Literatura e resistência

 

Antonio Fernando Longo Vidal Filho[1]

 

Resumo: Este ensaio aborda os artigos anônimos publicados por Sartre em Les Lettres Françaises, jornal clandestino editado pelo Comitê Nacional dos Escritores na França ocupada. Depois de reconstruir a circunstância histórica dessa intervenção, investiga seus fundamentos conceituais e suas matrizes literárias. No centro está uma leitura de “A Literatura, essa Liberdade!”, onde a afirmação do sentido político do ato de escrever vem circunscrita pela experiência da resistência ao nazifascismo. O percurso conduz a um balanço dos primeiros combates do engajamento.

 

Palavras-chave: Sartre. Engajamento. Colaboracionismo. Resistência. Literatura.

 

Introdução

Entre 1943 e 1944 Sartre contribuiu com Les Lettres Françaises, jornal clandestino editado pelo Comitê Nacional dos Escritores na França ocupada. Embora sejam parcos os textos que resultaram dessa contribuição, não deixam de ser significativos: trata-se do grosso do que ele publicou junto à resistência intelectual. Nesses panfletos impressos sem assinatura, coalhados de invectivas contra as ignomínias do colaboracionismo, atravessados por imagens e valores caros à tradição clandestina que àquela altura se formava, veem-se esboçados temas e argumento que a partir do imediato pós-guerra seriam amplamente desdobrados na obra de Sartre. Entre outras coisas, é a constelação de motivos que orbitam em torno da noção de engagement que aí começa a se articular. As formulações dele acerca da responsabilidade do escritor e do vínculo entre literatura e liberdade, vistas sob a perspectiva da situação dramática em que emergiram, e de que esses textos configuram um registro notável, podem ganhar um brilho de concretude, que em geral fica apagado no comentário mais batido.[2]

 

1 Organizar a resistência

De acordo com Simone de Beauvoir, em março de 1941, depois de escapar ao cativeiro – durante nove meses ficou prisioneiro no Stalag XII D de Trèves –, Sartre retorna a Paris e logo firma, de maneira peremptória, seu propósito de “organizar a resistência”: “[...] se viera para Paris não fora para gozar as doçuras da liberdade e sim para agir” (Beauvoir, 1984, p. 478). Se em 1939 viu partir para o front um intelectual torre-de-marfim, em 1941 Beauvoir não esconde sua surpresa ao vê-lo retornar transfigurado em homem de ação.[3] 

Ainda em 1941 Sartre se empenha, junto com Merleau-Ponty e outros intelectuais, na criação de Socialismo e Liberdade. O grupo fez água em menos de um ano, durante o qual mal conseguiu trazer à tona uma publicação clandestina. Não obstante esse caráter incipiente, costuma-se reconhecer aí o germe de posições políticas que no pós-guerra orientariam a intervenção de Sartre, sobretudo os princípios norteadores do Rassemblement Démocratique Révolutionnaire, que ele encabeçou ao lado de David Rousset: a ideia de uma “terceira opção”, que fosse anticapitalista sem ser stalinista e democrática sem ser liberal (cf. Sartre; Rousset; Rosenthal, 1949, p. 70-77). Como integrante de Socialismo e Liberdade, Sartre tentou se aproximar da Frente Nacional dos Intelectuais, de que o Comitê Nacional dos Escritores seria um braço importante, e que começava a ser organizada pelo Partido Comunista. A primeira de uma série de trombadas: acusaram-no de ser um espião que só foi liberado do campo de prisioneiros pois concedeu dar aos alemães informações acerca do funcionamento interior da resistência. Uma fantasia difamatória, que evidencia o sectarismo inicial do Front National. Em depoimento a respeito desses acontecimentos, Sartre diz:

Essa desconfiança dos comunistas nos enojou, e nos fez medir nossa impotência. Dissolvemo-nos um pouco depois, não sem que uma de nós fosse detida pelos alemães; ela morreu na deportação. Desgostoso, permaneci dezoito meses sem nada fazer, professor no Liceu Condorcet. Ao cabo desse período, fui contatado por antigos amigos comunistas que me propuseram entrar no C.N.E. (Comitê Nacional dos Escritores), que redigia um jornal clandestino, Les Lettres Françaises, e eu fazia o gênero de trabalho que se pode esperar de escritores cuidadosamente separados pelo P.C. das massas resistentes e da resistência armada (Gavi; Sartre; Victor, 1974, p. 25).

 

Sartre conta que aceitou o convite não sem antes escarnecer daqueles que o chamaram de “traidor”, contudo nada diz sobre as possíveis razões dessa mudança de posição dos comunistas. O que a teria motivado? A questão interessa para além das anedotas. É que nos dezoito meses referidos acima o campo da intelligentsia ligado à resistência se rearticulou, e essa aproximação de Sartre com os comunistas, que resultou na colaboração dele com Les Lettres Françaises, deriva em grande medida dessa rearticulação.[4] Embora em 1941 o Front National já se propusesse acolher o “verdadeiro pensamento francês”, que só podia levar existência clandestina, afinal a expressão à luz do dia estava condicionada à submissão à propaganda alemã, deixava fora de suas fileiras boa parte da intelectualidade não comunista: eram admitidos somente os “intelectuais orgânicos”. Inclusive por razões teóricas. Com efeito, La Pensée Libre, a primeira publicação clandestina do Front National, de que Georges Politzer foi editor, fazia o “verdadeiro pensamento francês” correr por uma linha reta que ia do materialismo do século XVIII à ortodoxia do “materialismo dialético”. E o que ficasse fora desse trilho estreito caía na conta do “irracionalismo” etc. A criação do Comitê Nacional dos Escritores e de Les Lettres Françaises derivou de uma mudança de orientação: consta que foi Aragon quem se fiou no exemplo da posição adotada por Thorez durante o Front Populaire, defendendo uma política unitária que agrupasse comunistas e não comunistas. O recrutamento levado a cabo a partir de 1942 dá parte dessa orientação, que se explicita na “Declaração” que abre o jornal:

Representantes de todas as tendências e de todas as confissões: gaullistas, comunistas, democratas, católicos, protestantes, nós estamos unidos para constituir a FRENTE NACIONAL DOS ESCRITORES FRANCESES. [...] Defenderemos os valores que fizeram a glória de nossa civilização. [...] Les Lettres Françaises será nosso instrumento de combate e, por meio de sua publicação, pretendemos integrar-nos, em nossa posição de escritores, na luta até a morte empenhada pela Nação francesa para se libertar de seus opressores (Les Lettres Françaises, [s. l.], n. 1, p. 1-2, set. 1942).

 

De fato, aí se reuniram figuras e grupos que jamais haviam andado de braços dados e que, depois da Libertação, voltariam a digladiar. O que propicia essa associação, segundo o texto, é menos algum acordo teórico do que a defesa de certos “valores”, bem como uma visão acerca do papel do escritor e da literatura naquela circunstância dramática. Empurrada por uma inspiração valente a escrita se assimila à ação: o escritor que alegasse sobrevoar a realidade em nome da gratuidade de uma literatura pura caía na conta dos “traidores”, de modo que até mesmo o silêncio ganhava o peso de um engajamento, motivo que é desenvolvido numa série de textos, de A Esperança e o Silêncio (1940), de Paulhan, até A República do Silêncio (1944), de Sartre, passando por O silêncio do mar (1942) de Vercors. Quanto aos “valores”, note-se o timbre nacionalista do trecho acima. Trata-se de uma novidade, afinal sempre foi próprio da tradição anti-intelectual, que àquela altura se aliava ao estrangeiro, recorrer aos atavismos nacionais a fim de fustigar o universalismo abstrato dos “desenraizados” (como na época do caso Dreyfus, quando Barrès procurava desqualificar Zola, afirmando: “Este homem não é um francês!”). Isso posto, digamos que em 1943, quando é convidado a entrar no Comitê Nacional dos Escritores, Sartre, que tratará de interpretar a seu modo as injunções referidas, é carregado por uma onda que se erguia: em seu bojo uma espécie de sistema clandestino se articulava, armado em torno de uma estrutura editorial, um conjunto de autores e um público. Além da expectativa de que uma onda muito maior, de que essa era parte, engendraria um “movimento revolucionário” quando rebentasse na Libertação:

Éramos muitos, que aí [em Les Lettres Françaises] não mais escrevemos, a considerar isso como uma obrigação, posto que desejávamos que o Front National se transformasse, depois da Libertação, em um grande movimento revolucionário de resistência, análogo, se se quiser, mas mais compacto, mais eficaz, do que podia ser o Front Populaire em 1936 (Sartre; Rousset; Rosenthal, 1949, p. 71).

 

2 O que é um colaborador?

“Alguns preferem ser líricos, outros patrióticos, outros ainda farão versos patéticos por força das circunstâncias: Sartre, cavaleiro solitário, opta pelo ódio cego” (Cohen-Solal, 1986, p. 264). A formulação é inespecífica, contudo carrega alguma verdade: esses textos são puxados por um ímpeto destrutivo. Talvez fosse mais exato falar de “espírito de pura negatividade”, como faz Sartre, sugerindo assim que a intervenção intelectual clandestina na qual tomou parte fez reviver o gesto inaugural do écrivain do século XVIII (cf. Sartre, 2008, p. 229-230). Por agora, note-se que esse espírito que diz não empurra a escrita para o lado do panfleto, pois aí o caráter agônico vem para o primeiro plano, o que confere a esses textos a marca ostensiva da transitividade. Não faltam boutades e invectivas, que lembram a maneira pela qual, nos anos 30, Sartre escarnecia de alguns pilares do establishment intelectual da Terceira República. Mas os alvos são outros: na linha de tiro estão os órgãos da “imprensa inspirada” e as “cabeças bem pensantes da colaboração”. Trata-se de uma franja de literatos de segunda linha que, imediatamente após a “estranha derrota”, como Marc Bloch se referiu à défaite da França, tornaram-se os cabeças da cena cultural sob o patrocínio da Propaganda-Abteilung.[5] Interessa acompanhar a caracterização do colaborador, retomar os termos com que Sartre acusa a miséria moral e estética do colaboracionismo, pois é nesse embate, no qual não deixa de cumprir a função de franco-atirador intelectual – era comum essa assimilação da pena à espingarda, o que não dirimia certo “complexo de inferioridade” daqueles que “apenas escreviam” em relação àqueles que passavam para a “luta direta”[6] –, que ele expõe sua concepção sobre o problema àquela altura inescapável das relações entre literatura e política.

Consideremos o caso de Drieu La Rochelle. Sartre estreou em Les Lettres Françaises com um Propos onde esmiúça as razões da “afinidade eletiva” desse escritor com o nazismo: ao contrário do que se alegava com frequência, não foi por rasteiro oportunismo nem por vileza política que o então editor da Nouvelle Revue Française colaborou. É que o homem do ódio só poderia mesmo colaborar de corpo e alma com um sistema do ódio, que ao solicitar-lhe é prontamente atendido pois no fundo era ansiosamente esperado. Entre o ódio ruminado nos limites da experiência subjetiva e o ódio objetivado numa enorme máquina de moer há um abismo, e o segredo do pacto que sela a cumplicidade entre esses dois polos evidentemente não se revela por simples justaposição, já que depende da reconstituição de uma cadeia complexa de mediações. Mas tão longe não vai nem poderia ir Drieu La Rochelle ou o ódio de si. Nesse brevíssimo exercício de psicanálise existencial, debruçando-se sobre uma obra marcadamente autobiográfica, Sartre traça, com as linhas grossas do escárnio – tratava-se, afinal, de afrontar um ilustre comensal da embaixada alemã −, o retrato de um personagem que oscilou entre extremos: durante muito tempo Drieu La Rochelle foi um homme de trop ao qual repugnava imiscuir-se na ação, à qual opunha o sonho, mas seguiu rumo à militância fascista e terminou integrado às fileiras da Colaboração.[7] — Como entender a aparente reviravolta? Em O que é um colaborador? Sartre resume sua versão dessa história:

Ele [Drieu La Rochelle] começou por odiar-se. Ao longo de vinte anos, pintou-se como um desequilibrado, um desintegrado, um “homem supérfluo”, e sonhou para si próprio uma disciplina de ferro que era incapaz de seguir espontaneamente. Mas esse ódio de si se tornou – como testemunha Gilles – um ódio do homem. Incapaz de suportar esta dura verdade: “Sou uma criança frágil e molenga, covarde diante de minhas paixões”, quis se ver como um produto típico de uma sociedade inteiramente apodrecida. Sonhou com o fascismo para ela, embora lhe tivesse sido suficiente dar a si próprio regras estritas de conduta: quis aniquilar o humano em si e nos outros, transformando as sociedades humanas em formigueiros. Para esse pessimista, a ascensão do fascismo corresponde, no fundo, ao suicídio da humanidade (Sartre, 1949, p. 59).

 

Thibaudet (1951, p. 510-11) chamou o período literário de 1914 de período da “descompressão”. O símile é o do peixe que vive nas profundezas e é puxado subitamente para a superfície; sua bexiga natatória, órgão do equilíbrio, estoura; o peixe fica desorientado. O mesmo se passou com a literatura: os escritores que chegaram aos vinte anos em meio à conflagração do conflito mundial foram submetidos a tal descompressão que viraram uns peixes de bexiga natatória estourada. E Thibaudet acrescenta: o romance mais representativo dessa experiência de arrebentamento é A mala vazia de Drieu La Rochelle. Dessa experiência também dá parte Gilles, romance cheio de elementos autobiográficos ao qual Sartre se refere. Ao retornar do front, o protagonista, ocioso e disponível para nada, desliza pela sociedade, devaneia muito, logo se enfara – o que seria um mergulho na decadência da sociedade francesa −; ele só consegue suplantar o tédio quando entra nas tropas de Franco durante a Guerra da Espanha: transpõe as barreiras de sua inadaptação social imergindo na violência direta, que é vista como sublime e heroica, fonte de salut. Assim, a existência votada ao sonho é iluminada pela luz negra da decadência e suas consequências nefastas – afeminação, fraqueza, impotência, improdutividade –, ao passo que a existência votada à ação, que explode como um relâmpago de violência primitiva e transfiguradora, traz consigo o restabelecimento do vigor físico, da virilidade, da potência.[8] Nessa visão mística do combate, que traz escrita na testa sua origem a partir do mais furioso decadentismo, Sartre enxergou o outro lado da Negação hipostasiada que considerava estar presente no coração do surrealismo: para esses “irmãos-inimigos” a busca pelo absoluto, que passava pela aniquilação simbólica do mundo, resolve-se num ativismo arrimado na idealização da violência (cf. Sartre, 2008, p. 197-198).

Se em Drieu La Rochelle ou o ódio de si Sartre vê no itinerário desse escritor, bem como nos motivos elementares que se cruzam em sua obra, o drama mais entranhado das reversões do ódio de si em ódio do homem − o que é uma maneira de sugerir que o colaboracionismo, nesse caso, não foi resultado de uma injunção exterior, mas de uma     “vocação” −, em A esperança feita homem ele retoma o   mesmo assunto – a misantropia do colaborador, à qual opõe a esperança do resistente −, e mostra como o referido pessimismo de Drieu La Rochelle casava com a visão de mundo característica da fração intelectual que colaborou com o ocupante (cf. Sartre, 2010a, p. 273-275). Em linhas gerais, o que é um colaborador? Evidentemente, o colaboracionismo não deriva da simples adesão ao fascismo; embora a maioria dos colaboracionistas tenha sido recrutada no seio da burguesia, a conduta deles tampouco se explica por esse pertencimento de classe. É que, segundo Sartre (1949, p. 46), “[...] a colaboração é um fato de desintegração” — “[...] ela representa, na origem, uma fixação por formas coletivas estrangeiras de elementos mal assimilados pela comunidade nativa”. Se nos voltarmos para a vanguarda do colaboracionismo intelectual, constataremos que a maioria daqueles que se submeteram “sem contenção às instâncias da mentira e do mal”, como escreveu René Char, veio das frações marginais do campo intelectual do período entre-guerras. Trata-se de ideólogos em larga medida saídos dos movimentos de juventude dos Anos 30, no interior dos quais fermentou a crítica cultural conservadora de corte mais radical — antissemita, antirrepublicana, anticomunista. Segundo Sartre, não seria um equívoco enfeixá-los sob      a alcunha de “anarquistas de direita”. É que a rage deles em relação à ordem social da Terceira República não poderia ser maior, o que se expressava pelo desprezo em relação às injunções legais de uma sociedade tida como “decadente” e pelo recurso sistemático à violência contra os adversários. Drieu La Rochelle elaborou uma formulação significativa dessa orientação: “A liberdade está esgotada − lê-se em Socialismo Fascista  −, o homem deve reimergir em seu fundo negro. Eis o que digo, eu, o intelectual, o eterno anarquista” (apud Nolte, 1969, p. 332). Um intelectual muito distinto do tipo abstrato e desenraizado que a tradição conservadora tratou de caricaturar e maldizer reiteradamente desde o caso Dreyfus, um intelectual, em suma, anti-intelectual: “[...] um tipo de homem que rejeita a cultura e que sonha em dar ao mundo uma disciplina física de efeitos radicais” (apud Ory; Sirinelli, 1986, p. 132). Por onde se vê que sua alegada anarquia não passava, paradoxalmente, de um enorme desejo de ordem: “[...] eles perseguiam, à margem da sociedade concreta, o sonho de uma sociedade autoritária onde poderiam se integrar e se fundir. Assim, preferiram a ordem, que a potência alemã lhes parecia representar, à realidade nacional da qual estavam excluídos” (Sartre, 1949, p. 49). Se é assim, entende-se por que o colaborador será caracterizado como uma figura de duas faces: por um lado, sustenta contra a sociedade em que é um desassimilado a representação austera e viril de um novo disciplinador, além do mais realista, afinal a colaboração se apresentava como o resultado de uma lúcida submissão aos fatos, a começar pelo fato capital e humilhante da derrota; por outro lado, investe no papel de vassalo de um suserano que lhe demanda obediência cega e ao qual o monopólio da força permanece reservado, posição marcadamente desvirilizada, que beira o masoquismo. Talvez não seja um equívoco relacionar essa estrutura dúbia ou ambígua, que, segundo Sartre, marca o colaboracionismo, à duplicidade ou ambivalência presentes nas representações mais correntes da vida dos franceses sob a Ocupação (cf. Laborie, 2003, p. 25-36). Fechando o círculo das ambivalências, o ódio:

O colaborador parece sonhar com uma ordem feudal e rigorosa: é o grande sonho (rêve) de assimilação de um elemento desintegrado da comunidade, já o dissemos. Mas se trata apenas de um castelo no ar (songe). De fato, ele odeia essa sociedade na qual não pôde desempenhar um papel. Se sonha em lhe impor o freio fascista, é para subjugá-la e reduzi-la praticamente ao estado de máquina. [...] Pouco lhes importava ser escravos de Hitler, se podiam infectar a França inteira dessa escravidão. Tal era a natureza particular de sua ambição (Sartre, 1949, p. 58-59).

 

Na batalha travada por Sartre em Les Lettres Françaises, de seu ângulo de ataque ele mirava essas figuras, que se durante os Anos 30 foram coadjuvantes, durante a Ocupação se tornaram protagonistas. E a passagem desses “anarquistas de direita” da periferia ao centro do sistema cultural criou uma estranha situação: embora integrados ao establishment, onde figuravam como ideólogos e propagandistas (“[...] jornalistas todo-poderosos, que recebem um salário gordo, que podem escrever à luz do dia e que oprimem tranquilamente uma multidão muda”, lê-se em A Esperança feita Homem), continuavam propugnando aquela visão sombria de que tanto a ficção quanto os panfletos fascistas de Drieu La Rochelle dão exemplo — um anti-humanismo enragé a favor da ordem social. Ao trocar em miúdos as implicações de um gesto intelectual radicado nessa posição Sartre apresenta não apenas a palmar constatação de que o colaboracionismo arruína a vida do espírito; sua argumentação – sugestiva e sumária – dá notícia, além disso, do surgimento de uma “nova espiritualidade”, que emerge nos antípodas da colaboração, na noite da clandestinidade, como cultura e política de Resistência. Na sua acepção mais geral, engajamento é a palavra-chave em que se condensa o sentido dessa “nova espiritualidade”. 

 

3 Literatura e política

Via de regra, os colaboradores imputavam aos “mestres maléficos” do período entre-guerras – Gide à frente – a “responsabilidade” pela “decadência” da França; viam isso como parte de um esforço de “higiene” ou “cura social”; montados nessa visão moral do mundo das letras, elegiam um novo panteão de sumidades reacionárias, como Céline, Montherlant, Drieu La Rochelle e Marcel Aymé.[9] Ao invés de acusar a traição desses “comensais da embaixada alemã” ao “Espírito francês” ou aos “valores que fizeram a glória de nossa civilização”, como ocorria com frequência em Les Lettres Françaises, onde o moralismo nacional dava o tom e se antepunha ao juízo crítico, Sartre argumenta em outra direção. Segundo ele, não é a orientação moral e política do escritor que prescreve o valor literário de suas obras, mas é a própria atividade literária que, bem compreendida, impõe o compromisso do escritor com a libertação: “[...] mesmo deixando de lado seus sentimentos patrióticos, todo escritor consciente de seu ofício encontra em sua própria atividade literária um dever político” (Sartre, 2010a, p. 268, grifos meus). Um ferreiro fascista, embora seja um canalha, não se torna por isso mau ferreiro, contudo, ao escritor não é indiferente, como escritor, aliar-se ao fascismo — é o cerne de seu ofício que ele estropia. Por quê? A pergunta induz o estilo da resposta. É que, diante da constatação de um problema de fato – não há um só bom romance saído da pena de um colaboracionista –, o Autor recuou a uma questão de direito – por que um colaboracionista não poderia escrever um bom romance? Assim, em A Literatura, essa Liberdade! a refutação de alguns mitos literários hegemônicos da França ocupada será levada a cabo através do recurso a uma brevíssima eidética do ato de escrever. Esse movimento de elucidação poderia, é claro, desembocar numa generalidade, entretanto Sartre transcreve as conclusões derivadas da descrição do ato de escrever na linguagem mais combativa e mordaz da literatura da Resistência, além de extrair daí um programa muito circunscrito.

Retornemos ao caso de Drieu La Rochelle:

Um dos fatos mais curiosos que se pôde observar durante a Ocupação é a perturbação progressiva de Drieu La Rochelle; Drieu La Rochelle, que era certamente um dos mais sinceros e talvez um dos mais patéticos entre aqueles que se enganaram, tinha uma revista na qual insultava regularmente homens amordaçados, homens que não podiam lhe responder, que não eram livres quando o liam. Pois bem, esse homem, que não era desprovido de lucidez, pouco a pouco se perturbou: de artigo em artigo, inicialmente com cólera, depois caindo na angústia, depois, finalmente, abandonando a revista simplesmente porque falava a pessoas que não eram livres para julgar o que escrevia. A voz se calou justamente por causa disso. Não se escreve, não se fala no deserto (Sartre, 1998, p. 30-31).

 

Pode-se supor que a progressiva perturbação de Drieu La Rochelle, essa gritaria colérica que redunda em silêncio desesperado, não passa da consequência lógica de sua visão acerca da guerra e da violência: “A especificidade fascista do imaginário de Drieu – afirma Caroline Julliot (2014) – “[...] é portanto essa relação quase mística com uma violência primitiva idealizada, que na realidade não poderia significar outra coisa senão o silêncio da escrita”. Sartre talvez não discordasse. Mas acrescentaria que se esse silêncio só sobreveio quando a escrita dele se converteu em instrumento de opressão, isto é, quando, diante de um público amordaçado, Drieu La Rochelle não fez mais do que reiterar o ato que assenhorou esse público, isso não foi por acaso. Com efeito, o xis do problema reside na socialização do ato de escrever, que não é julgada acessória à própria escrita, mas coextensiva dela:

Não se escreve no ar e apenas para si; a literatura é um ato de comunicação; para a realização de um livro, o leitor é tão indispensável quanto o autor. É para ele e por ele, finalmente, que o livro existe. Aquele que o escreveu permanece sempre fora, como Moisés na soleira da Terra Prometida: aí não entra, conhece bem demais seus próprios artifícios; conta com o outro, o leitor, para recompor a obra ao lê-la; e é por este leitor que quer ser reconhecido (Sartre, 2010a, p. 268).

 

Se escavássemos em busca dos pressupostos dessa tese chegaríamos a algumas passagens de O ser e o nada, onde a linguagem aparece como uma “especificação regional” do problema do Outro (“eu constituo minha linguagem como um fenômeno incompleto de fuga fora de mim. [...] Outrem está sempre aí, presente e experimentado como aquele que dá à linguagem seu sentido”) (Sartre, 2009, p. 414); se perguntássemos pelos desdobramentos dessa tese enveredaríamos pelas páginas de O que é a literatura? onde se sustenta que a leitura não é apenas correlativa da escrita, mas constitutiva do fenômeno literário enquanto tal, ou seja, o leitor não é apenas o destinatário do escritor, aquele para quem se escreve e que desvela um objeto que mesmo sem ele se manteria incólume, mas propriamente um criador, aquele por meio do qual a significação vem a ser e na ausência do qual o ato de escrever fica decapitado (cf. Sartre, 2008, p. 47-58); se avançássemos ainda um pouco reconheceríamos variações dessa mesma tese em O idiota da família, onde, tomando partido contra a ideologia do “absoluto literário”, que, como se sabe, postula que a natureza autárquica da Literatura torna inessenciais tanto a produção quanto a recepção das obras, nas quais, fechada sobre si, a linguagem em seu anonimato é quem se manifestaria, Sartre (1972, p. 103) volta à carga: “O momento da existência plena da obra é aquele da leitura”. Esse sobrevoo deixa apenas entrever como a afirmação do caráter essencialmente socializado do fenômeno literário supõe uma filosofia da linguagem e, mais especificamente, uma fenomenologia do ato de ler, que deságua numa sociologia da literatura para a qual é fundamental a noção de público.[10] Em A Literatura, essa Liberdade! essa afirmação escora o delineamento de uma ética do escritor e de uma política da literatura, um dos eixos da concepção sartriana de literatura engajada, que salvo engano aparece pela primeira vez nesse panfleto. — Como Sartre passa da essência comunicacional do ato de escrever ao imperativo, historicamente circunscrito, de que em nome da “própria literatura [...] é preciso que ele [o escritor] lute para libertar seu país e seus compatriotas” (Sartre, 2010a, p. 268)?

Retornemos ao trecho destacado acima. Na frase de abertura os pontos-e-vírgulas separam sentenças peremptórias, cuja articulação fica implícita no silêncio das pausas. Se fôssemos reescrevê-la explicitando essas articulações, ficaria mais ou menos assim: o ato de escrever não é intransitivo ou autorreferencial, pois, para adquirir realidade, depende de um ato correlato, a leitura, executado por um agente distinto, o leitor, portanto a literatura é um ato de comunicação. A relação escritor – obra – leitor é inextricável: desaparecendo um dos polos o conjunto se desintegra. Esquematizando para apoio do comentário, digamos que nessa tese vão presentes dois temas, que Sartre herda da tradição e reformula com termos próprios.

1) O ponto cego do criador. Paul Valéry pode dizer o que O cemitério marinho deveria ou poderia ter sido, mas não o que é: “Não é em mim que a unidade real de minha obra se compõe. Escrevi uma ‘partitura’, — mas só posso escutá-la executada pela alma e pelo espírito de outrem” (Valéry, 1957, p. 1560).  Em seus escritos de “poética” Valéry desdobra esse tema estabelecendo a partilha entre dois sistemas “essencialmente separados” — produção (produção da obra) e consumo (produção do valor da obra). É como se nos mal-entendidos da leitura (e da leitura de si na leitura do outro) se esboçasse o hiato de uma incongruência mais funda: a literatura, como a linguagem em geral, é Janus. O tema é glosado por Sartre: o escritor não pode realizar a obra que escreve, ele é “[...] como Moisés na soleira da Terra Prometida: aí não entra, conhece bem demais seus próprios artifícios; conta com o outro, o leitor, para recompor a obra ao lê-la”. Um sapateiro, embora também conheça bem demais seus próprios artifícios, nem por isso se torna incapaz de calçar os sapatos que fabrica. Por que não posso ler o que escrevo?

Mas se nós mesmos produzirmos as regras da produção, as medidas e os critérios, e se o nosso impulso criador vier do mais fundo do coração, então nunca encontraremos em nossa obra nada além de nós mesmos: nós é que inventamos as leis segundo as quais a julgamos; é a nossa história, o nosso amor, a nossa alegria que reconhecemos nela; ainda que a contemplemos sem tocá-la, jamais recebemos dela essa alegria ou esse amor: nós os colocamos ali; os resultados que obtivemos na tela ou no papel não nos parecem jamais objetivos; conhecemos bem demais os procedimentos de que são os efeitos (Sartre, 2008, p. 47).

 

Esse trecho de O que é a literatura?, que troca em miúdos a passagem do panfleto que estamos lendo, inscreve-se na fenomenologia da criação em geral e da criação estética em particular que Sartre andava esboçando em fins dos anos 40 e que não levou a termo (em lugar de uma descrição inespecífica, por assim dizer, ele iniciou uma série de retratos de artistas – Baudelaire, Mallarmé, Genet – onde o problema da criação é retomado a partir de experiências singulares, não por acaso de escritores que concebiam a própria atividade criadora como intransitiva). O argumento poderia ser resumido assim: sendo a atividade criadora, impossível, para o sujeito que cria, constituir por si mesmo o objeto de sua criação, pois é coextensivo ou essencial ao ato de criar; o avesso é a percepção, quando a atividade do sujeito é desvelante, quer dizer, embora essencial à manifestação do objeto, é inessencial em relação a seu ser. Se crio, não desvelo, pois isso seria considerar minha obra com os olhos de um outro. Ao criar, contudo, posso me apoiar em prescrições ou normas já codificadas, posso me deixar guiar por imperativos aos quais permaneço alheio, e assim um sujeito indeterminado trabalha pelas minhas mãos: “[...] nesse caso, o resultado pode nos parecer suficientemente estrangeiro para conservar a nossos olhos sua objetividade” (Sartre, 2008, p. 47). Em contraposição a essa codificação da criação Sartre descreve uma criação “absoluta”, isto é, alforriada da servidão a uma norma externa àquela que se dá o próprio criador. Trata-se, em suma, de uma pura atividade subjetiva (e não da atualização de uma virtualidade que repousaria silenciosa na interioridade), um começo primeiro ou livre projeto (o que em Sartre significa a mesma coisa), incapaz de, por si mesmo, encontrar-se como a um objeto: “[...] jamais recebemos dela essa alegria ou esse amor”. Assim, o que se revela do ângulo da criação “absoluta” é menos a autarquia do que a insuficiência, um ponto cego, como aquele a que reiteradamente voltava Baudelaire, que se olhava para se ver olhar e só podia experimentar o fracasso desse esforço reflexivo de objetivação: “[...] o olho não pode ver a si mesmo, ele se sente, se vive” (Sartre, 1947, p. 29).[11] Conclusão: o rosto do criador só pode revelar seu segredo para nós, espectadores ou leitores[12]

            2) A criação do leitor. No prefácio a sua tradução de duas conferências de John Ruskin, Proust afirma que a verdadeira leitura não deixa margem para qualquer conduta fetichista: contra a idolatria dos bens culturais implicada em certa concepção contemplativa da leitura, ele insiste que ler é uma atividade cuja função é incitar a criação. Uma concepção desreificada do objeto literário – menos uma coisa que se observa do que um instrumento que permite observar – com a qual Sartre afina na intenção crítica e desafina na programática (cf. Proust, 1987). Esse o segundo tema glosado em A Literatura, essa Liberdade! Não sendo assimilável ao registro da luz pela placa fotográfica, à recepção passiva das impressões trazidas pelos signos, a atividade do leitor, de acordo com Sartre, é resposta a um apelo de reconhecimento (o escritor “[...] conta com o outro, o leitor, para recompor a obra ao lê-la; e é por este leitor que quer ser reconhecido”), que constitui a obra do escritor (“[...] para a realização de um livro, o leitor é tão indispensável quanto o autor. É para ele e por ele, finalmente, que o livro existe”). Como é na garantia da liberdade desse ato que ele funda tanto a possibilidade da realização plena do objeto literário quanto o compromisso do escritor com a libertação, convém caracterizá-lo melhor:

Numa palavra, a leitura é criação dirigida. Por um lado, com efeito, o objeto literário não tem outra substância além da subjetividade do leitor: a espera de Raskólnikov é minha espera, que empresto a ele; sem essa impaciência do leitor restariam somente signos esmorecidos; seu ódio contra o juiz de instrução que o interroga é meu ódio, solicitado, captado pelos signos, e o próprio juiz de instrução não existiria sem o ódio que lhe dirijo através de Raskólnikov; é ele que o anima, é sua carne. Mas, por outro lado, as palavras estão aí como armadilhas para suscitar nossos sentimentos e refleti-los para nós; cada palavra é um caminho de transcendência, ela informa nossos afetos, os nomeia, atribui a eles um personagem imaginário que se encarrega de vivê-los para nós e que não tem outra substância senão essas paixões emprestadas; ela lhes confere objetos, perspectivas, um horizonte. Assim, para o leitor, tudo está por fazer e tudo já está feito; a obra existe tão somente no nível exato de suas capacidades; enquanto lê e cria, sabe que poderia sempre ir mais longe em sua leitura, criar mais profundamente; e, através disso, a obra lhe parece inesgotável e opaca como as coisas (Sartre, 2008, p. 52).

 

Entre a tese, que é enunciada de saída (“a leitura é criação dirigida”), e a explicitação da tese, que vem no arremate (“para o leitor, tudo está por fazer e tudo já está feito”), Sartre interpõe no miolo um exemplo sugestivo (“a espera de Raskólnikov é minha espera...”). Levando-se em conta as distinções entre modalidades diversas de leitura, bem como as diferenças entre a leitura de prosa e de poesia, fica claro que o exemplo abre caminho rumo a um programa que concerne sobretudo ao romance. A menção a Dostoiévski não é casual. Porque sabe capturar a minha duração, ele já aparecia, no ensaio sobre François Mauriac, como o modelo do escritor que esboça na trama dos signos a mimese da liberdade (cf. Sartre, 2010a, p. 44-45). Indicado esse arco – da teoria da leitura à discussão sobre o realismo –, tentarei resumir a tese. O leitor é requerido não apenas para desvelar um objeto que permaneceria independente ou essencial em relação a ele (para que este objeto se manifeste), mas também para criar esse objeto (para que ele seja). É esse movimento – “[...] desvelar criando, criar por desvelamento” (Sartre, 2008, p. 50) – que está descrito acima. Por um lado, todas as qualidades do universo romanesco são função da subjetividade do leitor; cessando a atividade subjetiva, esse universo murcha; nesse sentido, o leitor é essencial em relação ao objeto: ele cria Raskólnikov, sua inscrição no tempo, seus afetos, suas relações com os outros, isto é, seu “mundo” (Sartre, 1940, p. 128). Por outro lado, essa criação é dirigida pelos signos verbais, que lhe servem de suporte; trata-se de uma estrutura transcendente, quer dizer, inassimilável à espontaneidade do leitor, uma estrutura que se impõe a ele, guia seus passos e enfim o embosca, devolvendo-lhe, como um espelho que o aprisionasse, as qualidades que emanam de sua subjetividade congeladas em objetividades impermeáveis; nesse sentido, o leitor “parece” inessencial em relação ao objeto: ele desvela Raskólnikov e seu mundo. Dessa forma, sobre os signos o leitor encontra um mundo objetivo e imaginário ou irreal, que só existe enquanto é criado por ele. Uma recomposição ou reinvenção? É dizer muito. A homossexualidade de Charlus, Proust jamais a descobre, pois antes mesmo de escrever já havia se decidido por ela. Executor e testemunha, é o leitor quem a descobre ao criá-la. Em suma: apenas a leitura realiza plenamente o livro. A essa realização plena é que Sartre se refere quando utiliza o símile da Terra Prometida – recorde-se: o escritor é “[...] como Moisés na soleira da Terra Prometida”[13] –, motivo que tem ressonância utópica, e que sintetiza a dialética do apelo (escrita) e da generosidade (leitura):

[...] toda obra literária é um apelo. Escrever é apelar ao leitor para que ele faça passar à existência objetiva o desvelamento que empreendi por meio da linguagem. Caso perguntemos a que o escritor apela, a resposta é simples. Como jamais encontramos no livro a razão suficiente para que o objeto estético apareça, mas apenas solicitações para produzi-lo, como tampouco há o suficiente no espírito do autor, e como a sua subjetividade, da qual não pode escapar, não pode dar a razão da passagem à objetividade, a aparição da obra de arte é um acontecimento novo que não poderia se explicar por dados anteriores. E como essa criação dirigida é um começo absoluto, ela é, portanto, operada pela liberdade do leitor naquilo que essa liberdade tem de mais puro. Assim, o escritor apela à liberdade do leitor para que esta colabore com a produção de sua obra (Sartre, 2008, p. 53).

 

A tese do caráter essencialmente socializado do fenômeno literário desemboca no vínculo das letras e da liberdade. Antes de explicitar o que esse vínculo exige e promete, note-se que A Literatura, essa Liberdade!, se não registra propriamente a certidão de nascença do argumento, o qual vem fermentando desde as Conferências do Havre sobre o romance (cf. Sartre, 2012, p. 51 ss.) , tira-lhe as consequências práticas, pela primeira vez, no fogo cruzado de uma batalha travada em situação de brutal amordaçamento de escritores e leitores. Esse enquadramento não é acessório ou acidental: sobre o fundo da dissolução do vínculo das letras, a afirmação da dimensão coletiva e humanizadora do fenômeno literário ganha gume combativo. A vibração democrática que o termo engajamento adquiriu a partir de então deve muito a essa ligação por assim dizer umbilical com o antifascismo. Voltemos ao panfleto de 1944. Se a escrita é apelo – uma modalidade específica de demanda endereçada ao outro, que não se confunde com o absolutismo da prece nem da exigência: apelar, em termos corriqueiros, é pedir uma mão ao outro, desvelar meu projeto diante dele, de modo a incliná-lo a se comprometer com a sua consecução –, se a leitura é necessariamente um dom livre – exercício de generosidade, afinal escoimado de toda coerção exterior à liberdade do agente –, então a própria literatura porta uma exigência, ou seja, um imperativo: a liberdade do público. Por esse viés, enfim, Sartre passa da literatura à política:

Assim, quanto mais valor [o escritor] der a seu trabalho, mais qualidades exigirá de seu público. Ou melhor, exigirá não mais que uma, mas que resume todas as outras: quererá ser julgado por homens livres. Assim, a literatura não é um canto inocente e fácil, que se adaptaria a todos os regimes; mas ela própria põe, a partir de si mesma, a questão política; escrever é reclamar a liberdade para todos os homens; se a obra não deve ser o ato de uma liberdade que quer se fazer reconhecer por outras liberdades, então não passa de uma infame tagarelice. Assim, mesmo deixando de lado seus sentimentos patrióticos, todo escritor consciente de seu ofício encontra em sua própria atividade literária um dever político: é preciso que lute para libertar seu país e seus compatriotas, para lhes devolver esta liberdade que, apenas ela, dará valor a seus escritos; há um momento em que a própria literatura exige o silêncio e o combate (Sartre, 2010a, p. 268).

 

Está erguida a bandeira: o “trabalho” do escritor e seu “combate” se atam por um amarrio interno. Ao invés de submeter a literatura à política, Sartre propõe a submissão da política à literatura, ou melhor, procura formular a política da literatura. No plano geral, tratava-se de evitar Cila e Caríbdis, isto é, a literatura “pura”, cuja autonomia àquela altura estava suspeita de conivência silenciosa com a opressão, e a literatura “militante”, que pautada pela “responsabilidade” política se submetia a preceitos e finalidades extraliterários. Nem Valéry nem Aragon (cf. Sapiro, 1999, p. 205-206; Sapiro, 2011, p. 683-685). — Como juntar autonomia e responsabilidade? Por esse fio correrá o engagement[14]. No plano específico, ainda não está em jogo a forma de ação política da literatura, mas as condições políticas de existência da literatura. Retornando ao tema nos textos programáticos de fins dos anos 40 ele dirá: “[...] em uma sociedade de opressão, não há mais literatura” (Sartre, 1998, p. 40); “[...] a liberdade de escrever implica a liberdade do cidadão” (Sartre, 2008, p. 71). Nesse sentido, procurava pavimentar, no solo da própria atividade literária, o caminho rumo à resistência tout court (“[...] há um momento em que a própria literatura exige o silêncio e o combate”), bem como de acusar o caráter antinômico da literatura colaboracionista, que, a partir do que ficou dito, só pode ser compreendida como uma empreitada autodestrutiva.  

 

4 O que falar quer dizer

Num balanço publicado em Les Lettres Françaises um mês depois da Libertação de Paris, Michel Leiris reproduz a estrutura epigramática da fórmula de abertura de A República do Silêncio — “[...] nunca fomos tão livres como sob a ocupação alemã” —, dando um balanço na experiência literária daqueles anos que acabavam de terminar — “[...] nunca soubemos com tanta nitidez o que falar quer dizer” (Leiris, 2003, p. 1266). Ele rememora os ultrajes infligidos à faculdade humana de “exteriorizar seus pensamentos pela voz ou por escrito” e procura tirar as consequências desta situação-limite para o “manejo da pena”. Uma poética feita de regras tão severas quanto foi duro e arriscado falar e escrever durante a ocupação, como se o ofício de homme de lettres só pudesse recobrar dignidade se os escritores tomassem tenência da retidão daqueles que se empenharam em publicar clandestinamente, como se a própria literatura só pudesse renascer se à palavra fosse conferido o mesmo peso que ela adquire sob tortura. Em O que é a literatura?, comentando o requisitório de Paulhan contra o rigor com que os escritores colaboracionistas foram punidos durante a Depuração – aqueles que constroem as prisões ficam livres, ao passo que aqueles que louvam a construção das prisões por meio de seus escritos são feitos prisioneiros[15] – , Sartre retoma essa linha:

Mas devemos nos alegrar pelo fato de que a nossa profissão comporta alguns perigos: quando escrevíamos na clandestinidade, os riscos eram mínimos para nós, porém consideráveis para o tipógrafo. Muitas vezes me envergonhei disso: ao menos essa situação nos ensinou a praticar uma espécie de deflação verbal. Quando cada palavra pode custar uma vida é preciso economizar as palavras, não se deve perder tempo fazendo gemer o violoncelo: vai-se direto ao ponto, sem rodeios (Sartre, 2008, p. 175).

 

É como se as “austeras virtudes da República do Silêncio e da Noite” se transpusessem para o plano literário: faxinar a linguagem, chamar um gato de gato, manejar os signos com discernimento utilitário, mais do que isso, posto que falar é agir e as palavras são pistolas carregadas, escrever como um homem que atira visando um alvo determinado, tudo enfim que aparece como prescrição no horizonte do programa sartriano de uma literatura engajada encontra mola propulsora no anseio de retomar a palavra lá onde suas consequências podem ser mortais. — A dimensão prática, transitiva e negativa da linguagem literária redescoberta na noite da ocupação? Quem sugere é o próprio Sartre, que não hesita em estabelecer o paralelo com as Luzes. Se no século XVIII a “essência” do ato de escrever se apreende no esforço sistemático para “disciplinar” a linguagem, de modo a torná-la veículo de transmissão da “razão analítica”, ácido no qual os escritores buscavam corroer os mitos do Ancien Régime, sob a ocupação esse esforço de ir direto ao ponto reaparece na denúncia das “noções vagas e sintéticas” – a Raça, o Judeu etc. – que, de dia e de noite, eram propugnadas pelo ocupante e pelo Regime de Vichy (cf. Sartre, 2008, p. 230). Nos artigos anônimos publicados na imprensa clandestina, a literatura, escapando à espiral que a conduzia a só falar de si e a se implodir num holocausto verbal, reencontrava a via da Negatividade — “[...] a dúvida, a recusa, a crítica, a contestação” (Sartre, 2008, p. 110). O correlato necessário dessa redescoberta da vocação prática, que evidentemente fazia o escritor abandonar os problemas intemporais para imiscuir-se no aqui e agora, isto é, nos assuntos que interessam a “todos”, é o reencontro com o público: “Aliás, aqueles entre nós que colaboraram com os panfletos clandestinos se endereçavam à comunidade inteira” (Sartre, 2008, p. 229). Pode parecer exagero, mas o que Sartre sugere é isso mesmo: a República do Silêncio lançou os escritores franceses numa esfera pública clandestina assemelhada àquela que fez emergir a República das Letras.

 

Literature and resistance

Abstract: This essay explores the anonymous articles published by Sartre in Les Lettres Françaises, a clandestine journal edited by the National Committee of Writers in occupied France. The goal is to reconstruct the historical context of this intervention, examining its conceptual foundations and literary influences. Central to this exploration is an analysis of "Literature, this Freedom!", in which the political significance of writing emerges from the experience of resistance. The investigation culminates in an assessment of the initial struggles of commitment.

 

Keywords: Sartre. Commitment; Collaborationism; Resistance; Literature.

 

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ANEXO (TRADUÇÃO)

 

A literatura, essa liberdade!

Jean-Paul Sartre

Les Lettres Françaises, n. 15, p. 8, abr. 1944.

 

Outro dia, num artigo de pura delação, Rebatet opunha orgulhosamente aos nomes dos “traidores” Gide e Jules Romains aqueles dos “grandes escritores” da colaboração. Ó surpresa! Esses tenores de La Gerbe ou de Je Suis Partout são quase todos desprovidos de talento, seja porque perderam o pouco de vigor ou de charme que tiveram outrora, como Céline e Montherlant, seja porque, como Thérive e Brasillach, jamais tiveram nada a dizer. Não se esperava que chegassem a esse ponto: com efeito, à primeira vista, não pareceria que o talento e o caráter estivessem ligados, e se poderia imaginar um romancista de valor que, embora covarde, invejoso ou cúpido, tivesse colaborado em jornais inspirados. Mas as coisas não são assim e, pensando bem, não poderiam ser assim. Não se escreve no ar e apenas para si; a literatura é um ato de comunicação; para a realização de um livro, o leitor é tão indispensável quanto o autor. É para ele e por ele, finalmente, que o livro existe. Aquele que o escreveu permanece sempre fora, como Moisés na soleira da Terra Prometida: aí não entra, conhece bem demais seus próprios artifícios; conta com o outro, o leitor, para recompor a obra ao lê-la; e é por esse leitor que quer ser reconhecido.

            Assim, quanto mais valor der a seu trabalho, mais qualidades exigirá de seu público. Ou melhor, exigirá não mais que uma, mas que resume todas as outras: quererá ser julgado por homens livres. Assim, a literatura não é um canto inocente e fácil, que se adaptaria a todos os regimes; mas ela própria põe, a partir de si mesma, a questão política; escrever é reclamar a liberdade para todos os homens; se a obra não deve ser o ato de uma liberdade que quer se fazer reconhecer por outras liberdades, então não passa de uma infame tagarelice. Assim, mesmo deixando de lado seus sentimentos patrióticos, todo escritor consciente de seu ofício encontra em sua própria atividade literária um dever político: é preciso que lute para libertar seu país e seus compatriotas, para lhes devolver essa liberdade que, apenas ela, dará valor a seus escritos; há um momento em que a própria literatura exige o silêncio e o combate.

            Ora, nossas cabeças bem pensantes da colaboração julgaram diversamente: seu público foi amordaçado, ameaçado, oprimido. Mas eles não ligam. Desejam que chegue a ser ainda mais subjugado, que seja enganado. No entanto, é para esse público que desprezam e detestam, é para esse público reduzido ao silêncio que escrevem. Assim, no mesmo momento em que reclamam a esse público que faça existir seus escritos, recompondo-os através de sua leitura, buscam humilhá-lo e subtrair sua liberdade soberana. Não se poderia imaginar contradição mais grosseira, nem desdém mais perfeito pelo próprio ofício. Isolados, desprezados que desprezam, terroristas aterrorizados, submetidos sem esperança aos alemães, a partir do momento em que sua voz se eleva e retine no silêncio, dá-lhes medo. Para quem burilariam sua prosa? O que lhes daria o gosto de se corrigir? Devem se acantonar, como Chateaubriant nos panegíricos de Hitler, que lhe parecem longas corveias, dado que ninguém os lê; ou, como Aymé, numa tola literatura de evasão. E, se é preciso enfim explicar esse paradoxo, está claro que eles não gostam de escrever, que até mesmo odeiam a literatura, pois sabem, no fundo de si próprios, que não têm talento.

 

Recebido: 08/05/2024 – Aprovado: 20/06/2024 – Publicado: 10/07/2024



[1] Professor substituto de Filosofia no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), São Paulo, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4904-1017. E-mail: fervidal09@yahoo.com.br.

[2] O conjunto compreende os seguintes textos: “Drieu la Rochelle ou la haine de soi” (Les Lettres Françaises, [s. l.], n. 6, p. 3-4, abr. 1943); “La littérature, cette liberté !” (Les Lettres Françaises, [s. l.] n. 15, p. 8, abr. 1944); “Un film pour l’après-guerre”  (Les Lettres Françaises, [s. l.] n. 15, p. 3, abr. 1944); “L’Espoir fait homme” (Les Lettres Françaises, [s. l.], n. 18, p. 2, jul. 1944, p. 2); “Puissance du cinema” (Les Lettres Françaises, [s. l.], n. 18, p. 5, jul. 1944); “La République du Silence” (Les Lettres Françaises, [s. l.], n. 20, p. 1, set. 1944 [1º número legal]). Com exceção do último texto, o único que saiu assinado e conheceu ampla repercussão, o resto do conjunto ficou na sombra, aparecendo coligido apenas na versão mais nova de Situations I (Sartre, 2010a), que tomo por base para as citações. Ao final deste artigo, apresento em ANEXO uma tradução de “A literatura, essa liberdade!”

[3] Sobre Sartre cativo no Stalag – perfil do Autor num período diversas vezes rememorado como de “conversão” –, cf. Perrin, 1980. Em meio ao relato dos planos de evasão que tramavam juntos, Perrin registra um diálogo que teve com Sartre a propósito da política: “[...] ele pensa que é tempo de fazer alguma coisa... O erro dos homens livres é sempre dar carta branca aos outros, que disso se aproveitam. Assim, ele decidiu descer de sua torre, entrar no jogo. Escuto com grande atenção: por acaso Mathieu cederia às demandas insistentes de Brunet? Não é tão simples. Não se pode aderir a nenhum partido: estão todos podres, o comunista incluso. Nizan teve que abandoná-lo [...]. Ele pensa no entanto que há lugar para uma associação de um gênero novo, que se poderia chamar – compreenda-se bem! – o ‘Partido da Liberdade’” (Perrin, 1980, p. 127).

[4] Para a história intelectual da resistência, apoio-me em Sapiro, 1999, p. 470 ss. Cf. também Caute, 1967, p. 162 ss.; Lottman, 1985, p. 221 ss.

[5] Dados elementares a respeito dos periódicos e autores mencionados por Sartre. Por um lado, La Gerbe, jornal político-literário fundado por Alphonse de Chateaubriant, por assim dizer o porta-voz oficial da Propaganda-Abteilung, onde contribuíam figuras como Ramon Fernandez; por outro, Je suis partout, hebdomadário que propugnava um “fascismo à francesa”, onde escreviam Robert Brasillach, Lucien Rebatet, Pierre-Antoine Cousteau e Alain Laubreaux (cf. Sapiro, 1999, p. 32-43; Lottman, 1985, p. 194 ss.).

[6] “[...] sob a Ocupação, muitos escritores colaboraram com revistas clandestinas, e aqueles para quem a resistência limitou-se a esse trabalho sempre tiveram uma espécie de complexo de inferioridade em relação àqueles que, ao contrário, estavam engajados numa luta direta, como se, precisamente, não fosse suficiente resistir no plano da literatura, como se ‘isso não passasse de literatura’” (Sartre, 1998, p.13. A mesma questão aparece em Sartre, 1948, p. 10-11; Sartre, 2008, p. 233). Esse “complexo de inferioridade” é o que infelicita e dilacera cada um de seus heróis intelectuais, a começar pelo Orestes de Les Mouches, peça escrita e encenada no período da Ocupação. Hugo, de Les Mains Sales, talvez seja a mais característica dessas figuras que, obcecadas com o ato, não conseguem passar do gesto (cf. Jeanson, 2000, p. 21; Hollier, 1993, p. 37).

[7] Para a oposição entre o sonho e a ação, a qual atravessa toda a obra de Drieu La Rochelle, cf. La Rochelle, 1967, p. 49-54. Para uma visão geral acerca da trajetória desse autor, cf. Vandromme, 1958. Sobre a versão de Sartre a propósito da biografia de Drieu La Rochelle, Jacques Lecarme (2001) chama a atenção para uma série de imprecisões e distorções, sem, no entanto, negar pertinência ao juízo que vai implícito no texto. No fundo, Sartre constrói a figura de Drieu La Rochelle, a partir do protagonista do romance Gilles.

[8] “Deus? Só podia se aproximar dele por meio desse gesto violento de seu corpo, esse gesto demente lhe projetando, fazendo-o trombar com uma morte selvagem. [...] Os deuses que morrem e renascem: Dioniso, Cristo. Nada se faz a não ser no sangue. É preciso sem cessar morrer para sem cessar renascer. O Cristo das catedrais, o grande deus branco e viril. Um rei, filho de rei. / Ele encontrou um fuzil, foi até uma canhoneira (meurtrière) e, com zelo, pôs-se a atirar” (La Rochelle, 1962, p. 500-501). Sem a sobrecarga das imagens míticas, esses motivos, que remetem a uma tradição conservadora obcecada pelo tema da “decadência” (penso em Paul Bourget, por exemplo, mas não se deve esquecer que, no panteão de Drieu La Rochelle, estava também Nietzsche), aparecem no centro da definição que ele dá do fascismo: “[...] é o movimento político que vai o mais francamente, o mais radicalmente, no sentido da grande revolução dos costumes, no sentido da restauração do corpo – saúde, dignidade, plenitude, heroísmo – no sentido da defesa do homem contra a grande cidade e contra a máquina” (apud Vandromme, 1958, p. 111).

[9] Os termos entre aspas são de Lucien Rebatet. “L’Académie de la dissidence ou la trahison prosaïque”. Je suis partout, n. 656, 10 mar. 1944, apud Sapiro, 1999, p. 687-688. É a esse texto que Sartre se refere na abertura de A Literatura, essa Liberdade!: “Outro dia, num artigo de pura delação, Rebatet opunha orgulhosamente aos nomes dos ‘traidores’ Gide e Jules Romains aqueles dos ‘grandes escritores’ da colaboração” (Sartre, 2010a, p. 266).

[10] Convém lembrar que a noção de “público”, no maquinário conceitual de O que é a literatura?, contrapõe-se à noção de “meio” (Taine): enquanto a primeira daria base para uma “sociocrítica” dinâmica ou dialética, a segunda redundaria em explicações mecânicas ou deterministas (cf. Sartre, 2008, p.82). Embora ainda estejamos em um plano abstrato, talvez não seja desinteressante notar como a visão sartriana das relações entre literatura e sociedade se aproxima daquela implícita na noção de “sistema literário”. Não estou sugerindo, bem entendido, que a reconstrução das relações entre escritores e público na literatura francesa efetuada por Sartre (esquema e periodização nada originais, pois, salvo engano, ele apenas segue a História de Thibaudet) seja algo como a “formação” de um “sistema literário”, o que seria descabido. O que estou sugerindo é apenas que talvez seja difícil encontrar explicação mais clara em nosso idioma para o trecho de O que é a literatura? em questão do que a seguinte passagem de Antonio Candido (2000, p. 68, grifos meus): “Em contraposição à atitude tradicional e unilateral, que considerava de preferência a ação do meio sobre o artista, vem-se esboçando na estética e na sociologia da arte uma atenção mais viva para este dinamismo da obra, que esculpe na sociedade as suas esferas de influência, cria o seu público, modificando o comportamento dos grupos e definindo relações entre os homens. / A literatura é pois um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo”.

[11] Essa passagem do Baudelaire é quase uma ilustração – talvez seja mesmo excessivamente ilustrativa – do Capítulo de O Ser e o Nada sobre as modalidades da “consciência reflexiva”. Se nesse passo Sartre afirma que o “fracasso” da objetivação do para-si por meio da reflexão resulta na contemplação de si como “quase-objeto”, no passo de O que é a literatura? que estamos acompanhando ele caracterizará a leitura que faço do meu próprio texto ao escrever como uma “quase-leitura”. A homologia é evidente: apenas o outro – em O ser e o nada, o olhar do outro; em O que é a literatura?, o leitor – é capaz de revelar-me como objeto (cf. Sartre, 2009, p. 185 ss.).

[12] Noutras palavras: “Se a obra é mediadora entre o autor e o público, este é mediador entre o autor e a obra, na medida em que o autor só adquire plena consciência da obra quando ela lhe é mostrada através da reação de terceiros. Isto quer dizer que o público é condição do autor conhecer a si próprio, pois esta revelação da obra é a sua revelação. Sem o público, não haveria ponto de referência para o autor, cujo esforço se perderia caso não lhe correspondesse uma resposta, que é definição dele próprio. Quando se diz que escrever é imprescindível ao verdadeiro escritor, quer isto dizer que ele é psiquicamente organizado de tal modo que a reação do outro, necessária para a autoconsciência, é por ele motivada através da criação. Escrever é propiciar a manifestação alheia, em que a nossa imagem se revela a nós mesmos” (Candido, 2000, p. 65). 

[13] “Um dos temas recorrentes (desde A Náusea e O imaginário até O que é a Literatura?, passando pelos Cadernos [Diários de uma guerra estranha] [...] é o tema da Terra prometida. O escritor tem [sic] situações irrealizáveis. Ele as realiza através do leitor. Em resumo, a criação se faz por meio do leitor e escapa ao autor. O autor é Moisés que indica a terra prometida sem vê-la. Em suma, é uma transposição da relação com a Morte e com a eternidade para o presente e para a diversidade espacial. Morto, adquiro minha verdadeira figura para o leitor (cf. o texto de Michelet: o guardião das tumbas), esta figura que sempre me escapará. Aqui se passa o mesmo: trabalho na contingência, no tédio, na dúvida. Jamais verei o que faço como o estrangeiro a quem isso é destinado. Mas ele o fará existir. Lendo. Em suma, o livro publicado é minha morte” (Sartre, 2010b, p. 914).

[14] “Teoria do engajamento literário: servir com disciplina em minha profissão uma causa ou um agrupamento, mas exigindo que me deixassem a liberdade exigida pelo exercício de minha profissão. Em suma, aliado de um grupo e ao mesmo tempo obediente. Mas como aliado, não como militante” (Sartre, 2010b, p. 959).

[15] Trata-se da parábola da muralha do Atlântico: “A depuração torna dura a vida dos escritores. Os engenheiros, empresários e maçons que construíram a muralha do Atlântico caminham entre nós tranquilamente. Eles se empenham em construir novas muralhas. Constroem as muralhas das novas prisões onde são presos os jornalistas que cometeram o equívoco de escrever que a muralha do Atlântico era bem construída” (Paulhan, 1948, p. 98). O estudo mais completo sobre os processos contra os escritores colaboracionistas, bem como sobre como foi a reação teórica ao problema da responsabilização dos intelectuais – sobretudo Sartre, cuja teoria da “responsabilidade do escritor” é interpretada como resposta a essa questão inescapável –, é de Sapiro, 2011. Sobre a polêmica causada pela parábola da muralha do Atlântico e a resposta de Sartre, cf., nesse estudo, p. 666-667.