqui não é o caso (Beluzzi, 2015). Nesse sentido, reconhece-se amplamente que a autoria de tais documentos seja, de fato, de Miyamoto Musashi.

[13] Teruo Machida é professor na Faculty of Sport Science da Nippon Sport Science University, tendo traduzido o Dokkôdô do japonês para o inglês.

[14] No Japão feudal, um rônin era um tipo de samurai que não tinha senhor ou mestre (muitas vezes, por morte deste último), ou que cortou os laços familiares.

[15] As virtudes que Musashi valoriza estão intrinsecamente ligadas à eficiência, à clareza mental, e à determinação – com uma perspectiva pragmática. Em vez de uma virtude moral abstrata, ele enfatiza algumas qualidades, como coragem, disciplina e desapego, que são indispensáveis para um guerreiro, virtudes praticadas e cultivadas de treinamento rigoroso e da busca por excelência.

[16] Embora não seja objeto central do trabalho, ressalta-se que o Confucionismo é uma prática originada na China, baseada nos ensinamentos de Confúcio (551 – 479 a.C.). Centralizado na importância da ética, moralidade e das relações sociais, o Confucionismo enfatiza determinados valores, como a lealdade, o respeito aos mais velhos, a benevolência e a busca pela harmonia social.

[17] Sugerem-se também alguns termos, como bondade ou liberalidade, para sua caracterização.

[18] Tradução: Valores marciais, incluindo um código de conduta rigoroso e uma promessa de obter honra na vida e na morte, distinguiram os guerreiros japoneses e alimentaram transformações na religião, filosofia e estilos de vida feudais.

[19] Tradução: Tradicionalmente, o guerreiro medieval japonês simbolizava rigor e austeridade, em contraste com os ideais indulgentes e cortesãos do período Heian.

[20] Com efeito, Ryder (2024) sugere que existem conexões na filosofia de Musashi com escolas de pensamento greco-romanas, como o Estoicismo. Uma filosofia construída sobre princípios de coragem, justiça, sabedoria e autocontrole, o Estoicismo faz a distinção entre focar no que podemos controlar e no que não podemos. Existem dois conceitos estoicos que são análogos ao éter, no capítulo da obra Gorin No Sho, a eudaimonia e a cidadela interior.

[21] O termo heihô, no Dokkôdô, representa a habilidade de se preparar para os desafios da vida, de ser um guerreiro completo, não só fisicamente, mas também mentalmente, e de estar pronto para enfrentar qualquer situação com coragem e determinação.

[22] Em L1, 53 a 58, são sugeridas outras ordens, por vezes, suprimindo os deuses, por vezes, invertendo as prioridades.