Ontologia social e teoria crítica: em torno do diagnóstico de experiências sociais negativas

Leonardo da Hora[1]

 

Resumo: O que significa afirmar que uma sociedade produz experiências sociais negativas? De um ponto de vista de ontologia social, qual a imagem ou figuração da sociedade pressuposta em tal diagnóstico? O presente artigo visa a enfrentar tais questionamentos, por meio da reconstrução de alguns modelos teóricos e, em particular, de alguns modelos críticos. Metodologicamente, trata-se de partir da forma como cada modelo diagnostica experiências sociais negativas, a fim de melhor se refletir sobre como há diferentes possibilidades de se entender o social. Este texto está dividido em três partes. Na primeira, com foco na teoria social clássica, abordam-se os tratamentos dispensados por Durkheim e Marx ao fenômeno do suicídio, além de se trabalhar o conceito de alienação, no segundo. Em seguida, no âmbito da teoria crítica frankfurtiana, expõe-se como tanto o modelo de Adorno quanto o de Honneth podem ser lidos como tentativas de enfrentar o problema do sofrimento social, no seio das sociedades modernas. Por fim, num terceiro momento, analisa-se o modo como as experiências sociais negativas são articuladas à ideia de crítica radical por Luc Boltanski. Tal perspectiva será apresentada como uma alternativa ao modelo honnethiano na superação de desafios que se colocam ao campo da teoria crítica, na atualidade.

 

Palavras-chave: Ontologia social. Teoria crítica. Experiências sociais negativas. Patologias sociais.

 

Introdução

O que significa afirmar que uma sociedade produz experiências sociais negativas? Qual o sentido dessa negatividade aí afirmada e como ela se articula com a crítica social? De um ponto de vista de ontologia social, qual a imagem ou figuração da sociedade pressuposta em tal diagnóstico? Para refletir sobre tais questionamentos, proponho que não partamos de uma imagem ou teoria positiva do social, para só então compreendermos como tal teoria permite o diagnóstico de certa negatividade presente nas experiências produzidas socialmente, como numa espécie de movimento que vai do geral ou do normal para o particular ou o patológico. Antes, inversamente, a ideia é que possamos partir do particular e do patológico, a fim de melhor refletirmos sobre como há diferentes possibilidades de se entender o social, de se forjar uma imagem da sociedade, bem como de seus limites e possibilidades. E como tal imagem, pressuposta e revelada no diagnóstico de experiências sociais negativas, possui repercussões fundamentais para a própria ideia de crítica social. Ou seja, as normas que servem de critério para a crítica não se pautam apenas por valores éticos, morais ou políticos, mas também, fundamentalmente, por uma determinada concepção sócio-ontológica.

Assim, o meu interesse aqui não é pensar a etiologia de certas experiências sociais negativas, mas, antes, em como interpretá-las, como integrá-las no plano de uma ontologia social crítica. Tampouco se trata de realizar mais uma abordagem acerca do conceito de patologia social, em geral. Evidentemente, o conceito de patologia social aparece como pano de fundo desta investigação, pois, sem a ideia de que algo problemático e “patológico” é sistematicamente produzido na sociedade, não faria sentido aludir a um diagnóstico crítico de experiências sociais negativas, dentre as quais o sofrimento social. No entanto, como bem lembrou Frederick Neuhouser (2023, p. 4), em obra recente sobre o tema, “[...] isso não implica que o sofrimento causado socialmente seja uma característica necessária ou suficiente de uma patologia social”. Com efeito, para Neuhouser, não é que o sofrimento seja uma característica rara das patologias sociais, mas ela nos cega para o fato de que o sofrimento sentido não precisa estar presente nelas. Nada disso implica que os teóricos da patologia social devam evitar levar a sério o sofrimento expresso pelos membros da sociedade, todavia, apenas que não se pode presumir que o sofrimento vivido no domínio social, por si só, indique patologia social. Pelo contrário, “[...] os teóricos sociais (alguns dos quais pertencem a grupos que sofrem) devem interpretar o sofrimento e julgá-lo à luz de critérios normativos – aqueles implícitos em alguma versão inclusiva da ideia de uma vida humana boa – que vão além da dor física ou psíquica vivida” (Neuhouser, 2023, p. 5). Ou seja, nem toda experiência negativa presente na sociedade possui relevância crítico-normativa para a teoria social, notadamente para a teoria crítica.

Por isso, a abordagem proposta aqui visa a articular, na intepretação de cada teoria social aqui analisada, diagnóstico de experiências negativas com a ontologia social de base, que lhe serve de referência normativa para a elaboração da crítica. Assim, em termos amplos, busco, neste artigo, contribuir para o aprofundamento da investigação acerca das relações entre ontologia social, normatividade e crítica. Contudo, ao contrário de Neuhouser, eu continuo a privilegiar o âmbito da experiência social dos atores, sem recorrer a uma análise funcionalista da sociedade tomada como um “organismo”. Acompanhando aqui Renault (2019), acredito que a ênfase na experiência ainda é o melhor caminho para articular macrodiagnósticos e atores sociais, teoria e práxis potencialmente transformadora, donde minha ênfase no diagnóstico de experiências sociais negativas, e não apenas de patologias sociais.

Por outro lado, ao propor o patológico como ponto de partida, eu não pretendo inovar em termos metodológicos. Ao menos desde Freud, conhecemos a fecundidade desse expediente. Com efeito, uma das inovações de Freud encontra-se na sua maneira de repensar as relações entre normalidade e patologia. Há uma passagem do psicanalista austríaco que produz uma bela analogia a esse respeito e que nos servirá de referência:

Por outro lado, bem conhecemos a noção de que a patologia, tornando as coisas maiores e mais toscas, pode atrair nossa atenção para condições normais que de outro modo nos escapariam. Onde ela mostra uma brecha ou uma rachadura, ali pode normalmente estar presente uma articulação. Se atiramos ao chão um cristal, ele se parte, mas não em pedaços ao acaso. Ele se desfaz, segundo linhas de clivagem, em fragmentos cujos limites, embora fossem invisíveis, estavam predeterminados pela estrutura do cristal (Freud, 1996, p. 77).

 

Logo, se quisermos entender a estrutura do cristal, devemos partir de seu estado quebrado. Da mesma forma, se quisermos entender a estrutura da normalidade, devemos partir deste no qual a normalidade se quebra. Como destaca Safatle (2009), o patológico é esse cristal partido que, graças à sua quebra, fornece a inteligibilidade do comportamento definido como normal. Da mesma maneira, seguindo a proposta metodológica acima esboçada, o diagnóstico de uma experiência social negativa nos franquearia um acesso privilegiado às ontologias sociais pressupostas por esse diagnóstico. É digno de nota que o objeto principal deste artigo são tais ontologias sociais e não as experiências negativas por si mesmas.

Mas esse não é o único nem o último objetivo deste artigo. Não se trata simplesmente de explicitar certos pressupostos sócio-ontológicos de modo meramente comparativo. Trata-se de refletir sobre as diferentes possibilidades de lidar e analisar as experiências sociais negativas, com base tanto na natureza da teoria social que se pretende fazer quanto no seio de uma teoria social crítica, com os principais desafios que se colocam para esse tipo de empreendimento teórico, na contemporaneidade. Em última instância, o escopo do artigo é avaliar qual o melhor modelo de ontologia social, na contemporaneidade, para uma teoria crítica que pretende, ao diagnosticar experiências negativas, abrir a possibilidade de transformações sociais mais criativas e profundas na ordem social e normativa institucionalizada.

Dessa forma, este artigo está dividido em três partes. Na primeira, abordo os tratamentos dispensados por Durkheim e Marx ao fenômeno do suicídio, além de examinar o conceito de alienação em Marx, a fim de mostrar como a teoria social clássica trabalhou com certos tipos de experiências sociais negativas. Já nesse ponto, a ideia é mostrar como há certas especificidades cruciais no modo como uma teoria crítica lida com experiências sociais negativas. A abordagem regressiva com foco nos respectivos pressupostos sócio-ontológicos é um ponto de vista privilegiado para se compreender isso. Em seguida, no seio da própria história da teoria social crítica, exponho como tanto o modelo de Adorno quanto o de Honneth, a despeito de suas inegáveis diferenças, em termos de figuração ontológica da sociedade, podem ser lidos como tentativas de enfrentar o problema do sofrimento social, no seio das sociedades modernas. Por fim, num terceiro momento, analiso o modo como as experiências sociais negativas são articuladas à ideia de crítica radical por Luc Boltanski, no quadro de uma ontologia social da fragilidade das instituições. Tal perspectiva será apresentada como uma alternativa promissora ao modelo honnethiano, na superação de alguns dos desafios teóricos que se colocam ao campo da teoria social crítica, na atualidade.

 

1 Durkheim x Marx: o diagnóstico das experiências sociais negativas na teoria social clássica

Afirmar que uma sociedade produz experiências sociais negativas supõe sustentar que essa negatividade se define em função de determinado padrão ou critério normativo. Logo, de saída, teríamos uma teoria social que não pode ser meramente descritiva, não se descolando de determinada normatividade que serve de orientação para o próprio diagnóstico da negatividade da experiência e para traçar a distinção entre o normal e o patológico. Mas será que este é sempre o caso?

Vejamos a abordagem do problema do suicídio, o qual, de um ponto de vista existencial, é certamente a experiência mais “negativa” que se possa imaginar. Como compreender os fatores sociais implicados em tal experiência de sofrimento que leva a um ato extremo? No seu famoso estudo sobre o tema, Durkheim explicita que nem toda taxa de suicídio é anormal ou patológica, em termos sociológicos. O fato social do suicídio, bem como o do crime, é considerado normal, quando não é evitável em dada sociedade e em dado contexto histórico, não chegando a ameaçar ou a desestabilizar essa ordem social. E o único sinal objetivo dessa “inevitabilidade” é a universalidade. Assim como o crime,

[...] é certo que sempre existiram correntes suicidas, mais ou menos intensas conforme os tempos, entre os povos europeus; as estatísticas fornecem-nos a prova disso desde o século passado e os monumentos legais de períodos anteriores. O suicídio é, portanto, um elemento de sua constituição normal e até, provavelmente, de qualquer constituição social (Durkheim, 2000, p. 474).

 

Nesse sentido, nem todo ato suicida remete, para Durkheim, a uma patologia ou doença social, por mais que suponha fatores sociais entre suas causas. No caso do sociólogo francês, não se pode nem mesmo falar, de modo mais rigoroso, de uma experiência social negativa, pois sua abordagem bastante “externalista” e pretensamente científica inviabiliza uma efetiva análise da experiência dos indivíduos, já que isso suporia borrar por demais as fronteiras entre a psicologia e a sociologia. Ora, sabe-se bem que o estabelecimento dessa fronteira é uma das principais conquistas visadas pelo autor das Regras do método sociológico. O suicídio é tratado como um fato social e medido por estatísticas. Logo, a análise do suicídio não se conecta a nenhum diagnóstico de patologia social, sendo este entendido, de um ponto de vista funcionalista ou estrutural, como uma necessidade ou normalidade social:

Toda moral de progresso e aperfeiçoamento é, portanto, inseparável de um certo grau de anomia. Assim, uma determinada constituição moral corresponde a cada tipo de suicídio e é integrante dele. Um não pode existir sem o outro, pois o suicídio é simplesmente a forma que cada um deles assume necessariamente sob certas condições particulares, mas que não pode deixar de ocorrer (Durkheim, 2000, p. 475, tradução modificada).

 

Isso já nos permite afirmar que o nosso problema de partida precisa ser mais bem delimitado: trata-se de investigar como se dá a articulação entre a constatação de experiências negativas produzidas socialmente e o diagnóstico de uma patologia social, pois é só nesse caso que podemos associar a negatividade afirmada em certas experiências com uma determinada normatividade pressuposta na crítica social, a qual, por sua vez, implica uma figuração ontológica particular da sociedade.

O próprio Durkheim considera que, em certos casos, o fato social do suicídio se torna patológico. Com efeito, se o espírito de renúncia, o amor pelo progresso e o gosto pela individuação têm seu lugar em todas as espécies de sociedade e se não podem existir sem se tornar, em certos aspectos, geradores de suicídios, “[...] ainda assim eles só tem essa propriedade numa certa medida, variável conforme os povos. Ela só tem fundamento quando não ultrapassa certos limites. Também, a propensão coletiva à tristeza só é sadia sob a condição de não ser preponderante” (Durkheim, 2000, p. 479). E, de fato, Durkheim associa o aumento estatístico alarmante da taxa de suicídios com um estado de mudança e desenraizamento social repentino e profundo, isto é, a um estado de crise e perturbação. É interessante notar aqui como Durkheim associa o estado patológico a algo “ameaçador” em relação à ordem social: “Estão reunidas todas as provas, portanto, para nos fazer considerar o enorme crescimento do número de mortes voluntárias produzido no último século como um fenômeno patológico que se torna cada dia mais ameaçador” (Durkheim, 2000, p. 484). Assume-se então, implicitamente, o ponto de vista da sociedade como um todo.

É nesse ponto que, no último capítulo de O Suicídio, ele se dedica a pensar sobre alternativas para remediar tal patologia social. Os tipos de suicídio que correspondem a tal patologia, o suicídio egoísta e o anômico, dizem respeito a déficits de integração social (anomia) e de socialização (atomização). A “solução” apontada por ele visa a atacar justamente tais problemas. Com efeito,

[a] anomia vem do fato de que, em certos pontos da sociedade, faltam forças coletivas, isto é, grupos formados para regular a vida social. Portanto, resulta em parte desse mesmo estado de desintegração do qual também surge a corrente egoísta. O mal-estar de que sofremos não vem, pois, do fato de que as causas objetivas do sofrimento tenham aumentado em número ou intensidade; testemunha, não uma miséria econômica maior, mas uma miséria moral alarmante [...] O remédio é, por conseguinte, o mesmo em ambos os casos. E, de fato, pudemos constatar que o principal papel das corporações seria, no futuro como no passado, regular as funções sociais e, mais especialmente, as funções econômicas, extraindo-as, consequentemente, do estado de desorganização onde estão agora (Durkheim, 2000, p. 501, tradução modificada).

 

Aqui vemos se delinear uma imagem da sociedade em que esta aparece como sendo não só algo maior, irredutível e superior ao indivíduo, mas como uma dimensão de integração e de constituição que lhe é indispensável. Nas situações de afrouxamento dos laços sociais, “[...] não há nada em torno deles [dos indivíduos] que os atraia para fora de si mesmos e lhes imponha um freio. Nessas condições, é inevitável que mergulhem no egoísmo ou no desregramento” (Durkheim, 2000, p. 510). Para Durkheim, o indivíduo não pode apegar-se a fins que lhe são superiores e submeter-se a uma regra, se não perceber acima de si algo a que esteja vinculado. Livrá-lo de toda pressão social é abandoná-lo a si mesmo e desmoralizá-lo. Tais são, de fato, as duas características do seu diagnóstico de crise social moderna: “Enquanto o Estado se incha e se hipertrofia para conseguir encerrar fortemente os indivíduos, mas sem conseguir, estes, sem vínculos entre si, rolam uns sobre os outros como outras moléculas líquidas, sem encontrar nenhum centro de forças que os contenha, os fixe e os organize” (Durkheim, 2000, p. 510).

Ainda antes de Durkheim, Marx também se interessou por uma análise social e crítica do fenômeno do suicídio, nas sociedades europeias do século XIX. Apropriando-se de modo bastante particular do livro de memórias do escritor francês Jacques Peuchet, Marx publica Sobre o suicídio (no original em alemão, Peuchet: vom Selbstmord), em 1846. De fato, há evidentes semelhanças entre o tratamento dado ao tema do suicídio, por ambos os autores. Tanto Marx quanto Durkheim abordam o suicídio na sociedade moderna mais em termos sociais do que psicológicos; ambos concebem o suicídio como um sintoma dos problemas sociais mais amplos; além disso, os dois estão interessados nos aspectos palpáveis e empíricos do suicídio, em vez da mera especulação moral ou filosófica.

No caso de Marx, aponta-se a miséria econômica e social, a exploração dos trabalhadores, mas também, e especialmente aqui, as relações de propriedade e o atomismo que permeiam não apenas o tecido social em geral mas igualmente a esfera privada: “A crítica francesa da sociedade tem, em parte, pelo menos a grande vantagem de ter apontado as contradições e os contrassensos da vida moderna, não apenas nas relações entre classes específicas, mas também em todos os círculos e configurações da hodierna convivência” (Marx, 2006, p. 21).

Com isso, Marx deixa bem claro que o problema com a sociedade burguesa não é somente material, como se se tratasse “[...] apenas de dar aos proletários um pouco de pão e de educação, como se somente os trabalhadores definhassem sob as atuais condições sociais, ao passo que, para o restante da sociedade, o mundo tal como existe fosse o melhor dos mundos” (Marx, 2006, p. 22). Através de Peuchet, Marx (2006, p. 23-24) salienta:

O número anual dos suicídios, aquele que entre nós é tido como uma média normal e periódica, deve ser considerado um sintoma da organização deficiente (un vice constitutif) de nossa sociedade; pois, na época da paralisação e das crises da indústria, em temporadas de encarecimento dos meios de vida e de invernos rigorosos, esse sintoma é sempre mais evidente e assume um caráter epidêmico. A prostituição e o latrocínio aumentam, então, na mesma proporção. Embora a miséria seja a maior causa do suicídio, encontramo-lo em todas as classes, tanto entre os ricos ociosos como entre os artistas e os políticos.

 

Portanto, nas palavras de Peuchet, traduzidas/editadas por Marx, “[...] está na natureza de nossa sociedade gerar muitos suicídios, ao passo que os tártaros não se suicidam. As sociedades não geram todas, portanto, os mesmos produtos; é o que precisamos ter em mente para trabalharmos na reforma de nossa sociedade e permitir-lhe que se eleve a um patamar mais alto” (Marx, 2006, p. 25). Ou seja, assim como em Durkheim, tem-se ao mesmo tempo uma articulação entre a identificação dos sofrimentos produzidos socialmente e um diagnóstico das próprias deficiências e patologias dessa sociedade, com uma proposta de reforma e transformação social. Todavia, tal proposta implica sub-repticiamente uma certa figuração ontológica e normativa do que é essencialmente, ou do que deve ser uma sociedade, ainda que em negativo: que tipo de sociedade é esta, Marx (2006, p. 28) se pergunta, “[...] em que se encontra a mais profunda solidão no seio de tantos milhões; em que se pode ser tomado por um desejo implacável de matar a si mesmo, sem que ninguém possa prevê-lo? Tal sociedade não é uma sociedade; ela é, como diz Rousseau, uma selva, habitada por feras selvagens”. E ainda: “As relações entre os interesses e os ânimos, as verdadeiras relações entre os indivíduos ainda estão para ser criadas entre nós inteiramente, e o suicídio não é mais do que um entre os mil e um sintomas da luta social geral” (Marx, 2006, p. 29).

Por meio de Peuchet, Marx (2006, p. 42) indica claramente que o problema estrutural dessa sociedade é precisamente o seu caráter atomístico, marcado pelo isolamento em meio à multidão, mas também por um individualismo possessivo: “A opinião é muito fragmentada em razão do isolamento dos homens; é estúpida demais, depravada demais, porque cada um é estranho de si e todos são estranhos entre si”. A crítica da possessividade que assinala as relações sociais não se limita, porém, à propriedade privada dos meios de produção, já que ela aparece também vinculada à crítica da vida privada, das relações de gênero no seio familiar: “O ciumento necessita de um escravo; o ciumento pode amar, mas o amor é para ele apenas um sentimento extravagante; o ciumento é antes de tudo um proprietário privado” (Marx, 2006, p. 41). Não à toa, as maiores vítimas do suicídio, na análise de Marx, são precisamente as mulheres.

Nos Manuscritos de 44, escritos poucos anos antes e onde não mais o suicídio, contudo, a alienação aparece como o grande fenômeno de experiência social negativa, Marx explicita melhor os pressupostos críticos implicados em seu modelo ontológico e normativo de sociedade. Ali, a dialética entre despossessão e reapropriação joga um papel central na passagem do diagnóstico crítico da alienação ao horizonte comunista. A alienação pode ser resumida como a perda dos vínculos orgânicos que o indivíduo, enquanto parte da natureza e da sociedade, possui com a natureza não humana e com os produtos do seu trabalho, com o outro e consigo mesmo.

Com efeito, o trabalho alienado impossibilita que os sujeitos vivenciem de modo consciente e livre a sua relação com a natureza externa e interna e com os outros, o que, no cotidiano, se evidencia pela castração dos indivíduos, em seu desenvolvimento criativo, a partir de suas forças e capacidades essenciais. Pelo contrário, a dimensão negativa do trabalho apresenta-se como esgotamento e exploração das potencialidades humanas, como degradação das relações naturais de vida. A vida genérica não é entendida como ofício humano histórico, mas se vê submetida ao egoísmo que norteia as relações sociais capitalistas. A objetivação humana é instrumentalizada com vistas à sobrevivência de um modo de vida que aparece como autônomo perante os indivíduos. Embora seja radicalmente dependente do trabalho humano, nega-o como potência realizadora.

O resultado necessário disso é o próprio social aparecer como aquilo que Durkheim atribui essencialmente a ele: isto é, como uma força radicalmente externa, autônoma e superior em relação ao indivíduo. Aqui fica claro que, diferentemente de Durkheim (ao menos em O suicídio), o diagnóstico da experiência social negativa e da patologia social está associado não simplesmente a um excesso, a um desvio em relação à média ou ao que seria inevitável, porém, a um problema (ou melhor, a uma contradição sistêmica ou estrutural vinculada à própria natureza da sociedade capitalista. A experiência de sofrimento descrita pelo conceito de alienação é um produto necessário e inseparável dessa sociedade marcada pelo signo da propriedade privada.

A única saída possível para tal situação é a reapropriação desse social alienado e autonomizado frente aos indivíduos. Sabe-se bem que a supressão da apropriação privada dos meios de produção é condição prática e necessária para a dissolução da alienação. No entanto, não se trata da simples substituição de uma ordem social por outra, mas de liberar e fortalecer os potenciais produtivos já existentes, mesmo que estranhados no interior dos “sistemas de propriedades”. A superação desse estranhamento, cuja manifestação é tributária do sistema da propriedade privada, Marx (2004) denominou “comunismo”. Nesse sentido, o comunismo é concebido como um horizonte em construção, mas, simultaneamente, aparece como o próprio movimento dinâmico do qual a realidade histórica surge. Sua efetivação cresceria conforme a reapropriação e a potencialização das características humanas, as quais foram sacrificadas pelo processo de alienação, fossem se revelando com a abolição da apropriação privada do trabalho.

Assim, em Marx, o social não é aquilo que se põe simplesmente acima dos indivíduos, integrando-os e “freando-os”, todavia, aquilo que deve liberar e promover as capacidades humanas. A alienação significa que o capitalismo não tem feito isso plenamente. Ou seja, há não só o ponto de vista da sociedade em sua capacidade integrativa, como em Durkheim, mas também e fundamentalmente o ponto de vista sócio-ontológico de emancipação e elevação do ser humano. O elemento de emancipação humana aparece aqui na base da ontologia social, da figuração ontológica da sociedade. A característica distintiva da teoria crítica, em seu nascimento, é precisamente essa conexão, no plano da ontologia social, entre sociabilidade e emancipação humana, o que pressupõe uma transformação profunda e radical da atual estrutura social – algo que, de acordo com Renault (2016) ou Da Hora Pereira (2019), pode ser chamado de uma ontologia social processual e crítico-construtivista. Para Marx – e não deixa de ser notável como essa intuição atravessa a sua obra –, a “verdadeira” sociedade humana é aquela que promove a emancipação coletiva e social dos indivíduos, onde estes deixariam de se submeter a estruturas sociais alienadas, reificadas ou fetichizadas e passariam a controlar com “consciência e vontade” o modo como eles se organizam socialmente. Sociedade e indivíduo deixariam de ser dois polos antitéticos.

 

2 Entre Adorno e Honneth: variações no tratamento das experiências sociais negativas no campo da teoria crítica frankfurtiana

Obviamente, esses primeiros tratamentos da questão das experiências sociais negativas no quadro de uma filosofia social, as quais, para Honneth (2000a), remontam pelo menos a Rousseau, se desdobraram em muitas outras possibilidades, no interior do próprio campo do que se convencionou chamar de teoria crítica. Podemos, por exemplo, interpretar a dialética negativa de Adorno como fundamentalmente uma crítica do sofrimento social, no plano de uma sociedade persistentemente irreconciliada:

Os conceitos aporéticos da filosofia são as marcas daquilo que não é resolvido, não apenas pelo pensamento, mas objetivamente. Creditar as contradições como uma culpa na conta da teimosia especulativa incorrigível não faria senão deslocar essa culpa; o pudor ordena à filosofia não reprimir a intelecção de Georg Simmel segundo a qual é espantoso o quão pouco os sofrimentos da humanidade são observados na história da filosofia (Adorno, 2009, p. 133).

 

Como se vê, Adorno vincula muito diretamente a existência da contradição com a presença do sofrimento. O sofrimento indica, assim, que o antagonismo persiste, que a coisa não se encontra conciliada e, dessa forma, assinala também que a situação deve ser transformada. Por isso, Adorno (2009, p. 24) afirma que “[...] a necessidade de dar voz ao sofrimento é a condição de toda verdade”.

Muitos intérpretes acreditam que Adorno não oferece um sólido critério positivo que fundamente a sua crítica social. Isto é, ele não define um ideal do que seria uma sociedade justa, correta ou boa, para criticar a presente sociedade, por não corresponder a tal ideal. Para ele, é fundamental partir do próprio discurso legitimador ou ideológico e perseguir a inadequação deste com a situação que busca justificar. Porém, em última instância, Adorno não se ateria aos valores presentes no discurso legitimador.

No entanto, como salienta Amaro Fleck (2016), ele pressupõe ao menos um princípio básico de rejeição à dor e ao sofrimento: “O momento corporal anuncia ao conhecimento que o sofrimento não deve ser, que ele deve mudar. ‘A dor diz: pereça’” (Adorno, 2009, p. 173). Isto é, não sabemos o que queremos, mas sabemos exatamente aquilo que não queremos – e isso já nos é suficiente, já basta para justificar as críticas que são tecidas à sociedade moderna. Nesse sentido, Freyenhagen sugere que Adorno seja um negativista normativo. Ele defende que, segundo Adorno, “[...] nós podemos somente conhecer o mal (ou parte dele), e não o bem, em nosso mundo social moderno, e que este conhecimento do mal é suficiente para sustentar sua teoria crítica (incluindo sua ética de resistência)” (Freyenhagen, 2013, p. 11 apud Fleck, 2016, p. 77).

Segundo as palavras do próprio Adorno (1996, p. 261), em uma passagem de seu curso sobre filosofia moral, podemos constatar uma espécie de desvio em relação ao modelo – ainda humanista – dos Manuscritos de 44:

Nós podemos não saber o que é o bem absoluto ou a norma absoluta, nós podemos nem mesmo saber o que é o homem, o humano ou a humanidade – mas o que o inumano é nós de fato sabemos muito bem. Diria que o lugar da filosofia moral hoje está mais na denúncia concreta do inumano do que em tentativas vagas e abstratas de situar o homem em sua existência.

 

Entretanto, essa rejeição ao mal, ao inumano, à dor e ao antagonismo o faz supor uma certa imagem (ainda que borrada) da sociedade conciliada, pois só no mundo conciliado haveria realmente identidade, a coisa corresponderia a seu conceito: “O momento ideológico do pensamento puro é a suposição da identidade. Nesse pensamento, contudo, também se esconde o momento de verdade da ideologia, a indicação de que não deve haver nenhuma contradição, nenhum antagonismo” (Adorno, 2009, p. 130).

Assim, sabemos o que não queremos, porque isso se manifesta em forma de sofrimento, de dor. Um estado de coisas no qual existe sofrimento desnecessário é um estado de coisas mau, falso. Destarte, a sociedade correta seria aquela que “[...] teria seu telos na negação do sofrimento físico ainda do último de seus membros e nas formas de reflexão intrínsecas a esse sofrimento” (Adorno, 2009, p. 174). Conforme esclarece Fleck (2016, p. 78), Adorno não está sustentando que todo o sofrimento poderia ser abolido. É certo que, numa sociedade emancipada, as pessoas igualmente sofreriam com desilusões, perdas, doenças e outras fontes de desprazer. Contudo, podemos legitimamente especular que, para o frankfurtiano, tal sociedade seria caracterizada essencialmente por uma redução significativa, drástica, na parcela e tipo de sofrimento que se padece. “Sofrimento sem-sentido” é justamente o tipo de sofrimento que pode ser suprimido por uma organização social voltada para a satisfação das necessidades das pessoas, e não para a autovalorização do capital – o que implica, evidentemente, não apenas uma redução “quantitativa” do sofrimento, mas, sobretudo, uma transformação qualitativamente profunda na estrutura social.

Desse modo, resguardadas todas suas diferenças em relação ao modelo do jovem Marx, vemos mais uma vez algum tipo de articulação entre crítica ao sofrimento socialmente produzido e certa figuração ontológica de uma sociedade que promove a emancipação humana e não apenas sua integração ou adequada socialização. Dessa maneira, por mais que se possa argumentar que “Adorno é, no que se refere ao aspecto normativo, um negativista, alguém que, por inúmeros motivos, não crê que possamos saber o que seria uma boa sociedade, mas que sabemos o que é uma má” (Fleck, 2016, p. 80), podemos afirmar que ele não tem como evitar certa figuração ontológica da sociedade reconciliada, certa ontologia do que o social pode e deve ser para que os seres humanos se libertem do sofrimento socialmente desnecessário.

Entre os contemporâneos, Axel Honneth é certamente aquele teórico crítico que soube articular, do modo mais influente e sistemático, o vínculo entre experiência social negativa e crítica da sociedade. A publicação de Luta por reconhecimento constitui um marco, nesse sentido. Nesse modelo, Honneth recorre centralmente à ideia de interesse emancipatório, segundo a qual o bloqueio da autorrealização causa nos atores sociais concernidos algum tipo de mal-estar ou experiência social negativa, que, por sua vez, guarda potenciais motivacionais para a resistência à dominação e a luta pela libertação do sofrimento. A experiência de injustiça e de desrespeito representa, pois, uma oportunidade para os atores sociais articularem, de modo reflexivo, as expectativas normativas que conformam o seu repertório moral.

As experiências sociais negativas comparecem aqui não apenas como indício de uma sociedade produtora de patologias sociais (tomadas em sentido amplo, e não como patologias de segunda ordem[2]), mas especialmente como aporte motivacional para as lutas sociais por reconhecimento. Com isso, ao contrário do que ele mesmo nota, em relação ao modelo negativista de Adorno, Honneth (2018, p. 25) não abdica da tentativa originária da teoria crítica frankfurtiana – e mais geralmente jovem hegeliana – “[...] de dar aos padrões da crítica um apoio objetivo na prática pré-científica”. Nisso, ele segue e aprofunda Habermas em sua virada intersubjetivista e comunicativa em relação ao modelo dominante desde o jovem Marx dos Manuscritos de 44 até Horkheimer: assim como estes últimos a têm no trabalho social, também aquele possui no entendimento comunicativo uma esfera pré-científica da emancipação, à qual a crítica pode apelar, a fim de designar seu aspecto normativo dentro da realidade social. O que eram para Marx e Horkheimer as relações de produção capitalistas, as quais impõem limites injustificáveis à capacidade humana para o trabalho, nesse sentido, são, para Habermas, as relações de comunicação societárias por meio das quais o potencial emancipatório do entendimento intersubjetivo é estreitado de modo não justificável.

Mas, se quando Horkheimer formulou seu programa, ele ainda tinha diante dos olhos – no sentido da tradição marxista – um proletariado que já poderia ter adquirido um sentimento a respeito da injustiça do capitalismo, no processo de produção, que a teoria deveria articular sistematicamente somente no nível reflexivo, de sorte a dar à sua crítica um apoio objetivo, abre-se na teoria da ação comunicativa uma fissura em relação a esse ponto, cuja origem não é contingente, mas, antes, possui um caráter sistemático. O grande problema, para Honneth, está no ancoramento dessa crítica em relação às experiências dos próprios atores:

A ocorrência emancipatória na qual Habermas ancora criticamente a perspectiva normativa de sua Teoria Crítica absolutamente não se assenta nas experiências morais dos sujeitos participantes enquanto tal, pois estes experimentam um dano àquilo que nós podemos observar como suas expectativas morais, como seu “moral point of view”, não como estreitamento de normas de fala intuitivamente dominadas, mas como ferimento de demandas por identidade levantadas durante a socialização (Honneth, 2018, p. 30-31).

 

Ou seja, não haveria, no modelo habermasiano, uma real articulação entre experiência social negativa e crítica social. A hoje já bastante conhecida saída do dilema indicada por Honneth aponta para a ideia de desdobrar o paradigma comunicativo desenvolvido por Habermas mais fortemente em direção a seus pressupostos teóricos intersubjetivos e até mesmo sociológicos; isto é, trata-se de não identificar simplesmente o potencial normativo da interação social com as condições linguísticas de um entendimento livre de dominação. Antes, temos a tese de que experiências morais não se inflamam pelo estreitamento de competências linguísticas, mas se formam através de ferimentos das demandas por reconhecimento e autorrealização levantadas durante a socialização.

O confronto com certa literatura sociológica e histórica sobre a resistência das classes subalternas levou Honneth a perceber que não é a orientação por princípios morais positivamente formulados, porém, a experiência do ferimento de concepções de justiça intuitivamente dadas que motivacionalmente repousa no comportamento social de protesto das classes subalternas. E o núcleo normativo de tais concepções de justiça representa sempre expectativas que se conectam com o respeito à dignidade, honra ou integridade individuais. A generalização desses resultados para além de seus respectivos contextos de investigação conduziu Honneth a ver na aquisição de reconhecimento social a pressuposição normativa da ação comunicativa: sujeitos se relacionam no horizonte da expectativa recíproca, a fim de encontrar reconhecimento como pessoas morais e para suas realizações sociais. Assim, emerge como uma consequência adicional a referência aos eventos que são percebidos no cotidiano social como injustiça moral: tais casos estão presentes para os concernidos sempre que, ao contrário de sua expectativa, um reconhecimento visto como merecido não ocorre. As experiências morais pelas quais sujeitos humanos passam tipicamente, em tais situações, Honneth as caracteriza como sentimentos de desrespeito social.

Entretanto, como saber se há uma conexão sistemática entre determinadas experiências de desrespeito e o desenvolvimento estrutural da sociedade? É aqui que deve entrar o diagnóstico do teórico acerca da própria sociedade, num sentido mais amplo. Ora, se as relações de comunicação social devem ser primariamente analisadas com relação a quais formas estruturais de desrespeito elas produzem, então também a perspectiva crítica do diagnóstico deve mudar, perante a abordagem habermasiana: no ponto central, não devem mais ficar as tensões entre sistema e mundo da vida, mas as causas sociais que são responsáveis pelo ferimento sistemático de condições de reconhecimento.

O problema da socialização e da integração social se torna central, nesse modelo honnethiano, o que de certa forma recupera uma intuição de base da ontologia social durkheimiana:

Para aquelas desordens da vida societária, digamos, que Durkheim tinha diante dos olhos quando investigou o processo de individualização, deve faltar na tradição da Escola de Frankfurt aquela sensibilidade diagnóstica, já que elas se consumam, a saber, como dissolução de uma força social de ligação que está em ligação apenas indireta com mudanças da racionalidade humana (Honneth, 2018, p. 35).

 

Os pressupostos do diagnóstico crítico das relações de reconhecimento se encontram nas formas de comunicação social nas quais o indivíduo cresce, encontra uma identidade social e, finalmente, aprende a conceber-se, ao mesmo tempo, como um membro dotado dos mesmos direitos que outros e particular de uma sociedade. Ora, sejam essas formas de comunicação de tal modo constituídas que elas não oferecem a medida de reconhecimento necessária para a administração daquelas diferentes tarefas identitárias, então, isso deve aparecer como indicador de desenvolvimento patológico de uma sociedade.

Em termos antropológicos e sócio-ontológicos, o que vem ao primeiro plano é a dependência individual quanto ao reconhecimento social da própria atividade ou, ainda, a dependência da confirmação social das próprias realizações e propriedades. As experiências negativas sinalizam, por conseguinte, para uma realidade societária que não está suficientemente na situação de gerar experiências de reconhecimento. Isso significa que

[o]s conflitos sobre formas de sociabilidade estão no centro das formas de vida humana. O que está em jogo nestes conflitos não é a distância em relação aos outros, nem o domínio sobre os outros, mas o desejo de pertencer, o desejo de ser plenamente um membro com direitos iguais. Sob essa perspectiva, o conceito de conflito adquire um significado totalmente diferente do sentido que lhe é dado na maioria das teorias do conflito. Na medida em que o interesse em “ser respeitado” e o interesse em “fazer parte de uma comunidade” são fundamentais para o conflito, estamos lidando com conflitos por inclusão, em vez de conflitos por exclusão (Boltanski; Celikates; Honneth, 2019a, p. 10).

 

Dessa maneira, a figuração ontológica da sociedade pressuposta (tanto em sentido descritivo quanto normativo) nesse modelo é o de uma sociedade que deve integrar seus indíviduos-membros da forma mais inclusiva e equitativa possível. Aliás, no plano da evolução social, Honneth finaliza Luta por reconhecimento com uma concepção formal de vida boa que lhe serve de ponto de vista normativo. Com base em Hegel e Mead, Honneth (2009, p. 275) aponta para “[...] um ideal de uma sociedade em que as conquistas universalistas da igualdade e do individualismo se sedimentaram a tal ponto em padrões de interação que todos os sujeitos encontram reconhecimento como pessoas ao mesmo tempo autónomas e individuadas, equiparadas e, no entanto, particulares”.

Tal figuração é, ao menos parcialmente, durkheimiana – a despeito das evidentes diferenças metodológicas entre ambos os autores – na medida em que o problema da inclusão, da dependência do indivíduo em face da sociedade e da intersubjetividade, é central, visto que “[...] os indivíduos se constituem como pessoas unicamente porque, da perspectiva dos outros que assentem ou encorajam, aprendem a se referir a si mesmos como seres a que cabem determinadas propriedades e capacidades” (Honneth, 2009, p. 272). Se isso for plausível, trata-se evidentemente de uma recepção das intuições durkheimianas sobre o social no quadro de uma teoria crítica comprometida com os conceitos de autorrealização e emancipação humana.

Honneth alterou bastante, desde Lutas por reconhecimento, o seu modelo teórico-crítico. Em particular, O Direito da Liberdade retoma sistematicamente o problema do diagnóstico de patologias sociais, contudo, retirando do primeiro plano uma análise “fenomenológica” das experiências sociais negativas, assumindo cada vez mais um funcionalismo no plano de uma teoria social talvez excessivamente institucionalista[3]. Mas a intuição acima mencionada, em termos de ontologia social, talvez tenha permanecido. Durkheim sempre reaparece entre as referências centrais de sua teoria social, como na citação seguinte:

No decurso desta “virada sócio-teórica”, as ordens institucionais de reconhecimento tornaram-se o foco da minha atenção. Assim, longe de estarem inseridas numa concepção a-histórica da pessoidade, as três dimensões de reconhecimento acima mencionadas são realizadas em ordens de reconhecimento historicamente dadas e em evolução (…) Este quadro é uma espécie de combinação de Hegel e Durkheim: no contexto da socialização, os indivíduos assimilam as diferentes ordens e vocabulários de reconhecimento; eles aprendem a falar a linguagem do amor, dos direitos individuais e da performance; além disso, eles obtêm a capacidade de justificar suas demandas normativas em relação a esses princípios (Boltanski; Celikates; Honneth, 2019b, p. 6-7, grifo nosso).

 

Resta saber se esse é o modelo sócio-ontológico mais produtivo, ou mesmo o único, que se apresenta na atualidade como capaz de articular, de modo razoavelmente consistente, experiências negativas e crítica social no campo da teoria crítica. É o que procurarei questionar, no último tópico deste artigo.

 

3 Crítica radical das instituições e experiências sociais negativas em Boltanski: uma alternativa ao modelo honnethiano?

Para concluir, gostaria de apresentar aquilo que pode significar uma outra possibilidade, uma alternativa ao modelo sócio-ontológico honnethiano, no seio de uma teoria crítica das experiências sociais negativas. Para tanto, é preciso mostrar como o tratamento teórico-crítico de tais experiências de sofrimento social podem pressupor uma outra figuração ontológica da sociedade. Para tanto, irei me apoiar no trabalho de Luc Boltanski sobre as instituições, em De la critique.

Como tal perspectiva desenvolvida pelo autor francês lida com as experiências de sofrimento social? Em uma palavra, um certo tipo de experiência social negativa, o qual poderíamos chamar aqui de “sofrimento de determinação[4], é interpretado por Boltanski como contendo indícios, pistas de que a realidade social tal como ela foi semanticamente construída não totaliza e jamais pode totalizar as experiências dos sujeitos. É como se houvesse sempre algo que lhe escapasse:

Em Da Justificação, tendemos a ignorar as expectativas e exigências dos atores humanos que não correspondem já à realidade social e às ordens de justificação estabelecidas. No entanto, as pessoas têm muitas experiências para as quais não há linguagem e sobre as quais, consequentemente, não podem falar [...] Um etnólogo do qual me tornei amigo uma vez me disse que a sociologia da crítica que tínhamos desenvolvido só funcionaria dentro da área cercada pela circular parisiense [Boulevard périphérique de Paris]! Eu acho que, até certo ponto, ele tem razão. O fato de não entendermos algo não significa que possamos considerá-lo como normativamente irrelevante (Boltanski; Celikates; Honneth, 2019c, p. 5).

 

Ou seja, interessa particularmente a Boltanski um tipo de sofrimento social vinculado à ausência de gramática, de semântica, de linguagem socialmente reconhecida, para expressar certas demandas de sujeitos tidos, quando tal demanda se limita a uma escala individual, como aberrantes, anormais, loucos. Isso se relaciona com o que ele chama de prova ou teste (épreuve) existencial das instituições. Com efeito, as instituições sociais desempenham, acima de tudo, uma função semântica — isto é, elas nos dizem o que a situação é e, para isso, produzem as classificações necessárias (“ele é professor em Frankfurt”, “ela é garçonete em um café”, “isto é queijo mussarela”). Logo, a função semântica das instituições consiste em confirmar continuamente o que se passa no mundo e, portanto, em estabilizar o mundo. Isso é indispensável, porque, de outra forma, tudo seria incerto e em constante estado de fluxo.

Entretanto, na tensão entre a estabilização de sentido trazida pelas instituições e a incerteza que paira em torno delas, desenvolve-se um conjunto de testes. Nesse contexto, é possível distinguir entre três formas de teste. Em primeiro lugar, segundo Boltanski (2009, p. 157), já que as instituições precisam lutar constantemente contra o caos de significado, há as “provas de verdade” (épreuves de vérité), que são elaboradas por instituições, para confirmar a definição de uma situação específica. Nesse sentido, podemos dizer que, nesse caso, estamos lidando com a ordem simbólica cuja tarefa é estabilizar a realidade, muitas vezes na forma de tautologias, tais como “Deus é grande”.

Em segundo lugar, existem “provas de realidade”, através das quais é possível examinar quais as alegações que são justificadas. Tais provas visam a lidar com as críticas à realidade socialmente construída e estabilizada, em uma eventual situação de disputa. A crítica pode, portanto, tirar proveito das provas de realidade – e isso de duas maneiras diferentes. Pode, antes de tudo, denunciar o fato de que determinada pessoa não tem o cargo correspondente ao que de fato pode fazer, ou que não é reconhecida como merece ser. A crítica também pode desafiar a maneira ilegítima em que algum teste é aplicado, em uma situação particular (por exemplo, contestar se as eleições foram conduzidas em conformidade com os procedimentos estatutários). Também pode identificar inconsistências entre as lógicas que regem diferentes provas, em diferentes esferas da realidade, e exigir que sejam construídos compromissos para reduzir essas tensões, e assim por diante. Mas em nenhuma dessas operações a realidade como tal é questionada e pode-se até dizer que, em alguns aspectos, essas operações críticas podem ajudar a reforçar a realidade da realidade.

Em terceiro lugar, há um tipo de prova — no sentido do duplo significado de épreuve: ao mesmo tempo, “teste” e “desafio” – que Boltanski chama de “provas existenciais”: nessas provas, a experiência é medida contra verdades estabelecidas. Como todos os sociólogos das últimas décadas demonstraram, a realidade é construída, porém, a realidade não é o mundo. E as provas existenciais lidam com isso, de modo muito mais explícito e direto do que as provas de verdade e mesmo de realidade. A distinção entre “realidade” e “mundo” é central para processos metacríticos. Se o mundo é tudo o que acontece ou “o que é o caso”, não sabemos o que ele é, em sua totalidade; e, no entanto, ele está sempre lá, e podemos sempre nos relacionar com ele. Podemos dizer que pertence ao mundo tudo o que escapa às formas simbólicas socialmente estabelecidas, as quais constantemente constroem e reconstroem a “realidade”. E as provas existenciais dizem respeito justamente a tais tipos de experiências transcendentes em relação à realidade instituída.

As provas existenciais se baseiam em experiências negativas, como as da injustiça ou da humilhação, às vezes com a vergonha que as acompanha, mas também, em outros casos, com a alegria criada pela transgressão, quando ela dá acesso a algum tipo de autenticidade. Todavia, essas experiências são difíceis de formular ou tematizar, porque não existe um formato pré-estabelecido para enquadrá-las, ou mesmo porque, consideradas do ponto de vista da ordem existente, têm um caráter aberrante. Por isso, muitas vezes são chamadas de “subjetivas”, o que enseja, quando aquele que as vivencia não procura ou consegue compartilhá-las com outros, negar sua realidade, desqualificá-las ou ridicularizá-las (por exemplo, pode-se dizer, então, de alguém que expressa a maneira como uma injustiça ou humilhação a afetou, que ela é excessivamente “sensível”, que ela “entendeu mal”, até mesmo que ela é “paranoica” etc.).

Mas, precisamente, por se situarem à margem da realidade - a realidade como ela é “construída”, em uma certa ordem social – essas provas existenciais abrem um caminho para o mundo. Portanto, são uma das fontes de onde é possível emergir uma espécie de crítica que pode ser chamada de radical, para distingui-la das críticas reformistas destinadas a melhorar as provas de realidade existentes. É por isso que a crítica radical frequentemente se baseia, pelo menos em seus estágios iniciais, em expressões usadas em formas de criação artística – como a poesia, as artes plásticas ou o romance – onde é socialmente mais ou menos permitido (pelo menos desde o Romantismo) confiar ao público experiências e sentimentos pessoais, e cuja orientação estética permite contornar os constrangimentos de consistência e justificação legal ou moral impostos ao discurso argumentativo.

Para melhor compreender o que Boltanski (2009, p. 163) entende por provas existenciais, pensemos nas provas em si vividas pelos homossexuais, forçados durante séculos a uma existência quase clandestina e confrontados com o insulto e o opróbrio, cuja experiência foi inicialmente veiculada em meios literários, dramáticos ou obras pictóricas, antes de assumir uma forma coletiva, abrindo caminho para um movimento que poderia reivindicar o reconhecimento público para o que havia se tornado um coletivo. Esse reconhecimento gradual (o qual está longe de ser completo) foi acompanhado por uma mudança nos contornos da realidade e pelo estabelecimento de provas – mais precisamente, provas de realidade – permitindo a objetificação do desrespeito, o que possibilita, por exemplo, inscrever um crime de homofobia na lei.

Quando a crítica, apoderando-se de provas existenciais, se compromete a compartilhar e divulgar experiências negativas, como o desprezo ou a negação, até então vividas na solidão e na privacidade, atribui a si mesma a tarefa de desfazer as relações geralmente aceitas entre formas simbólicas e estados de coisas, isto é, entre a semântica de classificação e categorização institucionalizada e as vivências e experiências concretas. Pode procurar fazê-lo, em particular, extraindo do mundo novos exemplos que põem em perigo a integralidade das definições e lançam dúvidas sobre o caráter universal dos modelos classificatórios.

Ou seja, para Boltanski, se as pessoas lutam pelo reconhecimento, pela integração, por dignidade ou igualdade, se lutam contra o sofrimento social, isso só pode se dar, em termos de efetividade, mediante alteração na própria semântica da realidade construída socialmente. Sem tal mudança, trazendo partes do mundo para a realidade e, com isso, modificando-a, a luta não consegue ganhar efetivação. Lutar também é, ao mesmo tempo, criticar a realidade atualmente institucionalizada e imaginar e demandar outras realidades; é trazer vivências “aberrantes” e normalizá-las, objetivá-las.

E o pressuposto disso, em termos de figuração ontológica, é que a sociedade é frágil. O social não é dado nem coisa, como diria Durkheim, contudo, numa perspectiva pragmática, constitui um “problema” (Corrêa, 2014) a ser solucionado, de modo sempre temporário e sujeito a transformações:

Ao contrário dos sociólogos, os antropólogos tendem a estar conscientes do fato de que o mundo — incluindo, evidentemente, o mundo social — é uma grande confusão, ao invés de um todo ordenado. Nessas circunstâncias, é quase impossível produzir algo como “um coletivo”; mesmo que endossemos uma concepção otimista da humanidade, precisamos aceitar que estamos lidando com uma espécie de milagre. Isso se deve às várias e insolúveis contradições imanentes, que também devem ser abordadas pela sociologia. Mesmo Marx falhou em fazê-lo de forma convincente; muitas vezes ele trata as relações sociais como um dado, em vez de algo que é muito difícil de estabelecer. As relações sociais são sempre uma construção extraordinariamente frágil (Boltanski; Honneth; Celikates, 2019c, p. 5).

 

Com efeito, uma contradição hermenêutica é inescapável na instituição da sociedade, pois, enquanto a realidade deve constituir o mundo sub specie aeternitatis, ela nunca pode instituir plenamente uma ordem eterna, porque permanece uma profunda ambivalência em relação às instituições. Essa ambivalência decorre do fato de que, por um lado, as instituições que instituem a realidade gozam da confiança popular, mas, por outro, em última análise, é evidente que se trata apenas de “ficções” ou construções históricas. Se o social é compreendido dessa forma, então, as possibilidades implicadas por tal figuração ontológica, em termos de pressuposição normativa da crítica, apontam para um modelo de integração social intimamente articulado com a explicitação dessa fragilidade das instituições. Trata-se de assumir que a realidade social jamais vai ser algo sólido, as experiências que ocorrem no mundo vão estar sempre aí, transbordando a realidade socialmente confirmada pelas instituições. Portanto, as instituições sociais precisam ser abertas, porosas:

Numa figura política deste tipo, a realidade social seria, portanto, levada a reconhecer-se pelo que é – isto é, na sua fragilidade e incompletude constitutivas – e a agarrar-se à incerteza e ao absurdo, a colocá-los no panteão de seus “valores”, em vez de sempre pretender reduzi-los em nome da ordem e da coerência. O diferencial entre o mundo e a realidade não seria, portanto, abolido. Mas a possibilidade de algo, arrancado pela crítica à opacidade do mundo, inscrever-se no tecido da realidade, ajudando assim a transformá-la, seria menos difícil de alcançar (Boltanski, 2009, p. 230).

 

Isso nos leva a um problema político e normativo: enquanto a tentativa de abolir as instituições é inútil, precisamos concebê-las de maneira diferente — ou seja, como estabelecimentos frágeis, os quais podem estar relativamente próximos dos seres humanos e podem ser transformados e criticados. Ou seja, segundo essa perspectiva crítico-normativa, instituições “fortes” são más instituições. As piores instituições são justamente aquelas que perderam toda a ligação com o mundo – isto é, com as experiências das pessoas, que são, por definição, históricas e locais. Uma boa instituição seria uma instituição que é consciente de suas limitações e que as reconhece, que está aberta ao mundo e aos processos inovadores que derivam de si mesma. Por isso, para Boltanski (2019b, p. 14), o que está em jogo hoje, mais do que uma luta por reconhecimento, é uma “luta contra a realidade”— ou seja, a luta contra o engessamento e fechamento do horizonte imaginativo de alternativas à realidade institucional contemporânea.

O próprio sociólogo francês parece compreender bem a diferença de tal perspectiva sócio-ontológica em relação à antropologia e à ontologia social pressuposta por Honneth:

Tive várias trocas notavelmente frutíferas com Honneth, mas gostaria de enfatizar que nossos pontos de partida são diferentes. Parece-me que as teorias dele se baseiam em uma forma de “antropologia comunitária”. De acordo com essa abordagem, a comunidade é inerente ao ser humano, e a existência de um espírito comunitário precede a existência de qualquer modo de agência social. O ponto de partida de Honneth é o “reconhecimento”, que ele concebe como uma espécie de dado antropológico e que, para ele, constitui a base sobre a qual a sociedade é construída. O ponto de partida de De la critique, ao contrário, é o de uma dupla incerteza construída na vida da comunidade [...] Portanto, ao contrário da estrutura de Honneth, minha abordagem examina os seres humanos em termos de dispersão e incerteza, buscando entender como eles desenvolvem estratégias que lhes permitam reduzir esta fragmentação e esta indeterminação (Boltanski; Rennes; Susen, 2014, p. 601).

 

O aspecto “hegeliano”, mas igualmente “durkheimiano”, da ontologia social de Honneth parece bem sintetizado nessa passagem. Por outro lado, ao tomar a incerteza e a fragilidade das instituições como cerne da sua perspectiva sócio-ontológica, Boltanski nos permite vislumbrar um outro tratamento teórico-crítico possível para as experiências sociais negativas, com pressupostos e consequências diversos do paradigma honnethiano. Por exemplo, em face das recentes críticas endereçadas ao modo como Honneth articula experiências sociais negativas e a normatividade da crítica, poderíamos especular em que medida o modelo esboçado por Boltanski poderia nos ajudar a superar tais dificuldades. Refiro-me aqui, em particular, a críticas como as de Jörg Schaub (2015, p. 125ss), que assinala, por exemplo, os riscos de se vincular, de modo excessivamente rígido, a compreensão do teor normativo das experiências sociais negativas às normas já mais ou menos institucionalizadas pela eticidade moderna. Para ele, a teoria crítica precisa estar atenta à possibilidade de que nossas experiências com complexos normativos-institucionais estabelecidos possam transformar nossas aspirações e nossas avaliações desses complexos normativos-institucionais, mesmo que eles sejam "normativamente superiores aos ideais sociais historicamente anteriores".

Mesmo que alguém se envolva, como Honneth, em O direito da liberdade (2015), com um exercício de descrição da vida ética moderna, essa descrição deve, no entanto, abrir espaço para experiências de negatividade que poderiam alimentar “revoluções normativas”. De acordo com Schaub, Honneth torna sua análise da eticidade moderna surda a experiências negativas com normas estabelecidas, ao desconsiderar essa possibilidade, ou seja, experiências negativas que não podem ser adequadamente abordadas por meio de uma interpretação mais adequada e/ou pela realização mais abrangente de normas estabelecidas. A Teoria Crítica não deve adotar uma versão de crítica interna que a isente do potencial emancipatório que tais experiências negativas geram, inviabilizando um modelo mais radical de crítica. Por conseguinte, de acordo com essa perspectiva, nem todas as experiências negativas remetem a e devem ser avaliadas pelas lentes de normas já parcialmente institucionalizadas; a negatividade de tais experiências pode, em certos casos, ao menos, levar os atores a transcender ou perder o vínculo com tais normas. Consequentemente, tampouco cabe ao teórico crítico em sua análise se comprometer, de antemão e de modo definitivo, com tais normas. Ora, a distinção proposta por Boltanski entre realidade e mundo, numa ontologia social de duplo nível, poderia contribuir precisamente para esse objetivo de maior abertura às eventuais “revoluções normativas”, no curso da análise das experiências negativas.

Fugiria ao escopo deste artigo, contudo, analisar exaustivamente quais seriam as eventuais vantagens e desvantagens desse outro modelo. Todavia, o próprio Honneth termina um de seus textos sobre a história e o futuro da filosofia social, apontando para aquilo que seria o grande desafio teórico contemporâneo para esse campo, bem como, podemos supor, para o campo da teoria social crítica:

O problema atual da filosofia social consiste assim na seguinte questão: se, de acordo com seu objetivo teórico, a filosofia social depende de critérios universais cuja validade não pode mais ser comprovada indiretamente por uma antropologia pressuposta, então sua continuidade depende inteiramente de uma ética formal que possa ser justificada ou não. Começando por Rousseau e continuando por Hegel, Marx, Adorno, Plessner e Arendt, a filosofia social sempre foi caracterizada por figuras antropológicas ou histórico-filosóficas de pensamento, das quais surgiram critérios éticos para determinar as patologias sociais de forma tão perfeita que nunca poderiam ter sido reconhecidas como tal. Preparado por Nietzsche com grande determinação e enfatizado dramaticamente por Foucault para nosso tempo, o verniz externo da filosofia social tem sido tão completamente quebrado que seu núcleo ético agora está exposto. O futuro da filosofia social hoje, consequentemente, depende da possibilidade de dar uma justificativa convincente de nossos julgamentos éticos sobre as exigências necessárias de uma vida humana boa e bem vivida (Honneth, 2007, p. 42).

 

Percebe-se que a grande preocupação de Honneth, em face do impacto das críticas de Nietzsche e Foucault ao universalismo racionalista, é a de resguardar a pretensão clássica da filosofia social de ser capaz de avaliar certos desenvolvimentos na vida social como patologias de um modo que transcende o contexto mais imediato. Qual poderia ser o critério de distinção entre o normal e o patológico? Como identificar experiências sociais negativas, evitando um mero contextualismo ou, pior, um relativismo cultural “sem dentes”?

Ora, vimos que a crítica das instituições de Boltanski não se pauta num critério normativo universalista-racionalista, todavia, em uma figuração sócio-ontológica da fragilidade, da incompletude e da ausência de fundamento último das instituições, isto é, em certa ideia de incerteza e negatividade ontologicamente latentes, na realidade social. Tudo isso articulado com uma certa compreensão do sofrimento social e do recurso a uma norma de abertura e porosidade das instituições. Trata-se de assumir a incerteza e a contingência, na forma de uma finitude não dogmática que desempenharia um papel importante na efetivação do tipo genuíno de respeito e abertura para o outro que, sem dúvida, constitui um legado relevante da “[...] modernidade não-eurocêntrica” (Allen, 2018, p. 39). Essa via talvez seja um ponto de partida para a filosofia social e para a teoria social crítica, a fim de superar o desafio apontado por Honneth. Ainda mais numa era na qual, no lugar de simplesmente reconstruir e realizar mais profundamente os valores atuais, precisamos urgentemente imaginar outras realidades possíveis.

 

Considerações finais

Neste artigo, procurei mostrar duas coisas. A primeira é que o âmbito da normatividade da crítica social, quando se trata de descrever e diagnosticar experiências sociais negativas, enquanto fenômenos patológicos numa sociedade, acaba por pressupor o que chamei aqui de uma certa “figuração ontológica da sociedade”. Isso significa que a dimensão sócio-ontológica é fundamental para compreendermos os pressupostos de uma determinada teoria crítica, em particular, e de determinadas teorias sociais que pretendem diagnosticar experiências sociais negativas, em geral. Em segundo lugar, na parte final do artigo, busquei defender que o modelo de articulação entre crítica radical e experiências negativas de Boltanski pode se apresentar como uma boa alternativa e um bom ponto de partida para superar alguns dos limites do modelo honnethiano, no âmbito de uma teoria crítica contemporânea – em particular, um certo “ranço” durkheimiano. E isso, na medida em que a figuração ontológica de sociedade pressuposta pela teoria de Boltanski, na qual fragilidade e incerteza adquirem centralidade, me parece mais capaz de incorporar uma dimensão crucial de qualquer perspectiva crítica, a saber: a transformação social profunda, por meio de “revoluções” no âmbito das próprias normas já parcialmente institucionalizadas.

 

Social ontology and critical theory: the problem of negative social experiences

Abstract: What does it mean to assert that a society produces negative social experiences? From the standpoint of social ontology, what is the image or figuration of society presuposed in such a diagnosis? This article aims to address such inquiries through the reconstruction of some theoretical models, particularly critical ones. Methodologically, it involves starting from how each model diagnoses negative social experiences in order to better reflect on the various possibilities of understanding the social. This article is divided into three parts. In the first part, focusing on classical social theory, I discuss the treatments given by Durkheim and Marx to the phenomenon of suicide, as well as working with the concept of alienation in the latter. Next, within the realm of Frankfurt critical theory, I expose how both Adorno's and Honneth's models can be read as attempts to confront the problem of social suffering within modern societies. Finally, in a third moment, I analyze how negative social experiences are articulated with the idea of radical critique by Luc Boltanski. This perspective will be presented as an alternative to the Honnethian model in overcoming challenges facing the field of critical theory today.

 

Keywords: Social Ontology. Critical Theory. Negative Social Experiences. Social pathologies.

 

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Recebido: 09/05/2024 – aprovado: 04/07/2024 – Publicado: 23/09/2024



[1] Professor do Departamento de Filosofia e do PPGF da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0567-0770. Email: leonardo.jorge@ufba.br.

[2] Sobre o conceito de patologias e desordens de segunda ordem, ver Zurn (2011).

[3] Esse é, diga-se de passagem, um dos motivos fundamentais que me levou a privilegiar aqui Luta por reconhecimento, e não O Direito da Liberdade, na análise da obra de Honneth acerca do diagnóstico de experiências sociais negativas.

[4] Para um tratamento dessa categoria a partir de um instrumental sobretudo psicanalítico, ver Safatle (2020, p. 179).