Pensamento não-metafísico ou pós-metafísico? A controvérsia de Rawls e Habermas sobre o realismo político

 

Felipe Moralles e Moraes[1]

 

Resumo: Este artigo parte da discussão de Rawls e Habermas sobre a interação entre realismo político e normatividade para responder a uma pergunta fundamental na filosofia política contemporânea. Quão realista é uma teoria normativa da política que critica ou rejeita muitos compromissos religiosos, filosóficos e metafísicos profundos? Rawls sustenta que a teoria política adquire realismo e objetividade quando se abstém de se pronunciar sobre teorias metafísicas (não-metafísica). Habermas argumenta que o realismo surge quando a teoria política embate com teorias metafísicas e prioriza a práxis sobre a metafísica (pós-metafísica). O artigo examina criticamente as objeções de Rawls ao conteúdo metafísico, à falta de interesse prático e à instabilidade dos fundamentos da teoria democrática de Habermas. Enfrentando essas objeções, defende-se o maior realismo político da abordagem normativa pós-metafísica.

 

Palavras-chave: Realismo político. Normatividade. Pluralismo. Rawls. Habermas.

 

Introdução

Aceitar o desafio da (pós-)modernidade e do agonismo que surge entre a diversidade das formas de vida é a primeira premissa de Rawls e Habermas. A diversidade de religiões, filosofias e doutrinas éticas e políticas encontradas na sociedade não é um desastre da modernidade ou do capitalismo. Nem uma condição histórica passageira. Rawls argumenta que o pluralismo de visões de mundo decorre dos limites da própria razão. Sim, ele pode se originar de pensamentos loucos, violentos e agressivos: de um pluralismo irrazoável. Filosoficamente é desafiador perceber, no entanto, que as evidências sensíveis e científicas podem ser complexas e difíceis de acessar e avaliar. As evidências podem ser sopesadas e conduzir a juízos diferentes. Também os modos de as acessar e de sopesar os valores são moldados pelo conjunto das vivências individuais, que certamente diferem, especialmente em sociedades complexas, nas quais há inúmeras profissões, divisões sociais, étnicas e culturais. Frequentemente há diferentes perspectivas normativas nos diferentes lados de uma questão política e valorativa, as quais são difíceis de julgar globalmente. No mais, todos os nossos conceitos têm indeterminação em certo grau e estão sujeitos a casos limites. Tais fontes de desacordo decorrem dos burdens of judgement, ou “encargos de julgar” (Rawls, 2005a, II, § 2.3, p. 56-57; 2001, § 9.2, p. 35-6), e se agudizam mesmo entre pessoas com visões de mundo razoáveis – o que Rawls (2005a, I, § 6.1, p. 36; 2001, § 1.3, p. 4-5) denomina “fato do pluralismo razoável”.

A filosofia política moderna começa quando se leva a sério a radicalidade dos conflitos latentes na sociedade, que remontam às guerras religiosas (Rawls, 2005a, Intro., xxvi). Um entendimento contínuo sobre doutrinas religiosas, filosóficas e morais (isto é, sobre “doutrinas abrangentes”, que têm escopo amplo acerca da natureza, motivações, virtudes e valores da vida humana – Rawls, 2005a, Intro., xxvii; V, §1.1, p. 175) só poderia ser mantido por um uso arbitrário do poder – o que Rawls (2005a, I, § 6.2, p. 37; VIII, § 3, p. 303-304; 2001, § 11.3, p. 34) denomina “fato da opressão”. As doutrinas religiosas, filosóficas e morais não são apenas distintas, mas incompatíveis e irreconciliáveis. Em vista dos limites dos encargos de julgar, não é permitido esperar que mesmo cidadãos razoáveis, que se compreendem como livres e iguais, cheguem a um consenso sem qualificações. A questão do liberalismo político é um conflito interno à razão. Eis um dos cernes da teoria política contemporânea. “É irrealista – ou pior, leva a suspeitas e hostilidades mútuas – supor que todas as nossas diferenças têm raízes somente na ignorância e perversidade, ou ainda em rivalidades por poder, status ou ganho econômico” (Rawls, 2005a, II, § 2.4, p. 58). Não há reconciliação racional possível nesses conflitos articulados entre doutrinas abrangentes.

A questão é levantada de maneira ainda mais radical por Habermas. A falibilidade dos encargos de julgar deveria ser estendida às ideias da razão prática. Em sociedades complexas, “mesmo sob condições ideais”, dificilmente se podem esperar consensos em questões éticas (voltadas à autocompreensão de identidades, formas de vida e finalidades individuais e coletivas) ou morais (voltadas ao dever do indivíduo com base em princípios universais) (Habermas, 2020, p. 219). Sequer é possível supor o pluralismo razoável como um fato. As diferenças nas preferências, escolhas, valores não são dados naturais, ou atitudes de adaptação cega, mas o resultado de um processo de formação da opinião e da vontade (Habermas, 2020, p. 157, 430; 2004, p. 338). Não são fatos, mas atos. Até o pluralismo precisa ser considerado de modo plural. Até a diversidade moderna é questionada, às vezes rejeitada e ilegitimamente oprimida. O pluralismo não pode ser reificado e pressuposto como um fato. Fazer da modernidade um projeto é ele mesmo um projeto. A ideia de pluralismo moderno surge na medida em que alguém reage com um “não” a certa relação, e há várias maneiras de dizê-lo (Habermas, 2018, p. 78-79).

Tanto mais oportunidades, liberdades e capacidades adquirem os cidadãos, mais a sociedade se cinde em interesses, visões de mundo e formas de vida diferentes; e mais os cidadãos se deparam com aquilo que lhes é absolutamente estranho. “Quanto mais princípios de igualdade se impõem na práxis social, mais multifacetadamente se diferenciam projetos e formas de vida entre si... que se tornam cada vez mais estranhas umas às outras e insistem em sua diferença e alteridade” (Habermas, 1991, p. 202).

A primeira tarefa assumida por Rawls e Habermas é, portanto, reconciliar os cidadãos com a experiência pública conflituosa das democracias contemporâneas, isto é, com os limites dos usos públicos da razão. Ambos pretendem uma teoria normativa sem uma linguagem metafísica – em um sentido ainda bem amplo dessa palavra. Eles rejeitam as teorias normativas que apelam a tradições culturais “fortes”, a bens ou princípios últimos que garantiriam uma verdade, ao supostamente conciliar todos os valores e campos de ação social: do homme até o bourgeois e o citoyen, da esfera íntima à esfera pública formal (Rawls, 2005a, Intro. paperback edition, lviii; Habermas, 1991, p. 23, 190; 2020, p. 59, 243).

Uma segunda tarefa comum é buscar fazer juízos sobre normas e instituições que expressem mais do que interesses, preferências, particularidades de quem julga. Uma sociedade pluralista está sujeita ao agir meramente instrumental do outro e ao risco da irracionalidade radical. E, por meio de pactos reais, históricos e contextuais, não é possível ultrapassar a casualidade, dominação e heteronomia herdadas do passado. Os adversários são aqueles que defendem que a política se baseia exclusivamente na luta e mobilização constantes de amigos contra inimigos, com vistas a contingências de autointeresse, vontade de poder ou convicções profundas – tomados por si mesmos, embora tais aspectos não possam ser desconsiderados (Rawls, 2005a, Intro. paperback edition, lix; 2001, § 24.2, p. 85; Habermas, 1991, p. 12).

Em um contexto assim conflituoso, jovens e velhos conservadores resignam-se dizendo que estamos diante de um pluralismo impenetrável de orientações de valor. É possível fazer juízos normativos objetivos sobre as instituições – aqui compreendidas como regras formais ou informais não inteiramente voluntárias de ação humana, nas quais os indivíduos são socializados – como são os direitos e papéis de gênero, classe, status? E conceber um ponto de vista racional para julgar sobre a linguagem e ação política quando os cidadãos possuem valores concorrentes e irreconciliáveis (Rawls, 1971, § 2, p. 7; 2005a, I, § 2.1, p. 11-12; Habermas, 2022, p. 255; 1991, p. 35-36; 2020, p. 390)? Essas são perguntas que qualquer teoria política voltada à emancipação precisa responder.

Portanto, Rawls e Habermas interrogam-se sobre as condições de possibilidade do “político”, isto é, sobre o sentido racional de uma unidade de associações e grupos concorrentes na sociedade e, logo, sobre uma aceitabilidade não violenta, reificada ou ideológica de instituições (Rawls, 2005a, I, § 6.3, p. 38; Habermas, 2015, p. 320; 2012, p. 240, 252).

De acordo com a tradição kantiana a que ambos se filiam, é possível um acesso normativo objetivo a partir da razão prática – assim compreendida a capacidade das pessoas de agirem por normas que dão a si mesmas de modo justificado, em vez de por simples crença tradicional ou arbítrio pessoal. O tino prático é independente do teórico e do estratégico. A razoabilidade da justificação é esse critério imanente para avaliação de normas legítimas. No entanto, Rawls e Habermas apelam a uma interpretação intersubjetiva da ideia kantiana de autonomia. Em vez do agir por uma norma que o indivíduo poderia racionalmente aceitar como se a tivesse dado a si mesmo, o agir por razões que está preparado para oferecer e que poderiam ser aceitas pelas demais pessoas (Rawls, 1971, § 40, p. 256; 2005a, IV, § 5.2, p. 156; 2001, § 9.2, p. 27; Habermas, 2022, p. 156-157; 2023, p. 112-113). A autonomia ética, isto é, uma forma de vida livre, emancipada, independente, pode ser recusada por alguns indivíduos, como parte de sua forma de vida tradicional ou comunitária. O que não pode ser recusado é a chamada autonomia “política” (Rawls, 2005a, II, § 6.1, p. 78) ou autonomia “comunicativa” (Habermas, 1991, p. 173; 2018, p. 186). Essa autonomia significa o poder de adotar um ponto de vista do outro e o dever de agir segundo as normas alcançadas a partir desse ponto de vista.

A razão prática dedica-se, então, antes do que a normas que orientem a ação e a vida individual de cada um, a normas que orientem a deliberação pública sobre temas comuns. Para ambos, a justificação pública é a pedra de toque em uma sociedade marcada pelo pluralismo irreconciliável (Baynes, 2001, p. 71; Werle, 2012, p. 183; Forst, 2012, p. 80-81). Não se satisfazem com um reconhecimento sem qualificações do heterônomo, sem antes conceber um princípio de justificação que permita diagnosticar e combater relações sociais injustas e arbitrariedades no exercício do poder. Ambos avaliam a possibilidade de uma norma ser aceita como condição necessária para o entendimento recíproco. Para um, a razão adquire objetividade e se torna pública quando se abstém de se pronunciar sobre teorias metafísicas (não-metafísica). Para outro, quando embate com teorias metafísicas e defende o primado da práxis sobre a metafísica (pós-metafísica).

É permitido esperar que a razão reconcilie, ou ao menos atenue, segundo Rawls (2005a, Intro. paperback edition, lviii), os conflitos que têm como causa as estruturas básicas da sociedade: as desigualdades entre status e classes, etnias, gêneros e raça. Tais conflitos sociais são racionalmente resolúveis. A abordagem rawlsiana coloca na agenda política as questões mais conflituosas nas sociedades modernas, na medida em que possam receber uma solução racional, como direito das minorias, igualdade, distribuição da propriedade. Ele remove da agenda as questões sem perspectiva de solução mesmo em uma sociedade racional, que decorrem de um uso razoável dos encargos de julgar (Rawls, 2005a, IV, § 4.2, p. 151). Distingue, por exemplo, a necessária distribuição igualitária da propriedade dos meios de produção – ou seja, o caráter necessariamente anticapitalista de uma sociedade justa – da questão sobre até que ponto esse sistema de propriedade será público ou privado, o que depende de peculiaridades de cada sociedade (Rawls, 2005a, IV, § 4.2, p. 151; 2001, § 42.1-2, p. 138-139; Thomas, 2020, p. 112-119). O projeto filosófico de Rawls (2005a, I, § 1.4, p. 10) é trazer o pensamento político ao nível exigente da democracia.

Enquanto isso, os pontos de partida habermasianos são a negatividade e o falibilismo que emergem dos pressupostos das ações comunicativas, para cujas pretensões de validade não há “últimas” evidências, nem um argumento “acachapante” (Habermas, 1991, p. 165; 2012, p. 290). Não há como encaixar razões ou tipos de razões em uma hierarquia de razões finais, mas só como entrar no jogo de justificações, falíveis e erguidas contextualmente, as quais possuem pretensão de aceitabilidade universal e as quais podem ser contraditadas e devastadas pela crítica (Habermas, 1991, p. 231-232). Um entendimento determinado obtido em certo tempo, lugar, procedimento jamais elimina a possibilidade de restauração da discussão, sob a luz de novas informações, mudança das condições sociais ou reinterpretação de necessidades. Habermas não pretende, por isso, circunscrever de antemão quais as divergências (de doutrinas abrangentes, de status ou classe, de etnias, gêneros ou raça) que podem ter uma solução razoável, mas sim eliminar procedimentalmente as barreiras à resolução ou regulação razoável dos conflitos.

O debate entre o pensamento não-metafísico e o pós-metafísico diz respeito à relação entre realidade e normatividade. Rawls e Habermas partem do realismo político, isto é, do caráter conflituoso da sociedade. Todavia, eles não concordam com toda e qualquer posição ou resultado dentro dos conflitos existentes. Sua tarefa comum exige que a filosofia política mostre um pragmatismo (não moralista), mas sem deixar de ser crítica (não resignada) – em vista do questionamento reflexivo do contexto e da negação da arbitrariedade. “A filosofia deve evitar tanto reduplicar acriticamente a realidade quanto escorregar a um papel paternalista” (Habermas, 2018, p. 183, tradução minha). Ela precisa ser realista, mas sem regredir a um conservadorismo cínico ou “falso realismo” (Habermas, 2020, p. 27; Werle, 2008, p. 21).

Este artigo parte da discussão entre Rawls e Habermas para tentar responder à seguinte pergunta: quão realista é uma teoria normativa da política que critica ou rejeita muitos compromissos religiosos, filosóficos e metafísicos profundos? A discussão entre os filósofos iniciou com o convite do Journal of philosophy para que Habermas fizesse comentários ao recém-publicado Liberalismo político, os quais foram acompanhados de uma réplica de Rawls na mesma edição. Depois se seguiu uma tréplica. Meu objetivo não é reconstruir todo esse debate.[2] Meu ponto é apresentar as objeções de Rawls (1) ao conteúdo metafísico, (2) à falta de interesse prático e (3) à instabilidade dos fundamentos da teoria de Habermas, com o objetivo de defender uma abordagem pós-metafísica para a filosofia política que mantém pretensões emancipatórias. O conceito de “pós-metafísica” foi cunhado por Habermas (2012, p. 286) como uma saída à dicotomia rawlsiana entre “justificação independente” e “doutrinas abrangentes”.

 

1 O conteúdo metafísico da teoria da razão

De acordo com Rawls, o projeto de superar a filosofia do sujeito transcendental por meio de uma teoria da comunicação ainda estaria imbuído de uma finalidade metafísica, em dois sentidos importantes. Em primeiro lugar, Habermas tematizaria o grande conteúdo da razão, competindo com outras doutrinas da verdade, moralidade, estética, o que não daria conta do fato do pluralismo razoável e da indeterminação necessária ao modo como cada uma das doutrinas abrangentes se adapta às exigências da justiça política. A diversidade de doutrinas filosóficas é um aspecto permanente da cultura em sociedades onde são assegurados direitos e liberdades básicas. A filosofia pós-metafísica afigura-se, para Rawls, como uma filosofia antimetafísica, pois questiona certas relações entre razão e mundo e propõe uma doutrina abrangente. Não seria suficientemente tolerante com doutrinas filosóficas e religiosas conflitantes que os cidadãos professam. Em segundo lugar, Habermas pretenderia ir além das culturas políticas liberais e democráticas e confiaria em uma razão universal imanente às práticas comunicativas (Rawls, 2005b, p. 376-378, 432; McCarthy, 1991b, p. 190-191). É o que resume a seguinte passagem: a “[...] doutrina própria de Habermas é, creio, uma de lógica no sentido amplo e hegeliano: uma análise filosófica das pressuposições do discurso racional (da razão teórica e prática) que... apresenta uma descrição do que há – seres humanos envolvidos em ação comunicativa em seu mundo da vida” (Rawls, 2005b, p. 378-379).

As respostas de Habermas atacam a definição de “doutrina abrangente”, que demarca os espaços metafísico e não-metafísico. Há, ao menos, dois argumentos para rejeitar esse firmamento rawlsiano: (i) o esvaziamento do conteúdo cognitivo da política; (ii) o fracasso da estratégia de esquiva de conceitos politicamente controversos.

(i) As “doutrinas abrangentes” são definidas por Rawls tanto (a) pelo campo amplo de assuntos, que se estendem para o que consideramos valioso para a vida humana em relações não-públicas, quanto (b) pela pretensão de verdade da doutrina. Uma concepção política de justiça não poderia definir quaisquer verdades. Segundo Rawls (2005a, III, § 8.3, p. 128-129), não há “verdades” fora do procedimento construtivista. Pensa “[...] em metafísica como sendo, ao menos, uma descrição geral do que há, inclusive afirmações muito gerais e fundamentais – por exemplo, as afirmações ‘cada evento tem uma causa’ e ‘todos os eventos ocorrem no espaço e tempo’ [...]” (Rawls, 2005b, p. 379, n. 8).

A oposição entre a justificação “independente” da concepção de justiça e a justificação “abrangente” é expandida a ponto de declarar a filosofia política independente de todos os outros saberes especializados, critica Habermas (2012, p. 287). A definição de metafísica de Rawls atinge toda tentativa de conhecimento geral sobre o mundo natural ou humano, concorda Forst (2012, p. 91-92). Não somente as teorias científicas, que contêm descrições gerais sobre a realidade, mas também as teorias sociais, que dependem de afirmações amplas sobre a sociedade. Se Habermas concorda que o ponto de vista sobre as instituições sociais e políticas capaz de escapar à metafísica não é científico, como na ideologia tecnocrática, ele jamais chamaria toda teoria científica de metafísica. A teoria ideal separa-se da não-ideal por não assumir dados empíricos gerais, o que reifica ambos os domínios. A estratégia minimalista ou de “esquiva” do liberalismo político não poderia fazer tal distinção entre política e metafísica, sob pena de a razão prática ser desconectada da razão teórica, consumindo todo o seu conteúdo cognitivo. A concepção de justiça produz um “bloco rawlsiano” que cinde a razão prática da teórica. Todo conteúdo de verdade é transferido para as doutrinas abrangentes. Nesses termos, a teoria da justiça perde toda a sua pretensão de realismo (Habermas, 1991, p. 126-131; 2018, p. 156, 186).

As ideias fundamentais das quais parte Rawls, como a ideia de sociedade como sistema de cooperação ao longo do tempo, da qual são deduzidas as ideias de pessoa moral e de sociedade bem ordenada, bem como as condições objetivas e subjetivas da justiça, quer dizer, todos esses elementos que moldam a posição original já exigem assunções gerais sobre a sociedade e a cultura democrática. Para delinear as condições objetivas e subjetivas da justiça, Rawls parte de, ao menos, seis “fatos” sociais: (a) o pluralismo razoável decorrente dos encargos de julgar (2005a, I, § 6.1, p. 36; 2001, § 59.1, p. 197); (b) a opressão implicada na eliminação do pluralismo razoável (2005a, I, § 6, p. 37; 2001, § 11.3, p. 34); (c) a escassez moderada (2001, §§ 24.1, 59.1, p. 84, 197); (d) a aquisição do senso de justiça em uma sociedade bem ordenada (2005a, IV, § 2.1, p. 141; 2001, § 59.2, p. 197); (e) o consenso sobreposto (2005a, IV, § 7.1, p. 164; 2005b, p. 387 n. 20); sem falar no misterioso, porque incompatível com os encargos de julgar, (f) conhecimento geral sobre a sociedade e a psicologia humana presentes no senso comum e em teorias científicas não controversas (2005a, II, § 4.1, p. 66; 2001, § 26.1, p. 89).

Tais fatos são crenças “verdadeiras e suficientemente gerais”, que delimitam as circunstâncias do problema da justiça (Rawls, 1971, § 26, p. 158). O véu da ignorância admite esses fatos como razões e neles se baseia a seleção dos princípios de justiça (Rawls, 2005a, II, § 4.3, p. 70). Na tarefa de contabilizar as considerações que podem ser invocadas, “[...] o melhor que podemos fazer é dizer que essas são as considerações mais importantes e confiar que aquelas não examinadas não frustrariam o balanço dessas razões” (Rawls, 2001, § 40.2, p. 133-134).

Visivelmente, os fatos sociais e históricos contemplam uma ampla descrição sobre a sociedade moderna e a cultura democrática. Podemos acrescentar às críticas de Habermas que a linguagem dos “fatos” é questionável, porque também há fatos contrários à justiça política, como guerra, fascismo, racismo etc. A estratégia de normalizar estados de coisas tem o perigo de dogmatizar condições sem as quais não se poderia pensar na injustiça. Às vezes, o consenso sobreposto e a razão pública são chamados de “fatos” (Rawls, 2005a, IV, § 7.1, p. 164; 2005b, p. 387 n. 20), embora sejam mais bem descritos como perspectivas. Os pontos fixos do equilíbrio reflexivo também são chamados, às vezes, de “fatos” possibilitadores da justiça política, o que denota sua dupla dimensão como juízos cognitivos e normativos (Rawls, 2005a, III, § 7.3-4, p. 122-124). Depois de a razão teórica ser esvaziada e desprezada como metafísica, a falta de conteúdo cognitivo é compensada com a absorção de fatos pela razão prática. Em vez deles, Rawls deveria insistir na linguagem mais coerente das “circunstâncias”, “problemas” ou “condições” da justiça (2001, § 59.1, p. 197), como uma genealogia do mundo moderno.

Por que as teorias que absorvem verdades gerais deveriam, questiona Habermas, mesmo com a ressalva de falibilidade, ser tachadas de metafísicas? A contraposição correta não é entre política e metafísica, no sentido largo, que inclui a razão teórica, mas no sentido estrito de fundamentos últimos. Mover-se nos quadros do pensamento pós-metafísico significa defender o falibilismo contra fundamentações últimas. O “garrote antimetafísico” do pensamento político é usado contra as ideias totalizantes de ser, natureza, história, sem delas se esquivar (Habermas, 2022, p. 597; 2005, p. 142).

O contrário do ideal não é o real, mas o não-ideal (Habermas, 1991, p. 160; 2020, p. 414). Ambos os autores reconstroem saberes pré-teóricos implícitos a práticas existentes – como são a ação cotidiana voltada ao entendimento mútuo, no caso de Habermas, e a prática da constituinte democrática, no caso de Rawls. Eles explicitam as regras dessas práticas, que não estão esgotadas, nem prontas, o que requer um momento construtivo. Assim, o construtivismo não-metafísico e o reconstrutivismo pós-metafísico estão igualmente embebidos em uma teoria da razão e entendem a correção de enunciados práticos em analogia à verdade dos enunciados assertóricos. A justiça é análoga à verdade (a) pela exigência, perante estranhos, pessoas de outros tipos e origens, de alargamento e inclusão de diferentes perspectivas para interpretação, avaliação e argumentação e (b) pela superioridade epistêmica das visões de mundo falibilistas sobre as dogmáticas. O que divisa os tipos de pretensão é que a aceitabilidade dos padrões reconstruídos constitui a justiça, embora apenas indique a verdade. Daí dirigir-se Habermas (2018, p. 92) a Rawls: “[...] o sentido construtivista da formação de um juízo moral pensado segundo o modelo da autolegislação não pode ser perdido, mas ele também não pode destruir o sentido epistêmico da fundamentação moral”.[3]

(ii) A teoria da justiça rawlsiana trabalha com certas intuições latentes nas culturas democráticas modernas, compostas pelas tradições de interpretação constitucional, pelos principais escritos políticos históricos e pela tradição filosófica moderna (Rawls, 2005b, § 1, p. 376). As ideias fundamentais de pessoa racional e razoável e de sociedade bem ordenada não são construídas ou justificadas, senão articuladas por uma autorreflexão sob as condições de um equilíbrio reflexivo (Rawls, 2005a, Intro., xiv, xx; I, § 3.1, p. 15; Forst, 1991, p. 72; Werle, 2012, p. 180-181). “As concepções de sociedade e de pessoa como ideias da razão não são, certamente, construídas, assim como os princípios da razão prática não são construídos. Mas podemos pensar neles como reunidos ou conectados” (Rawls, 2005a, III, § 4.1, p. 108). Após a reconstrução das ideias fundamentais da cultura liberal democrática, o dispositivo da posição original é modelado, de modo que ele também não é construído, mas sim “apresentado” (laid out). A posição original seria a melhor descrição das condições formais da razão prática política, fornecendo uma visão limpa e organizada do que a justiça requer, em função dessas concepções. Apenas depois da reconstrução normativa das ideias fundamentais e da modelagem do dispositivo de representação, os princípios de justiça são geometricamente construídos (Rawls, 2005a, I, § 4, p. 26; III, § 3.3, p. 103-104).

Apesar de o construtivismo axiomatizar ideias fundamentais, a fonte normativa dessas ideias é a plausibilidade do seu conteúdo moral. Para ser estável, a razoabilidade precisa se estender às convicções e doutrinas abrangentes. Um consenso sobreposto depende que a cultura se molde à concepção política de justiça (Rawls, 2005b, p. 387). Em uma cultura democrática, o razoável aplica-se “[...] a pessoas, suas decisões e ações, assim como a princípios e padrões, doutrinas abrangentes e muito mais” (Rawls, 2001, § 23.3, p. 82).

Contudo, as doutrinas abrangentes estão aí, estendem-se por gerações, de sorte que não podem se furtar à reflexão. As imagens e visões de mundo precisam se tornar razoáveis. A estratégia de esquiva da “metafísica” somente seria factível se as doutrinas abrangentes da população já fossem elas próprias razoáveis – contrapõe Habermas (2018, p. 167). Para que um encaixe com as ideias fundamentais seja possível, elas devem se transformar por dentro e ser interpretadas a partir da perspectiva da razão pública (Rasmussen, 2004, p. 532). Embora os padrões de razoabilidade sejam justificados de modo independente, eles impõem limites importantes às imagens e visões “metafísicas” dos cidadãos, o que atira o filósofo em controvérsias terríveis. A pressão social e política impede a esquiva de debates profundos sobre o mundo natural, social e subjetivo (Habermas, 2018, p. 158). Vivemos em uma época em que há especial necessidade de justificar o razoável.

Sem poder se esquivar de argumentar pelas ideias fundamentais e fatos sociais, Rawls faz ainda uma série de distinções filosóficas entre moral e político, autonomia racional ou completa, correto e bem, verdadeiro e razoável etc., que o colocam no olho do furacão de discussões que extrapolam muito a teoria política e, logo, precisam contar com o falibilismo da razão. Só seria possível “deixar a filosofia como está” se também as concepções filosóficas já fossem razoáveis. O liberalismo político não consegue evitar a abertura de inúmeras frentes de controvérsia (Habermas, 2018, p. 149-150; 2012, p. 288).

Por isso, o reconstrutivismo pós-metafísico nada axiomatiza. Não basta interpretar o pluralismo razoável como uma ideia fundamental ou como um “fato” da modernidade. As instituições estatais devem ser estruturadas para garantir a pluralidade de visões de mundo, não porque ela está dada, nem porque é boa para todos os cidadãos, mas porque é um pré-requisito para o próprio uso da razão comunicativa. Ela é uma condição necessária para qualquer decisão bem-informada e correta. As disputas em torno das formas de vida que competem entre si precisam se submeter tanto ao dissenso sensato, quanto à reserva falibilista (Habermas, 2018, p. 186; Baynes, 2016, p. 153). Não pode haver uma hierarquização entre argumentação moral, científica e ético-política, entre doutrinas abrangentes e concepção política. Apesar de lidar com questões mais abrangentes do que as de justiça básica, a teoria de Habermas não pode ser equiparada à lógica hegeliana. Sua “completude” não ameaça o pluralismo razoável (Habermas, 2012, p. 286; Forst, 2012, p. 92). O princípio da discussão dá conta dos diferentes níveis de validade (verdade, correção, autenticidade) que adentram as questões de justiça.

 

2 O interesse prático insuficiente

Ao atribuir à teoria habermasiana um caráter lógico, na acepção hegeliana, Rawls está também sugerindo que a teoria do discurso não satisfaz o interesse prático de orientar o modo de agir dos cidadãos com vistas à configuração das instituições sociais. Uma “teoria puramente procedimental, que não contenha princípios estruturais para uma ordem social justa não seria de qualquer uso em nosso mundo, onde a finalidade política é eliminar a injustiça e guiar mudanças em direção a uma estrutura básica justa” (Rawls, 2005a, VII, § 9, p. 285). A resistência, a revolta e mesmo a ação revolucionária são plenamente justificadas quando possuem perspectiva de sucesso contra uma sociedade regulada por princípios que favorecem interesses de classe estreitos (Rawls, 1971, §§ 53-55, p. 353, 367-368). Agora, sem uma teoria ideal, o desejo de mudança das teorias não ideais fica sem um alvo prático (Heck, 2006, p. 28-29). Essa dúvida sobre o interesse prático da teoria do discurso paira mesmo entre interlocutores simpáticos a Habermas. McCarthy (1991, p. 194) aponta que a falta de um princípio orientador para acessar os pesos das razões articuladas em diferentes linguagens avaliativas de necessidades, interesses e regras, borra a diferença entre argumentação e retórica, entre discurso racional e efetivo. Wellmer (1999, p. 63 ss.) reclama da inaplicabilidade de um princípio de discussão que manda considerar igualmente todos os interesses e consequências afetados por uma norma. Jay (2016, p. 155) faz coro sobre as dificuldades de aplicar um critério de racionalidade que permanece sempre contrafactual.

Entendo que a teoria habermasiana se sujeita a esse problema de falta de orientação quando interpretada como se propusesse uma teoria consensual da justiça, em vez de uma teoria crítica da injustiça. É o que passo a esclarecer. A contradição e o consenso vêm sempre juntos na prática comunicativa. Sem o direito e a coragem para a negação recíproca, não se desenvolvem o potencial epistêmico da linguagem e o aprendizado com o outro (Habermas, 2012, p. 168; 2023, p. 42, 86). A ação comunicativa vai de mão em mão com a autonomia, individualização e possibilidade de dissenso, que aumentam com a reflexividade dos participantes (Habermas, 2020, p. 61; Cooke, 1997, p. 47-49). Onde há pretensão, há conflito. O “entendimento comunicativamente obtido” nada mais é do que o “dissenso comunicativamente regulado” (Habermas, 2022, p. 404) ou “desacordo razoável” (Habermas, 1991, p. 207; 2018, p. 374). Portanto, não se cogita de uma sociedade consensual, mas de uma na qual “[...] os conflitos apareceriam sob seu nome próprio, não seriam mais escondidos por convicções que não podem resistir a um exame discursivo” (Habermas, 2022, p. 226).

A ênfase na negação da injustiça pelos atores sociais procura evitar a redução da ideia de justiça ao paradigma distributivo do Estado social. A justiça tem como objeto, antes do que a igualdade de oportunidades, bens e direitos, a igualdade de poder de conceber e estabelecer livremente as regras de cooperação (Habermas, 2020, p. 528). Pensar a justiça apenas com a ideia de direitos negativos e sociais crescentes “[...] permanece neutra diante dos ganhos ou das perdas de autonomia”, porque os direitos podem ser concedidos de maneira paternalista (Habermas, 2020, p. 121-122). Não é justo que deveres morais determinem antecipadamente uma intervenção estatal protetiva para mulheres que, por exemplo, normalize e reproduza estereótipos de gênero (Habermas, 2020, p. 525-7; 2018, p. 351). A insaturação dos deveres morais não pode ser resolvida sem que os concernidos tenham voz e influência na configuração das políticas de bem-estar. Assim, a questão não está exatamente em quem, ou no que se deve distribuir, mas no poder de determinar a redistribuição – lembrando o que Rawls (2005a, VII, § 9, p. 282) cunhou de “veto” dos menos beneficiados na posição original e o que Habermas (2018, p. 228) renomeou de “poder de veto” de grupos sociais em questões relativas à justiça.

Segundo o “princípio da democracia”, justificado pelo entrecruzamento do princípio da discussão com a forma jurídica, “[...] só podem pretender validade legítima as leis jurídicas capazes de receber o assentimento de todos os parceiros do direito em um processo discursivo de produção normativa, articulado ele próprio juridicamente” (Habermas, 2020, p. 159). A imposição de salários miseráveis aos trabalhadores, a discriminação racial contra negros, o abuso sexual de mulheres, a destruição das formas de vida tradicionais de indígenas não estão errados porque as vítimas estão privadas de iguais bens primários moralmente definidos, mas porque não podem evitar o que é feito com elas. Indivíduos pertencentes a grupos sociais vitimizados carecem do poder para mudar o quadro que permite males injustificados contra si.

A prática cooriginária da autonomia privada e política tem a finalidade primeira de conferir aos cidadãos as condições para o exercício igual do poder comunicativo e, para isso, garante direitos subjetivos e direitos políticos e providencia a condição material para o exercício desses direitos. No princípio da legitimidade democrática, há um objetivo familiar a Rawls (2001, § 39.1, p. 130-131): evitar que uma parte da sociedade domine o resto por meio de estruturas econômicas e políticas e desencorajar atitudes de status inferior ou superior entre as pessoas. É conhecida sua recusa à interpretação da teoria da justiça como um modelo alocativo de bens, em vez de um modelo de “[...] justiça procedimental pura de fundo”, que considera os cidadãos como membros de uma cooperação “para produzir os recursos sociais aos quais suas reivindicações são feitas” (Rawls, 2001, § 14.2-3, p. 50-51).

Assim como a construção não-metafísica dos princípios de justiça admite seu caráter procedimental de fundo, a reconstrução pós-metafísica da prática comunicativa preserva a autonomia como um conceito fundamental (Habermas, 1991, p. 173; 2018, p. 186). A autonomia comunicativa tem consequências práticas palpáveis. Pense-se no aumento das posições de poder de populações discriminadas ou marginalizadas para que ganhem representação relevante em órgãos de decisão local, nacional e internacional (Habermas, 2020, p. 556). Os procedimentos democráticos que conferem igual poder de clamar, desafiar e oferecer justificações são constituídos e constituidores de direitos, oportunidades e valores. Só é possível um processo social justo quando se dá ao outro o poder de dizer “não” e obriga todos à entrada em uma disputa pelas melhores razões. Sofrimento, infelicidade, descontentamento são índices de injustiças na medida em que estejam relacionados a bloqueios contra a racionalização do poder causados pela exclusão ou inclusão parcial de certos grupos no exercício do poder definidor das instituições sociais (Habermas, 2020, p. 383; 2018, p. 414). A indignação contra uma ação ou situação torna-se uma experiência de injustiça quando ela desafia arranjos sociais que impedem ou bloqueiam a cobrança por boas razões (inclusivas, relevantes, verazes, sem coação etc.). É a recusa ou redução da autonomia comunicativa que reproduz a posição indigna ocupada pelos membros de certos grupos, graças aos seus previsíveis impactos materiais.

Se compreendemos a teoria habermasiana como uma crítica da injustiça, ela não diz respeito a um fundamento consensual, mas ao poder de cobrar por justificações sólidas e aplicações adequadas dos participantes das relações sociais. Sua ênfase está na possibilidade do dissenso, na possibilidade de recusa, rearticulação e renegociação de instituições, normas e ações que se mostrem injustificadas. Uma teoria da justiça que confere amplo espaço à incompletude e indeterminação, sem antecipar uma sociedade justa ou regimes alternativos, ainda permite juízos fortes sobre as instituições: sobre as injustiças na participação política desigual de trabalhadores, mulheres, negros, indígenas, na desigualdade de oportunidades, na miséria material. De modo análogo, a teoria ideal rawlsiana não tem a pretensão de especificar instituições perfeitamente justas, mas simplesmente princípios para uma sociedade justa (De Vita, 2023, p. 25-26).

 

3 A instabilidade dos fundamentos da justiça

Para Habermas, o critério de justiça nas sociedades complexas e plurais não é um dispositivo representativo do ponto de vista da razão pública, mas a forma de integração social da esfera pública. A primazia é da razão comunicativa, em vez da razão prática, pois as pretensões de verdade, correção e autenticidade estão entrelaçadas na linguagem cotidiana, sendo campos que se tornaram distintos, mas igualmente primordiais (Habermas, 2020, p. 35). O domínio do “político” não pode ser substantivamente sobreposto, senão procedimentalmente entrelaçado com discussões pragmáticas, éticas e morais. A questão da justiça desloca-se para a reconstrução das condições de possibilidade informais e formais dos entendimentos racionais, em sentido amplo. A racionalidade dos discursos nas democracias contemporâneas está menos em determinado conteúdo do que em procedimentos justos de argumentação. Em vez de uma teoria da razão pública, trata-se de uma teoria do uso público da razão (Werle, 2008, p. 154, 164).

Contudo, objeta Rawls: como uma perspectiva da justiça pode almejar igual consideração em relação a todos os interesses e posicionamentos atuais sem recair em irrealismo? Há motivo para esperar que pessoas com interesses e orientações de valor incompatíveis atinjam um entendimento por meio de discursos que mesclam todo tipo de considerações? Quais as considerações que devem ser levadas em conta em um debate constitucional ou legislativo? Sem atribuir pesos às considerações, “[...] os meios da discussão racional terão chegado ao fim” (Rawls, 1971, § 8, p. 41). A teoria da justiça como equidade tem a vantagem de limitar as considerações relevantes a interesses fundamentais, bens primários e razões consistentes com o reconhecimento dos outros cidadãos enquanto iguais, oferecendo limites e ordens de preferência para as razões admissíveis nos discursos públicos. Enquanto isso, a teoria habermasiana arrisca perder a dimensão da aceitabilidade racional no torvelinho das deliberações políticas e tornar instáveis os fundamentos de uma sociedade justa (Rawls, 2005b, p. 430-431; Werle, 2012, p. 186; Finlayson, 2019, p. 178-179). Com que bases, questiona também McCarthy (1994, p. 55), estarão cidadãos com valores incompatíveis aptos a alcançar um entendimento sobre o bem comum? Como recompor uma consciência fragmentada em esferas culturais autônomas em uma promessa de reconciliação não-regressiva de razões diferenciadas?

A resposta de Habermas ao irrealismo de procedimentos que admitem diferentes níveis de justificação e que almejam a igual consideração de interesses considera três amortecedores: (i) hermenêutico (ii) pragmático e (iii) jurídico.

(i) A solução hermenêutica é apelar aos saberes implícitos, não tematizados e não-problemáticos do mundo da vida, que ainda “[...] fornecem uma cobertura através de um maciço pano de fundo consensual” (Habermas, 2020, p. 56). Por certo, quanto maior o pluralismo das formas de vida, mais a rocha de padrões de retaguarda é perfurada e “[...] mais abstrata é a forma que tem que assumir as regras e os princípios que protegem a integridade e a coexistência com iguais direitos de sujeitos e formas de vida” (Habermas, 1991, p. 202).[4] A abstração precisa recorrer, então, a um mundo da vida não unilateralizado por uma das esferas de valor, senão capaz de unificar as razões científicas, práticas e expressivas na prática cotidiana. Ao descansar sua teoria da ação comunicativa em um mundo da vida racionalizado e em padrões da cultura liberal, Habermas dá a entender essa solução (Pedersen, 2012, p. 428-429). A mesma abordagem parece ser adotada ao reconstruir o sistema de direitos com base em “[...] dois séculos de evolução do direito constitucional europeu” (Habermas, 2020, p. 174). Ele insiste na necessidade da socialização de uma “cultura política liberal”, sem a qual as instituições jurídicas da liberdade rapidamente se decompõem (Habermas, 2020, p. 181, 457). Textos posteriores apelam ao “patriotismo constitucional” para expressar a impregnação de princípios de justiça nas motivações dos cidadãos. Essa ética política conservaria sua independência diante de diferentes comunidades no interior do Estado (Habermas, 2018, p. 375-380). As matérias de justiça abrigariam desacordos sobre a interpretação dos ideais políticos liberais, não desacordos fundamentais.

Sendo assim, um entendimento via abstração da discussão em valores democráticos fundamentais, como liberdade, igualdade, tolerância etc., conduz a uma tematização tipicamente rawlsiana de princípios abstratos de justiça política (McCarthy, 1994, p. 57). O “[...] trabalho de abstração [...] é uma forma de continuar a discussão pública quando compreensões compartilhadas de menor generalidade quebraram [...] quanto maior o conflito, maior o nível de abstração que precisamos ascender para [...] descobrir uma base pública para uma concepção política de justiça [...]” (Rawls, 2001, § 23.2, p. 81). O procedimentalismo habermasiano parece confessar suas bases ético-políticas e virtudes políticas liberais (Baynes, 2016, p. 148).

Por “cultura política liberal”, contudo, Habermas (2012, p. 161) não se refere à capacidade de coletivizar determinada crença, doutrina ou concepção de justiça, mas à capacidade de entrar em processos de aprendizagem pelo uso de diferentes tipos de razão em diferentes tipos de cultura. A cultura política liberal é aquela que expõe suas autoevidências ao teste da ação comunicativa e mantém aberto o processo de definições e redefinições. Ela permanece aberta para o outro, inclusive para o outro que quer permanecer um estranho (Habermas, 1991, p. 116). O “mundo da vida racionalizado” refere-se à diferenciação dos processos de integração social e ao aumento de sua reflexividade interna e, logo, também das possibilidades de dissenso (Habermas, 2020, p. 55; 2022, p. 225). Do mesmo modo, o “patriotismo constitucional” não designa a virtude política de uma cultura nacional, mas de uma cultura de países com origens, línguas, tradições diferentes e que compartilham a ideia de democracia constitucional (Habermas, 2020, p. 626, 663-664). Todos esses conceitos preparam o “caminho para um status de cidadão no mundo” (Habermas, 2020, p. 680). Tudo que é solidamente construído sob bases hermenêuticas de uma cultura determinada está sob a ameaça de desmanchar no ar. Por isso, a reconstrução de Habermas não é da história europeia, mas histórico-conceitual. Ele investiga a “gênese lógica” dos direitos no processo circular de formação legítima do direito (Habermas, 2020, p. 171).

(ii) A solução pragmática sugerida em Facticidade e validade é de uma “regulação normativa de interações estratégicas”. Os conflitos valorativos e morais devem ser deixados para processos de barganha e compromisso, desde que o poder esteja equalizado, ou seja, desde que os resultados não sejam prejudicados por estruturas de poder assimétricas (Habermas, 2020, p. 61, 156, 221-223). Dutra (2005, p. 221) defende essa interpretação. Ela é sugerida pela formulação recorrente do ponto de vista da justiça como a “[...] consideração imparcial de todos os interesses afetados” ou “[...] o que é simetricamente bom para todos” (Habermas, 2022, p. 155; 2020, p. 206-207, 327). Se as negociações são submetidas à justiça, que confere iguais oportunidades de participação e influência e, logo, de afirmação de todos os interesses concernidos, pode se presumir “[...] que os acordos obtidos sejam justos” (Habermas, 2020, p. 221-222, tradução minha). Entre as saídas para o dissenso contam, quando não a quebra estratégica da comunicação, a concertação de interesses e a desconsideração das pretensões controversas (Habermas, 2020, p. 55).

Essa solução pode garantir uma interação estratégica justa, dentro dos moldes do modelo de democracia liberal estrito, com paridade de poder entre participantes racionais, mas não uma decisão baseada nas melhores razões, o que está na base da ideia de democracia deliberativa. E os cidadãos frequentemente não estão dispostos a negociar certos valores, como fazem com interesses materiais, o que joga a decisão política para procedimentos majoritários que não estão baseados no melhor argumento, nem na imparcialidade, nem no entendimento mútuo sobre o resultado (McCarthy, 1994, p. 55). Assim concebida, a utopia da racionalização do poder por procedimentos justos torna-se paradoxalmente uma distopia. Na medida em que aumentam os conflitos, aumenta também a função diretiva do mercado e da administração estatal para coordenação e para alívio de um entendimento já incapaz de ser obtido pela linguagem. A racionalização do mundo da vida é compensada pela racionalização sistêmica, ainda que justa. A solução pragmática transforma o cidadão que potencialmente participa e discute temas públicos em um cliente do mercado de consumo e dos bens do Estado social (Cooke, 1997, p. 135-136).

Em verdade, Habermas fala em uma “[...] rede complexa de processos de entendimento e práticas de barganha”. É que o princípio da discussão precisa “[...] explorar o potencial de racionalidade de orientações em toda amplitude de possíveis aspectos de validade – e não somente sob o ponto de vista moral da universalização equitativa de interesses” (Habermas, 2005, p. 101, destaque meu).[5] As negociações podem ser mais recorrentes no cotidiano político, porém, os discursos ético-políticos contêm um maior potencial para inaugurar processos de aprendizado social e, por isso, carecem de maior espaço na esfera pública política. Os interesses precisam ser submetidos ao teste de aceitabilidade por discursos éticos e morais na esfera pública (Repa, 2021, p. 217-223). Assim como a reflexividade aumenta o potencial de dissenso, ela também contribui para o reforço do mundo da vida através da mediação entre culturas especializadas e o público em geral, a qual é promovida pelo jornalismo, filosofia, crítica de arte.

(iii) A solução jurídica para o irrealismo político da ação comunicativa está na racionalização do poder por meio da institucionalização das discussões. As regras jurídicas regulam os riscos de dissenso embutidos na razão comunicativa. Em um sistema democrático, as regras jurídicas podem ser questionadas mesmo por aqueles que as cumprem, permitindo o exame crítico sem desestabilizar expectativas de comportamento (Habermas, 2020, p. 72-73). A suposição necessária para o princípio da discussão é que a força dos melhores argumentos possa contribuir para a formatação das regras alcançadas (Habermas, 2020, p. 350; McCarthy, 1991, p. 197). Basear uma decisão na coação não-coativa do melhor argumento não significa dizer que ela está equivocada se os destinatários discordam, e que acerta se os destinatários estão convencidos. As múltiplas questões são reguladas sob o ponto de vista de que “[...] todas as partes sejam constituídas com igual poder, permitindo que a troca de argumentos seja talhada para a persecução racional possível das próprias preferências” (Habermas, 2020, p. 233). Portanto, o ponto de vista da justiça refere-se aos múltiplos processos de universalização, não apenas via interpretação de valores comuns ou via equalização das negociações, mas sobretudo via poder de desafiar e cobrar boas justificações para legitimação de decisões vinculantes.

Por certo, as instituições jurídicas não criam práticas de autodeterminação comunicativa; mas elas são capazes de preservar, regenerar e, em alguns casos, estimular tais práticas (Habermas, 2020, p. 181, 457). Pense-se em comissões internas a empresas para representação de interesses, órgãos representativos reguladores de setores da economia, universidades públicas, agências de fomento etc. Existe um caráter “circular” no poder (Habermas, 2020, p. 452). É dizer: um caráter mutuamente intensificador ou inibidor entre os processos político-jurídicos, de um lado, e as atitudes e convicções político-culturais, de outro (Habermas, 2011, p. 76). A teoria habermasiana apela a essa complementaridade dos amortecedores hermenêutico, pragmático e jurídico da justiça.

 

Considerações finais

A partir dessa discussão sobre o realismo político das teorias normativas em sociedades plurais, descortina-se a diferença entre o construtivismo não-metafísico e o reconstrutivismo pós-metafísico. O construtivismo não está direcionado contra quem não aceita as ideias liberais e democráticas fundamentais (O’Neill, 2003, p. 353). As alternativas à concepção de justiça como equidade já são radicalmente pluralistas e igualitárias, como o princípio da utilidade média (a maximização da soma do bem-estar dos membros da sociedade) e o princípio da utilidade restrita (iguais liberdades, iguais oportunidades, somadas à garantia de um mínimo social e à maximização da utilidade média) (Rawls, 2001, § 27.1, p. 95). É preciso mais, percebe Habermas.

Dado que há um grande contingente de pessoas que incorpora a estrutura de pensamento autoritária, não reconhece a igual liberdade dos outros e se revolta contra as estruturas da democracia constitucional, impõe-se a tarefa de defender a modernidade contra os ataques das visões de mundo metafísicas. Não basta construir uma concepção de justiça independente das visões ético-existenciais, porque não se pode contar com uma integração social baseada em consensos sobre ideias fundamentais. A referência ao conteúdo moral das ideias da cultural liberal é substituída pela autorreferência da prática de justificação, mesmo em relações não pautadas por liberdade e igualdade (Habermas, 2018, p. 97).

A falibilidade das discussões práticas não elimina a validade do princípio da discussão, como uma cultura democrática fraca elimina a plausibilidade das ideias políticas fundamentais. A ideia de autonomia comunicativa é mais realista. Não é o ideal de um ou de outro participante. A teoria habermasiana da injustiça está baseada em procedimentos formais e informais de deliberação que, por um “caminho de sucessivas abstrações” dentro das organizações da sociedade civil e do sistema político-burocrático, vão “[...] descascando um núcleo de razões capazes de generalização” (Habermas, 2018, p. 121, tradução minha). As visões de mundo, concepções de vida boa e interesses particulares vão sendo moldados para que possam ser aceitos por esferas públicas cada vez mais universalizáveis, mesmo que não sejam, em si mesmas, universais, o que mantém discursos instrumentais, valorativos e morais conectados, sem um conteúdo pré-determinado. A aposta do procedimentalismo democrático é que a realização de interesses e valores se engate às questões de justiça política a partir de cobranças normativas de igualdade e à tomada da perspectiva de outros, filtrando as preferências irracionais e moralmente repugnantes. As “[...] discussões políticas são de natureza mista. Mas quanto mais se ocupam com os princípios constitucionais e com as concepções de justiça que lhes estão subjacentes, tanto mais se assemelham a discursos morais” (Habermas, 2018, p. 165). A racionalização do poder é o processo no qual a razão privada dos indivíduos se torna mais bem informada, inclusiva e razoável à medida que seja submetida às exigências da justificação pública (Habermas, 2020, p. 350, 436).

Enquanto isso, a teoria ideal de Rawls começa a parecer menos plausível. Segundo ele, compete aos cidadãos e associações da sociedade civil fazer escorregar suas doutrinas éticas, filosóficas ou religiosas à concepção política de justiça. Esta teria a capacidade de “[...] formatar essas doutrinas em direção a si mesma” (Rawls, 2005b, p. 389). A ideia de consenso sobreposto está baseada nessa conjectura de que as pessoas reconhecem a concepção política de justiça como razoável e adaptam suas doutrinas aos direitos e valores políticos (Rawls, 2005a, VII, § 2, p. 219). Rawls invoca indícios históricos da capacidade de transformação de meros modi vivendi em convicções de fundo razoáveis, ou seja, de um arranjo contingente de poderes em princípios e virtudes políticas – como foi o caso da tolerância religiosa entre católicos e protestantes, que se baseou inicialmente em uma relação contingente de forças, mas que depois foi incorporada ou compatibilizada com as doutrinas religiosas. Portanto, não seria irrealista, em princípio, supor que ajustes e revisões possam ter lugar ao longo do tempo, à medida que a justiça como equidade molde as diferentes doutrinas abrangentes (Rawls, 2001, §§ 58.2-59.2, p. 193-198).

Entretanto, como uma teoria fundamentada de modo inteiramente à parte de crenças éticas e metafísicas pode moldar, ser reconhecida e absorvida por essas crenças? Só uma feliz coincidência faria as razões não-públicas convergirem a um conteúdo não-metafísico. Quando se trata da primazia da justiça, não é plausível falar de uma separação fixa de esferas normativas, pública e não-pública, em vez de diferentes contextos de justificação, nos quais a comunicação é obrigada a buscar normas e valores cada vez mais universais (Forst, 2012, p. 96-98). Entestar contra os valores e as doutrinas injustas significa tematizar a esfera pública e não “[...] ir além do político” (Rawls, 2001, § 11.6, p. 37). A ideia de um pensamento político “pós-metafísico” expressa precisamente que, para ser realista, a primazia da justiça sobre o bem tem que combater, e não se esquivar, de determinados compromissos religiosos, filosóficos e metafísicos profundos.

 

Non-metaphysical or post-metaphysical thinking? The controversy between Rawls and Habermas on political realism

 

Abstract: This article engages with the discussion between Rawls and Habermas concerning the interplay of political realism and normativity to address a fundamental question in contemporary political philosophy. How realistic is a normative theory of politics that critiques or rejects many deep religious, philosophical, and metaphysical commitments? Rawls contends that political theory achieves realism and objectivity by avoiding pronouncements on metaphysical theories (non-metaphysical). In contrast, Habermas argues that realism emerges when grappling with metaphysical theories and prioritizing praxis over metaphysics (post-metaphysical). The article critically examines Rawls’s objections to metaphysical content, lack of practical interest, and the instability of the foundations of Habermas’s democratic theory. By addressing these objections, it advocates for the greater political realism of the post-metaphysical normative approach.

 

Keywords: Political Realism. Normativity. Pluralism. Rawls. Habermas.

 

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Recebido: 26/05/2024 – Aprovado: 05/07/2024 – Publicado: 12/08/2024



[1] Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6591-7803. E-mail: felipe.moralles@gmail.com.

[2] Não tratarei, por exemplo, do problema mais específico sobre os argumentos religiosos na esfera pública política, o que exigiria incluir Rawls e Habermas em um debate com posições mais diversificadas e acompanhar as modificações sobre esse tema ao longo de suas respectivas obras. Isso não é possível no espaço deste artigo.

[3] Cf. Habermas (1991, p. 206-208; 2004, p. 328-331).

[4] Cf. Habermas (2015, p. 341; 2020, p. 144, 162).

[5] Cf. Habermas (2020, p. 432-433).